sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A REBELIÃO DE LÚCIFER

J. J. BENÍTEZ
REBELIÃO DE LÚCIFER
Tradução de Lucy Ribeiro de Moura
Sobre a digitalização desta obra:
Esta obra foi digitalizada para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefício de sua leitura
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Título Original La Rebelión de Lucifer
© J. J. Benítez, 1985 Editorial Planeta, Barcelona
1993
Índice para Catálogo Sistemático:
1. Ficção científica: Literatura espanhola 863.0876
A "Nietihw", que existe, por certo.
" ? "
"Aprendamos a sonhar, senhores, e então, pode ser que encontremos a Verdade."
Essa recomendação lapidar do insigne químico alemão Kekulé, que chegou ao
descobrimento da fórmula do benzeno graças a um sonho, revolucionando assim a
química orgânica, acabou por convencer-me de que, na vida, a Verdade passa muitas
vezes ante os seres humanos... disfarçada.
Ou talvez porque os inimigos da Verdade sejam ainda tão numerosos que chegam
a nublar a face da Terra, elegi para Rebelião de Lúcifer a intangível e arcana roupagem da
fantasia. Só aqueles que não tenham perdido a capacidade de sonhar poderão
compreender-me. Nesse caso, como eu, talvez descubram através dos sonhos algumas das
múltiplas faces dessa surpreendente Verdade.
J. J. Benítez
De repente, sem saber como, Nietihw e Sinuhe descobriram que se encontravam na
praça da Lastra, na recôndita aldeia soriana de Sotillo dei Rincón, caminhando sem pressa
em direção à Casa Azul. O Sol, radioso, provocava um brilho doce e discreto no bronze
da Diana Caçadora, enquanto a bica continuava a jorrar em silêncio, como se nada tivesse
acontecido...
O jovem, tendo a bolsa das câmeras ao ombro, deteve-se um instante junto à fonte.
Voltou a cabeça na direção do bosquezinho e, em seguida, interrogou a companheira com
o olhar. A resposta brotou de seus corações...
Tinham regressado!
José Maria, o prefeito, confortavelmente sentado no jardim da Casa Azul,
continuava sorvendo sua fumegante xícara de café. Sinuhe, maravilhado, constatou que
seu relógio marcava 13h56. Não mais que cinco minutos haviam transcorrido desde o
início da lua nova e daquela fantástica aventura!
Antes que Sinuhe conseguisse pronunciar palavra, a senhora da Casa Azul tomoulhe
a mão direita e, em silêncio, com um sorriso de cumplicidade, mostrou-lhe o anel
dourado - com o símbolo dos homens "Pi" - que ainda lhe brilhava no dedo anular...
Pouco depois, o investigador iniciava o relato de tão desconcertante missão, com
as seguintes palavras:
"...Quanto a vós, filhos de 'IURANCHA', regressai e contai ao mundo quanto
haveis vivido e conhecido... Só então, quando essa parte da Verdade tiver sido
propagada... só então" - insistiu a .voz - "podereis iniciar a segunda fase da missão: o
julgamento de Lúcifer."
1. "RA-6 666"
Os cinco veleiros diminutos e multicoloridos que pendiam do teto oscilaram
suavemente', agitados por súbita corrente de ar. Harold D. Craft Jr., diretor de operações
do maior e mais potente radiotelescópio do mundo, ergueu o olhar: à sua frente, com a
fisionomia transtornada e uma folha de papel a tremer-lhe na mão esquerda, estava Rolf
B. Dyce, diretor-adjunto de Arecibo.
Harold compreendeu que alguma coisa grave estava acontecendo. Seu colega e
amigo parecia preso à maçaneta da porta. Uma segunda golfada de ar agitou os veleiros,
pondo reflexos vermelhos, verdes e azuis em seus cascos lustrosos.
- Meu Deus! - exclamou Craft detrás da pilha de documentos e pastas que se
amontoavam sobre sua mesa. - Não fique aí parado. Que foi agora?
O astrofísico reagiu e, fechando a porta, avançou em grandes passadas. Incapaz,
porém, de articular palavra, limitou-se a estender o telex a um palmo do basto bigode de
Harold.
O diretor de operações do radiotelescópio de Arecibo, dependente da universidade
norte-americana de Cornell, leu aquele galimatias matemático em trinta segundos. Em
seguida, interrogou Rolf com o olhar. Rolf assentiu com a cabeça.
- Então estávamos certos - disse Craft levantando-se com um ricto de alarma.
- Sim - murmurou finalmente o diretor-adjunto -, nossas suspeitas foram
confirmadas pelo observatório Einstein, pelo Monte Palomar, pelo centro de astrofísica
do Harvard College e pelo observatório Smithsonian de Cambridge... Estou assustado,
Harold. Que fazer?
- No momento - replicou o diretor de operações -, continuar vigiando "Ra"...
E os dois se precipitaram para a porta.
Quando os cientistas irromperam pela sala de processamento de dados, a notícia já
havia transcendido até os 144 astrônomos e técnicos especializados do radiotelescópio.
Uns trinta, adivinhando os movimentos do diretor de operações de Arecibo, se haviam
congregado à volta dos poderosos computadores CDC-3300 e Datacraft 6024/4.
Ao vê-los, Harold sorriu maliciosamente, pedindo calma ao inquieto pessoal a seu
serviço. Sem mais comentários, sentou-se à mesa do CDC, digitando nervosamente. A
gigantesca antena do radiotelescópio - de trinta metros - procurou a constelação de Orion.
Fixada a posição, Harold Craft ativou o radar, forçando ao máximo sua potência de saída.
Nesse momento, toda atenção foi para os dígitos verdes que acabavam de aparecer na tela
do computador.
15.a transmissão radar-planetário.
2 380 MHz.
Distância estimada: 29,760580 unidades astronômicas.
Hora e data de emissão: 15h00 (27 de janeiro de 1984).
Tempo estimado para choque de sinal-radar: quatro horas e nove minutos. Retorno
estimado: 23hl8.
Coordenadas: 3h44. Inclinação positiva.
- OK - suspirou o diretor assim que se concluiu o lançamento do sinal radioelétrico
-, agora só nos resta esperar.
Mas alguns dos astrofísicos, sem poder conter a curiosidade, desandaram a
interrogar Craft. Entretanto, a torrente de perguntas foi interrompida pelo som insistente
de um dos telefones da sala de computadores.
- É para você - esclareceu Rolf, dirigindo-se ao diretor de operações -. Frank
parece muito aborrecido...
Harold atendeu, adivinhando o motivo da chamada e do desgosto de Frank Drake,
diretor do radiotelescópio de Arecibo e seu responsável supremo.
- Sim, fale...
- Harold - explodiu Drake -, como é possível que seja eu o último a ser informado?
Acabam de chamar de Ithaca pedindo um relatório completo sobre... como diabos se
chama?
"Ra" - interferiu Craft sem perder a calma.
- É isso! Pois bem, de que se trata? Alguém foi dar com a língua nos dentes lá no
Centro Nacional de Astronomia de Cornell, e tenho um jornalista do Washington Post que
não me deixa respirar... Por favor, venha até minha sala.
Cinco minutos depois, Harold Craft exibia a Drake a recém-chegada confirmação
dos observatórios do Monte Palomar, Harvard e Cambridge. Frank, alisando
nervosamente a cabeleira branca, exclamou:
- Está bem, está bem, mas comece pelo início... Que diabo de história é essa sobre
"Ra"? Que é que está acontecendo?
- Em fins de 1 975 - começou o diretor de operações - o telescópio orbital de raios
X do satélite holandês ANS descobriu um misterioso corpo celeste. Encontrava-se além
do sistema solar e se dirigia para a constelação de Orion. Pouco depois, em janeiro de 1
976, o oitavo Observatório Solar Orbital e os satélites SAS-3, Vela e Uhuru confirmavam
o achado. Nesse mesmo mês, a pedido de Jonathan Grindlay, do observatório do Harvard
College, dirigimos nossa antena para as coordenadas de situação de "Ra".
- E daí?
Harold apanhou um bloquinho no bolso da camisa e vasculhou as folhas.
- Sim, está aqui - comentou, observando de soslaio os olhares cada vez mais
impacientes de Drake. - Justamente a 27 de janeiro de 1 976 (faz agora 8 anos), nosso
radar detectou o astro a 1 261 440 000 quilômetros da órbita de Plutão. Nos anos
seguintes, tanto os satélites HEAO-1 quanto HEAO-2 e mais os telescópios de Palomar,
Harvard e Cambridge e nosso próprio radiotelescópio vêm seguindo a trajetória de "Ra",
calculando-se em cinco quilômetros por segundo a sua velocidade...
- Continuo não entendendo - interrompeu-o o responsável por Arecibo.
- Um momento, Frank. Por todos estes anos, os cálculos de Grindlay e dos demais
astrônomos coincidiram em dois fatos que provocaram certa preocupação. Em primeiro
lugar, "Ra" viaja diretamente em direção ao nosso sistema solar. Segundo: trata-se de um
corpo celeste singular, com uma órbita cujo período de revolução foi calculado em 6 666
anos.
- Um astro periódico! Mas vocês têm certeza disso?
O diretor de operações respondeu com denso e significativo silêncio.
- Um momento, um momento - interveio novamente Drake. - Se entendi bem, esse
astro viaja em média cinco quilômetros por segundo.
Harold concordou.
- E para quando se estima que cruze a órbita de Plutão? Craft apontou o telex
recebido naquela mesma manhã em
Arecibo e pediu-lhe que o lesse com atenção.
- Vamos ver...
O dedo indicador de Drake foi percorrendo ansiosamente o texto.
- Sim.... aqui está: "... De acordo com estes cálculos" - leu o diretor -, "estimamos
que 'Ra' alcançará a órbita de Plutão hoje, 27 de janeiro, situando-se a uma distância do
Sol de 29,760580 unidades astronômicas. Rogamos nova comprovação radar".
Drake abandonou a leitura do telex e voltou a interrogar Harold:
- Você emitiu o sinal?
- Às 15h00. Exatamente quando você telefonou.
- E qual sua opinião?
- Não sei... Craft parecia resistir.
?-
Por Deus, Harold! Fale com mais clareza...
- Está bem. Mas não nos alarmemos... Faltam ainda muitas comprovações...
- Fale, maldito seja! Que acontece com "Ra"?
- Como lhe disse, sua atual trajetória aponta quase diretamente para a Terra. Mas
pode acontecer que a passagem entre Saturno e Júpiter altere-lhe sensivelmente o curso...
Drake cortou a explicação contemporizadora do astrônomo:
- Que estrutura tem?
- Gerry Neugebauer, de Palomar, obteve há meses os primeiros informes, graças a
um de seus satélites de infravermelho. "Ra" também tem um núcleo frio, porém, um tanto
superior ao do nosso planeta. Mas o que é mais desconcertante é que esse núcleo aparece
rodeado por uma espécie de envoltório (ainda não sabemos se líquido ou gasoso), cujo
diâmetro total é similar ao de Júpiter.
- Isso significa um volume mil vezes maior que o da Terra - murmurou Drake
entredentes, visivelmente confuso.
Harold moveu afirmativamente a cabeça.
- E que dizem Harvard e Cambridge sobre a previsão do tempo para a sua
aproximação da Terra?
- Se não houver variações, precisará de uns 8 400 dias. Isto é, para o ano 2 006 ou
2 007, aproximadamente...
Drake anotou a data sem dissimular sua preocupação.
- Entretanto - Craft cuidava de suavizar a tensão -, tudo isso é teórico... Esta noite,
quando estudarmos a última emissão do radar, talvez possamos precisar um pouco mais...
Drake parecia alheio às palavras tranqüilizadoras do amigo.
- ... 6 666 anos - murmurou. - ... 6 666 anos... Dirigindo-se a Harold, perguntou:
- Que se sabe de sua passagem anterior?
- Sinto muito, Frank. Você sabe que não dispomos de registros astronômicos tão
antigos. A não ser que...
A pausa estudada produziu o resultado esperado pelo diretor de operações do
radiotelescópio.
- A não ser que? ... - interpelou Drake.
O jovem astrofísico tornou a consultar o bloco. Adotando um tom de prudente
ceticismo, afirmou:
- Por mera curiosidade e diante da impossibilidade de obter registro anterior,
quando tivemos alguma certeza da órbita desse "intruso", Rolf Dyce e outros rapazes
consultaram o Departamento de História Antiga de Cornell. Pois bem, ao que parece,
existe uma lenda de origem egípcia em que se fala da passagem de um astro. Essa lenda
conta que a desaparecida civilização da Atlântida pereceu "no transcurso de um dia e uma
noite, em conseqüência da aparição de 'Ra' nos céus".
