segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Strathmore suspirou fundo dessa vez.
- A que Tankado lhe deu.
- Mas do que você está falando?
- Mentiroso! - gritou Susan, liberando um pouco o pescoço para conseguir respirar melhor. - Eu vi os e-mails de Tankado em sua conta.
Hale ficou paralisado. Girou o corpo de Susan em sua direcção.
- Você entrou na minha conta?
- E você cancelou meu tracer - ela respondeu rispidamente.
Hale sentiu sua pressão sanguínea subir. Achou que tinha apagado todas as pistas: Não imaginava que Susan sabia o que tinha feito. Por isso ela não estava acreditando em nada do que ele dizia. Sentiu as paredes se fechando sobre ele. Sabia que não conseguiria negociar uma saída, não a tempo. Desesperado, sussurrou novamente no ouvido dela:
- Susan, Strathmore matou Chartrukian!
- Deixe-a ir - repetiu o comandante, com voz firme. - Ela não acredita em você.
- E por que deveria? - revidou Hale. - Você é um canalha, um mentiroso! Fez uma lavagem cerebral em Susan! Você não conta a ela nada além daquilo que lhe interessa! Ela por acaso sabe o que você realmente planeja fazer com o Fortaleza Digital?
- E o que seria isso? - provocou Strathmore.
Hale sabia que a próxima coisa que dissesse seria seu bilhete para a liberdade ou sua sentença de morte. Respirou fundo e colocou suas cartas na mesa.
- Você está planejando colocar uma back door no Fortaleza Digital.
Suas palavras provocaram perplexidade. Hale sabia que havia acertado em cheio.
A notória frieza do comandante estava sendo testada.
- Quem lhe disse isso? - perguntou, com uma ponta de tensão na voz.
- Eu mesmo li - respondeu Hale, em tom desafiador, tentando se aproveitar da mudança no equilíbrio de forças. - Estava em uma das suas brainstorms.
- Isso é impossível. Nunca imprimo minhas brainstorms.
- Claro que não. Li directamente em sua conta.
Strathmore pareceu hesitar.
- Você entrou em meu escritório?
- Não, entrei na sua conta a partir do Nodo 3. - Hale soltou um risinho sarcástico. Precisaria de todas as técnicas de negociação aprendidas com os militares para sair vivo da Criptografia.
Strathmore aproximou-se mais um pouco, a Beretta em ponto de mira na escuridão.
- Como você sabe a respeito de meu acesso de programador?
- Já lhe disse, bisbilhotei sua conta.
- Impossível.
Hale deu um sorriso zombeteiro.
- Este é um dos problemas de contratar os melhores, comandante. Algumas vezes eles são melhores que você.
- Meu jovem - bradou Strathmore -, não sei onde você conseguiu essa informação, mas já passou dos limites. Solte a senhorita Fletcher agora ou irei chamar a Segurança e colocá-lo na cadeia para o resto de sua vida.
- Não, você não fará isso - disse Hale, firme. - Chamar a Segurança agora iria arruinar seus planos. Eu contaria tudo para eles. - Hale fez uma curta pausa.
- Mas deixe-me sair disso limpo e ninguém ouvirá nada sobre o Fortaleza Digital.
- Nada feito - Strathmore respondeu. - Eu quero a senha.
- Já lhe disse que não tenho droga de senha nenhuma!
- Chega de mentiras! - esbravejou Strathmore. - Onde está a senha? Hale apertou o pescoço de Susan.
- Deixe-me sair ou ela morre!
Trevor Strathmore já havia passado por um bom número de negociações de alto risco em sua vida para saber que Hale se encontrava em um estado mental muito perigoso. O jovem criptógrafo estava encurralado, e oponentes acuados eram sempre perigosos - tornavam-se desesperados e imprevisíveis. Strathmore sabia que seu próximo movimento seria crítico. A vida de Susan dependia dele, assim como o futuro do Fortaleza Digital.
A primeira coisa a fazer era dissipar a tensão. Pensou por algum tempo e então disse, num tom de voz relutante:
- Tudo bem, Greg. O que devo fazer?
Silêncio. Hale foi pego de surpresa e não sabia como lidar com o tom colaborativo do comandante. Afrouxou ligeiramente a chave de braço com que segurava Susan.
- Bem... eu... - Greg hesitava. - Primeiro quero que me dê sua arma. Vocês dois vêm comigo.
- Reféns? - Strathmore riu friamente. - Greg, você precisa de um plano melhor. Há pelo menos 10 guardas armados entre nós e o estacionamento.
- Não sou tolo! - retrucou. - Vou usar seu elevador. Susan vem comigo! Você fica!
- Odeio lhe dizer isto, mas o elevador está sem energia.
- Mentira! - reagiu Hale. - O elevador funciona com energia do prédio principal! Eu vi a planta.
- Já tentamos - disse Susan, sem ar, tentando ajudar. - Está parado.
- Vocês são dois grandes mentirosos. Se o elevador está mesmo parado, então vou interromper a execução do TRANSLTR e restaurar a energia.
- O elevador necessita de uma senha - disse Susan, irritada.
- E daí? - Hale riu, ironizando. - Estou certo de que o comandante ficará feliz em nos dar a senha. Não é comandante?
- Sem chances - vociferou Strathmore.
Hale estourou.
- Agora escute bem, Strathmore. A minha proposta é esta: você deixa que eu saia com Susan pelo elevador. Irei dirigir durante algumas horas, depois eu a deixo em algum lugar.
Strathmore sentiu que as apostas estavam aumentando. Havia colocado Susan no jogo e agora precisava tirá-la daquela situação. Sua voz permaneceu firme e fria.
- E os meus planos para o Fortaleza Digital?
Hale riu.
- Você pode reescrevê-lo com seu acesso de programador. Não direi nada. Fez uma pausa e continuou com voz ameaçadora. - Mas se algum dia eu achar que você está me caçando, vou directo para a imprensa contar a história toda. Direi a eles que o Fortaleza Digital está corrompido e irei acabar com esta organização de merda.
Strathmore avaliou a oferta de Hale. Era simples e clara. Susan viveria e o Fortaleza Digital seria reescrito com o acesso secreto. Enquanto o comandante não mandasse uma equipa atrás de Hale, ele ficaria em silêncio. Strathmore sabia que Hale não seria capaz de se manter em silêncio durante muito tempo. Ainda assim, o conhecimento sobre o Fortaleza Digital era a única segurança que Hale teria. Talvez ele se comportasse. De qualquer forma, Strathmore sabia que poderia mandar apagar Hale mais tarde, se necessário.
- Vamos, resolva logo isso! - bradou Hale. - Podemos sair ou não? Seus braços apertaram Susan como um torniquete.
Strathmore sabia que, se pegasse o telefone agora e ligasse para a Segurança, Susan não correria riscos. Podia apostar a própria vida nisso. O cenário estava claro em sua mente: o telefonema pegaria Hale de surpresa. Ele entraria em pânico e, no final das contas, frente a um pequeno exército, seria incapaz de agir. Após um breve impasse, acabaria se entregando. Mas, se eu chamar a Segurança, pensou Strathmore, meu plano estará arruinado.
Hale apertou com mais força. Susan gritou de dor. - E então? Devo matá-la?
Strathmore continuava avaliando as opções. Se deixasse Hale sair da Criptografia com Susan, não haveria garantia alguma. Greg poderia afastar-se alguns quilômetros, parar o carro em algum bosque... Provavelmente tinha uma arma e poderia obrigá-la a... O estômago de Strathmore ficou embrulhado. Não havia como prever o que iria acontecer antes que Hale libertasse Susan. Se ele a libertasse. Tenho que chamar a Segurança, decidiu Strathmore. O que mais posso fazer? Imaginou Hale na corte, dizendo tudo o que sabia sobre o Fortaleza Digital. Droga! Meus planos seriam arruinados. Deve haver alguma outra saída.
- Decida-se! - gritou Hale, puxando Susan na direcção da escadaria.
Strathmore não estava prestando atenção. Se salvar Susan significava arruinar seus planos, era uma perda necessária. A vida dela vinha antes de todo o resto. Susan Fletcher era um preço que Strathmore se recusava a pagar.
Hale segurava um dos braços de Susan torcido atrás das costas dela ao mesmo tempo que mantinha seu rosto virado para o lado.
- É sua última chance, comandante! Me dê essa arma!
A mente de Strathmore continuava processando um turbilhão de idéias, procurando outras opções. Há sempre outras opções! Finalmente falou em voz baixa, quase triste.
- Não, Greg, lamento. Não posso deixá-lo fugir.
- O quê? - Hale tremia.
- Vou chamar a Segurança.
- Co... comandante! Não! - gaguejou Susan.
Hale segurou-a ainda mais fortemente.
- Se você chamar a Segurança, ela morre!
Strathmore pegou o celular em seu cinto e activou-o.
- Greg, você está blefando.
- Você jamais faria isso! - Hale gritou, descontrolado. - Vou contar tudo! Vou arruinar seus planos! Você está a poucas horas de seu sonho! Controlar todos os dados do mundo! Não haverá mais o TRANSLTR, não haverá mais limites: só informação livre. É uma chance única na vida! Você não vai deixá-la passar!
A voz de Strathmore cortou o ar como uma espada de aço.
- Olhe bem.
- Mas... e Susan? - Hale balbuciou. - Se você ligar, ela morre!
Strathmore manteve-se firme.
- É um risco que tenho que assumir.
- Mentira! Você tem mais tesão por ela do que pelo Fortaleza Digital! Eu sei disso! Você não vai arriscar nada!
Susan, irritada, tentou dizer algo, mas Strathmore falou primeiro.
- Hale, você me conhece pouco e mal! Minha vida é só isso: correr riscos. Se você quer jogar duro, vamos lá! - Começou a digitar em seu telefone. - Você me julgou mal, amigo! Ninguém ameaça a vida de meus subordinados e sai limpo! - Levantou o telefone e gritou no aparelho:
- Operadora! Me passe para a Segurança! Hale começou a torcer o pescoço de Susan.
- Eu, eu vou matá-la... Eu juro!
- Não vai matar ninguém! - disse Strathmore, resoluto. - Matar Susan só iria piorar as coi... - Interrompeu a frase e enfiou a boca no telefone. - Segurança! Aqui fala o comandante Trevor Strathmore. Temos uma situação com reféns na Criptografia! Mandem alguns homens para cá! Sim, imediatamente! Também temos uma falha no gerador. Quero que redistribuam energia de todas as fontes externas disponíveis. Quero todos os sistemas operacionais em cinco minutos! Greg Hale matou um de meus técnicos. Ele está mantendo minha criptógrafa sênior como refém. Vocês têm permissão para usar gás lacrimogêneo em todos nós se necessário! Se Hale não cooperar, posicionem atiradores de elite e atirem para matar. Assumo toda a responsabilidade. Movam-se agora!
Hale ficou parado, completamente perplexo. Soltou ligeiramente Susan. Strathmore fechou seu telefone e colocou-o de volta no cinto com um gesto firme.
- Sua vez, Greg.
CAPÍTULO
81
Becker estava de pé ao lado da cabine telefônica no saguão do aeroporto, os olhos ainda turvos. Seu rosto continuava queimando e sentia um ligeiro enjôo, mas seu estado de ânimo não poderia ser melhor. Estava tudo acabado. Realmente acabado. Em breve voltaria para casa. O anel em seu dedo era o graal que procurava. Levantou a mão contra a luz e olhou para o anel. Não podia focar o suficiente para ler a inscrição, mas não parecia ser em inglês. O primeiro símbolo era um Q, um O ou um zero... Seus olhos ainda doíam muito para que pudesse diferenciar uma letra da outra. Tentou ler os outros caracteres, mas não faziam sentido. Isto é uma questão de segurança nacional?
Becker fazia força para ignorar o que restara da ardência em seus olhos. Megan lhe dissera que esfregar os olhos apenas faria com que a dor piorasse, embora ele não conseguisse entender como podia ficar pior que aquilo. Pensou em telefonar para Strathmore, mas não dava para esperar nem mais um segundo: seus olhos estavam ardendo muito e precisava lavá-los. Meio às cegas, caminhou novamente na direcção dos banheiros.
A imagem borrada do carrinho de limpeza ainda estava na frente do banheiro masculino, então Becker foi novamente em direcção ao feminino. Achou que tinha ouvido um som lá dentro. Bateu na porta.
- Hola? Silêncio.
Talvez seja Megan, pensou. Ela ainda tinha cinco horas pela frente antes que seu vôo partisse e lhe dissera que iria lavar o braço até que o restante daquela inscrição saísse.
- Megan? - chamou. Bateu outra vez. Nenhuma resposta. Becker abriu a porta.
- Olá? - Entrou. O banheiro parecia estar vazio. Caminhou em direção à pia.
A pia continuava suja, mas a água estava fria. Becker sentiu um grande alívio quando jogou água nos olhos. A dor começou a melhorar, e a névoa que encobria sua visão aos poucos se dissipou. Olhou-se no espelho. Parecia ter passado os últimos dias chorando.
Ele secou o rosto na manga de seu blazer e então se lembrou de algo fantástico. No meio de toda aquela agitação, esqueceu que estava no aeroporto! Em algum lugar próximo havia um hangar e um Learjet 60 esperando para levá-lo para casa. O piloto havia dito claramente: 'Tenho ordens para ficar aqui até que você volte."
Era difícil de acreditar, pensou Becker, que depois de tudo tivesse voltado exatamente ao lugar onde começara aquela estranha aventura. O que estou esperando? - riu consigo mesmo. Tenho certeza de que o piloto poderá enviar uma mensagem pelo rádio para Strathmore!
Ainda rindo, David olhou-se novamente no espelho e ajeitou a gravata. Estava prestes a sair quando um reflexo atrás dele chamou sua atenção. Virou-se. Parecia ser uma ponta da bolsa de Megan aparecendo por debaixo da porta entreaberta de um dos reservados.
- Megan? - chamou novamente. Nenhuma resposta. - Megan??
Becker foi até lá. Bateu com a mão na lateral do reservado, mas também não houve resposta. Empurrou a porta devagar e ela se abriu.
Ele conteve um grito de horror. Megan estava sentada na privada, os olhos revirados para cima. Bem no meio da testa a marca de uma perfuração à bala deixava um rastro de sangue escorrer pelo seu rosto.
- Meu Deus! - exclamou Becker, em choque.
- Está muerta - uma voz quase inumana sussurrou atrás dele. – Ela está morta.
Como em um sonho, Becker virou-se.
- Señor Becker? - disse a voz fantasmagórica.
Perplexo, Becker examinou o homem que havia entrado no banheiro. Ele lhe parecia estranhamente familiar.
- Eu sou Hulohot - o assassino falou. As palavras distorcidas pareciam vir do interior de suas entranhas. Hulohot estendeu a mão. - EI anillo. O anel.
Becker olhou para ele ainda em choque. O homem enfiou a mão no bolso e tirou uma arma. Mirou na cabeça de Becker.
- O anel.
Em um momento de clareza, Becker sentiu algo que lhe era inteiramente desconhecido. Como se obedecessem a um instinto de sobrevivência, todos os músculos de seu corpo se tensionaram ao mesmo tempo. Ele voou pelo ar quando a arma foi disparada e foi cair em cima de Megan. Uma bala abriu um buraco na parede atrás dele.
- Merda! - grunhiu Hulohot. De alguma forma, no último instante possível, Becker conseguiu mergulhar para fora de sua mira. O assassino avançou. Becker levantou-se, deixando para trás o corpo inerte da adolescente. Ouviu passos se aproximando. Uma respiração. A arma sendo engatilhada.
- Adiós - murmurou o homem, investindo rápido como uma pantera, com a arma apontada para o reservado.
Disparou novamente. Um borrão vermelho cruzou o ar. Não era sangue. Um objecto havia se materializado do nada, voando para fora do reservado e acertando o assassino no peito. Isso fez com que sua arma disparasse um milésimo de segundo antes. Era a bolsa de Megan.
Becker saltou para fora do reservado. Empurrou o ombro contra o peito do homem e jogou-o de encontro à pia. Houve um choque violento. Um espelho se espatifou, e o assassino soltou a arma. Os dois homens caíram no chão.
Becker se desvencilhou e correu para a saída. Hulohot pegou a arma no chão, virou-se e disparou. A bala acertou a porta do banheiro quando ela se fechava.
O vasto salão do aeroporto se descortinava à frente de Becker como um deserto intransponível. Suas pernas impulsionavam seu corpo muito mais rápido do que ele imaginava ser capaz.
Enquanto deslizava pela porta giratória, ouviu outro tiro, vindo de trás. O painel de vidro à sua frente explodiu em milhares de fragmentos. Becker empurrou a moldura da porta com o ombro e saiu, desequilibrado, na calçada do lado de fora.
Havia um táxi esperando.
- Déjame entrar! - gritou Becker, socando a porta trancada. - Me deixa entrar! - O motorista, contudo, se recusou. Seu cliente, o homem de óculos de armação de metal, havia pedido que esperasse. Becker virou-se e viu Hulohot em disparada pelo saguão, arma em punho. Olhou então para sua pequena Vespa, ainda jogada sobre a calçada. Sou um homem morto.
Hulohot atravessou a porta giratória exatamente quando Becker tentava em vão dar partida em sua Vespa. Ele riu e levantou a arma.
O afogador!, Becker mexeu nos manetes sob o tanque de gasolina. Pulou sobre o pedal de partida novamente. A Vespa engasgou e morreu.
- El anillo - a voz estava próxima.
Becker olhou para cima. Viu o tambor da arma. A câmara estava rodando. Enfiou o pé no pedal de partida mais uma vez.
O tiro de Hulohot por pouco não acertou a cabeça de Becker, mas a moto pegou a tempo e saiu em disparada. Becker segurou-se como pôde enquanto a moto trepidava, descendo aos trancos um aterro gramado e depois virando, trôpega, em um canto do edifício e indo para a pista de decolagem.
Furioso, Hulohot correu na direcção do táxi que o esperava. Segundos depois, o motorista estava jogado na calçada, zonzo, vendo seu táxi sumir em uma nuvem de poeira.
CAPÍTULO
82
As implicações do telefonema do comandante para a Segurança começaram a se encaixar no cérebro de Hale, ainda atordoado, e ele se sentiu tomado por uma onda de pânico. A Segurança está vindo! Susan tentou se soltar, mas Hale puxou-a de volta.
- Me solta! - ela gritou.
A mente de Hale estava a mil. O telefonema o deixara sem acção. Strathmore ligou para a Segurança! Ele vai sacrificar seus planos para o Fortaleza Digital!
Hale jamais poderia imaginar que o comandante iria deixar passar a chance que o Fortaleza Digital representava. Sua back door era uma chance única na vida.
Tomado pelo pânico, Hale começou a imaginar coisas. Via a Beretta de Strathmore onde quer que olhasse. Começou a girar, segurando Susan contra seu corpo, tentando evitar que o comandante tivesse ângulo para atirar. Com medo, dirigiu-se cegamente em direcção às escadas. Dentro de cinco minutos as luzes iriam se acender, as portas se abririam e uma equipa da SWAT iria entrar.
- Você está me machucando! - gemeu Susan. Ela tentava respirar, presa pelo braço de Hale em uma gravata apertada, esperneando em meio a seus movimentos desesperados.