- "Ra"? ... Trata-se do mesmo astro?
- Não é mais que uma lenda - insistiu Craft -, mas, se concedermos um mínimo de
credibilidade a Platão, compilador, como você sabe, da lenda sobre o mítico continente
desaparecido da Atlântida, topamos com uma curiosa casualidade. De acordo com nossos
cálculos matemáticos, a passagem desse corpo sideral se produz a cada 6 666 anos. Isso
quer dizer que o registro anterior (se é que existe um algures) deve remontar ao ano 4 660
antes de Cristo, aproximadamente.
- Não entendo aonde você quer chegar - interrompeu Drake. ,
- Muito simples. Se Monte Palomar, Harvard e Cambridge coincidem na presunção
de que "Ra" irromperá na órbita da Terra por abril do ano 2 006, temos de remeter ao ano
11 326 antes de
Cristo a antepenúltima passagem do "intruso". Data muito próxima à apontada por
Platão para o catastrófico desaparecimento da Atlântida.
Drake caçoou:
- Harold, são apenas elucubrações... e bem pouco científicas.
O diretor de operações deu de ombros. Antes, porém, de abandonar o escritório,
comentou:
- Eu sei, mas é muita coincidência, você não acha?
- Certamente. Mas qual é a designação oficial desse astro?
- Ra-6 666.
- Vocês estão todos loucos! - concluiu Drake. - Bem, informe-me sobre os
resultados da emissão do radar. Verei o que posso dizer a esse jornalista...
E o diretor de Arecibo enredou-se em uma nova leitura do telex, sem perceber o
sorriso enigmático que acabava de despontar no rosto de Harold.
Às 15h3O daquele dia 27 de janeiro de 1 984, Craft fechava atrás de si a porta do
escritório do seu chefe imediato, Frank Drake. No fundo do corredor, Rolf esperava. Ao
ver Harold, correu ao seu encontro. Havia intenso brilho no olhar de Rolf B. Dyce. A
meia voz, sussurrou ele ao ouvido do diretor de operações:
- Boas notícias, Harold. O Grão-Mestre acaba de ligar...
Craft levou o dedo indicador aos lábios, pedindo silêncio ao amigo. Segurando-lhe
o braço, arrastou-o até sua sala.
Trancada a porta, dirigiu-se ao quadro-negro que ocupava boa parte da parede
direita do seu pequeno santuário. E, em silêncio, escreveu:
"Autorizaram a transmissão da mensagem?"
Rolf, compreendendo as medidas de segurança do seu irmão de Loja, pegou o giz
que ele lhe estendia e, consultando uma série de números escritos com esferográfica na
palma da mão direita, rabiscou nervosamente na lousa:
"Grão-Conselho de Kheri Hebs autoriza o irmão 1-685-819-S a enviar mensagem
urgente a 'Ra'".
Harold vibrou de emoção, ao ler aqueles estranhos números. Tão só ele e o Grande
Grão-Conselho dos Kheri Hebs ou Mestres da Grande Loja da Escola da Sabedoria
conheciam a chave que identificava Harold D. Craft Jr. como membro da citada ordem
secreta. Irmandade nascida no antigo Egito, durante a dinastia XVIII - há 3 350 anos - e
firmemente impulsionada pelo primeiro Kheri Heb ou Mestre, Amen-em-apt, também
conhecido na Escola dos Mistérios como Germaá ou O Verdadeiro Silencioso, segundo
consta do papiro 10 474 da Grande Loja.
O diretor de operações do radiotelescópio pegou novamente o giz e escreveu:
""Qual o texto da mensagem?"
Rolf copiou na palma da mão, com letras maiúsculas:
"O JULGAMENTO DA TERRA SERÁ ASSISTIDO PELA RONDA DA RODA
DE 'RA".
"GLORIA AO DISCO".
"GLORIA AOS MENSAGEIROS SOLITÁRIOS".
"GLÓRIA À ILHA ESTACIONARIA DO PARAÍSO".
"144 000 URANCHIANOS ESPERAM O SINAL DE 'RA'".
Concluída a mensagem do Grão-Conselho dos Kheri Hebs, Rolf Dyce encetou
meticulosa verificação, palavra por palavra. Confirmada a exatidão, Harold anotou-a em
uma folha de papel, na qual se lia o seguinte lembrete: "Centro Nacional de Astronomia e
de Ionosfera - Universidade de Cornell (110 Day Hall) - Ithaca, N.Y. 14 853".
Ato contínuo, os dois astrofísicos apagaram a lousa, eliminando qualquer vestígio
de tudo o que haviam escrito.
Mais tranqüilos, Craft e Dyce tomaram assento à escrivaninha.
Harold, depois de reler a enigmática mensagem, perguntou baixinho:
- Código?
- Conversão em números. Chave de Cagliostro - sussurrou Rolf.
Sem mais comentários, puseram-se a codificar o texto elaborado pelo Grão-
Conselho dos Mestres. Nem Harold nem Craft, claro, atreveram-se a formular perguntas
sobre o sentido daquela criptografia. A fé nos Kheri Hebs da Grande Loja a que
pertenciam era total; e isso bastava.
Às 16hl5, com a mensagem codificada num total de 201 caracteres numéricos, o
diretor de operações de Arecibo e seu diretor-adjunto dirigiam-se sigilosamente para a
sola de controle do radiotelescópio.
O centro de processamento de dados - tal como o supunham Harold e Rolf - estava
deserto. O primeiro turno de astrofísicos não se encarregaria do programa habitual de
emissões e recepção de sinais antes das 17 horas. Tinham, portanto, o tempo exato para
programar o computador CDC-3300 e transmitir a mensagem.
Craft postou-se à frente do teclado, transmitindo ao projetor de laser as
coordenadas galácticas de "Ra". Em 15 segundos, a antena situada na plataforma
triangular, suspensa a uma altura de cinqüenta andares sobre o gigantesco disco côncavo
aluminizado de trezentos metros de diâmetro, que funciona como refletor, ficou
definitivamente direcionada para um dos 38 778 painéis individuais de alumínio que
constituíam o mencionado refletor ou "tigela de sopa", como diziam familiarmente em
Arecibo.
Harold ajustou a potência de saída em 450 000 watts, procedendo à emissão dos
201 caracteres numéricos. De início, o computador codificara a mensagem em cinco
grupos de 53, 13, 30, 35 e 34 caracteres, com um total de 36 dígitos suplementares -
estrategicamente distribuídos - que faziam as vezes de "espaços em branco".
Decodificados, por sua vez, em sistema binário, os 201 dígitos foram transmitidos a uma
velocidade de 10 caracteres por segundo.
Às 16 horas, 30 minutos e 20 segundos, partia a mensagem, finalmente, para as
profundezas do sistema solar, em busca do misterioso astro "intruso"...
Por um minuto - a partir do último segundo da transmissão
- Rolf manteve-se atento à tela do computador, ajustando a freqüência da
mensagem de forma tal que não se visse alterada pelo efeito Doppler do movimento
orbital e da rotação da Terra.
Esgotado esse minuto, o diretor-adjunto respirou profundamente, comunicando a
Harold que a mensagem já se encontrava na órbita de Marte. Depois, premeu o teclado do
CDC e aguardou.
Quase instantaneamente uma série de dígitos verdes percorreu a tela do
computador.
- Bem - murmurou Harold -, em 35 minutos alcançará a órbita de Júpiter e, em 71,
a de Saturno...
A última linha anunciava algo que os astrofísicos já sabiam:
"O cruzamento com a órbita de Plutão se registrará em quatro horas e nove
minutos".
Ambos, movidos pelo mesmo pensamento, consultaram seus relógios.
- A mensagem - afirmou Rolf - será recebida às 20h33.
- Sim - confirmou o colega -, mas haverá resposta? Rolf olhou-o fixamente.
- Você sabe que sim - disse com ênfase. - É questão de esperar...
Nessa noite, pouco antes das 23 horas, havia inusitado movimento na sala de
controle do radiotelescópio de Arecibo. Nem Harold Craft nem Rolf puderam convencer
os colegas a que se recolhessem para repousar. Cerca de meia centena de astrofísicos
esperava impacientemente a iminente recepção do sinal do radar emitido oito horas antes.
No comando do computador, o diretor de operações checou pela enésima vez a
posição da antena, de trezentos metros, do refletor principal. A seu lado, Rolf, cabelo
revolto e lápis atrás da orelha direita, fez o mesmo com o segundo computador - o
Datacraft -, responsável pelo controle da antena "passiva" de noventa metros, postada a
dez quilômetros ao norte da localização do gigantesco radiotelescópio, vital para a
recepção e combinação dos ecos do radar.
"23 horas: 16 minutos: 45 segundos". O relógio acoplado ao computador
continuava avançando inexoravelmente. Harold, com um movimento mecânico, procedeu
à total desconexão e bloqueio do transmissor. Estava tudo no ponto.
"23 horas: 15 minutos: 15 segundos".
Era absoluto o silêncio na sala de controle.
Cruzou-se um último olhar entre Rolf e Harold.
"23 horas: 16 minutos: 45 segundos".
Apesar da baixa temperatura do ambiente - sete graus centígrados -, gotículas de
suor brotaram na testa de Rolf.
"23 horas: 17 minutos: 00 segundo".
Os cientistas prenderam a respiração. Todos os olhares se concentraram no vidro
esfumaçado que protegia os discos
"23 horas: 18 minutos: 05 segundos".
O computador central, entretanto, não dava sinal de vida. Harold, tenso, aproximou
seu rosto do CDC e sussurrou-lhe:
- Vamos, menino! ...
"23 horas: 18 minutos: 10 segundos".
Os dois discos deram um quarto de volta. E aquele primeiro movimento foi
acolhido com estrondosa salva de palmas. O sinal do radar acabara de retornar ao
radiotelescópio.
Confirmada a recepção do eco, Rolf ativou o mecanismo de cartografia. Cinco
minutos depois, sentado diante da tela do sistema de coordenação de computadores,
Harold Craft - ante a expectativa geral - decodificava os primeiros informes do sinal-radar
emitido para o astro "intruso".
"Distância: 29,66 unidades astronômicas".
Foi geral o murmúrio: "Ra" já ultrapassara a órbita de Plutão.
"Velocidade: 5,1 quilômetros por segundo e acelerando".
O diretor de operações pediu então a um de seus colegas que efetuasse os cálculos
teóricos e aproximados da velocidade de "Ra", em sua passagem pelas órbitas planetárias
seguintes.
O resultado sacudiu os cientistas.
- Se conservar esse ritmo de aceleração - anunciou o astrofísico, guardando sua
régua de cálculo -, necessitará de 3 248,6 dias para percorrer os 1 403 400 000
quilômetros que o separam de Plutão à órbita de Netuno. Os 1 627 milhões de
quilômetros seguintes (da órbita de Netuno à de Urano), considerando-se o incremento de
sua velocidade, ele pode vencê-los em 2 699 dias.
"É provável também que, ao abandonar esta última órbita (a de Urano), sua
velocidade já seja algo superior a 7 quilômetros por segundo. Nessa suposição, os 1 442
600 000 quilômetros que o separarão de Saturno serão cobertos em 1 669,6 dias".
"Desde ali até a órbita de Júpiter, a distância média estimada é de 648 700 000
quilômetros. Mas a aceleração de "Ra" terá passado de uns 10 quilômetros por segundo
nas proximidades de Saturno, e 15 quilômetros na órbita de Júpiter. O que quer dizer que
pode percorrer esses 648 milhões e pico de quilômetros em pouco menos de 500 dias..."
Impassível, Harold foi contabilizando os dias.
- ... Quanto à última trajetória (da órbita de Júpiter à de Marte), "Ra" precisará, na
razão de 15 a 25 quilômetros por segundo, de 254,8 dias.
- Tudo isso dá um total de 8 327 dias ou 22,9 anos - concluiu Craft, visivelmente
desalentado.
- ... Sim - interveio Rolf -, e se não se produzir algum milagre, "Ra" se precipitará
da órbita de Marte até a Terra em pouco mais de 75 dias, a uns 35 quilômetros por
segundo...
Esfumara-se a alegria inicial dos homens de Arecibo ante aquele cálculo sinistro.
O angustiante silêncio dos astrofísicos foi finalmente quebrado pelo diretor de
operações:
- Senhores, eis a triste realidade: se o milagre não se realizar (se "Ra" não for
desviado ou catapultado pelos campos de força de Saturno ou de Júpiter), sua precipitação
sobre o nosso mundo registrar-se-á, possivelmente, entre os meses de março ou abril do
ano 2 007.
Harold, adivinhando os pensamentos dos colegas, abandonou o banco do
computador central e deu uns passos até a janela da sala. A noite, serena e estrelada,
parecia alheia à tragédia que se aproximava. As seiscentas toneladas da plataforma
triangular que suporta as antenas, iluminada agora, elevava-se acima das colinas do norte
de Porto Rico, qual fantasmagórica nave espacial.
- É meu dever anunciar-lhes - comentou Craft dando as costas à noite - que, é
claro, tudo o que viram e ouviram é considerado pelo Centro Nacional de Astronomia e
de Ionosfera de Cornell altamente confidencial e secreto... Deverá ser o NAIC que, uma
vez verificadas todas as comprovações lógicas, anunciará ou não à opinião pública
mundial os fatos que vocês conhecem...
E Harold, assumindo um tom menos solene, rogou aos companheiros que
abandonassem o centro de controle.
- Frank Drake - explicou - deve dispor, às primeiras horas, de um informe
completo... Boa noite, e obrigado...
Os quase cinqüenta astrofísicos, silenciosos e cabisbaixos, foram desfilando diante
de Craft que, cortesmente, mantinha aberta a porta da sala para que saíssem os amigos e
colegas.Às 24 horas, o diretor de operações fechava a chave a sala de controle. Em pé,
junto ao computador, continuava Rolf. Tinha os olhos fixos em um pequeno mapa,
recentemente extraído do sistema de cartografia. Harold observou nas mãos dele um
pequeno tremor e intuiu que não haviam terminado as surpresas...
- Como é possível?
Rolf B. Dyce repetiu a pergunta, mas agora estendendo o mapa ao companheiro:
- Como é possível, Harold?
Craft examinou a imagem de "Ra" que o radar acabava de fornecer. O mapa em
relevo aparecia como uma mancha praticamente negra e perfeitamente circular. Eles
sabiam que o brilho e o esbranquiçado desse tipo de mapas de retrodifusão são
proporcionais ao grau de aspereza da superfície do astro explorado. Em outras palavras:
quanto mais escura a imagem do radar, mais lisa a superfície cartografada.
Perplexo, Harold consultou as imagens do planeta Vênus obtidas em 1 975 e 1
977. Daquelas vezes, o radiotelescópio efetuara um magnífico trabalho, cartografando por
radar os dois hemisférios e, em especial, uma região situada a 320 graus de longitude
Este, em pleno hemisfério sul. Em tais mapas, confirmando as suspeitas dos
radioastrônomos, aparecia, por exemplo, uma enorme mancha branca a que chamaram de
"Maxwell" (a 65 graus de latitude Norte e 5 graus de longitude Este), que não era senão
uma gigantesca montanha de 11 000 metros. "Ra", ao contrário, à vista daquele primeiro
informe de radar, apresentava absolutamente lisa uma de suas faces, sem as rugosidades e
acidentes naturais que se deveriam esperar.
- Como é possível, Harold? - repetiu Rolf pela terceira vez.
Mas o diretor de operações só conseguiu encolher os ombros. Apanhando a régua
de cálculos, pediu a Rolf que o ajudasse na elaboração dos últimos dados. Em alguns
minutos o diâmetro equatorial do "intruso" havia sido fixado pelos cientistas em 13 756
quilômetros. Curiosamente, mil quilômetros maior que o da Terra.
- E esse estranho envoltório de que falavam os satélites? - perguntou Harold.
Rolf moveu negativamente a cabeça.
- É preciso esperar pelos informes de Monte Palomar - comentou -. Acho que você
deveria informar Drake...
- Amanhã nos ocuparemos disso. Craft consultou seu relógio.
- Se o Grão-Conselho dos Kheri Hebs estiver certo, a resposta de "Ra" será captada
pelo radiotelescópio a partir das 24 horas, 38 minutos. Temos que nos apressar. Mal
temos tempo.
Rolf obedeceu em silêncio e foi postar-se outra vez diante do teclado do
computador principal. Desconectou o radar, ativando continuamente o sistema de
recepção de sinais radioelétricos. A antena de 32 metros e 4 500 quilos de peso
continuava apontando para as coordenadas galácticas de "Ra".
- Tudo em ordem? - perguntou Harold mecanicamente.
- Afirmativo. Mas... Rolf hesitou.
- Mas o quê? - animou-o o companheiro.
- Não sei, Harold... Você acredita que haverá resposta?
- Agora você está duvidando - sorriu Craft.
E dando-lhe uma palmadinha nas costas, sentou-se frente à tela do computador
auxiliar.
O relógio digital do Datacraft 6024 marcava 24 horas, 5 minutos e 45 segundos.
Rolf, cada vez mais nervoso, mordiscava a ponta da lapiseira.
"24 horas: 28 minutos: 15 segundos."
- Atenção, Rolf!
"24 horas: 38 minutos: 00 segundo."
Dessa vez, os radioastronômos foram surpreendidos pelo giro dos discos
magnéticos do computador. A antena do radiotelescópio começava a captar algum sinal...
- Harold! Harold! ...
Rolf, branco como papel, só conseguia repetir o nome do amigo.
- Deus do céu! - exclamou Harold. - Eis aí a resposta. O Conselho dos Mestres
tinha razão... "Ra" é muito, mais que um simples astro! ...
Rolf, hipnotizado pelo lento mas contínuo e espasmódico movimento dos discos
memorizadores do Datacraft, nem ouviu o companheiro.
"24 horas: 38 minutos: 15 segundos."
Seis décimos depois, o computador se detinha.
Os astrofísicos se entreolharam perplexos.
Foram segundos pesados. Quase eternos. A recepção, porém, tal como indicava o
computador central, terminara.
Harold, esforçando-se por dominar-se, fez retroceder as fitas magnéticas até o
ponto zero da transmissão: "24 horas: 38 minutos: 00 segundo". Suas mãos trêmulas
digitaram em busca da decodificação dos sinais.
As fitas lançaram na tela um total de 156 impulsos, distribuídos, à primeira vista,
em quatro grandes grupos. Cada um constava de 33, 35, 51 e 37 caracteres,
respectivamente.
Rolf confirmou o tempo de recepção calculado.
- Olhe, Harold! ... 156 impulsos e um total de 15 segundos e 6 décimos para a
transmissão. O que significa que foram enviados à razão de 10 caracteres por segundo.
Exatamente como os nossos!
- Calma, Rolf! ... Calma! Ajuste o computador ao código binário. Não sei o que é
"Ra" e os que o controlam, mas, se foram capazes de captar nossa mensagem, decifrá-la e
enviá-la quase instantaneamente, alguma coisa me diz que sua resposta virá codificada
sob a mesma chave.
A decodificação dos sinais não tardou a aparecer na tela.
- Eu sabia, Rolf! - explodiu Harold Craft, sem se conter. - São números!
No monitor, efetivamente, começara a desenhar-se uma série de dígitos,
correspondentes ao sistema decimal ordinário.
"21-6666-122121-53-56567-415487-6" na primeira linha.
"313-31481513-66-3611215-1-315655-6" na segunda linha.
"31-5111-45-31-2171-1763-122121-415221-55-66-4113-6" na terceira.
"53-161317-45-3631852-666-51-3353147-6" na quarta e última.
Nem Rolf nem Harold souberam jamais o tempo que permaneceram mudos e
estáticos ante aquele punhado de verdes e brilhantes números, procedentes de mais de 4
400 milhões de quilômetros...
Inútil. Apesar das súplicas de Rolf, Harold Craft negou-se a prosseguir com a
decifração da mensagem vinda de "Ra".
- Nossa missão termina aqui - sentenciou -. Agora, é o Grão-Conselho que deve
atuar...
Os astrofísicos retiraram as fitas magnéticas, desconectando a grande antena do
radiotelescópio.
Três horas mais tarde, a mensagem original, convenientemente lacrada e selada,
partia do aeroporto de San Juan de Porto Rico rumo a um lugar secreto ao sul de São
Francisco, sede central do Grão-Conselho dos Kheri Hebs ou Mestres da Grande Loja da
Escola da Sabedoria.
A 1.° de fevereiro, sete altos funcionários das embaixadas da Venezuela, Grã-
Bretanha, França, Alemanha Federal, Suíça, Suécia e Egito - todos eles membros secretos
da Grande Loja - partiam de Washington, Nova Iorque, Los Angeles e Miami com destino
aos seus respectivos países. Em suas malas diplomáticas se havia depositado uma carta,
presumivelmente contendo a mensagem procedente de "Ra", definitivamente decifrada,
em cujos envelopes se lia:
"NEWTON. Londres".
"DEBUSSY. Paris".
"LEIBNITZ. Bonn".
"NOBEL. Estocolmo".
"CALVINO. Berna".
"BOLÍVAR. Caracas".
"NEFERTITI. Cairo".
Poucas horas após a chegada às capitais mencionadas, as sete missivas eram
entregues, em mãos, a cada Kheri Heb responsável pela Escola da Sabedoria, nas áreas da
Comunidade Britânica, França, Alemanha Federal, Países Nórdicos, Suíça, América
Latina e África.
Só os Grãos-Mestres das jurisdições do Oriente Médio, Ásia e Australásia foram
excluídos pelo Grão-Conselho. O motivo estava contido naquelas sete cartas, enigmáticas
e "altamente secretas"...
2. AS 66 BADALADAS
Naquele 3 de fevereiro de 1 984, como o fazia quase todas as manhãs, o carteiro de
um pequeno povoado basco batia à porta do seu amigo e jornalista. Com a
correspondência vinha um telegrama. Quando o abriu, o escritor leu uma frase lacônica e
enigmática, sem qualquer referência: "O viveiro está morrendo".
Sem perda de tempo, assistido por sua mulher que, perturbada, não conseguia
decifrar o sentido nem o remetente da mensagem, nosso homem se preparou para
imediata viagem a Madri.
Ninguém que conhecesse esse escritor, especializado fazia muitos anos em
investigações de mistérios, poderia imaginar, naqueles tempos, que, tal como outros
milhares de pessoas em todo o mundo, era membro da Grande Loja da Escola da
Sabedoria. Na realidade, aquele telegrama não era senão uma chamada urgente, em
código, para que se apresentasse no Templo da Irmandade na capital da Espanha,
dependente, por sua vez, do Conselho dos Kheri Hebs da jurisdição européia.
Às 10 horas de segunda-feira, 6 de fevereiro, era recebido pelo Grão-Mestre da
Ordem. Embora o alto funcionário israelense conhecesse perfeitamente aquele membro da
Loja, ao estreitar-lhe a mão fez um dos sinais secretos de identificação entre os "sorores"
ou irmãos da Ordem. O jornalista e escritor respondeu mecanicamente com a mesma
contra-senha, pressionando o dedo indicador e o polegar sobre a mão do Kheri Heb.
- Bem-vindo, Sinuhe...
O investigador sorriu ao ouvir seu nome: aquele que recebia cada membro da
Irmandade, ao ser aceito no seio do Templo correspondente. Desde esse instante solene,
nosso homem - como os demais - era conhecido entre os irmãos de Loja por um nome
mítico. Nome de pia carregado de reminiscências esotéricas e que, na Antigüidade,
pertencera a destacados e sábios Kheri Hebs. Tal distintivo e uma numeração cifrada -
conhecida tão só pelo novo membro e pelos respectivos Grãos-Conselhos Jurisdicionais -
eram as senhas de identidade de cada "soror". Este segundo batismo não obedecia a
caprichos ou acasos. Cada aspirante à Escola da Sabedoria via-se obrigado a superar uma
série infindável de provas que lhe pusessem em relevo a personalidade, bem como suas
aspirações espirituais e seu grau de honestidade. Uma vez aceito, o novo irmão era
"batizado" com o nome que melhor refletisse seu caráter e temperamento. Eis que
"Sinuhe" significava "o que é solitário".