Hale chegou a pensar em libertá-la e correr como um louco para o elevador de Strathmore, mas era suicídio. Ele não tinha a senha. Além disso, uma vez do lado de fora da NSA, sem um refém, estaria morto. Nem mesmo sua possante Lotus seria mais rápida que os helicópteros da NSA. Susan é a única coisa que pode me salvar de Strathmore.
- Susan - disse Hale, desesperado, puxando-a em direção às escadas. - Venha comigo! Prometo que não irei machucá-la!
Susan continuava se debatendo, e Hale percebeu que tinha outros problemas pela frente. Mesmo que encontrasse uma forma de entrar no elevador privativo e levar Susan junto, ela provavelmente iria se debater durante todo o caminho de saída do prédio. Ele sabia muito bem que aquele elevador só parava em um lugar, na "Estrada Subterrânea", um labirinto de túneis de acesso restrito, através dos quais o alto escalão da NSA se movia em segredo. Hale não pretendia ficar perdido nos corredores do subsolo da agência com uma refém hostil. Era uma armadilha mortal. Além disso, mesmo que saíssem, ele não estava armado. Como faria para atravessar o estacionamento com Susan? Como iria dirigir?
A voz de um dos professores de estratégia militar de Hale, em seu período como marine, ecoou na mente de Hale: Tente dobrar um braço e ele resistirá. Mas convença uma mente a pensar como você deseja e terá conquistado um aliado.
- Susan, Strathmore é um assassino! Você está em perigo aqui! - Hale disse, as palavras saindo de sua boca de forma quase automática.
Susan não lhe deu atenção. Hale sabia que era uma tentativa fútil: o vice-director jamais iria machucar Susan e ela sabia disso.
Hale forçou os olhos, tentando descobrir onde o comandante estava escondido. Strathmore havia ficado em silêncio, o que só aumentava o pânico de Greg. A Segurança iria chegar em poucos instantes.
Com força renovada, o criptógrafo abraçou a cintura de Susan usando os dois braços e puxou-a vigorosamente para cima da escada. Ela enganchou seus saltos no primeiro degrau e resistiu, mas não adiantou, pois Hale era bem mais forte.
Cuidadosamente, ele foi subindo a escada de costas, puxando Susan pela cintura. Empurrá-la para cima seria mais fácil, mas a plataforma do lado de fora do escritório de Strathmore estava levemente iluminada pelas telas de computador. Se Susan estivesse na frente, o comandante teria um ângulo perfeito para atirar
nele pelas costas. Da maneira como estava procedendo, Susan servia como escudo humano entre ele e o salão da Criptografia.
Pouco antes da metade do caminho, Hale sentiu um movimento na base da escada. Strathmore está se preparando para agir!
- Não tente nada, comandante! - rosnou. - Qualquer movimento em falso e Susan morre.
Hale esperou um pouco, mas não ouviu nada. Prestou bastante atenção. Nada. A base da escada estava imóvel. Não sabia se estava imaginando coisas, mas não importava. Strathmore jamais se arriscaria a atirar enquanto ele estivesse mantendo Susan à sua frente.
Continuou subindo a escada, puxando Susan, quando um facto inesperado aconteceu. Ouviu um leve ruído na plataforma que estava acima e atrás dele. Hale parou. Sua adrenalina estava no máximo. Pensou se Strathmore teria conseguido chegar ao topo da escadaria. O instinto lhe dizia que o vice-director tinha que estar lá embaixo. Mas, subitamente, ouviu de novo o mesmo som, mais alto desta vez. Claramente aquilo era um passo na plataforma superior.
Aterrorizado, Hale percebeu que havia cometido um erro. Strathmore está na plataforma atrás de mim! Ele tem uma mira limpa para as minhas costas! Desesperado, trocou de posição com Susan e começou a descer a escada de volta.
Quando chegou no último degrau, olhou furiosamente para a plataforma e gritou:
- Afaste-se, comandante! Afaste-se ou irei quebrar o...
Na base da escada, a coronha da Beretta desceu violentamente, acertando Hale na cabeça. Susan desvencilhou-se de Hale, que havia caído no chão com a pancada, e tentou equilibrar-se, ainda meio desnorteada. Strathmore pegou-a e puxou-a em sua direção, abraçando seu corpo trêmulo.
- Shhh... Está tudo bem, sou eu. Você está segura - disse ele, acalmando-a.
Susan continuava tremendo.
- Com... comandante... - ela balbuciava, desorientada. - Pensei que... Eu pensei que você estivesse lá em cima... Eu ouvi...
- Calma, fique calma - sussurrou. - Você ouviu o som dos sapatos que eu joguei em cima da plataforma.
Susan começou a rir e a chorar ao mesmo tempo. O comandante tinha salvado sua vida. Ao seu lado, na escuridão, ela se sentiu tomada por um enorme alívio. Contudo, também se sentia culpada: a Segurança estava vindo. Ela havia deixado que Hale a tomasse como refém e fora usada contra Strathmore. O comandante teve que pagar caro para salvá-la.
- Me desculpe - ela disse.
- Por quê?
- Seus planos... o Fortaleza Digital... está tudo perdido agora.
Strathmore sorriu e balançou a cabeça.
- Nada disso.
- Mas o que vamos fazer com o pessoal da Segurança? Eles estarão aqui em instantes. Não teremos tempo para...
- A Segurança não virá, Susan. Temos todo o tempo do mundo.
Susan ficou desnorteada. A Segurança não virá?
- Mas ouvi quando você ligou...
Strathmore deu um sorriso malicioso.
- O truque mais velho do mundo. Simulei aquela ligação.
CAPÍTULO
83
A Vespa de Becker era ,sem dúvida alguma, o menor veículo que já havia percorrido a pista do aeroporto de Sevilha. Na sua velocidade máxima de 80 km/h, soava mais como uma motosserra do que como uma motocicleta e, infelizmente para Becker, estava bem abaixo da potência necessária para descolar.
Pelo espelho lateral, Becker viu o táxi surgindo na pista escura, 400 metros atrás dele. Aproximava-se rapidamente. Ele olhou para a frente. Cerca de 800 metros adiante, o contorno dos hangares das aeronaves delineava-se contra o céu nocturno. Becker tentou calcular se o táxi conseguiria alcançá-lo na distância que restava. Susan certamente conseguiria fazer as contas em dois segundos e ainda estimaria suas chances. Becker nunca tinha sentido tanto medo em toda a sua vida.
Abaixou a cabeça e girou o acelerador até o limite. A moto já estava dando seu máximo. Ele calculou que o táxi atrás dele estava a pelo menos 140 km/h, quase o dobro de sua velocidade. Olhou fixamente para os três hangares que cresciam à sua frente. O do meio. É onde o Learjet está. Ouviu um tiro.
A bala foi bater na pista, alguns metros atrás dele. Becker olhou para trás. O assassino estava debruçado na janela, mirando nele. Becker jogou a Vespa para o lado, pouco antes de seu espelho lateral explodir com um tiro. Pôde sentir o impacto da bala estremecendo o guidão da motoneta. Meu Deus, não vou conseguir!
O asfalto da pista estava ficando mais claro à sua frente agora. O táxi se aproximava mais e seus faróis iluminavam a pista. Outro tiro. Desta vez a bala ricocheteou no metal da Vespa.
Becker lutava para não desviar e seguir em outra direcção. Tenho que chegar ao hangar! Torcia para que o piloto do Learjet estivesse vendo que ele se aproximava. Será que ele está armado? Ele terá tempo de abrir as portas da cabine? Mas, quando Becker viu o interior iluminado dos hangares, percebeu que suas perguntas eram em vão. O Learjet não estava lá. O hangar estava vazio. Onde foi parar o maldito avião?
Os dois veículos entraram a toda a velocidade dentro do hangar vazio, enquanto Becker procurava desesperadamente uma saída. Não havia saída alguma. A parede nos fundos do hangar, fechada com folhas de zinco, não tinha nem portas nem janelas. O táxi emparelhou com ele, e Becker olhou à esquerda a tempo de ver Hulohot levantar a arma.
Agindo por puro reflexo, Becker freou abruptamente. Quase não fez diferença. O chão do hangar estava sujo de óleo, e a Vespa continuou deslizando na mesma trajectória.
Ouviu o ruído estridente do táxi ao seu lado, freios travando as rodas e os pneus carecas deslizando pela superfície oleosa. O carro perdeu o controle e começou a girar em uma nuvem de fumaça e de borracha queimada a poucos centímetros da moto de Becker.
Lado a lado, os dois veículos escorregavam em rota de colisão contra a folha metálica da parte posterior do hangar. Becker tentava desesperadamente bombear os freios, mas tinha perdido completamente a tracção e era como dirigir sobre o gelo. À sua frente, a parede de zinco se aproximava rapidamente. Com o táxi girando ao seu lado, ele fechou os olhos e se encolheu, esperando o impacto.
Ouviu-se um ruído ensurdecedor de aço se chocando contra o zinco, mas David não sentiu dor alguma. Em vez disso, quando abriu os olhos, viu que estava a céu aberto, ainda sobre sua Vespa, quicando sobre um gramado. Era como se a parede do hangar houvesse desaparecido à sua frente. O táxi ainda estava a seu lado, varando o campo. Sobre sua capota, ondulante, uma das folhas de zinco pairava acima da cabeça de Becker.
Com o coração em disparada, Becker acelerou e seguiu noite adentro.
CAPÍTULO
84
Jabba soltou um suspiro de alegria quando terminou seu último ponto de solda. Desligou o ferro de soldar, colocou a lanterna no chão e ficou deitado por algum tempo na escuridão, sob o mainframe. Ele estava exausto. Seu pescoço doía. Trabalhar dentro de uma máquina era sempre complicado, sobretudo para um homem de seu tamanho.
E não param de diminuir o tamanho dessas coisas, pensou.
Fechou os olhos, tentando relaxar um pouco, mas alguém do lado de fora começou a puxar suas botas.
- Jabba! Saia já daí! - gritou uma voz feminina.
Droga, Midge me encontrou, resmungou.
- Vamos, Jabba, saia daí.
Relutantemente, deslizou o corpo para fora.
- Pelo amor de Deus, Midge! Eu já lhe disse que... - Mas não era Midge. Jabba olhou para cima, surpreso, e viu Soshi.
Com apenas 45 quilos, Soshi Kuta tinha o pavio curto. Era o braço direito de Jabba, sua assistente, uma técnica perspicaz formada pelo MIT. Muitas vezes ficava trabalhando até tarde com Jabba e, de todas as pessoas de sua equipe, parecia ser a única que não se deixava intimidar por ele. Ela o olhou e perguntou:
- Por que diabos você não atendeu minha chamada? Nem ligou de volta para a central?
- Sua chamada? - repetiu Jabba. - Eu achei que fosse...
- Deixa pra lá. Tem alguma coisa estranha acontecendo no banco de dados central.
Jabba olhou para o relógio.
- Estranha? - agora estava ficando preocupado. - Você pode ser mais objectiva? Dois minutos depois Jabba estava correndo pelo hall em direcção ao banco de dados.
CAPÍTULO
85
Greg Hale estava curvado no chão do Nodo 3. Strathmore e Susan haviam acabado de arrastá-lo através do salão da Criptografia e tinham atado seus pés e suas mãos usando alguns cabos grossos removidos de equipamentos do Nodo 3.
Susan ainda estava impressionada com a manobra que o comandante executara. Ele simulou a ligação! No final das contas, Strathmore conseguiu capturar Hale e salvar Susan, tudo isso sem perder sua chance de reescrever o Fortaleza Digital.
Susan olhou para o criptógrafo amarrado no chão, perturbada. Ele estava respirando pesadamente. Sentado no sofá, com a Beretta pousada em sua perna, Strathmore não o perdia de vista. Susan voltou sua atenção para o terminal de Hale e continuou sua busca pela chave de North Dakota.
Mais uma vez sua pesquisa não gerou nenhum resultado.
- Não conseguimos nada ainda - suspirou. - Talvez tenhamos que esperar que David encontre a cópia de Tankado.
Strathmore olhou para ela, preocupado.
- Se David falhar e a chave de Tankado cair em mãos erradas...
Ele não precisava terminar a frase. Susan compreendeu. Até que o arquivo do Fortaleza Digital que estava na Internet fosse substituído pela versão modificada de Strathmore, a chave de Tankado continuaria sendo um problema.
- Depois que fizermos a troca, não me importa quantas chaves estejam soltas por aí. Na verdade, quanto mais, melhor. - Fez sinal para que ela continuasse pesquisando. - Até lá, contudo, estamos lutando contra o relógio.
Susan ia acrescentar alguma coisa, mas suas palavras foram abafadas por um som ensurdecedor. O silêncio da Criptografia foi interrompido por sirenes de alarme vindas dos subníveis. Susan e Strathmore trocaram olhares espantados.
- O que é isso? - gritou Susan, no intervalo do ruído das sirenes.
- O TRANSLTR! - Strathmore gritou de volta, visivelmente preocupado.
- Está superaquecendo. Creio que Hale estava falando sério quando disse que a energia auxiliar não estava bombeando fréon suficiente.
- E o sistema de autodesativação?
Strathmore pensou por um segundo, depois gritou:
- Deve ter havido algum curto-circuito.
- A luz de emergência da Criptografia entrou em acção, iluminando seu rosto.
- É melhor interromper a execução! - gritou Susan.
Strathmore assentiu. Não havia como saber o que iria acontecer se os três milhões de microprocessadores superaquecessem e pegassem fogo. Ele precisava subir até sua sala, acessar o terminal e interromper a execução do Fortaleza Digital. Precisava fazer isso rápido, antes que alguém do lado de fora da Criptografia notasse a confusão e resolvesse intervir.
O comandante olhou de relance para Hale, ainda inconsciente. Deixou a Beretta em uma mesa perto de Susan e gritou acima do barulho das sirenes:
- Eu já volto! - Foi andando na direcção do buraco na parede de vidro do Nodo 3, mas antes de sair virou-se e falou:
- Enquanto isso, dê um jeito de encontrar essa chave!
Susan olhou para os resultados nem um pouco produtivos de sua pesquisa pela chave e torceu para que Strathmore conseguisse abortar o processo rápido. Com o ruído e as luzes, a Criptografia parecia um sítio de lançamento de mísseis.
No chão, Hale começou a se mover lentamente. A cada toque da sirene, ele piscava. Com um gesto automático, Susan pegou a Beretta. Hale abriu os olhos e viu Susan de pé, sobre ele, com a pistola mirando sua virilha.
- Onde está a chave? - perguntou Susan.
Hale estava com dificuldades para entender a situação.
- O que... o que aconteceu?
- Você estragou tudo, foi isso que aconteceu. Agora me diga onde está a chave!
Hale tentou mover os braços, mas percebeu que estava amarrado. Entrou em pânico.
- Deixe-me sair!
- Preciso da chave - repetiu Susan, friamente.
- Não tenho a chave! Me deixa sair! - Hale tentou levantar-se. Mal conseguia girar o corpo no chão.
Susan gritou, entre os apitos da sirene.
- Sei que você é North Dakota e que Ensei Tankado lhe deu uma cópia da chave. Eu preciso dessa cópia, preciso dela agora!
- Você está louca! - disse Hale, exasperado. - Não sou North Dakota!
- Lutou para libertar-se dos cabos que o amarravam, mas não conseguia.
Susan se abaixou um pouco e continuou a discussão, nitidamente irritada.
- Não minta para mim! Por que diabos todos aqueles e-mails para North Dakota estão em sua conta, então?
- Já lhe disse! - falou Hale, implorando, enquanto as sirenes continuavam a todo o volume. - Eu estava espionando Strathmore! Aqueles e-mails em minha conta foram mensagens que copiei da conta de Strathmore! São mensagens de Tankado interceptadas pelo COMINT!
- Mas que besteira! Você nunca seria capaz de espionar a conta do comandante!
- Você não entende, não é? - gritou Hale. - Alguém já estava espionando a conta de Strathmore. - Hale soltava as palavras nos intervalos entre as sirenes. - Outra pessoa havia colocado um grampo lá. Acho que foi o director Fontaine! Eu apenas me aproveitei desse grampo. Você tem que acreditar em mim! Foi assim que descobri o plano de reescrever o Fortaleza Digital! Eu li todas as estratégias que Strathmore desenvolveu no BrainStorm.
Susan parou. Strathmore com certeza havia traçado seus planos para o Fortaleza Digital usando seu software. Se alguém de facto houvesse espionado sua conta, toda a informação estaria disponível...
- Reescrever o Fortaleza Digital é doentio! - continuou Hale, gritando a plenos pulmões. - Você sabe muito bem quais são as implicações: acesso completo para a NSA! - O som estridente das sirenes abafou suas palavras, mas Hale estava possuído e continuou. - Você acha que está pronta para assumir esta responsabilidade? Você acha que alguém está? É uma idéia de louco! Você diz que nosso governo só está interessado em cuidar do que é melhor para o povo? Genial! Mas o que acontecerá se algum futuro governo não estiver preocupado com os interesses do povo?? Essa tecnologia é eterna!
Susan mal podia ouvi-lo. O barulho na Criptografia era ensurdecedor. Hale continuava lutando para livrar-se dos cabos. Olhava fixamente para Susan e continuava a gritar.
- Como os civis vão poder se defender de um estado totalitário se o sujeito que estiver no poder tiver acesso a todas as suas linhas de comunicação? Como irão planejar uma revolta?
Susan já ouvira esse argumento muitas vezes. A reclamação a respeito de "governos futuros" era uma constante nos questionamentos da EFF.
- Strathmore precisava ser detido! - gritou Hale, em meio às sirenes. - Jurei que eu iria fazê-lo. E foi por isso que passei o dia aqui, observando sua conta, esperando que ele fizesse o movimento final para que eu pudesse gravar a alteração sendo feita. Eu precisava de provas - uma evidência de que ele tinha escrito uma back door. Foi por isso que copiei todo o seu e-mail em minha conta. Era a evidência de que ele estava vigiando o Fortaleza Digital. Meu plano era apresentar as informações à imprensa.
O coração de Susan sobressaltou-se. Subitamente as coisas que estava ouvindo se encaixavam no perfil de Greg Hale. Seria verdade? Se Hale de facto soubesse do plano de Strathmore para lançar uma versão adulterada do Fortaleza Digital, ele poderia esperar até que todo mundo estivesse usando o algoritmo e então soltar sua bomba, com todas as provas.
Susan imaginou as manchetes nos jornais: Criptógrafo Greg Hale revela plano secreto dos Estados Unidos para obter controle global das informações!
O que era aquilo, uma reprise do Skipjack? Descobrir um novo acesso de programador criado pela NSA tornaria Greg Hale mais famoso do que ele jamais teria imaginado. Também seria o fim da NSA. Ela ficou pensando se Hale estaria contando a verdade. Não, decidiu-se. Claro que não!
Hale continuou com sua ladainha.
- Eu interrompi seu tracer porque achei que você estava me procurando! Pensei que você suspeitasse de que Strathmore estava sendo espionado. Não queria que encontrasse o grampo e descobrisse que estava ligado à minha conta!
Plausível, mas improvável.
- Então por que matar Chartrukian? - retrucou Susan.
- Mas não o matei! - gritou Hale, em meio ao caos das sirenes. – Strathmore o empurrou! Eu vi tudo de onde estava, no subsolo! Chartrukian estava prestes a chamar o pessoal de SegSis e arruinar os planos do comandante de reescrever o algoritmo.
Hale é hábil, pensou Susan. Tem respostas para tudo.
- Deixe-me sair! - implorou Hale. - Não fiz nada!
- Não fez nada? - gritou Susan, preocupada porque Strathmore estava demorando tanto. - Você e Tankado estavam mantendo a NSA como refém. Pelo menos até você resolver traí-lo. Vamos, conte-me, Tankado realmente morreu de ataque cardíaco ou você pediu a um de seus amigos que o tirassem do caminho?
- Você é tão cega! - gritou Hale. - Não dá para ver que não estou envolvido?
Me solte antes que a Segurança chegue!
- A Segurança não virá - ela respondeu, secamente.
Hale ficou branco.
- O quê?
- Strathmore apenas fingiu aquele telefonema.
Os olhos de Hale se esbugalharam. Ele ficou paralisado por um instante. Depois começou a contorcer-se histericamente.
- Strathmore vai me matar! Ele vai me matar! Eu sei demais!
- Calma, Greg.
As sirenes soaram outra vez, enquanto Hale gritava.
- Mas sou inocente!
- Você está mentindo! E eu tenho a prova! - Susan andou pelo círculo de terminais. - Você se lembra do tracer que interrompeu? - ela perguntou, em frente a seu próprio terminal. - Eu o reenviei! Vamos ver se ele nos diz algo de interessante?
De facto, na tela de Susan um ícone piscava indicando que o tracer havia retornado. Ela moveu o mouse e abriu a mensagem. Esses dados irão selar o destino de Hale, pensou. Hale é North Dakota. A caixa de texto se abriu na tela. Hale é...
Susan parou. O tracer exibiu seu resultado, e ela ficou olhando, perplexa, em silêncio. Devia haver algum engano. O tracer havia apontado para outra pessoa, alguém bastante improvável.
Susan apoiou-se na mesa, em frente ao terminal, olhando fixamente para a janela de texto à sua frente. Era a mesma informação que Strathmore disse que tinha recebido quando ele rodou o programa! Susan achou que o vice-director tivesse cometido algum engano, mas ela sabia que tinha configurado seu programa correctamente.
Ainda assim, a informação na tela era impensável:
NDAKOTA = ET@DOSHISHA.EDU
ET?, Susan se perguntou, sua cabeça dando voltas. Ensei Tankado é North Dakota? Aquilo era inconcebível. Se os dados estivessem correctos, Tankado e seu parceiro eram a mesma pessoa. Os pensamentos de Susan foram, mais uma vez, interrompidos pela irritante sirene. Por que Strathmore não desliga logo essa droga?
Hale remexia-se no chão, tentando encontrar uma posição de onde pudesse ver Susan.
- Então? O que o programa retomou? Me diga!
Susan varreu Hale e todo o caos em volta de sua mente. Ensei Tankado é North Dakota...
Ela estava revirando as peças do quebra-cabeça, tentando fazer com que se encaixassem. Se Tankado era North Dakota, então ele estivera enviando e-mails para si mesmo... O que significava que North Dakota não existia. O parceiro de Tankado era uma farsa.
North Dakota é um fantasma. Um jogo de fumaça e espelhos, pensou Susan. A trama era brilhante. Strathmore aparentemente estivera assistindo a apenas um lado de uma partida de tênis. Como a bola sempre voltava, havia presumido que tinha alguém do outro lado da rede. Mas Tankado estivera jogando contra uma parede. Durante todo aquele tempo tinha anunciado as virtudes do Fortaleza Digital em e-mails que enviava para si mesmo. Escrevia as mensagens, depois as encaminhava para uma empresa de
envio de e-mails anônimos e, poucas horas depois, essa mesma empresa mandava os e-mails de volta para ele.
Pensando no esquema agora, tudo parecia óbvio para Susan. Tankado queria que o comandante o vigiasse. Queria que lesse suas mensagens. Ensei Tankado criou uma apólice de seguro imaginária sem nunca ter que confiar em outra pessoa para guardar sua chave. Claro que, para fazer com que toda a farsa parecesse autêntica, ele usou uma conta secreta. Ou, pelo menos, secreta o bastante para afastar qualquer suspeita de que tudo não passava de armação. Tankado era seu próprio parceiro. North Dakota não existia. Ensei Tankado criou uma operação de um homem só.
Um homem só.
Um pensamento aterrador tomou conta de Susan. Tankado poderia ter usado sua falsa correspondência para convencer Strathmore de praticamente qualquer coisa.
Ela se lembrou de sua primeira reacção quando Strathmore havia lhe contado sobre o algoritmo inquebrável. Ela tinha dito que era impossível. A insegurança criada por aquela situação estava perturbando-a profundamente. Que prova eles tinham de que Tankado havia realmente criado o Fortaleza Digital? Apenas ele mesmo, se vangloriando em seus e-mails. E, claro, o TRANSLTR. O computador tinha ficado travado em um loop sem fim durante as últimas 24 horas, ou quase. No entanto havia outros programas que poderiam manter a máquina em loop durante todo esse tempo, programas que eram bem mais fáceis de criar do que um algoritmo inquebrável.
Vírus.
Um arrepio desceu pela espinha de Susan. Mas como um vírus poderia entrar no TRANSLTR? Como uma voz retornando da tumba, Phil Chartrukian lhe deu a resposta: Strathmore contornou o Gauntlet!
Em uma revelação aterrorizante, Susan compreendeu o que acontecera. Strathmore fez o download do arquivo do Fortaleza Digital de Tankado e tentou enviá-lo para que o TRANSLTR o decifrasse. Mas o Gauntlet havia rejeitado o arquivo, porque continha perigosas cadeias de caracteres mutantes. Normalmente Strathmore teria ficado preocupado, mas ele tinha lido o e-mail de Tankado: Cadeias de caracteres mutantes são a saída! Convencido de que era seguro carregar o Fortaleza Digital, Strathmore contornou os filtros do Gauntlet e enviou o arquivo para o TRANSLTR.
Susan mal podia falar.
- Não há Fortaleza Digital nenhum - ela disse, trêmula, enquanto as sirenes continuavam gritando. Lentamente, dolorosamente, inclinou-se sobre seu terminal. Tankado saiu à caça de tolos, e a NSA mordeu a isca.
Vindo lá de cima, ela ouviu um longo grito angustiado. Era Strathmore.
CAPÍTULO
86
Strathmore estava curvado sobre sua mesa quando Susan chegou, sem fôlego, à sua porta. Tinha colocado a cabeça entre os braços, num gesto de desespero, e pingava de suor. As sirenes continuavam tocando.
Susan correu até a mesa.
- Comandante?
Ele não se moveu.
- Comandante! Temos que desligar o TRANSLTR! Nós estamos com um...
- Ele nos pegou - disse Strathmore, sem levantar a cabeça. – Tankado enganou a todos...
Ela percebeu, pelo tom soturno de sua voz, que ele já havia entendido. Tudo que Tankado disse sobre o algoritmo inquebrável, o leilão da senha, tudo havia sido um jogo, uma charada. Tankado enganou a
NSA, fez com que espionassem sua conta de e-mail, acreditassem que tinha um parceiro e, finalmente, induziu-os a carregarem um arquivo muito perigoso.
- As cadeias de caracteres mutantes... - continuou Strathmore, quase incapaz de falar.
- Eu já sei.
O comandante levantou lentamente a cabeça.
- O arquivo que eu peguei na Internet... Era um...
Susan estava tentando permanecer calma. Todas as peças haviam mudado de posição no tabuleiro. Nunca houve um algoritmo inquebrável, nunca houve um Fortaleza Digital. O arquivo que Tankado colocou na rede era um vírus encriptado, provavelmente protegido por um algoritmo de encriptação comercialmente disponível, mas forte o suficiente para manter todo mundo longe do vírus - todos, excepto a NSA. O TRANSLTR havia quebrado o código protector e libertado o vírus.
- As cadeias de caracteres mutantes... - repetiu Strathmore. - Tankado disse que faziam parte do algoritmo. - Strathmore jogou-se para trás em sua cadeira.
Susan podia compreender o estado de desespero em que o comandante se encontrava. Ele havia sido completamente enganado. Tankado nunca quisera que uma empresa de software comprasse seu algoritmo, porque não havia um algoritmo. Tudo não passava de uma farsa. O Fortaleza Digital era uma grande isca criada com o único propósito de despertar a curiosidade da NSA. A cada movimento de Strathmore, Tankado estava por trás das cortinas movendo os fios como se ele fosse uma marionete.
- Eu ordenei que o Gauntlet fosse contornado.
- Mas você não tinha como saber.
Strathmore bateu com o punho na mesa.
- Eu tinha que saber! Por Deus, olhe para o apelido que ele usou! NDAKOTA! Preste atenção!
- O que você quer dizer?
- Ele está nos gozando! É um maldito anagrama!
Susan olhou, pensativa. Um anagrama? Mentalizou as letras e começou a fazer permutações. Ndakota... Kado-tan... Oktadan... Tandoka... Sentiu seu corpo fraquejar. Strathmore estava certo, estava na cara deles. Como não tinham visto aquilo antes? North Dakota não era uma referência a um dos estados norte-americanos, mas Tankado esfregando sal na ferida! Ele chegara ao cúmulo de mandar um aviso à NSA, uma pista óbvia de que ele mesmo era NDAKOTA - TANKADO. Mas os melhores decifradores de código do mundo não haviam percebido, exactamente como ele planejara.
- Ele estava zombando de nós! - disse Strathmore.
- Você tem que interromper a execução do TRANSLTR!
Strathmore continuou olhando para a parede, estarrecido.
- Comandante! Desligue a máquina! Ninguém sabe o que pode estar acontecendo lá dentro!
- Já tentei - Strathmore respondeu, soturno.
- Como assim, tentou?
Strathmore não disse nada. Apenas virou sua tela na direção de Susan. Seu monitor exibia uma estranha cor marrom. No final da tela, uma caixa de diálogo mostrava diversas tentativas de desligar o TRANSLTR. Todas eram seguidas pela mesma resposta:
IMPOSSÍVEL INTERROMPER A EXECUÇÃO
IMPOSSÍVEL INTERROMPER A EXECUÇÃO
IMPOSSÍVEL INTERROMPER A EXECUÇÃO
Susan sentiu um frio na barriga. Impossível interromper a execução? Por quê? Ela temia já saber a resposta. Então essa é a vingança de Tankado? Destruir o TRANSLTR! Durante anos, ele quisera que
todos soubessem da existência do TRANSLTR, mas ninguém acreditou nele. Então decidiu destruir o gigante por conta própria. Lutou até a morte por seus ideais: o direito dos indivíduos à privacidade.
Lá embaixo, as sirenes continuavam berrando.
- Temos que cortar toda a energia - pediu Susan. - Já!
Sabia que, se corressem, poderiam salvar o supercomputador. Todos os computadores do mundo, dos PCs mais baratos até os sistemas de controle de satélite da NASA, possuíam alguma forma de desligamento manual. Não era uma saída elegante, mas sempre funcionava: "puxar a tomada”.
Se desligassem toda a energia que ainda havia na Criptografia, forçariam o TRANSLTR a ser desligado também. Depois poderiam remover o vírus. Essa parte seria simples, pois bastaria reformatar os discos rígidos do TRANSLTR. Uma reformatação iria apagar completamente tudo que houvesse no computador - dados, programas, o vírus, tudo. Muitas vezes, reformatar os sistemas era uma solução inviável, pois levava à perda de milhares de arquivos, algumas vezes meses de trabalho. Mas com o TRANSLTR era diferente. Aquela máquina podia ser reformatada sem perda alguma. Supercomputadores com processamento paralelo eram projectados para fazer contas, não para armazenar dados. Quase nada era gravado dentro do TRANSLTR. Quando ele quebrava um código, enviava os resultados para o banco de dados central da NSA para que...
Susan congelou. Em um relance, percebeu a extensão da tragédia. Colocou a mão na boca e abafou um grito.
- O banco de dados central!
Strathmore mantinha o mesmo olhar vago para a escuridão. Ele já havia chegado à mesma conclusão. Falou com uma voz mecânica.
- Sim, Susan. O banco de dados. Tankado usou o TRANSLTR para colocar um vírus em nosso banco de dados central.
Strathmore apontou, trêmulo, para sua tela. Susan apoiou-se na parede e olhou novamente para algumas palavras que estavam logo abaixo da caixa de texto que ela havia visto antes.
DIVULGUEM A EXISTÊNCIA DO TRANSLTR
APENAS A VERDADE PODERÁ SALVÁ-LOS
Susan sentiu o sangue gelar. As informações mais secretas dos Estados Unidos estavam armazenadas na NSA: protocolos de comunicações militares, a identidade de espiões no exterior, planos de armas em desenvolvimento, documentos digitalizados, acordos de comércio... A lista era enorme.
- Tankado não faria isso! - respondeu ela. - Corromper todos os registros secretos de nosso país?
Nem mesmo Ensei Tankado seria capaz de atacar o banco de dados da NSA, pensava Susan. Olhou para a mensagem novamente.
APENAS A VERDADE PODERÁ SALVÁ-LOS
- A verdade? A respeito de quê?
Strathmore respondeu, respirando pesadamente.
- O TRANSLTR - disse, com voz fúnebre. - A verdade sobre o TRANSLTR. Susan concordou. Tankado estava forçando a NSA a divulgar a existência do TRANSLTR. Era uma forma de chantagem. Havia dado duas escolhas à agência: confessar que o supercomputador existia ou perder seu banco de dados. Ela olhou, aturdida, para o texto à sua frente. Na última linha da tela, uma mensagem piscava de forma ameaçadora.
DIGITE A SENHA
Olhando para as palavras que piscavam, Susan repassou toda a trama em sua mente: o vírus, a chave, o anel de Tankado, a engenhosidade da chantagem. A chave não tinha relação alguma com a desencriptação de um algoritmo: era um antídoto que servia para interromper a acção do vírus. Susan já havia estudado vírus como aquele: programas destrutivos que incluíam um mecanismo interno de desactivação, uma senha secreta que podia ser usada para interromper sua execução.
Tankado nunca planejou destruir o banco de dados da NSA! Apenas queria que contássemos a verdade sobre o TRANSLTR! Depois iria nos dar a senha para que pudéssemos interromper a acção do vírus.
Estava claro para ela, também, o quão errado o plano de Tankado havia saído. Ele não planejara morrer. Certamente pensou em ficar sentado num bar na Espanha, ouvindo o noticiário da CNN a respeito do computador americano ultra-secreto para decifrar códigos. Então provavelmente ligaria para Strathmore e leria os dígitos da chave, salvando o conteúdo do banco de dados no último instante. Após umas boas gargalhadas, ele desapareceria, tornando-se um herói para a EFE.
Susan socou a mesa.
- Precisamos encontrar o anel! É a única chave!
Como não havia North Dakota algum, também não havia uma segunda chave. Mesmo que a NSA resolvesse revelar a verdade sobre o TRANSLTR, Tankado não poderia mais ajudá-los.
Strathmore permaneceu em silêncio.
A situação era mais séria do que Susan havia imaginado. Ela estava chocada por Tankado ter permitido que as coisas chegassem a esse ponto. Ele sabia o que aconteceria se a NSA não conseguisse o anel. Ainda assim, em seus últimos segundos de vida, ele havia dado o anel para estranhos. Havia deliberadamente tentado mantê-Io fora do alcance deles. Por outro lado, pensou Susan, o que se esperaria que Tankado fizesse se achasse que a NSA havia mandado matá-lo?
Ainda assim, Susan não acreditava que Tankado fosse permitir que isso acontecesse. Ele era um pacifista. Não queria provocar destruição, queria apenas deixar as coisas claras. Sua luta dizia respeito ao TRANSLTR. Dizia respeito ao direito das pessoas de manterem um segredo. O que ele desejava é que todos soubessem que a NSA estava ouvindo. Apagar o banco de dados da agência era um acto de agressão que Ensei Tankado não cometeria, pensou Susan.
As sirenes a trouxeram de volta à realidade. Ela olhou para o comandante, arrasado. Não apenas seus planos de inserir um acesso oculto no Fortaleza Digital haviam sido destruídos, como também seu descuido havia deixado a NSA muito próxima do que poderia ser o pior desastre para a segurança nacional em toda a história dos Estados Unidos.
- Comandante, isso não é culpa sua! - insistiu ela, tentando superar o ruído. das sirenes. - Se Tankado não houvesse morrido, teríamos como barganhar, teríamos opções!
Mas Strathmore não estava ouvindo mais nada. Sua vida estava acabada. Passara trinta anos servindo seu país. Aquele deveria ser seu momento de glória, seu grand finale: uma back door colocada no padrão mundial de encriptação. Em vez disso havia deixado um vírus entrar no banco de dados central da Agência de Segurança Nacional. Não havia como deter o vírus, ao menos não sem desligar a energia e apagar todos os biliões de bytes de dados irrecuperáveis. Apenas o anel poderia salvá-los, e se David não havia encontrado o anel até agora...
- Preciso desligar o TRANSLTR! - disse Susan, tomando as rédeas da situação. - Vou ao subsolo desligar o disjuntor principal.
Strathmore virou-se lentamente e olhou para ela. Era um homem derrotado, arrasado.
- Eu vou - disse em voz baixa. Levantou-se, tropeçando ao tentar sair de trás de sua mesa.
Susan foi até ele e fez com que se sentasse novamente.
- Não - disse em tom autoritário. - Eu vou. - Não deixou espaço para discussões.
Strathmore apoiou o rosto entre as mãos.
- Está bem. último nível. Ao lado das bombas de gás fréon.
Susan virou-se e dirigiu-se para a porta. A meio caminho, olhou para trás e gritou: - Comandante, isso ainda não acabou. Não fomos derrotados ainda. Se David puder encontrar o anel a tempo, podemos salvar o banco de dados!
Strathmore não respondeu.
- Ligue para o pessoal do banco de dados! - ordenou Susan. - Avise-os a respeito do vírus! Você é o vice-director da NSA. Você é um sobrevivente!
Em câmara lenta, Strathmore olhou para ela. Como alguém que toma a decisão mais penosa de sua vida, assentiu pesarosamete.
Cheia de determinação, Susan partiu em meio à escuridão.
CAPÍTULO
87
A Vespa se arrastava pela pista para veículos lentos da Carretera de Huelva. Estava quase amanhecendo e já havia bastante tráfego: jovens de Sevilha retomando de suas noitadas festivas na praia. Uma van cheia de adolescentes passou por ele buzinando. A motoneta de Becker parecia um brinquedo na estrada.
Cerca de 500 metros atrás, um táxi semidestruído surgiu na estrada, com pedaços de metal soltos arrastando no chão e soltando faíscas. Sem muito controle, jogou um Peugeot 504 para o gramado central.
Becker passou por uma placa onde estava escrito: SEVILLA CENTRO - 2 KM. Se ele pudesse encontrar abrigo no centro da cidade, talvez tivesse uma chance. O velocímetro marcava 60 km/h. Dois minutos até a saída. Ele sabia que não teria tanto tempo assim. Em algum ponto atrás dele, o táxi avançava rapidamente. Becker olhou para as luzes do centro de Sevilha e rezou para chegar vivo até lá.