Desde a infância esse homem, a quem chamaremos Sinuhe, distinguira-se
justamente por seu profundo desejo de solidão. Quase ninguém, nem mesmo a própria
família, vislumbrara jamais o fundo daquele coração sempre atormentado pela busca da
Verdade. Sinuhe amava a aventura, o perigo; e esse espírito, unido a insaciável
curiosidade, o arrastara a uma vida de viagens constantes, que ia relatando, parcialmente,
em seus numerosos livros. No arcano da alma guardava ainda segredos que teriam
causado estremecimentos em seus assíduos leitores.
Apesar dessa vida apaixonante, invejada, admirada e até odiada em partes iguais
por amigos e inimigos, Sinuhe era um homem insatisfeito, com crescente desprezo por si
mesmo. Por isso, quando o Grão-Mestre lhe anunciou que fora eleito "para uma delicada
missão", longe de entusiasmar-se sentiu-se acabrunhado.
Mas o Kheri Heb não chegou a perceber a dúvida no olhar do discípulo. Aos 37
anos, Sinuhe era um homem frio, perfeitamente capaz de dominar e dissimular até mesmo
o mais desenfreado dos seus sentimentos. Esta, talvez, fosse uma das razões por que se
odiava.
O Grão-Mestre se dirigiu então a um dos quadros que lhe decoravam as paredes do
escritório. Tratava-se de magnífica fotografia em cores do Menorá, ou candelabro de sete
braços, emblema oficial do Estado de Israel e que se ergue em Jerusalém, em moderna
versão do escultor Benno Elkan. E em silêncio, o alto funcionário de Israel na Espanha
começou a deslocar o quadro, pondo a descoberto um pequeno cofre embutido e
camuflado na parede. Tirou dali um envelope branco e voltou para sua mesa, continuando
a conversa.
- Querido Sinuhe, como lhe dizia, o Grão-Conselho o designou para uma delicada
missão.
O Kheri Heb abriu o envelope e entregou a Sinuhe um dos dois documentos que
ele continha.
- Leia e memorize - voltou a falar o Grão-Mestre -.
Esta mensagem é altamente secreta e não pode sair do Templo.
Sinuhe reconheceu de imediato o emblema da Ordem, gravado em delicado altorelevo,
encabeçando o documento: uma serpente vermelha, enroscada ao redor de dois
olhos. O da direita, menor e com um ligeiro vazado, e o da esquerda, três vezes maior e
com um relevo proeminente.
Ao pé do símbolo da Escola da Sabedoria estavam escritas quatro frases.
Sinuhe as leu devagar. No começo, tentando apreender-lhes o significado. Depois,
procurando memorizá-las. A segunda - talvez porque reproduzisse o seu nome - foi mais
fácil...
Após cinco minutos, Sinuhe ergueu o rosto e, fechando os olhos, repetiu
mentalmente aquelas quatro frases enigmáticas.
O Grão-Mestre o observou satisfeito.
Ao concluir a memorização, o discípulo voltou a repassar o texto, comprovando
satisfeito que ele ficara gravado minuciosamente em sua mente. Devolveu o documento
ao seu Kheri Heb que, adotando um tom muito mais solene, comentou:
- Querido irmão, no momento, não fui autorizado a revelar-lhe a origem e a
finalidade desta mensagem... Só posso acrescentar, como você já terá comprovado, aliás,
que procede do Conselho Supremo da Irmandade.
Sinuhe assentiu.
- ... A mensagem, isso sim, guarda transcendental relação com o futuro da
humanidade. E a Escola da Sabedoria, por razões que você pode intuir, foi eleita
depositária da mensagem. Agora, antes de passar para a última e mais importante fase da
sua missão, quer, por favor, repetir-me o texto do documento?
A voz de Sinuhe, límpida e profunda, foi desfiando as vinte e seis palavras e oito
números que formavam as quatro frases:
- "RA-6 666" ABRIRÁ O NOVO TEMPO-6. "AS BADALADAS-66-GUIARÃO
SINUHE-6".
"A FILHA DA RAÇA AZUL ABRIRÁ TERRA EM 66 DIAS-6".
"O JULGAMENTO DE LÚCIFER-666-CHEGOU-6".
- Exato - aprovou o Kheri Heb com um grande sorriso. E, sem mais comentários,
enfronhou-se em demorada leitura do segundo documento.
Sinuhe não podia, então, imaginar que o texto que acabava de aprender fora
recebido na madrugada de 27 de janeiro do mesmo ano, pelo mais potente radiotelescópio
do mundo, vindo de um astro desconcertante, batizado pelos astrônomos de "Ra-6 666".
Tal como suspeitaram Harold Craft e Rolf Dyce, aquela série de dígitos - desde
que estudada pelo Grão-Conselho da Escola da Sabedoria - foi codificada finalmente,
seguindo o método de conversão de Cagliostro; o mesmo que fora utilizado pelos dois
membros da Grande Loja na emissão da primeira mensagem para o astro "intruso".
O Kheri Heb abandonou enfim a leitura do segundo documento e, depois de
guardá-los no envelope, prosseguiu:
- Bem, caro Sinuhe. O Grão-Conselho especifica que a sua missão consiste em
identificar a "filha da raça azul". Para tanto, como você terá observado no texto da
mensagem, será "guiado pelos sinos"...
O Mestre compreendeu imediatamente as dúvidas naturais do discípulo.
Adiantando-se aos seus pensamentos, acrescentou:
- Como lhe disse, não estou autorizado (agora) a revelar-lhe quem é essa "filha da
raça azul", nem como chegará a reconhecê-la. Seja fiel à Escola da Sabedoria e encete
imediatamente a busca. A fortaleza do Gerador (você o sabe) o acompanhará a cada
momento. Confie Nele e no Grão-Conselho... Você tem alguma pergunta?
Sinuhe teria querido expor ao Kheri Heb o torvelinho de dúvidas que o fustigava.
Limitou-se porém a responder:
- Sim, Mestre. Apenas duas...
- Continue.
- Em primeiro lugar, que devo fazer quando identificar a "filha da raça azul"?
- Use o código secreto e me faça saber imediatamente... E a segunda?
Sinuhe conservou um breve silêncio e, fixando seus olhos rasgados e castanhos no
Mestre, perguntou:
- Por que eu?
O Kheri Heb sorriu, enigmático. Apontando o envelope dos documentos,
comentou:
- Há apenas algumas horas, outras seis missivas iguais a esta foram depositadas
nos Templos Nacionais da Irmandade em Londres, Bonn, Estocolmo, Berna, Caracas e
Cairo. Esta, a sétima, foi entregue na Jurisdição de Paris, da qual, como você sabe, somos
dependentes. Todas elas procedem do Grão-Conselho, nos Estados Unidos. E são todas
elas portadoras da mesma mensagem: a que você acaba de decorar. Entre os 144 000
membros da Irmandade em todo o mundo, apenas sete figuram, atualmente, com o nome
de "Sinuhe''. Você é um deles e, como seus irmãos, foi chamado para desempenhar a
missão que lhe acabo de explicar. Mas apenas um desses sete "Sinuhe" descobrirá e nos
revelará a "filha da raça azul". No instante em que isso ocorrer, os demais irmãos eleitos
serão avisados e cessarão suas respectivas pesquisas.
Sinuhe, mais e mais perplexo, não resistiu à tentação e formulou uma terceira
pergunta:
- Perdão, Grão-Mestre, mas por quem fomos eleitos? Sorrindo novamente, o Kheri
Heb replicou:
- Tudo em seu devido tempo, Sinuhe... Tudo em seu devido tempo...
Durante aqueles dois meses de fevereiro e março, Sinuhe ficou absolutamente
atento a tudo quanto ocorria à sua volta. Mas as notícias divulgadas em seu país e no resto
da Europa não fizeram qualquer alusão àqueles misteriosos sinos a que se referia a não
menos intrigante mensagem.
As dúvidas, longe de se dissiparem com o passar dos dias, multiplicavam-se no
ânimo do investigador.
"Quem ou o que é 'Ra'?", repetia-se uma vez ou outra, sem encontrar resposta nem
sossego.
"A que 'novo tempo' se referiria o texto secreto que lhe mostrara o seu Kheri
Heb?"
"Por que devia ser guiado por algumas badaladas?"
Esta, juntamente com a terceira, era dentre as frases a que mais desconsertava
Sinuhe.
"Onde estão esses sinos? ... Deverei ouvi-los ou alguém o fará por mim?"
A julgar pelo pouco que lhe havia revelado o Grão-Mestre, as badaladas o
guiariam até a "filha da raça azul"... Mas, e se não fosse assim?
E, sobretudo, quem era essa "filha da raça azul"?
Sinuhe considerava que, entre as atuais raças do planeta, contamos com a negra, a
amarela, a vermelha, a branca e a mestiça. No entanto, jamais ouvira falar da azul...
Se não eram poucas essas incógnitas, a terceira e a quarta frases eram tão sibilinas,
ou mais, que as anteriores.
Por que deveria a "filha da raça azul" "abrir a terra em um prazo de 66 dias"? A
que terra se referiria o criptograma? E, supondo que fosse a nossa Terra, em que momento
se iniciaria esse prazo de sessenta e seis dias?
Sinuhe dedicou-se, boa parte daqueles dias, a investigar sobre a figura de Lúcifer.
A extrema pobreza da Bíblia, entretanto, mal lançou uma luz sobre a quarta e última frase
da mensagem: "O JULGAMENTO DE LÚCIFER-666-CHEGOU-6".
Tão-só no Apocalipse de São João (13.18) conseguiu um indício - indigente talvez
- que, não obstante, animou-o em suas pesquisas. Esse parágrafo do Apocalipse alude à
Besta (designação talvez de Lúcifer) nos seguintes termos:
"Eis aqui a sabedoria. Aquele que tenha inteligência, que calcule o número da
besta, porque é número de homem. O número é seiscentos e sessenta e seis".
"... 666".
Sinuhe, conhecendo o código de Cagliostro, submeteu também cada letra da
mensagem à correspondente conversão em números, de acordo com o referido código.
Sua confusão chegou ao auge quando observou que a soma dos números que integravam
cada uma das frases dava precisamente seis. A mesma cifra que aparecia ao final de cada
linha.
"Sem dúvida" - obtemperou o investigador - "esses quatro seis devem ter alguma
relação com o número (6 666) que figura ao princípio da primeira frase do enigma... Mas
qual?"
Naquela madrugada de 1.° a 2 de abril de 1 984, o frondoso e acaçapado azinheiro
que monta guarda frente à casa do prefeito de Sotillo dei Rincón estava especialmente
concorrido. Dezenas de pardais e gaviões refugiaram-se entre suas folhas espinhosas.
Ameaçadores cúmulos-nimbos corriam furiosamente, empurrados dos topos da Sierra
Cebollera pelo vento do Oeste. Alguns aguaceiros já se haviam descarregado no vale do
rio Razón, paraíso perdido a pouco mais de vinte quilômetros a noroeste de Soria, capital
(Espanha) e assentamento natural da retirada e bela aldeia de Sotillo. Dir-se-ia que a
entrada da lua nova iria pressagiar coisas estranhas e singulares...
Sinuhe, a várias centenas de quilômetros daquelas agrestes paragens soriana,
achava-se totalmente alheio ao que estava na iminência de acontecer. Naquela mesma
madrugada, aproveitando a mudança oficial d& hora, dedicara boa parte da noite a novas
e infrutíferas investigações, empenhando-se em desentranhar a mensagem oriunda de
"Ra". Uma ou outra vez relembrou as quatro frases, mas o esgotamento acabou por vencêlo.
"RA-6 666" ABRIRÁ O NOVO TEMPO – 6".
"AS BADALADAS - 66 - GUIARÃO SINUHE – 6..."
"AS BADALADAS - 66 – GUIARÃO..."
Um sono escuro e inquieto deixou parte da mensagem a flutuar na mente de
Sinuhe.
Nesses precisos momentos - à 1 hora e 30 minutos -, os duzentos habitantes de
Sotillo dei Rincón também dormiam, embora seus sonhos não fossem tão agitados quanto
os de Sinuhe. Apenas o uivar dos cães da região e o ulular das rajadas de vento entre as
copas do choupal que circunda a Câmara Municipal do povoado pareciam pressagiar a
aproximação de "algo" inquietante.