Estava a meio caminho da saída quando o som de metal riscando a pista se fez ouvir atrás dele. Curvou-se sobre a Vespa, puxando o acelerador ao máximo. Ouviu o som abafado de um tiro e o assobio da bala que errou o alvo. Jogou-se para a esquerda, cortando as pistas de um lado para o outro, na esperança de conseguir um pouco mais de tempo. Era inútil. A rampa de saída ainda estava a uns 300 metros quando o táxi encurtou a distância entre eles e ficou cerca de dois ou três carros atrás. Becker sabia que, em poucos segundos, levaria um tiro ou seria atropelado. Ele olhou à frente, procurando alguma alternativa, mas a estrada era cercada de ambos os lados por encostas íngremes cobertas de pedregulhos. Ouviu outro tiro. Hora de tomar uma decisão.
Com a moto zunindo e soltando faíscas no asfalto, jogou-se à direita e saiu da estrada. Os pneus da moto chegaram à base da encosta. Becker lutava para manter o equilíbrio sobre a Vespa, que jogava para trás uma nuvem de pedrinhas, a roda traseira patinando enquanto galgava a montanha. O pequeno motor roncava de forma patética e as rodas giravam em falso enquanto a moto subia o terreno acidentado. Becker fazia o possível para ajudar, esperando que o motor não engasgasse. Não teve coragem de olhar para trás, certo de que, a qualquer momento, o táxi iria parar com uma freada brusca e balas voariam em sua direcção.
Contudo, nenhuma bala foi disparada.
A Vespa chegou até o topo, e Becker pôde ver, à sua frente, o centro. As luzes da cidade descortinavam-se à sua frente como um céu estrelado. Passou a toda por alguns arbustos e saiu em uma rua. Tinha a impressão de que sua motocicleta andava mais rápido agora. A Avenida Luis Montoto parecia fugir sob os pneus. O estádio de futebol passou rápido à sua esquerda. Estava a salvo.
Foi então que Becker ouviu o ruído familiar de metal sendo arrastado pelo concreto. Cerca de 100 metros à frente, o táxi surgiu em alta velocidade na rampa de saída, derrapando ao entrar na Luis Montoto e depois acelerando na direcção de David.
Desta vez ele manteve-se indiferente. Sabia para onde estava indo. Virou à esquerda na Menéndez Pelayo e acelerou. A Vespa atravessou um pequeno parque e depois saiu na Rua Mateus Gago, uma ruela de mão única que dava no portal do bairro de Santa Cruz.
Só mais um pouco, pensou.
O táxi seguia em seu encalço, cada vez mais perto. Entrou atrás de Becker no arco de Santa Cruz, perdendo um dos espelhos laterais ao passar pelo arco estreito. Becker sentiu que tinha vencido: Santa Cruz era uma das partes mais antigas de Sevilha. Não havia ruas largas entre os prédios, apenas um labirinto de vielas estreitas construídas na época dos romanos. Ali só era possível andar a pé ou de motoneta. Anos atrás, Becker havia passado algumas horas perdido naquelas ruelas.
Ao acelerar no trecho final da Mateus Gago, a catedral gótica de Sevilha, do século XI, cresceu como uma montanha diante de seus olhos. Logo a seu lado estava a torre da Giralda, projetando-se 127 metros para cima contra as primeiras luzes do amanhecer. A segunda maior catedral do mundo ficava em Santa Cruz, que era também local de residência de algumas das mais antigas e devotas famílias católicas de Sevilha.
Becker cruzou a praça com calçamento de pedras. Ouviu um único tiro, mas era tarde. Ele e sua moto já haviam desaparecido por uma pequena viela, a Callita de La Virgen.
CAPÍTULO
88
O farol da Vespa de Becker desenhava sombras nítidas nas paredes das pequenas vielas. Ele brigava com a embreagem enquanto a moto roncava entre o casario branco, acordando um pouco mais cedo alguns moradores de Santa Cruz naquela manhã de domingo.
Haviam se passado menos de 30 minutos desde que Becker fugira do aeroporto. Estava sendo perseguido desde então e tinha muitas perguntas em sua mente: Quem está tentando me matar? Por que este anel é tão especial? Onde está o jacto da NSA? Lembrou-se de Megan morta no banheiro, e a sensação de náusea voltou.
A idéia inicial de Becker era atravessar o bairro e sair do outro lado, mas Santa Cruz era um desnorteante labirinto de vielas. Em toda parte havia caminhos falsos e ruas sem fim. Becker perdeu o rumo rapidamente. Tentou encontrar a torre da Giralda para se situar, mas as paredes a seu redor eram altas demais e só deixavam que visse um pouco do céu acima dele, com a manhã surgindo.
Ficou pensando onde poderia estar o homem com os óculos de armação de metal. Já tinha percebido que ele não desistiria assim tão fácil. O assassino provavelmente havia descido do carro para persegui-lo a pé. Becker se concentrava em manobrar a Vespa pelas esquinas apertadas. O ruído do motor ecoava ao longo das ruelas, e ele sabia que era um alvo fácil de ser encontrado no silêncio de Santa Cruz. Naquele momento, tudo que tinha a seu favor era a velocidade. Tenho que chegar ao outro lado!
Após uma longa série de curvas e rectas, Becker parou em uma intersecção de três vias, a Esquina de los Reyes. Sabia que estava com problemas: já tinha passado por ali antes. Apoiou um pé no chão para segurar a moto enquanto pensava para onde iria, mas o motor engasgou e parou. O medidor de gasolina indicava que o tanque estava vazio. De forma quase cronometrada, uma sombra surgiu em uma viela à sua esquerda.
A mente humana é o computador mais rápido que existe. Em uma fração de segundos, Becker registrou o formato dos óculos do homem, pesquisou algo similar em sua memória, encontrou o que buscava, registrou "perigo" e requisitou que tomasse uma atitude. A decisão foi rápida: largou a moto inútil e saiu correndo o mais rápido que pôde.
Infelizmente para Becker, dessa vez Hulohot estava de pé e imóvel, e não se sacudindo dentro de um táxi. Levantou calmamente sua arma e disparou.
A bala atingiu Becker de raspão, pouco antes que ele virasse uma esquina e saísse da linha de mira. Deu cinco ou seis passos antes que a sensação começasse a se propagar. Primeiro parecia uma contracção muscular, pouco acima do quadril. Depois tornou-se uma pontada. Becker viu o sangue. Não havia dor alguma: apenas uma corrida desesperada através do labirinto de vielas de Santa Cruz.
Hulohot correu atrás de sua presa. Tinha pensado em atirar na cabeça, mas era um profissional e sabia calcular seus riscos. Becker era um alvo móvel e mirar em seu torso lhe dava maior margem de erro, tanto na vertical quanto na horizontal. Seus cálculos tinham dado certo. Becker havia se movido na última hora e, em vez de errar sua cabeça, Hulohot acertou de raspão próximo à cintura. Sabia que a bala mal tinha arranhado Becker e que não faria grandes danos, mas o tiro tinha servido a seu propósito. Ele havia feito contacto. A presa tinha sido tocada pela morte. Era outro jogo agora.
Becker corria, cegamente. Virando. Andando em ziguezague. Mantendo-se fora das vias mais abertas. Os passos atrás dele pareciam incansáveis. Becker não pensava em mais nada. Não queria saber onde estava ou quem estava atrás dele. Havia sobrado apenas instinto, autopreservação. Nenhuma dor, apenas medo e energia pura.
Um tiro atingiu um azulejo pouco atrás dele. Pequenos fragmentos voaram de encontro à sua nuca. Jogou-se para a esquerda, em outra ruela. Ouviu sua própria voz gritando por socorro, mas, a não ser pelo som dos passos e de sua respiração acelerada, o ar da manhã permanecia morbidamente silencioso.
O ferimento estava ardendo. Becker temia estar deixando um rastro de sangue pelo piso claro. Procurava desesperadamente uma porta aberta, um portão, qualquer saída daquele labirinto sufocante. Nada. A viela se estreitava.
- Socorro! - a voz de Becker era quase inaudível.
As paredes se comprimiam contra ele. Becker virou uma esquina. Procurou um cruzamento, uma bifurcação, qualquer tipo de saída. A rua se estreitava. Portas trancadas. Estreitando-se ainda mais. Portões fechados. Passos se aproximando. Estava em uma passagem recta que se transformava em uma ladeira. Cada vez mais íngreme. Becker sentiu que suas pernas fraquejavam. Estava perdendo velocidade.
Então chegou ao fim.
Como uma estrada inacabada, a ladeira terminou. Havia uma parede alta, um banco de madeira e nada mais. Nenhuma saída. Becker olhou para o topo do prédio ao seu lado, três andares acima, depois virou-se e começou a voltar pela longa viela. Deu apenas alguns passos e parou abruptamente.
Uma figura surgiu na base da ladeira. O homem moveu-se na direcção de Becker com uma determinação calculada. Em uma das mãos a arma reluzia sob os primeiros raios de sol.
Becker sentiu uma enorme lucidez apoderando-se dele enquanto recuava em direção à parede. Sentiu nitidamente a dor do ferimento. Colocou os dedos sobre a ferida e a examinou. Havia sangue em seus dedos e sobre o anel de ouro de Ensei Tankado. Sentiu-se tonto. Olhou para o anel, perplexo. Tinha esquecido que o estava usando. Não se lembrava por que viera a Sevilha. Voltou a observar a figura que se aproximava. Depois olhou novamente para o anel. Tinha sido por isso que Megan morrera? Seria por isso que ele morreria?
A sombra avançava pela ruela inclinada. Becker via paredes subindo a seu redor. Sem saída. Conseguia ver alguns corredores fechados por portões, mas era tarde demais para gritar por socorro.
Encostou-se no muro e naquele momento podia sentir cada minúscula pedrinha sob a sola de seus sapatos, cada mínima rugosidade na parede atrás dele. Seus pensamentos voltaram no tempo para sua infância, para seus pais... e para Susan.
Meu Deus... Susan.
Pela primeira vez desde que era criança, Becker rezou. Não para se livrar da morte: não acreditava em milagres. Rezou para que a mulher que iria deixar encontrasse forças, para que ela soubesse sem dúvida
alguma que fora amada. Fechou os olhos. As lembranças o invadiram como um turbilhão. Não eram lembranças de reuniões no departamento ou de assuntos da universidade, nem tampouco das coisas que preenchiam 90% de sua vida. Eram lembranças dela. Memórias simples, como o dia em que a ensinara a usar os hashi, ou quando velejaram em Cape Cod. Eu te amo, pensou. Saiba disso... para sempre.
Era como se cada defesa, cada fachada, cada insegurança de sua vida tivessem sido arrancadas. Ele estava ali em carne e osso perante Deus. Fechou os olhos enquanto o homem de óculos de armação de metal andava em sua direcção. Em algum lugar próximo, um sino começou a tocar. Becker esperou, na escuridão, pelo som que poria fim à sua vida.
CAPÍTULO
89
O sol estava começando a se levantar sobre os telhados de Sevilha e brilhava em suas ruas. Os sinos no alto da Giralda anunciavam a primeira missa do dia. Esse era o momento pelo qual os moradores do bairro esperavam. Portas se abriam e de todos os lados famílias surgiam nas ruelas. Como sangue sendo bombeado pelas veias da velha Santa Cruz, fluíam em direção ao coração de seu pueblo, em direcção ao centro de sua história, seu Deus, sua catedral.
No interior da mente de Becker, um sino tocava. Estou morto? Hesitante, abriu os olhos e contraiu as sobrancelhas, ofuscado pelos raios de sol. Sabia onde estava. Levantou os olhos e procurou seu agressor na viela. Contudo, o homem e seus óculos não estavam lá. Em vez disso havia muitos outros. Famílias espanholas em roupas de domingo, saindo de seus portões gradeados para as ruas, falavam e riam.
Na base daquela ruela, oculto da visão de Becker, Hulohot xingava em voz baixa. Primeiro surgira um único casal separando-o de sua presa. Hulohot esperou que partissem. Mas o som dos sinos continuou reverberando, tirando outras pessoas de suas casas. Surgiu um segundo casal, com crianças. Cumprimentaram o outro casal, falando, rindo, beijando-se três vezes no rosto. Depois surgiu outro grupo, e Hulohot já não podia mais ver sua vítima. Agora, enfurecido, corria em meio à multidão que aumentava rapidamente. Tinha que chegar até David Becker!
O assassino tentou abrir caminho até o fim da ruela, mas se viu perdido em meio a um mar de gente: casacos e gravatas, vestidos, mantas sobre as costas curvadas de senhoras idosas. Todos pareciam ignorar a presença de Hulohot. Moviam-se sem pressa, todos de preto, uma massa compacta que bloqueava seu caminho. Hulohot conseguiu atravessar o povaréu e subiu correndo a ladeira, a arma engatilhada. Becker, contudo, havia sumido. Frustrado, Hulohot soltou um grito inumano e abafado.
Becker tropeçava e ia cortando caminho através da multidão. Siga a multidão, pensava. Eles sabem onde fica a saída. Ele virou à direita em uma intersecção e foi dar em uma rua mais larga. Em toda parte, portões se abriam e pessoas saíam para as ruas. Os sinos tocavam mais alto. .
O ferimento de Becker ainda ardia, mas podia sentir que o sangramento tinha parado. Apressou-se. Em algum lugar atrás dele, aproximando-se rapidamente, havia um homem armado.
David ia entrecortando os grupos de pessoas que se dirigiam à missa, tentando manter sua cabeça baixa. Não estava muito longe, ele podia sentir isso. De repente a multidão ficou mais densa e a ruela se alargou. Não estava mais em um pequeno afluente, aquele era o rio principal. Quando passou por uma curva, Becker pôde vê-las, crescendo à sua frente: a catedral e a torre da Giralda.
O ruído dos sinos era ensurdecedor, ecoando pelas paredes da praça cercada por muros altos. Os diferentes fluxos de pessoas convergiam, todas de preto, atravessando a praça em direcção às portas da catedral de Sevilha. Becker tentou sair dali e ir em direção à Mateus Gago, mas estava preso, ombro a ombro, passo a passo com a multidão compacta. Becker estava encaixado entre duas mulheres
corpulentas, ambas caminhando de olhos fechados, deixando-se levar pela massa. Rezavam em voz baixa e seguravam contas de rosários em suas mãos.
Quando o povo se aproximou da enorme estrutura de pedra, Becker tentou mais uma vez sair para o lado esquerdo, mas a corrente humana estava ainda mais forte agora. Pessoas se comprimiam, em expectativa, avançando às cegas, murmurando orações. Virou-se, tentando abrir caminho na direção oposta. Era impossível, como tentar remar contra a maré. Desistiu. As portas da catedral ficavam cada vez mais perto, como a entrada para alguma atracção macabra de um parque de diversões que ele preferia ter evitado. David Becker subitamente percebeu que iria à igreja.
CAPÍTULO
90
As sirenes da Criptografia continuavam tocando. Strathmore não sabia há quanto tempo Susan partira. Tinha ficado sentado sozinho nas sombras, o murmúrio do TRANSLTR chamando-o. Você é um sobrevivente... Você é um sobrevivente...
Sou um sobrevivente, ele pensou, mas a sobrevivência de nada vale sem a honra. Prefiro morrer do que viver em desgraça.
Certamente a desgraça era aquilo que esperava por ele. Havia ocultado informações do director e deixado um vírus entrar no computador mais seguro do país. Não restavam dúvidas de que iriam tirar o seu couro. Suas intenções tinham sido patrióticas, é certo, mas nada saíra conforme planejara. Ocorreram mortes e traições que acabariam em julgamentos, acusações, indignação pública. Tendo servido seu país com honra e integridade durante tantos anos, não podia permitir que as coisas terminassem dessa forma.
Sou um sobrevivente, pensou. Você é um mentiroso, responderam seus pensamentos.
De fato era um mentiroso. Tinha mentido para muitas pessoas. Susan Fletcher era uma delas. Havia muitas coisas que não tinha contado para ela, coisas das quais se envergonhava agora. Durante anos ela foi sua ilusão, sua fantasia viva. Sonhava com ela à noite, dizia seu nome em meio aos sonhos. Não podia evitar. Era a mulher mais inteligente e mais bela que podia imaginar. No início, sua mulher tentou ser paciente, mas, quando finalmente encontrou Susan, perdeu as esperanças. Bev Strathmore nunca recriminou seu marido por seus sentimentos. Tentou suportar a dor pelo tempo que foi possível, mas há alguns meses aquela vida havia se tornado impossível. Bev disse ao marido que o casamento terminara: não podia passar o restante de seus dias à sombra de outra mulher.
Aos poucos as sirenes tiraram Strathmore de seus devaneios. Analisou a situação, buscando alguma outra saída. Sua mente confirmou, relutantemente, aquilo que seu coração suspeitara. Havia apenas uma saída, uma única solução.
Strathmore olhou para o teclado e começou a digitar. Deixou o monitor como estava, virado para a porta, onde não podia ver o que estava escrevendo. Apenas digitou as palavras, lenta e decididamente.
Queridos amigos, vou tirar minha própria vida hoje...
Desta forma, ninguém teria dúvida. Não fariam perguntas. Não haveria acusações. Ele iria contar, palavra por palavra, o que acontecera. Muitos já haviam morrido, mas era necessário sacrificar uma última vida.
CAPÍTULO
91
Em uma catedral é sempre noite. O calor do dia se transforma em frescor úmido. O ruído do trânsito é completamente abafado pelas grossas paredes de granito. Nenhuma quantidade de candelabros seria
suficiente para iluminar aquele amplo espaço. Os detalhes da arquitetura gótica projectam sombras em toda parte. Apenas os vitrais, colocados no alto das paredes, filtram as imperfeições do mundo externo em raios esmaecidos de vermelho e azul.
A catedral de Sevilha, como todas as grandes catedrais da Europa, possui o formato de uma cruz. O sacrário e o altar ficam na nave central, um pouco acima da interseção dos dois eixos da cruz. Bancos de madeira ocupam todo o eixo vertical, ao longo de impressionantes 100 metros que vão do altar até a base da cruz. De ambos os lados do altar o transepto abriga confessionários, túmulos sagrados e mais bancos.
Becker se viu cercado no meio de um longo banco mais ou menos na metade posterior da nave. Acima dele, no enorme espaço vazio, um incensório de prata do tamanho de uma geladeira descrevia enormes arcos, preso por uma velha corda, deixando um rastro de incenso. Os sinos da Giralda continuavam tocando, gerando um murmúrio grave na estrutura de pedra da catedral. Becker olhou para a parede ornamentada atrás do altar. Tinha muito a agradecer. Estava respirando. Estava vivo. Era um milagre.
O celebrante se preparava para iniciar a missa. Becker olhou para seu ferimento. Havia uma mancha em sua camisa, mas o sangramento cessara. A ferida era pequena, mais próxima de um corte do que de uma perfuração. Ele recolocou sua camisa para dentro e soltou o pescoço. Ouviu as portas sendo fechadas atrás dele. Se houvesse sido seguido, estava agora aprisionado. A catedral de Sevilha possuía uma única entrada, um projecto arquitetônico popular nos tempos em que as igrejas eram usadas como fortalezas, um local seguro para protecção contra invasões mouras. Dessa forma só havia uma porta a ser protegida com barricadas.
As portas ornamentadas de sete metros de altura fecharam-se com um ruído forte. Becker estava trancado na casa de Deus. Fechou os olhos e escorregou para baixo no banco. Era o único, em toda a catedral, que não estava vestido de preto. Em algum lugar, vozes entoaram um cântico.
Também no lado de dentro da igreja, um vulto se movia lentamente ao longo do corredor lateral, mantendo-se nas sombras. Havia chegado pouco antes que as portas se fechassem. Ele sorriu consigo mesmo. A caçada estava ficando mais interessante. Becker está aqui... posso senti-lo. Movia-se metodica-mente, uma fileira de cada vez. Um bom lugar para morrer, pensou Hulohot. Espero ter a mesma sorte.
Becker ajoelhou-se sobre o assoalho frio da catedral e abaixou a cabeça, para se esconder. O homem sentado ao seu lado olhou para ele: aquele era um comportamento muito estranho na casa de Deus.
- Enfermo - desculpou-se Becker. - Estou doente.
Becker tinha que ficar agachado. Ele vislumbrara uma silhueta que lhe era familiar movendo-se em direção ao altar pelo corredor lateral. É ele! Está aqui!
Apesar de estar no meio de uma enorme comunidade de fiéis, ele temia ser um alvo fácil - seu blazer cáqui era um farol naquele mar de preto. Tinha cogitado tirar o blazer, mas a camisa branca que usava por baixo não iria ajudar em nada. Em vez disso, abaixou-se ainda mais.
O homem ao seu lado fez uma cara feia.
- Turista - grunhiu. Depois disse em voz baixa: - Devo chamar um médico? Becker olhou para a face cheia de verrugas do velho.
- No, gracias. Estoy bien.
O homem lhe devolveu um olhar irritado.
- Pues siéntate! Então sente-se! - Algumas pessoas em volta fizeram sinais para que se calassem, e o velho decidiu morder a língua e voltar-se para o altar.
Becker fechou os olhos e abaixou-se ainda mais, pensando em quanto tempo a missa iria durar. Protestante, sempre tivera a impressão de que os católicos tinham uma cerimônia muito demorada. Rezava para que fosse verdade, pois, assim que a missa terminasse, seria forçado a levantar-se e deixar que os outros saíssem. Vestido de cáqui, estaria morto.
Naquele momento ele não tinha outra alternativa. Simplesmente deixou-se ficar ajoelhado no chão de pedra fria da grande catedral. O homem ao seu lado acabou se esquecendo dele. A congregação estava
agora de pé, cantando um hino de louvor. Becker continuava abaixado. Suas pernas começaram a ficar dormentes. Não havia espaço para esticá-las. Paciência, pensou. Paciência. Fechou os olhos e respirou profundamente.
Ficou abaixado, tentando pensar numa saída. Concentrado, não percebeu o tempo passar e espantou-se quando sentiu que alguém o cutucava com os pés. Olhou para cima. O velho estava à sua direita, esperando impacientemente para deixar o banco.
Becker entrou em pânico. Ele já quer ir embora? Vou ter que me levantar! Fez sinal para que o homem passasse por cima dele. O velho mal podia controlar sua irritação. Segurou as abas de seu casaco preto, puxou-as para baixo com veemência, depois curvou-se para trás, mostrando a Becker a fileira de pessoas que esperavam para sair. David olhou para seu lado esquerdo e viu que a mulher que estava sentada ali havia saído. Todo o banco à sua esquerda estava vazio até a aléia central.
A missa não pode ter terminado! É impossível!
Contudo, quando Becker viu o coroinha no fim da fila e as duas filas indianas se movendo em direcção ao altar, entendeu o que estava acontecendo.
Comunhão! - resmungou. Eu tinha me esquecido da comunhão!
CAPÍTULO
92
Susan desceu a escada que dava no subsolo. Havia uma grossa camada de vapor quente em torno do TRANSLTR. O gradeado da escada e os corrimãos estavam húmidos devido à condensação. Olhou em volta, pensando quanto tempo mais o computador agüentaria. As sirenes continuavam emitindo seu aviso intermitente. A cada dois segundos, as luzes de emergência completavam uma volta. Três andares abaixo, os geradores auxiliares vibravam no limite de sua potência. Em algum lugar, no fundo daquela névoa obscurecida, estava o disjuntor que Susan procurava. Sabia que seu tempo estava se esgotando.
Lá em cima, Strathmore segurava a Beretta. Leu seu bilhete novamente e deixou-o no chão da sala. Estava prestes a cometer um acto covarde e não tinha dúvidas disso. Sou um sobrevivente, pensou. Pensou no vírus no banco de dados da NSA, pensou em David Becker na Espanha, pensou em seus planos para o acesso de programador. Havia contado mentiras demais; era culpado de muitas coisas. Aquela era a única forma de evitar a culpa, de evitar a vergonha. Apontou a arma cuidadosamente. Depois fechou os olhos e puxou o gatilho.
Susan havia descido apenas seis lances de escada quando ouviu o som do tiro. Vinha de longe e fora abafado pelo barulho dos geradores tão próximos. Nunca havia ouvido um tiro, a não ser na televisão, mas não tinha dúvida.
Parou na hora, o som ressoando em seus ouvidos. Tomada de choque, temeu pelo pior. Em sua mente surgiram as imagens dos sonhos do comandante, o acesso oculto no Fortaleza Digital e as imensas possibilidades que isso abriria. Depois, as imagens do vírus no banco de dados, o casamento arruinado, seu olhar de desamparo há poucos minutos. Tropeçou e segurou-se no corrimão para não cair. Comandante! Não!
Ficou paralisada por instantes, sua mente em branco. O eco do tiro parecia sobrepujar todo o caos que a cercava. A intuição lhe dizia que devia continuar descendo, mas as pernas se recusavam. Comandante! Logo em seguida, viu-se subindo a escada aos tropeções, alheia ao perigo que a cercava.
Subia às cegas, escorregando no metal dos degraus. Acima dela, a umidade parecia quase chuva. Quando chegou à escada que dava acesso ao piso da Criptografia, tentou subir correndo, mas tropeçou no último degrau. Rolou no chão da Criptografia e sentiu o ar fresco a seu redor. Sua blusa estava grudada na pele, inteiramente molhada.
Estava escuro. Ela parou, tentando se orientar. O som do tiro continuava ecoando em sua cabeça, sem cessar. O vapor quente saía da portinhola como gases saindo de um vulcão prestes a explodir.
Susan amaldiçoou-se por ter deixado a Beretta com Strathmore. Ou será que ela tinha ficado no Nodo 3? Seus olhos se ajustavam à escuridão e ela olhou na direcção do buraco na parede do Nodo 3. O brilho dos monitores era fraco, mas, ao longe, podia ver Hale deitado, imóvel, no chão, no mesmo lugar onde ela o deixara. Nenhum sinal de Strathmore. Aterrorizada com o que iria encontrar, voltou-se para a sala do comandante.
Começou a andar. Contudo, algo lhe pareceu estranho. Deu alguns passos para trás e olhou novamente para o Nodo 3. Na luz pálida ela podia ver o braço de Hale. Não estava mais ao seu lado, e ele também não estava mais amarrado como uma múmia. Seu braço estava jogado por cima de sua cabeça e ele estava esparramado no chão, de bruços. Será que ele tinha se libertado? Não viu movimento algum. Hale estava imóvel como um cadáver.
Susan olhou para o escritório de Strathmore, no alto. - Comandante?
Silêncio.
Hesitantemente, começou a mover-se em direção ao Nodo 3. Sob a luz dos monitores, um objecto brilhava na mão de Hale. Susan aproximou-se devagar, bem devagar. Quando chegou mais perto pôde ver o que Hale estava segurando. Era a Beretta.
Susan engoliu em seco. Seguindo o arco do braço de Hale, chegou à sua face. O que viu era grotesco. Metade do rosto dele estava encharcado de sangue. A mancha escura se alastrava pelo carpete.
Meu Deus! Susan recuou, trêmula. Não era o comandante quem ela tinha ouvido atirar, mas Hale.
Como em um pesadelo, ela aproximou-se do corpo. Aparentemente, Hale havia conseguido soltar-se. Os cabos usados para amarrá-lo estavam jogados no chão a seu lado. Devo ter deixado a arma no sofá, ela pensou. O sangue que saía do buraco em seu crânio ficava preto sob a luz azul. .
No chão, ao lado de Hale, havia um pedaço de papel. Susan foi até lá e pegou-o, trêmula. Era um bilhete.
Queridos amigos, vou tirar minha própria vida hoje, em penitência por meus pecados...
Susan olhou para o bilhete incrédula. Leu-o devagar. Não fazia o menor sentido, não era o estilo de Hale... Uma lista de crimes. No bilhete, ele confessava tudo: ter descoberto que NDAKOTA era uma farsa, ter contratado um mercenário para matar Ensei Tankado e pegar o anel, ter atirado Phil Chartrukian sobre os geradores e planejado vender o Fortaleza Digital.
Susan chegou à última linha. Não estava preparada para o que viria a seguir. As últimas palavras do bilhete foram um duro golpe.
Sobretudo, lamento por David Becker. Perdoem-me, fiquei cego pela ambição.
Susan tremia, olhando para o corpo de Hale. Ouviu passos, alguém se aproximando correndo por detrás dela. Em câmara lenta, virou-se. Strathmore apareceu na janela quebrada, pálido e sem fôlego. Olhou para o corpo de Hale, aparentando estar chocado.
- Meu Deus! - ele disse. - O que aconteceu?
CAPÍTULO
93
Comunhão.
Hulohot avistou Becker rapidamente. O blazer cáqui era facilmente localizável, especialmente com uma pequena mancha de sangue em um dos lados. O blazer estava se movendo em direcção ao altar, pelo corredor central, em meio a um mar de pessoas de preto. Ele provavelmente não sabe que estou aqui, pensou o assassino, sorrindo. É um homem morto.
Acariciou os pequenos contactos metálicos na ponta de seus dedos, ávido para enviar boas notícias a seu contratante nos Estados Unidos. Em breve, muito em breve.
Como um predador cercando sua caça, Hulohot seguiu o fluxo dos fiéis, caminhando para os fundos da igreja. Depois começou sua aproximação, subindo directamente o corredor central. Ele não estava com a menor vontade de caçar Becker em meio à multidão que sairia da igreja ao final da missa. Sua vítima não tinha como escapar agora, fora uma virada conveniente nos acontecimentos. Hulohot só precisava encontrar uma forma de eliminá-lo sem fazer barulho. Seu silenciador, o melhor que havia, deixava escapar apenas um ligeiro barulho abafado. Isso bastaria.
Hulohot se aproximou do blazer cáqui sem ouvir os murmúrios de reclamação das pessoas que ia empurrando em seu caminho. Os fiéis podiam até entender o desejo daquele homem de receber a bênção de Deus, mas, ainda assim, havia regras estritas que todos seguiam: fila indiana, duas filas paralelas.
Hulohot continuava movendo-se. Aproximava-se rapidamente. Colocou a mão na arma que estava no bolso da jaqueta. O momento havia chegado. David Becker tivera uma sorte enorme até então, mas tudo tinha limites.
O blazer cáqui estava apenas dez pessoas à frente, dirigindo-se para o altar. O assassino repassou as próximas acções mentalmente. Era claro como um filme: chegaria por trás de Becker, mantendo a arma baixa e imperceptível, e faria dois disparos contra suas costas. Ele cairia e Hulohot o seguraria, levando-o para um dos bancos, como um amigo preocupado. Depois Hulohot sairia rapidamente da igreja, como se fosse buscar ajuda. Na confusão, desapareceria antes que alguém notasse o que havia acontecido.
Cinco pessoas. Quatro. Três.
Hulohot colocou o dedo no gatilho, mantendo a arma baixa. Iria atirar da altura de seus quadris para cima, na espinha de Becker. Dessa forma, a bala iria acertar a dorsal ou o pulmão antes de atingir o coração. Mesmo que a bala errasse o coração, Becker morreria. Uma perfuração no pulmão quase sempre era fatal.
Duas pessoas... uma. Hulohot chegou a seu alvo. Como um dançarino executando uma coreografia ensaiada, virou-se para a direita. Colocou a mão no ombro do blazer cáqui, apontou a arma e atirou. Dois ruídos secos e abafados.
O corpo ficou rígido no mesmo instante. Depois começou a cair. Hulohot segurou sua vítima por baixo dos ombros. Em um único gesto, girou o corpo e colocou-o em um banco antes que as manchas de sangue se espalhassem pelas costas. A seu redor, as pessoas se viravam. Ele não lhes deu atenção. Em um instante, teria sumido.
Apalpou os dedos do morto procurando o anel. Nada. Apalpou de novo. Não havia anel algum. Irritado, Hulohot examinou as feições do homem. Ficou ainda mais furioso quando viu que aquele não era Becker.
Rafael de La Maza, um bancário que morava nos subúrbios de Sevilha, morreu quase instantaneamente. Ainda segurava nas mãos as 50 mil pesetas que um americano esquisito havia lhe dado em troca do blazer preto que estava usando.
CAPÍTULO
94
Midge Milken estava ao lado do bebedouro próximo à entrada da sala de reuniões. Que diabos Fontaine está fazendo? Amassou seu copinho e jogou-o com raiva dentro da lixeira. Alguma coisa está errada na Criptografia! Eu posso sentir! Só havia uma maneira de provar que ela estava certa: iria até a Criptografia ela mesma. Se necessário, arrastaria Jabba. Virou-se e dirigiu-se para a porta.
Brinkerhoff apareceu, como se tivesse saído do nada, barrando seu caminho. - Para onde você vai?
- Para casa! - mentiu.
Ele se recusou a deixá-la passar.
Midge fulminou-o com o olhar.
- Fontaine lhe disse para não me deixar sair, não foi?
Brinkerhoff olhou em volta, sem jeito.
- Chad, há alguma coisa acontecendo lá na Criptografia. Algo grande. Não sei por que Fontaine está se fazendo de tolo, mas sei que o TRANSLTR está com problemas. Algo está errado por lá esta noite.
- Midge - ele disse em tom calmo, andando em direção às janelas da sala de conferência, fechadas por venezianas -, vamos deixar que o director cuide disso.
Midge continuava olhando fixamente para ele.
- Você tem alguma noção do que pode acontecer ao TRANSLTR se o sistema de resfriamento falhar?
Brinkerhoff olhou para ela, indiferente, e continuou andando em direção à janela.
- Provavelmente já restauraram a energia a esta altura. - Ele abriu as venezianas e olhou para fora.
- Ainda às escuras? - perguntou Midge.
Brinkerhoff não respondeu. Estava siderado. A cena lá embaixo, no domo da Criptografia, era inimaginável. Pela cúpula transparente dava para ver as luzes de alarme piscando e as nuvens de vapor. Perplexo, Brinkerhoff cambaleou em frente ao vidro. Depois, tomado pelo pânico, saiu correndo e gritando:
- Director! Director!
CAPÍTULO
95
O sangue de Cristo... o cálice da salvação...
As pessoas estavam se juntando ao redor do corpo caído no banco. Acima deles, o incensório balançava pacificamente. Hulohot ia e vinha pelo corredor central, procurando Becker desesperadamente por toda a igreja. Ele tem que estar aqui! Virou-se e foi em direcção ao altar.
Trinta fileiras à frente, a sagrada comunhão prosseguia tranqüilamente. O celebrante, padre Gustaphes Herrera, olhou com curiosidade para a pequena agitação em torno de um dos bancos centrais, mas não se preocupou com isso. Muitas vezes, alguns de seus fiéis mais idosos eram tomados pelo Espírito Santo e desmaiavam. Em geral um pouco de ar fresco resolvia tudo.
O assassino continuava sua busca frenética. Becker não parecia estar por perto. Havia cerca de 100 pessoas ajoelhadas no longo altar, recebendo a comunhão. Hulohot pensou se Becker seria uma delas. Inspecionou cuidadosamente as costas de cada uma. Estava pronto para atirar, a cerca de 50 metros de distância, e sair correndo para pegar o anel.
El cuerpo de Jesus, el pan del cielo.
O jovem padre que estava dando a comunhão a Becker lançou-lhe um olhar de censura. Ficava contente que aquele fiel quisesse expressar sua fé ardorosa, mas isso não era motivo para furar a fila.
Becker abaixou a cabeça e recebeu a hóstia. Sentiu que havia algo de errado acontecendo atrás dele - algum tipo de confusão. Pensou no homem de quem havia comprado o blazer e torceu para que houvesse levado a sério seu aviso para que não usasse o blazer cáqui. Começou a se virar para olhar, mas ficou com medo de que os óculos de armação de metal estivessem à espreita lá atrás. Agachou-se um pouco mais, esperando que o blazer preto estivesse cobrindo inteiramente suas calças cáqui. Não estava.
O cálice estava sendo passado em sua direcção, vindo da direita. As pessoas estavam tomando seu gole de vinho, fazendo o sinal-da-cruz e levantando-se para sair. Mais devagar! Becker não estava com a menor pressa de sair do altar. Mas, com duas mil pessoas esperando pela comunhão e apenas oito padres para servi-las, era considerado falta de educação demorar muito para tomar um gole de vinho.
O cálice estava quase chegando a Becker quando Hulohot, finalmente viu as calças cáqui sob o blazer preto. Você é um homem morto, sibilou para si mesmo. Hulohot andou pelo corredor central em direcção ao altar. Já havia dispensado qualquer subtileza. Dois tiros nas costas, depois pegaria o anel e sairia correndo. O maior ponto de táxi de Sevilha estava apenas a meio quarteirão na Mateus Gago. Ele pegou a arma. Adeus, senhor Becker.
Lo sangre de Cristo, la copa de la salvación.
O rico aroma do vinho tinto tomou conta de Becker quando padre Herrera abaixou o cálice de prata polido à mão. Um pouco cedo para beber, pensou Becker, enquanto se inclinava para a frente. Mas, quando a prata polida ficou na altura de seus olhos, Becker entreviu um movimento atrás dele. Alguém se aproximava rápido, a forma distorcida pelo reflexo no cálice.
Becker viu, por um curto instante, um reflexo metálico, uma arma. Instintivamente, como um corredor que se lança ao ouvir o tiro de largada, ele saltou para frente. O padre caiu para trás, horrorizado, enquanto o cálice voou para cima e o vinho tinto caiu sobre o mármore branco. Padres e coroinhas se afastavam, alvoroçados, enquanto Becker mergulhava para trás da grade do altar. O silenciador cuspiu um único tiro. Becker caiu do outro lado e o tiro explodiu contra o chão de mármore. Um segundo depois ele estava correndo escada abaixo para dentro do valle, uma estreita passagem pela qual os clérigos entravam, dando a impressão de que surgiam no altar como que elevados pela divina graça.
No final da escada, ele tropeçou e caiu. Escorregou sem controle pela superfície lisa de pedra polida. Uma dor pontiaguda percorreu suas entranhas quando bateu de lado no chão. Logo depois estava novamente de pé, correndo através de uma passagem fechada por uma cortina e descendo por uma escadaria de madeira.