No centro da praça da Lastra, dentro da escuridão, a pequena estátua de bronze da
Diana Caçadora resistia impassível aos embates do vento. A seus pés, a única bica
sobrevivente da fonte, doada em 1913, jorrava ainda doce e silenciosamente. A uma
distancia eqüidistante da fonte, e formando um triângulo, levantam-se e encerram a praça
da Lastra três sólidos edifícios: a Câmara Municipal, cujo relógio, de um metro de
diâmetro, contempla o sul; a casa de José Maria Gómez Zardoya, prefeito de Sotillo, com
seu campanado azevinho; e a chamada Casa Azul, quase defrontando a Câmara
Municipal. Desde outrora, aquele elegante e só casarão de três andares era conhecido
entre as pessoas de sotillo como a Casa Azul, graças ao anil de seus batentes e das janelas.
Ninguém então suspeitaria que aquele apelido caprichoso e popular guardasse um sentido
muito mais profundo e misterioso...
Naquela noite intranqüila, como digo, era total a escuridão no longínquo povoado
soriano. Todos descansavam. Melhor: todos, não. Uma das janelas do segundo andar da
Casa Azul estava iluminada. Era o único sinal de vida na praça da Lastra. Mas, pouco
antes da uma e quarenta, apagou-se também aquele retângulo amarelo. E Glória, a
senhora da Casa Azul, preparou-se para dormir.
Como narrador desta história, creio que devo deter por alguns instantes o curso dos
acontecimentos. Os fatos que passo a relatar em seguida ficariam incompletos ou
menores, se eu não pusesse o leitor a par dos antecedentes da inquilina dessa Casa Azul.
A súbita aparição de Glória e sua família - quase seis anos atrás - em Sotillo dei
Rincón, também foi um tanto misteriosa, ao menos para aquela gente boa e simples do
lugar.
Em 1 979, essa família - velhos e íntimos amigos de Sinuhe - decidiu-se a
abandonar o solar de seus ancestrais. A imensa maioria dos conhecidos não soube nunca o
porque daquela inesperada ruptura. Da noite para o dia, tudo o que até então tinha sido
habitual para aquelas pessoas - luxo, relações sociais e o tumulto da cidade grande -
desapareceu. Apenas uns poucos amigos eleitos, entre os quais estava Sinuhe, conheciam
parte da verdade. Alguns anos antes da drástica decisão, Glória, primeiro, e o resto da
família, depois, souberam da existência de certos seres, intuídos desde sempre no mais
profundo de seus corações. Esses seres, que Glória chamava de "irmãos maiores", foram
os principais responsáveis pelo êxodo da família para uma aldeia da qual jamais tinham
ouvido falar. E um belo dia, como digo, sutilmente conduzidos por esses "guias do
Espaço", descobriram primeiro o rio Razón e, em seguida, Sotillo e a Casa Azul. E ali
permaneceram, submersos em incansável e intensa busca interior, à espera de uma
"missão" que iria ter começo exatamente naquela madrugada de 1.° a 2 de abril de 1 984...
"Missão" que Glória ignorava e para a qual, a nível inconsciente, fora treinada desde 1
974. Mas não antecipemos acontecimentos...
De repente, o gemido do vento e o plangente uivo dos cães emudeceram. E o som
de bronze do sino, prisioneiro da torre metálica da Câmara Municipal de Sotillo dei
Rincón, propagou-se nítido e claro na turbulência da noite.
Glória, ainda acordada, ouviu assombrada aquelas badaladas rítmicas. Consultou
seu relógio: lh40.
"Graças a Deus" - pensou -. "Até que enfim consertaram o relógio..."
Todos os habitantes de Sotillo sentiam e sentem especial carinho por aquele velho
relógio de pesos, doado ao lugarejo em 1 907 por dom Gregório Revuelto, ilustre filho do
local. Todos, sem exceção, aprenderam a compartilhar a vigília e o sono com aquele
companheiro redondo. Suas badaladas, marcando as horas e as meias horas, eram
acompanhadas por todos, inclusive durante a noite. Muitos habitantes, obedecendo a
costume ancestral, chegam a contar - em meio ao sono - os sucessivos toques e voltam a
descansar. Por isso, nas poucas vezes em que o relógio da Câmara sofreu pane, as pessoas
dali chegavam a sentir mal-estar. Na verdade, faltava qualquer coisa em suas vidas...
Pois bem, nesses dias de que nos ocupamos, a fatalidade - ou teria sido a
casualidade? - fez com que o relógio tornasse a parar. Fazia várias semanas que tanto
Glória quanto o resto da comunidade insistiam, vez por outra, para que o prefeito fizesse
com que Antonino, o fiel guardião do relógio, subisse à torre e pusesse em marcha a
vetusta mas sólida maquinaria.
A reação primeira da senhora da Casa Azul, ao ouvir as solenes badaladas, foi,
portanto, de surpresa e alegria. "Está claro que Antonino deu corda no relógio..."
Essa meditação lógica, porém, suspendeu-se quando, alguns segundos depois, o
poderoso martelo de ferro situado sobre a face exterior do sino continuou a fustigar o
bronze, ultrapassando o número de doze badaladas.
Guiada por inexplicável impulso, Glória contava as batidas. E ao chegar ao
número 27, consciente de que alguma coisa estranha estava acontecendo, tentou despertar
José Ignacio, seu marido. Ele porém, profundamente adormecido, mal se deu conta do
que se passava do outro lado da praça.
"Trinta... Trinta e uma... Trinta e duas... Trinta e três..."
Ao chegar à badalada número 33, fez-se uma breve pausa.
E o silêncio voltou a descer sobre Sotillo. Entretanto, a que obedeceriam aquelas
inexplicáveis badaladas?
Glória não fora a única pessoa a quem a súbita volta das batidas alertara. Apesar da
cera que lhe tapava os ouvidos, o prefeito também havia escutado as badaladas. Ele, José
Maria, fora arrancado bruscamente do sono pelo insistente e escandaloso golpear do
martelo no sino.
Ele, sim, sabia que o relógio ainda não fora consertado. E após ouvir os primeiros
toques um pensamento lhe veio à mente: "Valha-me Deus! Algum engraçadinho entrou
na Câmara..."
Sem pensar duas vezes, saltou da cama, disposto a remediar o contratempo. Mas,
ao abrir a porta de casa, verificou assombrado que a chave de acesso à Câmara continuava
pendurada, como de costume, na parede de sua casa.
Naquele momento, agravando a confusão de José Maria, o relógio reencetou suas
badaladas. Escorregou-lhe pelas costas um calafrio...
"Não é possível!", pensou, enquanto, sem saber por quê, iniciava a contagem desse
segundo turno de badaladas.
Sigilosamente, em meio à escuridão, transpôs os poucos cinqüenta passos que
separavam sua casa da fachada da Câmara.
Como suspeitava, a porta do edifício achava-se muito bem fechada. Ergueu o olhar
até o alto da negra e delgada torre de ferro que encima a Câmara, desvelando com terror
crescente o movimento ritmado do martelo, a açoitar de quando em vez o imóvel sino de
oitenta quilos.
"Deus do céu!" - murmurou. - "Como é possível?"
Percorreu com a vista as janelas e os pequenos olhos-de-boi do edifício, mas as
trevas no interior do casarão eram tão densas como no exterior.
"... Trinta... Trinta e uma... Trinta e duas... Trinta e três..."
Ao alcançar a badalada número 33 o martelo não se tornou a levantar. E o silêncio
foi devorando o eco daquele último e misterioso toque.
O relógio de Sotillo dei Rincón, apesar de parado havia semanas, fizera soar seu
sino 66 vezes.
Na manhã seguinte, a confusão do prefeito, longe de dissipar-se, foi crescendo.
Chegando ao trabalho, fez minucioso exame visual na fachada da Câmara. Os ponteiros
do relógio, imóveis, marcando a mesma hora que marcavam há semanas atrás: quatro
vinte José Maria encolheu os ombros. Entretanto, por mais que tentasse, não conseguia
tirar da cabeça aquele acontecimento estranho. Como era possível que o velho relógio -
praticamente morto e com os pesos no chão, a doze metros da maquinaria - tivesse podido
ativar o sino?
Mas seu desconcerto foi aumentando quando interrogou, com curiosidade
incontida, seus conterrâneos. Nem um - nem sequer suas duas irmãs, que dormem na
mesma casa - ouvira as misteriosas badaladas...
Tal fato, sinceramente, parecia-lhe mais prodigioso ainda que o longo e
inexplicável toque. Todo mundo em Sotillo, como já se comentou, tinha como ponto de
honra dormir e contar ao mesmo tempo as sucessivas badaladas do velho vigia. Ainda
mais se os retinidos tivessem alcançado a soma de 66...
E é mais provável que o alcaide tivesse contemporizado ou esquecido o incidente,
não fora a oportuna intervenção da senhora da Casa Azul.
Naquela mesma tarde de 2 de abril, Glória - tão confusa quanto José Maria -
interpelou-o a respeito das misteriosas badaladas.
- No começo - disse-lhe -, pensei que você tivesse conseguido acionar o relógio.
Mas esta manhã, ao vê-lo parado. ..
Ele respirou, aliviado. Pelo menos havia em Sotillo outra testemunha do
desconcertante acontecimento.
A partir dali, agudo pressentimento enraizou-se no espírito da senhora da Casa
Azul. Se era fisicamente inviável que a maquinaria do relógio se tivesse posto em
movimento, quem teria levantado o pesado martelo e golpeado - 66 vezes! - o sino? E,
principalmente, por quê? Que "mensagem" se ocultaria debaixo daquele sinal e por que
teria sido ouvida unicamente por dois dos duzentos habitantes de Sotillo?
Glória nem de longe imaginava, então, que algumas das respostas a tais incógnitas
não tardariam a chegar, e pelas mãos de um velho amigo: Sinuhe.
Dias mais tarde, a senhora da Casa Azul - por motivos aparentemente alheios e
absolutamente divorciados desta história viu-se na contingência de viajar para a sua
antiga cidade. E como costumava fazer, também dessa vez procurou reunir um reduzido
grupo de amigos que compartilhavam de suas inquietações.
Sinuhe, há anos espiritualmente ligado à família, acudiu feliz ao chamado de
Glória. Durante uma daquelas longas conversações que manteve com a senhora da Casa
Azul foi que o investigador veio a saber do mistério das badaladas.
Nenhum dos circunstantes, com exceção de Glória, percebeu o súbito nervosismo
de Sinuhe. Tampouco o insólito interesse do jornalista por aquele "curioso fenômeno" e
sua imediata torrente de perguntas chegou a alarmar os presentes. Aquela curiosidade,
típica no investigador de temas ocultos, parecia normal aos que o conheciam. Apenas
Glória, com sua finíssima intuição, detectou no amigo algo além de uma simples
curiosidade... Concluído porém o primeiro e exaustivo interrogatório, Sinuhe desviou o
assunto para outros rumos, adotando sua já clássica fleuma.
Poucas horas depois, a família regressava a Sotillo dei Rincón, praticamente alheia
à autêntica motivação da viagem.
Sinuhe, por sua vez, procurando conter a excitação crescente, entregou-se à tarefa
de ordenar os primeiros informes sobre o caso das badaladas. Entretanto, naquele
momento, seu habitual racionalismo e sistema analítico de trabalho viu-se perturbado,
desde o primeiro momento, por uma das quatro frases que memorizara na presença do
Kheri Heb:
"AS BADALADAS - 66 - GUIARÃO SINUHE – 6".
Suas primeiras avaliações e as correspondentes conversações em números - sempre
segundo a chave de Cagliostro - dos dados proporcionados pela senhora da Casa Azul
mostraram-se inquietantes.
A soma da data em que o fato tivera lugar (2/4/1 984), da hora em que as
badaladas soaram (lh40), das próprias badaladas (66) e da hora em que o relógio da
Câmara estava marcando (4h20) projetava um número curioso naquele aparente
galimatias: seis.
Por outro lado, guiado por firme mas sutil "mão invisível", Sinuhe somou
igualmente as letras que compõem os nomes das duas únicas testemunhas do
acontecimento: GLÓRIA e JOSÉ MARIA. Atônito, comprovou que o resultado também
era seis! Sentiu-se tentado a comunicar-se com o Grão-Mestre e adiantar-lhe tudo o que
averiguara. Mas o instinto acabou por dominar aquele primeiro impulso. Tivesse-o feito e
talvez seu Kheri Heb houvesse contribuído com um novo e suspeitoso dado que Sinuhe,
logicamente, não conhecia ainda: aquelas 66 badaladas haviam soado exatamente 66 dias
depois de recebida em Arecibo a "mensagem" de "Ra"...