Dor. Becker continuou correndo e chegou ao que parecia ser a sacristia. Estava escuro. Ouviu gritos vindos lá de cima, do altar. Em seguida, passos vigorosos correndo a seu encalço. Becker atravessou uma série de portas duplas e foi sair em uma espécie de saleta. Era escura, com mobília em mognoricamente ornamentada. Na parede dos fundos havia um crucifixo em tamanho natural. Ele parou, hesitante. Não havia saída. Estava encurralado e podia ouvir os passos de Hulohot se aproximando rapidamente. Becker olhou para o crucifixo e amaldiçoou sua má sorte. Mas que diabos!, praguejou.
Ouviu um som de vidro se quebrando do seu lado esquerdo. Virou-se. Um homem usando uma batina vermelha engoliu em seco e olhou para ele, assustado. Como um gato pego com o canário na boca, o santo padre limpou a boca com a batina e tentou disfarçar escondendo os cacos da garrafa de vinho da santa comunhão que estava quebrada a seus pés.
- Salida! - gritou Becker. - Salida! Onde fica a saída?
O cardeal Guerra não pensou duas vezes. Um demônio havia entrado em seus aposentos santificados e gritava para ser libertado da casa de Deus. Guerra iria satisfazer seu desejo, imediatamente, até porque o demônio chegara em um momento muito inoportuno.
Lívido, o cardeal apontou para uma cortina na parede à sua esquerda. Havia ali atrás uma porta oculta que ele tinha mandado instalar há três anos. Levava directamente para o pátio lá fora. O cardeal se cansara de sair da igreja pela entrada principal como um pecador qualquer.
CAPÍTULO
96
Molhada e sentindo calafrios, Susan se encolheu no sofá do Nodo 3. Strathmore colocou seu paletó sobre os ombros dela. O corpo de Hale estava no chão, a alguns metros de distância. As sirenes continuavam tocando. Como gelo rachando em um lago congelado, o revestimento do TRANSLTR emitiu um ruído seco e alto.
- Vou lá embaixo cortar a força - disse Strathmore, colocando sua mão protectora sobre os ombros de Susan. - Já volto.
Susan observou o comandante, com um olhar ausente, enquanto ele corria pelo chão da Criptografia. Não era mais o homem catatônico que ela havia visto dez minutos atrás. O velho comandante Strathmore estava de volta: lógico, controlado, fazendo o que fosse preciso para levar a cabo seu trabalho.
As últimas palavras do bilhete de suicídio de Hale se repetiam na mente de Susan: Sobretudo, lamento por David Becker. Perdoem-me, fiquei cego pela ambição.
O mais terrível pesadelo de Susan havia sido confirmado. David estava em perigo... ou pior. Talvez já fosse tarde demais. Lamento por David Becker.
Olhou para o bilhete mais uma vez. Hale nem mesmo havia assinado, apenas digitou seu nome no final, Greg Hale. Ele contou tudo, imprimiu a nota e deu um tiro na cabeça. Simples assim. Hale havia jurado que jamais voltaria para a prisão. Mantivera seu voto: escolheu a morte em vez disso.
- David... - ela soluçou. - David!
Naquele momento, alguns metros abaixo do chão da Criptografia, o comandante Strathmore desceu da escada e pisou na primeira plataforma. O dia tinha sido uma sucessão de fracassos. Aquilo que começara como uma missão patriótica acabou saindo completamente de controle. O comandante tinha sido forçado a tomar decisões impossíveis e a cometer actos medonhos. Actos dos quais nunca achou que fosse capaz.
Era uma solução! Era a única solução possível!
Antes de tudo, estava o dever: a pátria e a honra. Strathmore sabia que ainda havia tempo. Desligaria o TRANSLTR. Poderia usar o anel para salvar o banco de dados mais valioso da nação. Sim, pensou, ainda há tempo.
Olhou em volta, observando a cena caótica a seu redor. Os sprinklers haviam sido activados. O TRANSLTR parecia estar gemendo. As sirenes tocavam. As luzes giravam como helicópteros se aproximando em meio a uma névoa densa. A cada passo podia ver Greg Hale olhando para ele, implorando com os olhos e, depois, o tiro. A morte de Hale fora pelo país, pela honra. A NSA não podia se envolver em outro escândalo. Strathmore precisava de um bode expiatório. Além disso, Greg Hale era uma bomba pronta para explodir.
Os pensamentos de Strathmore foram interrompidos pelo som de seu celular, quase inaudível em meio às sirenes e ao ruído sibilante de vapor que saía dos dutos. Sem parar de andar, pegou o aparelho.
- Fale.
- Onde está minha chave? - exigiu uma voz que lhe soou familiar.
- Quem está falando? - gritou Strathmore, em meio ao estrondo.
- Numataka! - berrou de volta o homem, irritado. - Você me prometeu uma chave.
Strathmore continuou andando.
- Quero o Fortaleza Digital! - urrou o outro.
- Não há Fortaleza Digital algum! - retrucou Strathmore.
- O quê?
- Não existe nenhum algoritmo inquebrável.
- Mas é claro que existe! Eu o baixei na Internet! Meus programadores estão tentando desbloqueá-lo há dias!
- É um vírus encriptado, seu tolo. E vocês têm sorte de não terem sido capazes de desbloqueá-lo.
- Mas...
- Nosso acordo está desfeito! - gritou Strathmore. - Não sou North Dakota. Não existe North Dakota algum! Esqueça que um dia falou comigo! - Colocou o celular em modo silencioso, colocou-o em modo silencioso e enfiou-o de volta no cinto. Não haveria mais interrupções.
A 20 mil quilômetros de distância, Tokugen Numataka olhava perplexo através de sua enorme janela. Seu charuto Umami estava quase caindo de sua boca. O maior negócio de sua vida acabava de se desintegrar à sua frente.
Strathmore continuava descendo. O acordo está desfeito. A Numatech Corpo jamais teria seu algoritmo inquebrável, e a NSA não teria sua back door.
O vice-director havia gasto muito tempo planejando seu sonho. Escolheu a Numatech com cuidado. A empresa tinha muito dinheiro e era uma das prováveis vencedoras do leilão da chave. Ninguém acharia estranho se a chave terminasse em suas mãos. Era conveniente, também, porque dificilmente poderiam suspeitar que aquela companhia estivesse em conluio com o governo norte-americano. Tokugen Numataka simbolizava o antigo Japão: a morte antes da desonra. Ele odiava americanos. Odiava sua comida, seus hábitos e, sobretudo, odiava seu domínio sobre o mercado global de software.
A visão de Strathmore havia sido ousada. Um padrão de encriptação global com um acesso de programador para a NSA. Há muito tinha desejado compartilhar essa visão com Susan, levar seus planos adiante com ela a seu lado, mas sabia que seria impossível. Mesmo que a morte de Ensei Tankado pudesse salvar milhares de vidas no futuro, Susan jamais concordaria com isso: era uma pacifista. Eu também sou um pacifista, pensou Strathmore. Apenas não posso me dar ao luxo de pensar como um.
Foi fácil escolher quem iria matar Tankado. Tankado estava na Espanha, o que significava Hulohot. O mercenário português de 42 anos era um dos profissionais preferidos do comandante. Trabalhava para a NSA há anos. Nascido e criado em Lisboa, ele havia executado trabalhos para a NSA em toda a Europa. Em nenhuma dessas ocasiões suas acções foram conectadas com Fort Meade. O único problema é que Hulohot era surdo e, portanto, contactos telefônicos eram impossíveis. Recentemente Strathmore providenciara para que ele recebesse o mais novo brinquedo da NSA, o computador Monocle. Strathmore então comprou um SkyPager e programou-o para a mesma freqüência. A partir daquele momento, sua comunicação com Hulohot tinha se tornado não apenas instantânea, mas também impossível de ser interceptada.
A primeira mensagem que Strathmore enviou para Hulohot foi bem clara. Já haviam discutido o assunto. Matar Ensei Tankado. Obter a senha.
Strathmore nunca perguntava que métodos Hulohot usava para fazer suas mágicas, mas de alguma forma ele havia conseguido novamente. Ensei Tankado estava morto, e as autoridades estavam convencidas de que ele sofrera um ataque cardíaco. Uma morte perfeita, excepto por um detalhe. Hulohot calculou mal o local do assassinato. Aparentemente, fazer Tankado morrer em um local público era uma parte importante da ilusão. Inesperadamente, porém, o público entrou em cena mais cedo do que o esperado. O assassino teve que se esconder antes que pudesse revistar o corpo de Tankado e encontrar a senha. Quando a poeira assentou, o corpo já estava a caminho do necrotério de Sevilha.
Strathmore ficara possesso. Pela primeira vez, Hulohot havia falhado em uma missão, e o momento não poderia ser pior. Obter a chave de Tankado era uma questão crítica, mas o comandante sabia que enviar um assassino surdo para o necrotério de Sevilha era uma missão suicida. Havia analisado as outras opções. Um segundo esquema começara, então, a se formar em sua cabeça. Strathmore percebeu que tinha em mãos uma chance de vencer em duas frentes. Uma chance de realizar dois sonhos. Naquela manhã, às 6h36, ele ligou para David Becker.
CAPÍTULO
97
Fontaine entrou correndo na sala de reuniões. Brinkerhoff e Midge vinham logo atrás.
- Olhe! - disse Midge, apontando freneticamente para a janela.
Fontaine olhou pela janela e viu as luzes piscando dentro do domo da Criptografia. Arregalou os olhos. Aquilo, definitivamente, não estava nos planos. Brinkerhoff balbuciou:
- Aquilo lá parece uma discoteca saída do inferno!
O director tentou entender o que estava acontecendo. Desde que o TRANSLTR entrou em operação, aquilo jamais havia acontecido. Ele está superaquecendo, pensou. Tentou imaginar por que Strathmore não havia desligado a máquina. Tomou uma decisão no mesmo instante.
Agarrou um telefone na mesa de reuniões e digitou o ramal da Criptografia, mas o ramal estava inacessível. Bateu o telefone com força.
- Mas que droga! - esbravejou, ligando imediatamente para o celular de Strathmore. Dessa vez a linha foi completada e o telefone começou a chamar. Tocou seis vezes.
Brinkerhoff e Midge observavam em silêncio enquanto Fontaine andava de um lado para o outro, dentro dos limites que o fio do telefone permitia, como um tigre aprisionado. Depois de um minuto inteiro esperando, o director estava roxo de raiva. Bateu o telefone novamente.
- Inacreditável! - gritou. - A Criptografia está prestes a explodir, e Strathmore não atende o maldito telefone!
CAPÍTULO
98
Hulohot saiu correndo dos aposentos do cardeal Guerra e encontrou a luz forte do sol da manhã. Protegeu os olhos com a mão e praguejou. Estava do lado de fora da catedral, em um pequeno pátio, cercado por uma alta parede de pedra, a fachada oeste da torre da Giralda e duas cercas de ferro. O portão estava aberto. Para fora do portão estendia-se a praça, mas estava vazia. As paredes de Santa Cruz estavam longe. Não era possível que Becker tivesse atravessado uma distância tão grande em tão pouco tempo. Hulohot virou-se e varreu o pátio. Ele está aqui dentro. Tem que estar.
O pátio, conhecido como Jardin de los Naranjos, era famoso em Sevilha por suas laranjeiras em flor - 20 ao todo. Hulohot avançou entre as árvores, arma em punho. As laranjeiras já eram velhas e não havia mais folhagem na base dos troncos. Os galhos mais baixos eram altos demais para serem alcançados e os troncos finos não serviam como esconderijo. Ele concluiu rapidamente que o pátio estava vazio. Olhou para cima. A Giralda.
A entrada para a escadaria em espiral da Giralda era isolada por uma corda e um pequeno aviso de madeira. A corda estava imóvel. Os olhos de Hulohot percorreram a torre de 127 metros, mas sabia que aquilo seria ridículo. Becker não teria sido assim tão burro. A escadaria estreita subia directamente até um cubículo quadrado de pedra. A torre tinha aberturas nas paredes para observação, mas não havia como escapar dali.
David Becker subiu o último dos degraus íngremes e foi dar, sem fôlego e exausto, em um pequeno cubículo. Estava cercado por paredes altas e havia apenas fendas nas paredes a seu redor. Nenhuma saída.
O destino fora cruel com Becker naquela manhã. Enquanto corria para fora da catedral em direcção ao pátio externo, seu blazer ficou preso na porta. Ele foi puxado para trás e depois girou antes que o tecido se rasgasse. Desequilibrado, saiu em disparada debaixo do sol ofuscante. Olhou para a frente, viu uma escada, pulou uma corda e subiu correndo. Quando se deu conta de onde ela ia dar, era tarde demais.
Agora se encontrava confinado em uma cela, tentando recuperar o fôlego. Sentia sua ferida arder. Raios de sol matinal penetravam pelas aberturas na murada. Ele olhou para fora. O homem com os óculos de armação de metal estava distante, lá embaixo, de costas para Becker, olhando em direção à praça. Becker ajeitou o corpo em frente à abertura para ver melhor. Vamos, atravesse a praça!
A sombra da Giralda se esparramava pela praça como uma enorme árvore cortada. Hulohot percorreu com os olhos sua extensão. Na parte mais distante, três fendas de luz passavam cortantes pelas aberturas de observação da torre e marcavam retângulos de contornos nítidos no chão abaixo. Um dos rectângulos tinha acabado de ser interrompido pela sombra de um homem. Sem nem mesmo olhar para o topo da torre, Hulohot virou-se e correu em direcção às escadas da Giralda.
CAPÍTULO
99
Fontaine socava seu punho contra a mão. Andava de um lado para o outro na sala de conferências e olhava para as luzes enlouquecidas na Criptografia.
- Interrompa a execução! Mas que diabos! Interrompa!
Midge entrou na sala segurando um novo relatório.
- Director! Strathmore não pode interromper nada!
- Como? - disseram Brinkerhoff e Fontaine quase ao mesmo tempo.
- Ele já tentou, senhor! - Midge entregou-lhe o relatório. - Quatro vezes. O TRANSLTR está preso em algum tipo de loop infinito.
Fontaine virou-se e olhou novamente para a janela.
- Meu Deus!
O telefone tocou abruptamente. O director olhou para trás.
- Tem que ser Strathmore! Já era hora!
Brinkerhoff tirou o fone do gancho.
- Escritório do director.
Fontaine estendeu a mão para pegar o fone. Brinkerhoff olhou de volta, constrangido, e virou-se para Midge.
- É Jabba. Quer falar com você.
O director olhou perplexo para Midge, que atravessou a sala e ativou o viva-voz. - Fale, Jabba.
A voz metálica de Jabba ressoou na sala.
- Midge, estou na sala do banco de dados. Encontramos umas coisas bem estranhas por aqui. Estava pensando se...
- Diabos, Jabba! - Midge enfureceu-se. - É sobre isso que estive tentando lhe avisar o tempo todo!
- Pode não ser nada, mas... - disse Jabba, tentando amenizar a situação.
- Pare de dizer isso! É alguma coisa, sim! Seja lá o que for que está acontecendo por aí, é melhor você levar isso muito a sério. Meus dados não estão errados, nunca estiveram, nunca estarão. - Ia desligar, mas resolveu acrescentar uma última coisa. - Jabba? Só para ter certeza de que não haverá surpresas... Strathmore ordenou que o Gauntlet fosse contornado. .
CAPÍTULO
100
Hulohot subiu a escada da Giralda, três degraus de cada vez. A única luz que entrava na passagem em espiral vinha de pequenas frestas na parede a cada 180 graus. Ele está preso. David Becker vai morrer! O assassino subia, segurando sua arma. Mantinha-se encostado à parede externa, caso Becker decidisse atacar de cima. Os castiçais de ferro, colocados a cada patamar da escada, dariam boas armas caso Becker
resolvesse usá-los. Ainda assim, mantendo um ângulo aberto, Hulohot conseguiria vê-lo a tempo. Sua arma tinha, é claro, um alcance bem maior do que um castiçal de um metro e meio.
Hulohot movia-se com agilidade, mas também com cuidado. A escada era íngreme e já tinha acontecido de turistas desavisados morrerem ali. Não havia placas de segurança nem corrimãos..
O assassino parou diante de uma das aberturas na parede e olhou para fora. Estava na face norte e, ao que parecia, a meio caminho do topo.
A abertura para a plataforma de observação estaria à vista logo após a próxima volta. A escadaria para o topo estava vazia. David Becker não havia tentado enfrentá-lo. Hulohot supôs que Becker não o tivesse visto entrar na torre. Isso significava que o elemento surpresa também estava a seu favor. Não que ele precisasse. Tinha todas as cartas na mão. Até a disposição da torre estava a seu favor. A escadaria terminava no canto sudeste da plataforma de observação. Desta forma, Hulohot teria uma linha de tiro limpa para qualquer ponto da cela sem que Becker pudesse se colocar por trás dele. E, para melhorar ainda mais as coisas, o assassino estaria saindo da escuridão para um local iluminado. Uma armadilha perfeita, pensou.
Hulohot mediu a distância até a abertura da porta. Sete passos. Repassou seus movimentos mentalmente. Se ele se mantivesse à direita ao se aproximar da abertura, seria capaz de ver o canto esquerdo da plataforma antes de adentrá-la. Se Becker estivesse lá, ele atiraria. Caso contrário, iria passar para o outro lado e entrar se movendo em direção ao leste, de frente para o canto direito, o único outro lugar onde Becker poderia estar. Sorriu.
ALVO: DAVID BECKER – ELIMINADO
Chegara a hora. Verificou sua arma.
Com um movimento rápido e violento, lançou-se para cima, e a plataforma surgiu à sua vista. O canto esquerdo estava vazio. Conforme havia planejado, moveu-se para dentro e jogou-se pela abertura olhando para a direita. Disparou no canto. A bala ricocheteou na parede nua e quase o acertou. Hulohot olhou para um lado e para o outro e soltou um grito abafado. Não havia ninguém lá dentro. David Becker havia desaparecido.
Três lances de escada abaixo, suspenso a 100 metros sobre o Jardin de los Naranjos, David Becker estava dependurado do lado de fora da Giralda como alguém que estivesse fazendo musculação na borda de uma janela. Quando Hulohot começou a subir a escadaria, Becker desceu três lances e colocou o corpo para fora de uma das aberturas. Tinha saído de cena bem a tempo, pois o assassino passou correndo por ele pouco depois. Estava apressado demais para notar os dedos brancos agarrados à borda de pedra.
Pendurado do lado de fora da janela, Becker agradeceu mentalmente o facto de seus treinos diários de squash incluírem 20 minutos de musculação especificamente voltada para desenvolver seus bíceps, em busca de um saque mais violento. Contudo, apesar dos braços musculosos, Becker estava tendo dificuldade para voltar novamente para dentro. Seus ombros queimavam devido ao esforço. Seu ferimento parecia estar sendo aberto e doía. Além disso, a borda de pedra talhada de forma rústica não lhe dava um bom apoio e arranhava as pontas de seus dedos como se fosse vidro cortado.
Calculou que o assassino estaria de volta em poucos instantes. Olhando de cima, não teria dificuldades de ver os dedos de Becker na pedra.