Talvez tenha sido melhor. Ou talvez não... A verdade é que Sinuhe, entregue já de
corpo e alma ao enigma das sessenta e seis badaladas de Sotillo dei Rincón, não soube
explicar por que deixara que se passassem dois meses após a histórica madrugada de 1 ° a
2 de abril de 1 984, sem que se apresentasse no lugarzinho soriano. De um lado, a própria
força da investigação o impelia, desde o começo, a viajar para Sotillo e verificar por si
mesmo toda uma série de fios soltos. Por outro lado, aquela "presença" intangível, que
sempre parecera acompanhar e proteger o investigador, freava ou torcia todas e cada uma
das tentativas que Sinuhe fazia para estar no lugar dos acontecimentos.
E o investigador - velho conhecedor do poder de "causalidade" - deixou-se guiar
pela "presença" da sentinela antiga...
Até que, na noite de 4 de junho, súbita chamada telefônica precipitou os
acontecimentos. Ulla, amiga de Glória e de Sinuhe, informava-o sobre a morte inesperada
de José Ignacio, marido da senhora da Casa Azul.
Naqueles momentos de tristeza e desolação, o investigador, lógico, não atinou que
o falecimento e posterior enterro de José Ignacio tivesse estreita relação com a terceira
frase da "mensagem" que ele decorara:
"A FILHA DA RAÇA AZUL ABRIRÁ TERRA EM 66 DIAS..."
' Foi pouco depois de 6 de junho, data da exumação dos restos mortais do querido
companheiro de Glória, que Sinuhe, quase por acaso - ou não teria sido por casualidade -
detectou este novo indício: desde a madrugada do dia 1.° a 2 de abril, em que se
registraram os toques do sino, até o enterro, 66 dias se haviam passado.
Agora, a suspeita de Sinuhe já se cristalizara numa certeza quase total: as 66
badaladas o haviam guiado até a "filha da raça azul". Que outra conclusão tirar?
Duas semanas mais tarde - a 29 de junho - o investigador entrava, enfim, em
Sotillo dei Rincón. É evidente que todas essas indagações - e mais as que estava na
iminência de iniciar - Sinuhe as mantinha no mais restrito silêncio. Nem naquela primeira
visita a Sotillo nem nas subseqüentes, Glória soube quais as verdadeiras
motivações que levavam o amigo a continuar investigando o milagre das badaladas.
Assim o exigia a disciplina da Escola da Sabedoria e, sobretudo, o desdobrar dos
fantásticos acontecimentos que se dariam pouco depois...
Depois de minuciosos e prolongados interrogatórios feitos ao prefeito e a diversos
habitantes de Sotillo, Sinuhe pôde confirmar para si mesmo a autenticidade do sucesso.
Algumas badaladas que, à primeira vista, escapavam a qualquer lógica.
De acordo com o que relatou José Maria, poucos dias antes daquela misteriosa
madrugada, o relógio fora acertado, funcionando regularmente. Mas, em conseqüência de
umas obras que se realizavam no interior da Câmara Municipal, alguma caliça caiu na
maquinaria do relógio, que tornou a parar. Para cúmulo do azar, quando quiseram abrir a
porta do edifício, a chave se quebrou e um pedaço dela ficou alojado dentro da fechadura,
impossibilitando o acesso à Câmara.
Pela mesma razão, Sinuhe não pôde inspecionar o interior do casarão e, o mais
importante, a maquinaria do relógio. Tal contratempo de certa forma o irritou, pois não
conseguia compreender, então, aquela série sucessiva de lamentáveis e mesmo estúpidas
circunstâncias. Dezessete dias mais tarde, a resposta às aparentes casualidades
apareceria...
Ante a impossibilidade física de penetrar na Câmara, Sinuhe limitou-se, nessa
primeira visita, a meticulosa exploração do exterior, assim como dos arredores da
Câmara.Nessa nova paralisação, os ponteiros do relógio ficaram ancorados nas nove horas
e seis minutos.
Sinuhe empurrou a porta; mas, realmente, ela estava trancada. Levantou o olhar e
divisou, entre as folhas da tília frondosa que guarnece a fachada da Câmara, a torre de
ferro, negra e sólida, a coroar o telhado do edifício. No centro da armação, brilhava ao Sol
o misterioso sino. Sobre ele Sinuhe observou também um pesado martelo, preso por uma
corda metálica à cabina onde devia repousar a maquinaria.
O pesquisador foi inspecionando, palmo a palmo, a totalidade daquela instalação
rústica. O sino, com efeito, parecia soldado à estrutura de ferro.
"O vento não teria podido movê-lo..." - argumentou.
No alto da torre, exatamente no vértice, aparecia uma esfera, também de ferro
forjado, com umas letras gravadas que Sinuhe não pôde distinguir com exatidão. Sua
curiosidade animou-se mais ainda. Mas, por mais que tentasse, a grande distância que o
separava da esfera e a posição das letras - no que poderíamos chamar de "pólo norte" do
globo metálico - tornaram-lhe inúteis os esforços para esclarecer a nova incógnita.
Distinguiu, sim, com toda nitidez, a data - 1 907 - que adornava o cata-vento
situado bem em cima do globo de ferro.
De repente, dezenas de andorinhas e gaviões alçaram vôo, fugindo qual relâmpago
negro do choupal que rodeava a Câmara.
Sinuhe, alertado pela súbita fuga dos pássaros, tomou o rumo do sombrio
bosquezinho.
Deteve-se na sombra do arvoredo escuro. O Sol já se precipitava para o poente,
iluminando não mais que algumas copas mais altas. Por uns segundos, o olhar do
investigador percorreu a espessa e desordenada vegetação que crescia entre as árvores.
Tudo parecia tranqüilo.
"Tranqüilo demais...", refletiu.
Com efeito, a nuvem de pássaros que habitualmente revoava pelo bosque
desaparecera. Em seu lugar, denso silêncio. Algo estranho estava acontecendo. Por um
momento, nosso homem pensou na possibilidade de que aquele desacostumado silêncio se
devesse à presença, no choupal, de alguma serpente, tão freqüente naquelas paragens. A
idéia eriçou-lhe os pêlos. E lentamente, adotando toda espécie de precauções, foi-se
adentrando na mata espinhosa.
A cada quatro ou cinco passos, Sinuhe detinha-se, apurando os ouvidos. A única
resposta, porém, era o silêncio; aquele silêncio que aturde, quebrado somente pelo
estalido dos fetos e cardos esmagados sob os pés.
Ao alcançar o coração do bosque, os olhos de Sinuhe, acostumados já à penumbra,
perscrutaram minuciosamente em torno. A poucos metros, divisou uma pequena clareira.
E, sem saber por quê, dirigiu-se para lá.
Uma vez no centro do pequeno claro, Sinuhe deu-se conta de outra circunstância
não menos estranha: a superfície da clareira estava atapetada por uma espécie de areia,
quase branca e por demais delicada. O emaranhado vegetal que cobria o pequeno bosque
interrompia-se bruscamente no perímetro daquele claro. Sinuhe, de cócoras, tomou de um
punhado de areia para examiná-la. Quando a estendeu na palma da mão, os microscópicos
grãos emitiram leves lampejos. Tão surpreso quanto maravilhado, deixou escorregar a
misteriosa areia, que formou, na mesma hora, uma deslumbrante cascata de luz.
Curiosamente, entretanto, ao voltar à superfície da clareira, aqueles grãozinhos perdiam a
fascinante luminosidade, recuperando o tom acinzentado.
Durante longo tempo Sinuhe brincou com a areia misteriosa, tentando desvelar o
enigma. Porém o crepúsculo, mais e mais denso, tornava impossível uma análise
detalhada. Cheirou os diminutos e refulgentes corpúsculos, sem resultado. E estava a
ponto de prová-los com a ponta da língua quando, de repente, um calafrio percorreu-lhe a
espinha. Sinuhe teve a sensação de que alguém o observava fixamente. Soltou a areia e,
cuidando de manter-se calmo, foi erguendo-se lentamente. Tornou a eriçar-se-lhe o pêlo
dos braços e da nuca. Não restava dúvida: alguém - quem sabe um animal - estava nos
arredores da clareira. Embora o jornalista fosse homem acostumado, em suas múltiplas
correrias noturnas, a dominar o medo, esse inconfundível sentimento humano que nos
adverte de perigo iminente palpitou, uma vez mais, no coração de Sinuhe.
Muito lentamente, centímetro a centímetro, o repórter foi girando sobre os
calcanhares, tentando vislumbrar alguma coisa na espessa negrura.
O silêncio se tornara insuportável. Tudo ao redor parecia morto. Fora do tempo.
Por mais que perfurasse as silhuetas negras das árvores e os perfis informes da floresta,
não percebeu sons nem movimentos. O coração, entretanto, bombeando aceleradamente,
continuava a adverti-lo de uma presença estranha. "Mas onde?", repetia sem saber a que
agarrar-se.
Daí a poucos instantes, Sinuhe sofreu nova comoção. À sua frente e a pouco mais
de meia dúzia de passos, viu uma sombra cruzar e desaparecer precipitadamente atrás de
um dos altos maciços de fetos. Empalideceu. Sua freqüência cardíaca disparou e o medo
já lhe secava a garganta. Na tentativa de recuperar o domínio sobre si mesmo, quis
convencer-se de que, a julgar pela diminuta estatura da sombra, talvez estivesse sendo
espiado por algum menino do povoado. Essa hipótese o tranqüilizou um pouco. Reunindo
coragem, avançou um par de metros, saindo da clareira.
"E se for imaginação minha?", perguntou-se. Mas a idéia foi rechaçada em cheio,
quando descobriu o ligeiro agitar das avermelhadas e serrilhadas folhas dos fetos-machos
por onde passara a silhueta fugaz.
Sinuhe sondou o fundo do bosque, seguindo com a vista a direção que parecia
levar ao hipotético menino. Mas a exploração visual foi infrutífera. A sombra
desaparecera.
"Só vejo uma possibilidade" - prosseguiu raciocinando. - "... Talvez se tenha
escondido entre as árvores..."
Disposto a livrar-se das dúvidas, continuou avançando.
Com ânimo abatido, foi percorrendo o primeiro grupo de árvores, afastando lenta e
cuidadosamente a mata agreste.
Ao cabo de dez minutos de busca estéril, o investigador, um pouco mais sereno,
suspendeu a perseguição. Encolheu os ombros e pegou o maço de cigarros. Mas, quando
estava a ponto de acender um, súbito vento gelado apagou a chama. Paralisado de
surpresa, Sinuhe não moveu um só músculo. Em um décimo de segundo, seu cérebro
formulou apenas uma interrogação:
"Mas que é isso?... Vento gelado em pleno verão?".
Mecanicamente, voltou a acender o isqueiro. A chamazinha azul oscilou levemente
e, num instante, outro jorro de ar gelado acabou com seu propósito.
Desta vez consciente de que aquela misteriosa corrente não podia ser natural, nem
tentou repetir a operação. O sopro, e disso tinha certeza, vinha do alto. O medo tornou a
invadi-lo. Alguma coisa ou alguém achava-se por cima de sua cabeça. E a imagem da
sombra correndo veloz na espessura veio-lhe imediatamente à mente.
Apesar daquelas duas golfadas geladas, a testa de Sinuhe :ou ensopada de suor. O
instinto o impelia a correr, a safar-se daquele maldito bosque. Mas a curiosidade, ainda
dessa vez, foi mais forte. E engolindo saliva, ergueu o rosto. "Jesus Cristo!..."
A pouco mais de dois metros por cima de sua cabeça, o aterrorizado investigador
descobriu uma figura monstruosa. Essa, ao menos, foi a primeira impressão.
Empoleirado em um dos ramos mais baixos da árvore mais próxima, encontrava-se
um ser de pequena estatura. Em pé sobre o galho, segurava-se ao tronco com a mão
direita. Ambos os braços eram extraordinariamente longos e desproporcionados. O
esquerdo, quase colado ao corpo, chegava abaixo do joelho. Tinha um crânio volumoso e
em forma de pêra invertida, e um rosto perceptível apenas.
Os olhos - pareciam na realidade dois pontos ou orifícios escuros, rodeados de uma
espécie de circunferência córnea e saliente - fixavam-se nos de Sinuhe. Este, paralisado
primeiro pela surpresa e pelo pânico, depois, não conseguiu reagir.
A escassa luminosidade não lhe permitiu perceber muitos detalhes. Num gesto
instintivo abaixou a cabeça, acreditando-se presa de alguma alucinação. Mas ao voltar
outra vez os olhos para aquela "coisa", ela havia desaparecido. No cérebro de Sinuhe,
porém, a imagem daquele ser continuava viva. Confuso, tentou organizar seus
pensamentos. "Que é que está acontecendo?"
Inexplicavelmente o medo desaparecera, esvaziado diante da possibilidade de tudo
aquilo não ter passado de uma peça de mau gosto pregada por sua mente. Senão, como
explicar a desaparição do pequeno e monstruoso indivíduo?
Seu impulso seguinte foi sair do bosque. Estava a ponto de fazê-lo quando,
subitamente, pelo rabo do olho, acreditou ver uma espécie de luminoso fogaréu no centro
da clareira.
Voltando-se, nosso homem outra vez ficou petrificado. "Jesus Cristo!... Então, não
era alucinação!" Efetivamente, Sinuhe tinha diante de si a pequena criatura. "Mas como
pôde?..."
O homenzinho - ou o que quer que fosse - surgira sem se anunciar no centro
geométrico da clareira. E Sinuhe, atônito, agachou-se entre os fetos, disposto a observar
até o mínimo movimento do extraordinário personagem.
A criatura, ligeiramente debruçada sobre a areia, parecia ausente e distraída.
Apanhou um punhado daquele pó e, erguendo-se, esticou o longo braço direito, lançando
o conteúdo da mão em direção a uma das árvores próximas. Porém, para assombro do
repórter, de seus dedos não saíram os minúsculos grãozinhos. A areia se transformara em
um finíssimo fio luminoso, formado por centenas, talvez milhares, de microscópicos
pontos de luz. Em fração de segundo, o resplandecente feixe branco-azulado mergulhou
na casca da árvore, desaparecendo.
O ser, durante alguns segundos, contemplou o alvo em que incidiu o enxame
luminoso. Nesse momento, o investigador se apercebeu de um novo e desconcertante
detalhe: o corpo do homenzinho parecia transparente. Através da criatura, ele podia ver as
árvores do outro lado da clareira.
Em seguida, o ser abaixou-se, recolhendo um segundo punhado de areia. E repetiu
a operação, mas desta vez em outro dos delgados troncos que se levantavam à volta da
aberta.
O novo fogaréu iluminou parte da clareira, como também o rosto e o dorso da
criatura. Sinuhe pensou distinguir-lhe uma sorte de escudo ou emblema circular no centro
do peito. À primeira vista, pareciam três círculos concêntricos. Em virtude porém do seu
crescente nervosismo, não podia assegurá-lo.
Como se se tratasse de um jogo - ou de um absurdo passatempo -, o pequeno ser
foi repetindo os lançamentos, até um total de seis. Cada rajada luminosa atingiu uma
árvore diferente, de forma tal que, ao concluir, seis dos troncos que formavam o perímetro
do claro apareceram chamuscados ligeiramente. Sinuhe, segurando a respiração, não
atentou muito para as manchas enegrecidas e fumegantes que foram surgindo nas cascas
das árvores. A penumbra e a distância, além do mais, dificultavam-lhe a observação. A
criatura, essa sim, parecia interessada no resultado de cada um dos impactos. E, como
digo, ao efetuar as desconcertantes manobras, repetia suas observações. Para a atônita
testemunha, o fascinante era o incrível personagem que tinha à frente. Na primeira
dedução, precipitada, o investigador o associou com um dos tipos de humanóides ou
tripulantes dos OVNIs, extensa e exaustivamente estudados por ele. Tal pensamento fê-lo
vibrar de emoção. Em que pesem os muitos anos de perseguição, jamais tivera
oportunidade de avistar-se com esses seres. E agora, casualmente, encontrava-se a pouco
mais de cinco metros de um deles...
Entretanto, baseado no que acumulara de observações, "algo" havia que não se
encaixava na mente de Sinuhe. As características da criatura - a total transparência, em
especial - não correspondiam às descrições que paulatinamente fora reunindo sobre eles.
Por outro lado, aquele rosto... Sinuhe não poderia jurá-lo, mas estava quase certo de que
não tinha boca nem nariz... O volumoso e a pequena estatura - talvez um metro -, isso
sim, eram depoimentos "habituais" nos testemunhos de encontros com esse tipo de
ocupantes dos "objetos voadores não identificados". Sinuhe, naquele momento, sequer
podia suspeitar que se encontrava ante uma criatura muito mais fantástica e, inclusive,
"comum" - embora possa parecer um contra-senso - que os extraterrestres que ele
perseguia com tanto empenho.
Concluída a misteriosa função, a criatura girou lentamente, postando-se bem
defronte ao esconderijo de Sinuhe. Melhor que ver, sentiu o olhar daqueles olhos negros
como a noite a perfurar o matagal que o ocultava, cravando-se nos seus. Na mente do
investigador ecoou uma voz clara e profunda, muito familiar.
"Lembre-se do meu sinal... O de Micael!..."
E o ser, mirando sempre o ponto onde se escondia Sinuhe trêmulo, cruzou as mãos
sobre o peito. Naquele instante, os três círculos concêntricos que formavam aquela
espécie de escudo ou emblema adquiriram uma tonalidade celeste brilhante, que foi
invadindo a clareira, até ocultar com sua luz ofuscante a figura do homenzinho.
Deslumbrado, o jornalista protegeu os olhos com o braço direito. Mas, tal como
acontece quando se olha fixamente o Sol, no cérebro dele ficou a flutuar uma informe
mancha negra.
O medo tornou-se mais intenso e Sinuhe, instintivamente, afastou o braço,
esforçando-se para não perder de vista o desconhecido. Sua surpresa foi enorme. A
criatura desaparecera pela segunda vez!
Nosso homem forçou a debilitada visão, no afã de localizá-la. Mas as árvores e o
matagal pareciam desertos. Daquela torrente luminosa, emanada dos três círculos
concêntricos, não restava o menor vestígio. Tudo voltara ao normal. O prolongado e
insólito silêncio terminara; o bosque recuperou sua palpitação própria. Sinuhe, ainda de
joelhos, explorou o alto do choupal, mas não conseguiu ver qualquer traço da aparição
misteriosa. Alguns pássaros voltaram a revoar entre os ramos, enchendo o espaça com
seus costumeiros trinados.
Durante minutos, Sinuhe, que afinal se levantou, permaneceu confuso e com o
olhar perdido no vazio. Em sua mente, soavam ainda aquelas palavras inexplicáveis,
mescladas agora com uma avalancha de perguntas.
"...Terei sonhado?... Que aconteceu comigo?... Quem era aquele ser?... Lembre-se
do meu sinal!... Mas que sinal?... O de Micael!..."
Aturdido, não soube nunca quanto tempo permaneceu imóvel na clareira.
Finalmente, quando recuperou o ânimo necessário, um pensamento o impeliu para a areia:
"... As árvores... Se tudo não passou de uma alucinação" - repetia enquanto dava os
poucos passos que o separavam do claro - "os troncos devem continuar intactos..."
Ao pisar o pó misterioso, um calafrio sacudiu-lhe as entranhas. A um metro e meio
do chão, seis das doze árvores que encerravam o círculo exibiam uma estranha marca.
Arrepiado, se foi aproximando de um daqueles sinais. Na acinzentada casca da
árvore estavam desenhados - ou mais exatamente "gravados" - três círculos concêntricos
enegrecidos, com cerca de dez centímetros de diâmetro.
Tomando todo tipo de precaução, explorou as circunferências, verificando que, na
realidade, tratava-se de várias e profundas queimaduras. Tocou com as pontas dos dedos
as estreitas franjas negras, mas estavam frias como o resto da árvore.
"Como pode ser" - perguntou-se, ao passo que se dirigia a outra das marcas -, "se
há poucos minutos fumegavam ainda?... Ou não teria sido questão de minutos?"
Consultou o relógio. Tranqüilizou-se. Não se havia passado meia hora desde que
se decidiu a enveredar pelo bosquezinho.
Foi examinando um por um dos sinais. Eram todos idênticos. E todos,
curiosamente, encontravam-se à mesma distância do chão e eqüidistantes do centro da
clareira. Mas por quê? Que significavam aqueles três círculos concêntricos? E,
principalmente, quem era aquela criatura? Existiria alguma relação com o fenômeno das
66 badaladas?
Movido por insaciável curiosidade, ajoelhou-se na delicada areia e, pegando um
punhado dela, preparou-se para executar a mesma manobra do homenzinho.
Ao serem apanhados na clareira aqueles milhões de diminutos corpúsculos
tornaram a cintilar na palma da mão de Sinuhe. Ele, sem conter a emoção, lançou-os em
um dos troncos não marcados pela criatura. Desiludido, comprovou que a rajada luminosa
estatelava-se na casca e caía docemente. Não aconteceu nada. Dando de ombros, pegou o
lenço e nele guardou uma pequena porção daquele pó desconhecido.
Lançou pelo bosque um último olhar e, com passo acelerado, abandonou-o.
A aldeia seguia sua habitual e singela rotina. Ninguém, nem mesmo a senhora da
Casa Azul, sentira nada de anormal. Sinuhe, tendo formulado discretas perguntas aos
habitantes mais próximos do bosquezinho, convenceu-se de que aquele insólito encontro
se dera só com ele. Tal circunstância, longe de tranqüilizá-lo duplicou, se é que isso é
possível, sua perplexidade. Pouco faltou para que, ao longo daquele entardecer, durante
um tranqüilo passeio pelos arredores de Sotillo, Sinuhe revelasse a Glória tudo o que vira.
Seu senso de disciplina, entretanto, cristalizou uma vez mais seus desejos. Antes, teria de
informar seu Kheri Heb... E obedecendo a plano já estabelecido, abandonou Sotillo,
pretendendo ultimar as investigações programadas. Numa tentativa para apurar as
possíveis e hipotéticas - cada vez mais hipotéticas - explicações que talvez pudessem
justificar as 66 badaladas, o membro da Escola da Sabedoria dirigiu-se primeiro ao
Observatório Meteorológico de Soria. O próprio chefe do centro, Ricardo Garcia Acinas,
afirmar-lhe-ia que, naquela madrugada de 1.° a 2 de abril de 1 984, não havia sido
registrado nenhum fenômeno meteorológico capaz de provocar as 66 badaladas. O vento
Oeste, com uma velocidade de dez quilômetros por hora - "talvez até mais na região de
Sotillo", aventou o meteorologista -, jamais poderia mover o peso do sino, fortemente
soldado em sua torre, e, muito menos, levantar uma só vez que fosse o pesado martelo de
ferro.
Em uma segunda investigação, o Instituto Sismológico, sediado na cidade de
Toledo, ratificaria a suspeita de Sinuhe: "... nessa noite" - declarou-lhe o próprio diretor,
Gonzalo Paz -, "nossos aparelhos não detectaram movimento sísmico algum em nosso
país".
Quando Sinuhe o interrogou sobre a intensidade necessária para que possa um
terremoto mover e fazer soar um sino, o diretor do instituto foi claro e contundente: "Seria
necessário um abalo de grau 4 na escala de Mercali".
Aparentemente, pelo menos, as 66 badaladas não tinham explicação lógica. Sinuhe
considerou então que havia chegado a hora de uma nova entrevista com seu Kheri Heb...
Nos primeiros dias daquele mês de julho de 1 984, Sinuhe utilizou o código secreto
da Escola da Sabedoria, aprazando uma segunda reunião com o Grão-Mestre em Madri. O
Kheri Heb ouviu atentamente a exposição do "soror" que, em seguida, entregou ao alto
funcionário israelense um frasquinho de vidro com a misteriosa areia recolhida no bosque
de Sotillo. O Mestre da Loja secreta limitou-se a observar em silêncio o alvo conteúdo do
recipiente. Sinuhe, sem conseguir conter a curiosidade, tentou forçar uma resposta; uma
explicação que fosse, que dissipasse as brumas que lhe envolviam o cérebro:
- Mestre... é fato evidente e objetivo que essas inexplicáveis sessenta e seis
badaladas me terão conduzido até a "filha da raça azul". E não é menos verdadeiro que a
senhora da Casa Azul "abriu a terra em sessenta e seis dias". Apesar de tudo, como
podemos ter a certeza de que se trata, efetivamente, da pessoa que buscamos?
O Kheri Heb sorriu e, apanhando o envelope branco enviado pelo Conselho
Supremo da Irmandade, sacou os dois documentos que ele continha. Sinuhe, lembramonos,
conhecia o texto de um deles. O Grão-Mestre, no entanto, nada lhe dissera do
segundo.