Ele fechou os olhos e fez força. Precisaria de um milagre para escapar da morte. Seus dedos estavam perdendo apoio. Olhou para baixo. Era uma queda e tanto dali até as laranjeiras do jardim. Impossível de sobreviver. A dor de seu ferimento estava piorando. Ouviu passos fortes acima dele, passadas de alguém pulando os degraus, descendo a escada. Fechou os olhos novamente. Era agora ou nunca. Com os dentes rangendo devido ao esforço, deu tudo de si e puxou-se para cima.
A pedra lixava a pele de seus pulsos enquanto ele se movia lentamente. As passadas estavam mais próximas. Becker agarrou-se à parte interna da abertura, tentando encontrar um bom ponto de apoio. Apoiou-se na parede com os pés para ganhar impulso. Seu corpo parecia feito de chumbo, como se alguém houvesse amarrado uma corda em suas pernas e estivesse puxando para baixo. Lutou contra seu próprio peso. Lançou-se para cima, firmando-se nos cotovelos. Podia ser visto agora com a cabeça enfiada pela metade na janela, como um homem em uma guilhotina. Balançou-se e sacudiu as pernas, até jogar o peso do corpo para cima e passar através da abertura. Metade do corpo já estava do lado de dentro. Seu torso estava pendente acima da escadaria. Podia ouvir os passos se aproximando. Então apoiou-se nas laterais da abertura e, com um só movimento, lançou seu corpo para dentro. Caiu seco nos degraus da escada.
Hulohot pôde sentir o impacto do corpo de Becker no patamar logo abaixo dele. Pulou para a frente com a arma apontada e viu a janela. É agora! Encostou-se na parede externa e mirou para os degraus abaixo dele. As pernas de Becker sumiram de vista na curva da escada. Hulohot deu um tiro, irritado, mas a bala apenas ricocheteou na parede.
Mantendo-se sempre colado à parede externa para obter o melhor ângulo, Hulohot começou a descer rapidamente os degraus atrás de sua presa. A escada ia girando rápido, mas parecia que Becker estava sempre 180 graus à frente, mantendo-se fora da linha de tiro. Becker estava descendo as escadas por den-tro, cortando o ângulo e pulando quatro ou cinco degraus de cada vez. O assassino mantinha o passo. Um único tiro seria o suficiente. Ele estava se aproximando. Além disso, sabia que, ao atingir o térreo, Becker não teria para onde correr. Hulohot poderia acertar um tiro pelas costas quando ele tentasse atravessar o pátio vazio. A corrida desesperada continuava escada abaixo.
A fim de ganhar velocidade, o assassino moveu-se para dentro da espiral. Sentia que estava mais próximo. Podia ver a sombra de Becker a cada vez que passavam por uma abertura na parede. Para baixo. Mais. Em espiral. Becker parecia estar sempre logo após a próxima volta. Hulohot mantinha um olho na sombra de Becker e outro na escada.
De repente pareceu ao português que a sombra de Becker havia tropeçado. Viu um movimento estranho para a esquerda, depois pareceu que girava no meio do ar, retomando ao centro da escadaria. Hulohot pulou à frente. Eu o peguei!
Um pouco abaixo, uma ponta de ferro atravessou o ar, vinda do canto da escada. Foi lançada para a frente como uma espada, na altura do tornozelo. Hulohot tentou desviar-se para a esquerda, mas era tarde. O objecto já estava entre seus tornozelos. Seu pé de apoio moveu-se e bateu em cheio na barra de ferro, que se chocou contra a parte inferior de sua perna. Colocou os braços à frente, buscando apoio, mas não havia onde segurar. Caiu no vazio. Logo depois estava no ar, girando de lado. Hulohot foi lançado para baixo, passando por cima de Becker, que estava dobrado sobre sua barriga, com os braços estendidos. O castiçal que ele antes segurava estava agora preso entre as pernas do asssassino, que caía escada abaixo.
Hulohot bateu com força na parede externa antes de cair sobre os degraus. Quando se chocou com o chão, começou a rolar sobre si mesmo. Deixou cair a arma. Seu corpo girou para baixo, rolando de ponta-cabeça. Completou cinco rotações de 360 graus pela espiral antes de parar. Doze degraus a mais e teria caído directamente no pátio.
CAPÍTULO
101
Era a primeira vez que David Becker segurava uma arma. O corpo de Hulohot estava retorcido na escadaria escura da Giralda.
Becker pressionou o cano da arma contra a testa do assassino e ajoelhou-se cuidadosamente. Qualquer movimento e ele iria atirar. Mas não houve movimento algum. Hulohot estava morto.
Colocando a arma no chão, Becker deixou-se cair sobre os degraus. Pela primeira vez em muito tempo sentiu vontade de chorar. Lutou contra as lágrimas. Haveria tempo para se emocionar mais tarde. Agora era hora de voltar para casa. Ele tentou se levantar, mas estava cansado demais para se mover. Ficou sentado durante um bom tempo, exausto, na escadaria de pedra.
Meio ausente, olhava para o corpo dobrado à sua frente. Os olhos do assassino começaram a se embaçar, fixos no vazio. Incrivelmente, seus óculos ainda estavam inteiros. Eram estranhos, com um fio saindo por trás da armação e conectando-se a uma espécie de unidade que estava presa ao cinto. Mas Becker estava demasiado exausto para ficar curioso.
Sentado ali, sozinho na escadaria, examinando seus pensamentos, voltou a atenção para o anel que estava em seu dedo. Sua visão estava mais clara e finalmente podia ler a inscrição. Como suspeitara, não era inglês. Olhou para os caracteres por algum tempo e depois franziu a testa. Vale a pena matar por isso?
O sol da manhã brilhava intensamente quando Becker saiu da Giralda para o pátio. A dor de seu ferimento havia diminuído, e sua visão estava quase normal. Apreciou a vista por um momento, entorpecido, sentindo a fragrância das flores de laranjeira. Depois começou a cruzar lentamente o pátio.
Mal havia deixado a torre quando uma van freou bruscamente perto dele. Dois homens saíram dela. Eram jovens e estavam vestidos em uniformes militares. Avançaram em direcção a Becker com a precisão rígida de máquinas bem reguladas.
- Senhor? - chamou um deles.
Becker parou, espantado.
- Quem... quem são vocês?
- Venha connosco, por favor. Imediatamente.
Havia algo de surreal naquele encontro. Algo que fazia as terminações nervosas de Becker formigarem outra vez. Começou a andar para trás, tentando afastar-se.
O mais baixo dos dois olhou friamente para Becker:
- Por aqui, senhor. Agora.
Becker virou-se, pronto para correr. Deu apenas um passo. Um dos homens puxou uma arma e atirou.
Uma dor lancinante se espalhou pelo peito de Becker. Subiu até seu crânio.
Seus dedos se enrijeceram e ele caiu. Um instante depois, havia apenas escuridão.
CAPÍTULO
102
Strathmore chegou ao nível mais baixo do subsolo onde ficava o TRANSLTR. Saindo do gradeado, enfiou os pés em três centímetros de água. O computador gigantesco tremia ao seu lado. Grossos pingos de água caíam, como chuva, em meio à névoa que o cercava. O ruído das sirenes ali era ensurdecedor.
O comandante olhou para os geradores principais que haviam entrado em curto. O corpo de Phil Chartrukian estava lá, seus restos carbonizados atravessados sobre um conjunto de dissipadores metálicos de calor. A cena evocava um filme de terror.
Apesar de lamentar a morte daquele rapaz, Strathmore não tinha dúvida de que fora necessária. Chartrukian não lhe deixou outra escolha. Quando o SegSis veio correndo no subsolo, gritando a respeito de um vírus, Strathmore o encontrou em uma das plataformas e tentou acalmá-lo. Contudo, o jovem havia perdido a razão. Estamos com um vírus! Vou chamar Jabba! Quando ele tentou passar, Strathmore bloqueou seu caminho. A plataforma era estreita. Eles brigaram. O corrimão era baixo. A maior ironia, pensou Strathmore, é que Chartrukian estava certo a respeito do vírus o tempo todo.
Sua queda foi horrível. Um uivo momentâneo de terror e depois o silêncio. Mas não foi pior do que aquilo que o comandante Strathmore viu a seguir. Greg Hale estava olhando para ele, escondido nas sombras um pouco abaixo, com uma expressão de terror e recriminação na face. Foi naquele momento que Strathmore soube que Greg Hale também teria que morrer.
O TRANSLTR emitiu outro ruído como se estivesse rachando ao meio, e Strathmore voltou sua atenção para a tarefa mais premente: cortar a energia. O disjuntor principal estava do outro lado das bombas de fréon, à esquerda do corpo de Phil. Strathmore podia vê-las de onde estava. Tudo o que precisava fazer era puxar uma alavanca e toda a energia restante na Criptografia seria desligada. Bastaria, então, esperar alguns segundos para ligar novamente os geradores principais. Todas as portas e outros equipamentos seriam reactivados. O gás fréon voltaria a circular, e o TRANSLTR estaria salvo.
Contudo, quando se dirigiu cuidadosamente para o disjuntor, percebeu que haveria um último obstáculo. O corpo de Chartrukian ainda estava sobre os dissipadores do gerador principal. Desligá-lo e depois ligá-lo novamente causaria um novo curto e nova queda de energia. O corpo precisava ser removido.
Strathmore olhou para a grotesca massa humana que restava e foi em sua direcção. Pegou um punho. A pele parecia feita de isopor. O tecido havia torrado. O corpo inteiro tinha ressecado completamente. O comandante fechou os olhos, segurou firme o pulso e puxou. O corpo se moveu, mas muito pouco. Strathmore puxou com mais força. O corpo deslizou mais um pouco. O comandante se concentrou e puxou com toda a sua força. Viu-se jogado para trás. Bateu com as costas em um quadro de força e caiu sentado. Tentando levantar-se em meio à camada de água que estava se acumulando aos poucos no chão, olhou horrorizado para o obcjeto que estava segurando. Era o antebraço de Chartrukian que havia se partido na altura do cotovelo.
Lá em cima, no Nodo 3, Susan continuava esperando. Estava sentada no sofá, sentindo-se paralisada. Hale estava morto a seus pés. Ela não podia imaginar por que o comandante estava demorando tanto. Os minutos passavam. Tentou afastar David de seus pensamentos, mas era inútil. A cada vez que as sirenes tocavam, as palavras de Hale surgiam em sua mente: Lamento por David Becker. Achou que fosse enlouquecer.
Estava quase se levantando para sair correndo em direcção ao salão da Criptografia quando a força finalmente foi cortada. Strathmore havia alcançado o disjuntor.
O silêncio tomou conta da Criptografia. As sirenes foram interrompidas e os monitores se apagaram. O corpo de Greg desapareceu na escuridão. Instintivamente, Susan encolheu as pernas sobre o sofá e cobriu-se com o paletó de Strathmore.
Escuridão. Silêncio.
Nunca havia sentido o peso daquele silêncio na Criptografia. Podia-se ouvir sempre o zumbido grave dos geradores preenchendo o ar. Agora não havia nada, apenas o gigante de silício se aquietando, aliviado. O TRANSLTR estalava e sibilava, esfriando lentamente.
Susan fechou os olhos e rezou por David. Sua prece era simples: que Deus protegesse o homem que amava.
Ela não era religiosa e não esperava receber uma resposta às suas preces. Sobressaltou-se quando sentiu uma vibração no seu peito. Sentou-se. Colocou a mão sobre o peito e logo entendeu o que estava acontecendo. As vibrações não vinham da mão de Deus, mas do bolso do paletó do comandante. Ele havia deixado lá seu SkyPager com o modo de vibração ativado. Alguém havia lhe enviado uma mensagem.
Seis andares abaixo, Strathmore estava de pé ao lado do disjuntor. O subsolo da Criptografia estava escuro como a mais profunda noite. Ficou parado por um instante, contemplando aquela escuridão. A água continuava caindo lá de cima. Era como uma tempestade noturna. O comandante levantou a cabeça
e deixou aquelas gotas mornas lavarem sua culpa. Sou um sobrevivente. Ajoelhou-se e removeu os últimos pedaços da carne de Chartrukian que estavam colados à sua mão.
Seus sonhos para o Fortaleza Digital haviam sido destruídos. Podia viver com isso. Susan era tudo o que importava agora. Pela primeira vez entendeu, verdadeiramente, que havia outras coisas na vida além da pátria e da honra. Sacrifiquei os melhores anos de minha vida em nome da pátria e da honra. Mas onde fica o amor? Havia se privado disso por muito tempo. E para quê? Para ver um jovem professor roubar seus sonhos? Strathmore treinou Susan. Protegeu-a. Ele a merecia. Finalmente ela seria somente sua. Susan viria buscar abrigo em seus braços, agora que já não havia onde encontrar abrigo. Viria até ele, indefesa, ferida pela dor e, com o tempo, ele lhe mostraria que o amor cura todas as feridas.
Honra. Pátria. Amor. David Becker estava prestes a morrer por esses três motivos.
CAPÍTULO
103
O comandante saiu pela portinhola como Lázaro retomando do mundo dos mortos. Apesar de suas roupas encharcadas, seus passos eram leves. Foi na direcção do Nodo 3 - na direcção de Susan e de seu futuro.
O salão da Criptografia estava novamente iluminado. O fréon fluía para os níveis mais baixos do TRANSLTR, como sangue oxigenado. Strathmore calculou que ainda levaria algum tempo para que o gás de refrigeração chegasse ao fundo do revestimento e impedisse os processadores das camadas mais baixas de queimar, mas estava certo de que havia agido a tempo. Suspirou, vitorioso, sem suspeitar da verdade: já era tarde demais.
Sou um sobrevivente, pensou. Ignorando o buraco aberto no vidro do Nodo 3, andou até as portas eletrônicas, que se abriram com seu som característico. Entrou.
Susan estava de pé à sua frente, ainda molhada e desgrenhada, coberta por seu paletó. Parecia uma universitária pega de surpresa pela chuva. Strathmore se sentia como um estudante veterano emprestando seu casaco. Sentiu-se jovem, uma sensação que não tinha há muito tempo. Seus sonhos estavam se realizando.
No entanto, quando se aproximou, percebeu que não reconhecia a mulher à sua frente. Ela tinha um olhar gélido e cortante. Não havia suavidade alguma nela. Estava rígida como uma estátua. O único movimento perceptível eram as lágrimas que caíam de seus olhos.
- Susan?
Outra lágrima desceu por sua face trêmula.
- O que houve? - perguntou suavemente o comandante.
A poça de sangue sob o corpo de Hale havia se espalhado pelo carpete.
Strathmore olhou para o corpo, preocupado, e depois novamente para Susan. Será que ela sabe? Impossível. Ele havia encoberto todas as pistas.
- Susan? - disse, aproximando-se. - O que há?
Ela não se moveu.
- Você está preocupada com David?
O lábio superior de Susan tremeu.
Strathmore aproximou-se ainda mais. Queria tocá-la, mas hesitou. A menção do nome de David aparentemente trouxe à tona a dor represada. Lentamente, no início, apenas um tremor. Depois uma enorme onda de infelicidade pareceu percorrer suas veias. Quase incapaz de conter seus lábios trêmulos, Susan fez menção de dizer algo, mas não saiu nenhum som.
Sem quebrar por um instante sequer o olhar gélido que mantinha fixado em Strathmore, ela tirou a mão do bolso do paletó. Estendeu, tremendo, o pequeno objecto que segurava.
Strathmore pensou, por instantes, que fosse encontrar a Beretta apontada para sua barriga. Contudo, a arma ainda estava no chão, na mão de Hale. O objecto que Susan segurava era menor. O comandante olhou para ele e então entendeu.
A realidade em volta pareceu se dobrar, enquanto o tempo quase parava. Ele podia ouvir o ruído de seu próprio coração batendo. O homem que havia vencido gigantes durante tantos anos tinha sido derrotado em um instante. Destruído pelo amor, por sua própria tolice. Com um gesto simples e cavalheiresco, dera a Susan seu paletó. Com ele, seu SkyPager.
Agora era Strathmore quem estava rígido. A mão de Susan tremia. Deixou cair o pager aos pés de Hale. Com um olhar de incompreensão e de fúria que Strathmore jamais poderia esquecer, Susan saiu correndo do Nodo 3.
O comandante deixou que fosse. Em câmara lenta, curvou-se e pegou o pager. Não havia nenhuma mensagem nova: Susan já lera todas. Strathmore percorreu desesperadamente a lista.
ALVO: ENSEI TANKADO - ELIMINADO
ALVO: P. CLOUCHARDE - ELIMINADO
ALVO: HANS HUBER - ELIMINADO
ALVO: ROCÍO EVA GRANADA – ELIMINADO
A lista continuava. Strathmore ficou em choque. Posso explicar! Ela irá compreender! A honra! A pátria! Mas havia uma última mensagem que ele não havia visto ainda, aquela que jamais poderia explicar. Tremendo, olhou para a última transmissão.
ALVO: DAVID BECKER – ELIMINADO
Strathmore abaixou a cabeça. Seu sonho havia terminado.
CAPÍTULO
104
Susan saiu do Nodo 3 atordoada.
ALVO: DAVID BECKER – ELIMINADO
Como se fosse um pesadelo, foi em direcção à saída principal da Criptografia. A voz de Greg Hale ecoava em sua mente: Susan, Strathmore vai me matar! Susan, o comandante está apaixonado por você!
Ela chegou até a enorme porta circular e começou a digitar furiosamente sua senha. A porta não se movia. Tentou novamente, mas nada acontecia. Susan soltou um grito abafado. Aparentemente o corte de energia havia apagado os códigos de acesso. Continuava presa.
Sem que tivesse tempo para notar, dois braços a seguraram por trás, abraçando seu corpo entorpecido. O toque era familiar, mas repugnante. Não tinha a mesma brutalidade de Greg Hale, mas havia nele um desespero, uma determinação interior forte como o aço.
Susan virou-se. O homem que a segurava estava arrasado, assustado. Era uma face que ela nunca vira antes.
- Susan - Strathmore implorou, segurando-a -, eu posso explicar.
Tentou livrar-se dele, mas o comandante segurou-a com firmeza. Tentou gritar, mas estava sem voz. Tentou correr, mas as mãos fortes a puxaram para trás.
- Eu te amo - sussurrava a voz. - Eu sempre te amei.
O estômago de Susan se revirava.
- Fique comigo.
Na mente de Susan, imagens pavorosas se sucediam: os olhos verdes de David fechando-se lentamente pela última vez; o corpo de Hale espalhando sangue pelo carpete; Phil Chartrukian espatifado e queimado sobre os geradores.
- A dor irá passar - dizia a voz. - Você voltará a amar.
Susan não ouvia nada.
- Fique comigo - pedia a voz. - Irei curar as suas feridas.
Ela se debateu, sem sucesso.
- Fiz tudo isso por nós. Fomos feitos um para o outro. Susan, eu te amo – as palavras fluíam como se ele houvesse esperado uma década para pronunciá-las. - Eu te amo! Eu te amo!
Naquele instante, a 30 metros de distância, como se estivesse refutando a desprezível confissão de Strathmore, o TRANSLTR emitiu um ruído agudo, selvagem e impiedoso. Aquele som era inteiramente novo - um silvo agudo, distante e ameaçador, que parecia crescer como uma serpente, vindo das profundezas do silo. O fréon, aparentemente, não atingiu o nível necessário a tempo.
O comandante soltou Susan e, em pânico, virou-se para o computador de dois biliões de dólares.
- Não! - gritou, com as duas mãos na cabeça. - Não!
O foguete de seis andares começou a tremer. Strathmore deu um único passo cambaleante na direcção da máquina trovejante. Caiu de joelhos, um infiel frente a um deus enraivecido. Era tarde. Na base do silo, os processadores de titânio-estrôncio do TRANSLTR haviam entrado em combustão.
CAPÍTULO
105
Uma bola de fogo subindo através de três milhões de chips de silício gera um som único. Uma floresta em chamas estalando e crepitando, um tornado uivando, um jacto de vapor saído de um gêiser... todos esses sons, juntos, aprisionados dentro de um invólucro reverberante. Era o sopro do demônio, correndo por uma caverna fechada, procurando uma saída. Strathmore permaneceu ajoelhado, hipnotizado pelo ruído terrível que subia em sua direção. O computador mais caro do mundo estava prestes a se transformar em um inferno.
Em câmara lenta, Strathmore virou-se para Susan, que continuava ao lado da porta da Criptografia, paralisada. Sua face, coberta de lágrimas, parecia reluzir sob a luz fluorescente. É um anjo, pensou. Buscou o paraíso nos olhos dela, mas tudo que podia ver era morte, a morte da confiança. O amor e a honra não estavam mais presentes. A fantasia que o sustentara durante todos aqueles anos estava morta. Susan Fletcher nunca seria sua. Nunca. O vazio que tomou conta dele era desesperador.
Susan observava o TRANSLTR com um olhar vago. Sabia que, sob aquele revestimento de cerâmica, uma bola de fogo avançava na direcção deles. Ela podia sentir a bola se movendo cada vez mais rápido, alimentando-se do oxigênio liberado pelos chips que queimavam. Dentro de alguns momentos, o domo da Criptografia se transformaria em um inferno de chamas.
Ela queria correr, mas o peso da morte de David a mantinha estática. Pensou ter ouvido sua voz chamando-a, dizendo que fugisse, mas não havia lugar algum para onde correr. A Criptografia era.um túmulo fechado. Não importava: não tinha medo. A morte iria acabar com a dor. Ela estaria novamente com David.
O chão da Criptografia começou a tremer como se, lá embaixo, um monstro furioso estivesse saindo das profundezas. A voz de David parecia dizer: Corra, Susan! Corra!
Strathmore agora se movia na direcção dela, a face desprovida de vida. Seus olhos tinham se tornado cinzentos e frios. O patriota que vivera na mente de Susan como um herói estava morto. Em seu lugar havia um assassino. Ele a abraçou novamente, agarrando-se a ela em desespero. Beijou seu rosto.
- Perdoe-me - implorou.
Susan tentou afastar-se, mas Strathmore a segurava.
O TRANSLTR começou a vibrar como um míssil prestes a ser lançado. O chão da Criptografia começou a tremer. Strathmore segurou-a com mais força. - Abrace-me, Susan. Preciso de você.
Uma onda de fúria tomou conta de Susan. Ouviu novamente a voz de David dizendo: Eu te amo! Fuja! Num ímpeto, empurrou Strathmore e soltou-se. O ruído vindo do TRANSLTR tornou-se ensurdecedor. O fogo já estava na borda do silo. O supercomputador urrava, abrindo-se em fissuras.
A voz de David parecia sustentar Susan, guiando-a. Ela correu pelo salão da Criptografia e começou a subir a escada que levava ao escritório de Strathmore. Atrás dela, o TRANSLTR soltou um rugido estrondoso.
O último dos chips de silício se desintegrou e uma poderosa onda de calor rasgou a parte superior do invólucro, lançando fragmentos de cerâmica a dez metros de altura. Instantaneamente o ar rico em oxigênio da Criptografia foi sugado para preencher o enorme vácuo.
Susan chegou até a plataforma superior e segurou-se firmemente no anteparo. Uma forte lufada de vento balançou seu corpo, fazendo-a virar para a Criptografia a tempo de ver o vice-director lá embaixo, ao lado do TRANSLTR, olhando fixamente para ela. Uma fúria tempestuosa o cercava, mas ainda assim havia paz em seus olhos. Seus lábios se abriram e ele proferiu uma última palavra:
- Susan.
O ar que estava sendo sugado para dentro do TRANSLTR entrou em combustão. Num lampejo flamejante, o comandante Trevor Strathmore passou de homem a silhueta, a lenda.
Quando a explosão chegou até Susan, arremessou-a quase cinco metros para trás, para dentro do escritório do comandante. Ela só sentiu uma enorme onda de calor.
CAPÍTULO
106
Muito acima do domo da Criptografia, nas janelas da sala de reuniões do director, três faces surgiram, ofegantes. A explosão havia sacudido todo o complexo da NSA. Leland Fontaine, Chad Brinkerhoff e Midge Mi1ken olhavam para fora, horrorizados, em silêncio.
Abaixo deles, o domo em chamas. O tecto de policarbonato estava intacto, mas abaixo de sua superfície transparente o prédio estava em chamas. Uma fumaça negra girava como um redemoinho no interior do domo.
Os três olharam sem dizer uma palavra. O espectáculo tinha uma grandeza sobrenatural.
Fontaine ficou parado um bom tempo. Quando falou, seu tom de voz era grave, mas firme.
- Midge, mande uma equipa para lá... agora.
Na sala de Fontaine, o telefone começou a tocar.
Era Jabba.
CAPÍTULO
107
Susan não sabia quanto tempo tinha decorrido. Uma sensação de ardência em sua garganta fez com que retomasse a consciência. Desorientada, olhou em volta. Estava deitada sobre um carpete, atrás de uma mesa. A única luz na sala era uma estranha luminosidade alaranjada. O ar cheirava a plástico queimado. O lugar no qual estava não era mais uma sala: era uma concha devastada. As cortinas estavam em chamas e as paredes de plexiglas estavam derretendo.
Então lembrou-se de tudo. David.
Em pânico, levantou-se. Podia respirar, mas o ar era cáustico. Ela andou cambaleando até a porta, procurando uma saída. Quando chegou lá, sua perna deu um passo no vazio. Segurou-se na moldura da porta a tempo. A plataforma havia desaparecido. Quinze metros abaixo uma sucata de metal retorcido fumegava. Susan olhou para o salão da Criptografia horrorizada. Era um mar de chamas. O material derretido que restara dos três milhões de chips havia irrompido do TRANSLTR como uma corrente de lava, jogando no ar uma fumaça densa. Ela conhecia aquele cheiro: silício derretido. Era um veneno mortal.
Retomou para o que restara do escritório de Strathmore, sentindo-se fraca. Sua garganta queimava. A sala estava iluminada por uma luz aterrorizante. A Criptografia estava morrendo. E eu também irei morrer, pensou ela.
Pensou na única saída possível, o elevador de Strathmore. Mas sabia que era inútil: a parte eléctrica não teria sobrevivido à explosão.
Contudo, andando na direcção da porta do elevador em meio à fumaça cada vez mais densa, Susan lembrou-se do que Hale dissera: O elevador funciona com energia do prédio principal! Eu vi os diagramas. Sabia que era verdade e sabia também que todo o poço era revestido por concreto reforçado.
A fumaça enchia o ar. Andou cambaleante até a porta, mas, chegando lá, viu que o botão usado para chamar o elevador estava apagado. Susan bateu nervosamente no painel, depois deixou-se cair de joelhos e esmurrou o chão, em desespero.
Parou. Ouviu ruídos mecânicos atrás da porta. Surpresa, olhou para cima. Aparentemente a cabine do elevador estava lá! Susan socou o botão novamente. Ouviu de novo o mesmo som.
Então percebeu que o botão não estava apagado - apenas havia sido recoberto pela fuligem escura. Agora podia ver um leve brilho sob seus dedos.
Ainda há energia!
Com uma esperança renovada, apertou várias vezes o botão. A cada vez, alguma coisa se movia por trás das portas. Podia mesmo ouvir o som de um ventilador dentro da cabine. O elevador está aqui! Por que as malditas portas não se abrem?
Olhou para um pequeno teclado auxiliar. Havia botões com as letras do alfabeto. Em desespero, lembrou-se: a senha.
A fumaça estava começando a penetrar pelas janelas parcialmente derretidas. Socou as portas do elevador. Elas não se abriam. A senha!, pensou. Strathmore nunca me disse qual era a senha! A fumaça de silício estava entrando no escritório. Tossindo, Susan caiu em frente ao elevador, sentindo-se derrotada. O ventilador estava apenas a alguns metros. Deixou-se ficar, desnorteada, ofegante.
Fechou os olhos, mas a voz de David mais uma vez a trouxe de volta. Fuja, Susan! Abra a porta! Saia daí! Abriu os olhos, esperando ver seu rosto sorridente, os olhos verdes... Mas foi o teclado que surgiu novamente à sua frente. A senha... Olhava para o teclado, mal conseguindo manter o foco. Em um visor iluminado abaixo do teclado, cinco posições esperavam uma entrada. Uma senha de cinco dígitos,
pensou. Sabia quais eram suas chances: 26 elevado à quinta potência, ou seja, quase 12 milhões de escolhas possíveis. Se tentasse uma por segundo, levaria cerca de 19 semanas.
Tossindo, sem ar, deixou-se cair novamente no chão, sob o teclado. Ouvia a voz do comandante, repetindo pateticamente: Eu te amo, Susan! Sempre te amei! Susan! Susan! Susan!
Sabia que ele estava morto, mas ainda assim sua voz não silenciava. Ela ouvia seu nome sem parar.
Susan... Susan...
Em um momento de súbita clareza, ela entendeu. Fraquejante e trêmula, esforçou-se para alcançar o teclado e digitou a senha.
S... U...S...A...N
Logo em seguida, as portas se abriram.
CAPÍTULO
108
O elevador de Strathmore movia-se com rapidez. Dentro da cabine, Susan aspirava avidamente o ar puro. Ainda tonta, apoiou-se em uma das paredes. O elevador reduziu a velocidade e parou. Logo em seguida, algumas engrenagens foram acionadas e o elevador começou a se mover novamente, desta vez na horizontal. Susan sentiu a cabine acelerar enquanto cruzava a distância que a separava do complexo principal da NSA. Por fim parou e as portas se abriram.
Tossindo, Susan saiu num corredor escuro, cimentado. Ela estava num túnel estreito e com o tecto baixo. Duas linhas amarelas se estendiam à sua frente, paralelas. Perdiam-se na escuridão mais adiante.
A Estrada Subterrânea...
Ela andou lentamente ao longo do túnel, apoiando-se na parede para não cair. Atrás dela, as portas do elevador se fecharam. Mais uma vez viu-se mergulhada na escuridão.
Silêncio.
Nada a não ser um zumbido distante, propagando-se pelas paredes. Um zumbido que se aproximava.
Subitamente foi ofuscada por uma luz forte. A escuridão transformou-se em uma névoa acinzentada. As paredes do túnel ficaram nítidas. Um veículo surgiu, vindo de uma transversal; seus faróis projectavam-se sobre ela, cegando-a. Susan encostou-se contra a parede e protegeu os olhos. Sentiu uma rajada de ar, e o veículo passou rapidamente por ela.
Logo em seguida ele freou e começou a voltar de ré. Em poucos segundos estava a seu lado.
- Senhorita Fletcher! - exclamou uma voz espantada.
Susan olhou para uma forma vagamente familiar, alguém sentado no volante de um carrinho eléctrico de golfe.
- Meu Deus. - O homem olhava, incrédulo. - Você está bem? Achamos que estivesse morta!
Susan olhou, ainda zonza.
- Chad Brinkerhoff - disse ele, observando a criptógrafa, que visivelmente estava em choque. - Assistente do director.
Susan conseguiu apenas murmurar:
- O TRANSLTR...
Brinkerhoff assentiu.
- Esqueça. Vamos, suba!
O farol do carrinho de golfe varria as paredes de cimento.
- Há um vírus no banco de dados central- disse Brinkerhoff.
- Eu sei - respondeu Susan ainda em transe.
- Precisamos de sua ajuda.
Ela estava lutando contra as lágrimas.
- Strathmore... ele...
- Também já sabemos - completou Brinkerhoff. - Ele contornou o Gauntlet. - Sim... e... - As palavras ficaram presas em sua garganta. Ele matou David! Brinkerhoff colocou a mão sobre seu ombro.
- Estamos quase lá, senhorita Fletcher. Agüente firme.
O carrinho de golfe dobrou uma esquina e parou. Ao lado deles, perpendicular ao túnel, havia um corredor fracamente iluminado por luzes vermelhas no chão.
- Venha - disse Brinkerhoff, ajudando-a a saltar.
Ele a guiou pelo corredor enquanto Susan seguia, envolta em uma névoa. O corredor, revestido de lajotas, agora descia em um plano inclinado. Segurando o corrimão, Susan acompanhou Brinkerhoff. O ar começou a se tornar mais fresco. Continuaram descendo.
À medida que desciam, o túnel se estreitava. Podiam ouvir o eco de passos vindos de trás deles. Um andar vigoroso e cadenciado. O som ficou mais alto. Brinkerhoff e Susan pararam e se viraram.
Um homem negro, enorme, aproximava-se deles. Susan nunca o tinha visto antes. Quando chegou mais perto, ele lançou um olhar inquisitivo e penetrante sobre ela. Perguntou a Brinkerhoff:
- Quem é esta?
- Susan Fletcher - respondeu Brinkerhoff.
O grandalhão levantou as sobrancelhas. Mesmo coberta por fuligem e ensopada, Susan Fletcher era mais impressionante do que ele havia imaginado. - E o comandante?
Brinkerhoff apenas balançou a cabeça.
O director não disse nada. Olhou para baixo por um instante. Depois voltou-se para Susan:
- Leland Fontaine- disse, estendendo a mão. - Fico feliz em saber que você está bem.
Susan olhou, espantada. Sabia que um dia iria conhecer o director, mas não era exatamente assim que ela imaginara o encontro.
- Junte-se a nós, senhorita Fletcher - disse Fontaine, seguindo em frente.
- Vamos precisar de toda a ajuda possível.
No final do túnel, visível em meio à tênue luz vermelha, uma parede de aço bloqueava o caminho. Quando chegaram diante dela, Fontaine aproximou-se e digitou uma senha de acesso em um teclado alfanumérico embutido na parede lateral. Depois colocou a mão sobre um pequeno painel de vidro. Uma luz varreu suas digitais. Logo em seguida a pesada parede se moveu.
Havia apenas uma sala mais sagrada que a Criptografia em toda a NSA. Susan sentiu que estava prestes a conhecê-la.
CAPÍTULO
109
A sala de comando do banco de dados central da NSA se parecia com uma versão menor do controle de missões da NASA. Uma dúzia de estações de trabalho estava voltada para um painel de vídeo com nove metros de altura e 12 metros de largura na outra extremidade da sala. No painel, números e diagramas eram exibidos em rápida sucessão, surgindo e desaparecendo como se alguém estivesse trocando de canais sucessivamente. Técnicos iam e vinham entre as estações, carregando longas listagens de computador e gritando comandos uns para os outros. O lugar estava um completo caos.
Susan observou a impressionante sala. Lembrava-se vagamente de ter lido que 250 toneladas de terra haviam sido escavadas para criá-la. A câmara ficava situada 65 metros abaixo da superfície, onde estava completamente a salvo de bombas de fluxo eletromagnético e de explosões nucleares.
Jabba estava em uma estação de trabalho elevada no centro da sala, berrando ordens, como um rei se dirigindo aos súbditos. Ampliada no painel atrás dele, uma mensagem que Susan já vira antes:
APENAS A VERDADE PODERÁ SALVÁ-LOS
DIGITE A SENHA _________
Como se estivesse presa em um pesadelo surreal, ela seguiu Fontaine até a plataforma. Seu mundo parecia um borrão mudando em câmara lenta.
Ao ver que eles se aproximavam, Jabba virou-se como um touro furioso.
- Quando construí o Gaundet, eu tinha uma razão muito forte para fazê-lo!
- O Gaundet já não existe mais - retrucou Fontaine, sem se alterar.
- Já sei, director - prosseguiu Jabba. - A onda de choque me fez cair sentado! Onde está Strathmore?
- O comandante Strathmore está morto.
- Mas que porra de justiça poética.
- Mais respeito, Jabba - ordenou o director. - Como está a situação? Qual o poder de destruição desse vírus?
Jabba olhou para o director em silêncio e depois começou a rir.
- Um vírus? - Sua gargalhada ruidosa ressoou pela câmara. - Você pensa que estamos lidando com um vírus?
Fontaine ficou impassível. A insolência de Jabba já havia passado dos limites, mas o director sabia que aquele não era nem o momento nem o lugar para lidar com isso. Lá embaixo Jabba era superior até mesmo a Deus. Problemas técnicos no banco de dados tinham precedência sobre a cadeia de comando normal.
- Então não é um vírus? - exclamou Brinkerhoff, animado.
Jabba olhou para ele, desdenhoso.
- Um vírus tem comandos de replicação, chefe. Isso aqui não tem.
Susan mantinha-se próxima, mas não conseguia se concentrar em nada.
- Então o que está acontecendo? - Fontaine perguntou. - Pensei que estávamos lidando com um vírus.
Jabba respirou fundo e falou, baixando a voz:
- Os vírus... - começou a explicar, secando o suor em seu rosto. - Os vírus se reproduzem. Criam clones. São vaidosos e burros; egomaníacos binários, digamos assim. Geram bebês mais rápido do que coelhos. Esse é seu ponto fraco: é possível criar uma mutação que os aniquile, se você souber o que fazer. Infelizmente o programa que temos aqui não tem ego e não precisa se reproduzir. Seus objectivos estão claros e ele é determinado. Na verdade, quando tiver atingido seu objectivo, provavelmente irá cometer suicídio digital. - Jabba apontou com os braços, reverentemente, para a confusão que continuava sendo projectada no enorme painel. - Senhoras e senhores, gostaria de apresentar-lhes o kamikase dos invasores de computadores: um verme.
- Verme? - resmungou Brinkerhoff. Isso lhe soava como um termo muito mundano para descrever aquele invasor traiçoeiro.
- Isso, um verme - continuou Jabba. - Não tem uma estrutura complexa, apenas instinto: comer, defecar, se arrastar. Só isso. Simplicidade mortífera. Faz o que foi programado para fazer e depois some.
Fontaine encarou Jabba com severidade.
- E o que este verme em particular foi programado para fazer?
- Não tenho idéia. Neste momento, está se espalhando e se conectando a todos os nossos dados secretos. Depois disso, pode fazer qualquer coisa. Pode decidir apagar todos os arquivos, ou talvez prefira imprimir carinhas sorridentes em algumas transcrições da Casa Branca.
Fontaine permanecia sério e contido.
- Você pode detê-lo?
Jabba suspirou e olhou para a tela.
- Ainda não sei. Depende de quanto o autor disso aí estivesse irritado.
- Apontou para a mensagem no painel. - Alguém pode me dizer o que isso significa?
APENAS A VERDADE PODERÁ SALVÁ-LOS
DIGITE A SENHA_____________
Jabba esperou uma resposta, mas ninguém disse nada.
- Bem, parece que alguém está brincando connosco, director. Chantagem. Esse é o bilhete de resgate mais terrível que já vi.

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