- Por desejo expresso da Ordem - manifestou-se o Kheri Heb, apontando o
documento secreto -, nenhum dos irmãos que participaram dessa missão recebeu uma
informação que complementasse a busca e que, por razões de segurança, só se revelaria
ao "Sinuhe" que verdadeiramente fosse guiado pelas sessenta e seis badaladas.
Sinuhe percebeu um brilho de alegria nos olhos do Mestre.
- "...O eleito" - continuou, enquanto ia lendo o documento - "receberá ne-ces-sa-ria-
men-te...".
O Kheri Heb saboreou cada uma das sílabas da palavra.
- "... Receberá, ne-ces-sa-ri-a-men-te, o sinal e a bandeira de Micael, o Filho
Criador do Paraíso."
E ele aguardou a reação do discípulo.
- Sinal e bandeira de Micael?... Então - retomou Sinuhe, batendo na mesa com a
palma da mão -, a voz que soou em meu cérebro...
O Mestre fez que sim com a cabeça.
- Mas qual é o sinal?
O impaciente membro da Escola da Sabedoria, entretanto, não deu tempo ao Kheri
Heb. Dando um segundo tapa na mesa, respondeu a si mesmo:
- Jesus Cristo!... Os três círculos concêntricos! Agora compreendo - balbuciou, sob
o olhar divertido do israelense -. Aquela criatura... sim... aquela criatura me comunicou
qualquer coisa: "Lembre-se do meu sinal... O de Micael!..."
Sinuhe, sem dissimular a contrariedade pelo fato de não haver captado logo o
significado oculto daquela mensagem, baixou os olhos, envergonhado. Ele sabia, como
membro da Ordem, quem era e o que representava Micael. E sabia também qual era o
sinal e a bandeira do Filho Criador do Paraíso: três círculos azuis e concêntricos sobre
fundo branco.
O Kheri Heb não permitiu que se abatesse.
- Caro Sinuhe, você não poderia saber que a criatura era o que a Escola da
Sabedoria chama um "mediano"... Mas permita-me que eu prossiga segundo o plano
estabelecido pelo Conselho Supremo da Irmandade.
E o Mestre concentrou a atenção no documento secreto. Ao concluir a leitura,
acomodou-se no escuro e reluzente encosto da cadeira de couro e, adotando um tom
displicente, encetou um relatório que Sinuhe jamais esqueceria.
- Há já alguns anos, estimado Sinuhe, os astrônomos detectaram um astro
desconhecido que se avizinhava do nosso sistema solar. A notícia foi divulgada logo, mas
poucas pessoas (com exceção de alguns observatórios e dos nossos Kheri Hebs)
prestaram-lhe atenção. Hoje, precisamente desde 27 de janeiro passado, sabemos que esse
corpo celeste (batizado pelos astrônomos com o nome de "Ra-6 666") não é um astro
como os demais...
Sinuhe, suspenso com a narração, não chegava a entender, mas conteve-se.
- ... Pois bem; na madrugada daquele 27 de janeiro, seguindo instruções do
Conselho Supremo, dois radioastrônomos de Arecibo, membros .como nós da Escola da
Sabedoria, enviaram uma mensagem secreta a "Ra-6 666". A resposta (tal como reza um
de nossos papiros mais antigos e sagrados) não se fez esperar. "Ra" transmitiu ao
radiotelescópio uma chave que você conhece e que felizmente já se resolveu.
O Mestre percebeu nos olhos do "soror" uma enxurrada de perguntas e pediu-lhe
calma com as mãos; prosseguiu:
- Um momento, Sinuhe. É melhor que ouça primeiro tudo
o que tenho para dizer-lhe. Essa mensagem, como lhe dizia, que você conhece,
consta de quatro frases. A segunda e a terceira ("AS BADALADAS - 66 - GUIARÃO
SINUHE - 6" e "A FILHA DA RAÇA AZUL ABRIRÁ TERRA EM 66 DIAS - 6")
foram pontualmente cumpridas. Quanto à primeira e à última frases ("Ra-6 666"
ABRIRÁ O NOVO TEMPO - 6" e "O JULGAMENTO DE LÚCIFER - 666 - CHEGOU
- 6"), é o que o Conselho Supremo da Escola da Sabedoria me autoriza a revelar-lhe.
O Kheri Heb mudou o tom de voz e, de forma incisiva, declarou:
- Devo esclarecer-lhe que, se uma vez conhecida esta segunda missão que a Ordem
deseja pôr-lhe nas mãos, sua resposta for negativa, você deverá esquecer tudo o que
sabe...
O investigador, sem hesitar, assentiu com a mesma firmeza com que seu Mestre se
desincumbira de tal esclarecimento.
- Está bem. Continuemos... Como lhe vinha dizendo, de acordo com a
interpretação do Grão-Conselho, a presença desse astro "intruso" representa (segundo se
depreende do sentido da primeira frase da mensagem) que a Humanidade deste planeta
em que vivemos está na iminência de abrir ou iniciar um "novo tempo". Um tempo
(preste muita atenção, Sinuhe) que tem muito que ver com "Ra" e, sobretudo, com o
julgamento a que está para ser submetido nosso antigo Soberano Sistêmico: Lúcifer. Você
aprendeu, através dos ensinamentos do nosso Templo, qual é a organização
"administrativa" dos sete superuniversos. A Irmandade mostrou-lhe o maravilhoso plano
divino do Pai Celestial e de seus filhos "descendentes" e "ascendentes" no inevitável
caminho da Perfeição. Mas os conhecimentos da Escola da Sabedoria são ainda muito
limitados. Há milhares de perguntas que nos fazemos sempre e que você mesmo ventilou
em reuniões com os demais "sorores". Agora, finalmente, temos aqui a oportunidade
única de saciar um pouco dessa sede de conhecimento...
O Kheri Heb, com entusiasmo crescente, desandou a formular ma série de
interrogações que eletrizaram também o perplexo membro da Ordem secreta:
Pela graça dos Anciãos dos Dias, caro Sinuhe, é-nos possibilitado conhecer quem é
verdadeiramente Lúcifer... Por que se rebelou? Quais foram as causas e razões da sua
rebelião? Até que ponto foi grave a sua desobediência? A quem arrastou consigo? E,
acima de tudo, quais as repercussões dessa rebelião para o nosso mundo? Que há de real
ou de simbologia no pouco que a Bíblia conta?...
Transbordando, Sinuhe interrompeu o Kheri Heb com uma só e lógica pergunta:
- Mestre, mas quem terá o poder de desvelar esses mistérios?
A pergunta objetiva de Sinuhe contribuiu, não pouco, para estabilizar o crescente
entusiasmo do Mestre. Este, inspirando profundamente, compreendeu que não devia
precipitar-se. E, para grande alívio do discípulo, entrosou-se com as perguntas concretas
que ele havia começado a propor-lhe.
- Estas e outras muitas questões, irmão querido, podem ser desvendadas pela filha
da raça azul e por você mesmo, Sinuhe... se você aceitar a missão que "Ra" transmitiu à
Escola da Sabedoria.
- Um momento... - interrompeu-o nervoso Sinuhe -, que ou quem é "Ra"?
- Como eu começava a expor-lhe, para os observatórios astronômicos trata-se
apenas de um astro periódico, com uma órbita cíclica de 6 666 anos e que em 27 de
janeiro passado cruzou a órbita de Plutão, em uma aflitiva viagem em direção ao nosso
planeta ou, talvez, até o Sol...
Sinuhe empalideceu.
- ... Para nós, entretanto - prosseguiu o Kheri Heb em tom tranqüilizador -, "Ra" é
muito mais. Sabemos que não é um corpo sideral como outro qualquer. Seres altamente
evoluídos e responsáveis pela administração do nosso universo local de Nebadon dirigem
e controlam "Ra": uma das magníficas esferas artificiais que habitualmente rodeiam
Jerusem, a capital (como você sabe) do nosso sistema. E tal como consta de nossos
papiros sagrados (os da "Quinta Revelação"), "Ra" desloca-se pelo nosso sistema satânico
a cada 6 666 anos terrestres, com diversificadas missões. A nós, neste momento, tocounos
por sorte sermos testemunhas (e protagonistas, se você aceitar a missão) de uma nova
"ronda" da roda de "Ra".
Sinuhe, como discípulo da Ordem, estudara os papiros sagrados denominados de
"Quinta Revelação" - aos quais me reportarei logo -, mas, apesar disso, continuava
confuso.
- E, que relação existe entre a primeira frase da mensagem
(" 'RA-6 666' ABRIRÁ O NOVO TEMPO") e a última ("O JULGAMENTO DE
LÚCIFER - 666 - CHEGOU")?
- Como você sabe, pelos seus estudos, o tempo é um conceito psicológico, cujo
valor se altera de acordo com o lugar de onde se meça. Para nós (mortais), um ano no
planeta Terra equivale a 365 dias e um quarto. Mas esse conceito do tempo não é igual
para os seres que habitam nosso universo local ou qualquer dos sete superuniversos e, é
claro, para as altas hierarquias do Universo Central de Havona, sede da Ilha Eterna do
Paraíso. Pedro disse-o com extrema objetividade em sua segunda carta (3.8):
"Amadíssimos, que não se oculte, entretanto, este fato: um dia é, perante Deus, como mil
anos e mil anos como um dia". Com isso quero dizer-lhe que (segundo a interpretação do
Conselho Supremo da Ordem) o iminente julgamento de Lúcifer abrirá uma nova era para
o nosso mundo e para todos aqueles que foram arrastados na rebelião. Embora para esta
humanidade "ascendente" e evolucionista possam ter-se passado centenas de milhares de
anos desde aquela desgraça, para os altíssimos seres que regem os superuniversos, esse
tempo é realmente insignificante. E o fato objetivo e fascinante é que (por razões que nos
escapam) a Divindade está a ponto de julgar o grande rebelde. Isso pode significar o final
da "quarentena" que vem sofrendo a Terra desde o momento em que o então príncipe
planetário (Caligastia) decidiu unir-se à insurreição de Lúcifer. Uma "quarentena" que,
você também não ignora, significou insulamento, dor e atraso para este mundo
infortunado...
- Mestre - lamentou-se Sinuhe -, continuo sem entender o que tem que ver tudo
isso com a filha da raça azul e também comigo.
O Kheri Heb voltou a socorrer-se do segundo documento:
- Nesta informação secreta, complementar da que você já conhece, o Conselho
Supremo da Escola da Sabedoria nos informa sobre uma série de fatos que tentarei
resumir para você: uma vez localizada a filha da raça azul, e a título de compensação
pelos sofrimentos experimentados por este planeta em virtude da rebelo, os Anciãos dos
Dias determinaram que nossa Humanidade (da mesma forma que os mundos que foram
igualmente arrastados rebeldes) esteja representada no julgamento de Lúcifer. Essa
representação, como é justo, só será cabível se se der através de um descendente vivo da
raça mais nobre de cada um desses planetas, atualmente em "quarentena". "Ka" indicou
esse representante humano (a "filha da raça azul") e como identificá-la: pelas badaladas...
- Assistir ao julgamento de Lúcifer?... Sinuhe, já de pé, formulou a pergunta,
incrédulo.
Mas as surpresas estavam apenas começando para ele...
Com rosto grave, pediu-lhe o Mestre que se sentasse.
- Sim, você o disse. E essa delicada missão tem uma primeira fase da qual (se
vocês dois aceitarem) nossa Ordem e o mundo inteiro poderão obter respostas completas,
respostas para muitas indagações que se formulavam há um momento... Lembre-se de que
a humanidade nada sabe sobre os motivos reais daquela revolta celestial e de suas
conseqüências.
- Bem - solicitou novamente o investigador -, em que consiste essa primeira fase
da missão e qual o papel que me toca?
- Como você mesmo pôde observar, a filha da raça azul não está consciente de sua
verdadeira identidade. Centenas de milhares de anos transcorreram desde a rebelião, e a
passagem do tempo apagou qualquer vestígio daqueles acontecimentos e dos seres que
participaram deles direta ou indiretamente. Ela, é lógico, ignora quais foram seus remotos
antepassados (os homens da raça azul) e a missão transcendental que desempenhou na
Terra o primeiro casal dessa estirpe singular: Adão e Eva.
Ao ouvir esses nomes, Sinuhe Sentiu um calafrio.
- ... Pois bem, sua missão, antes que a filha da raça azul decida-se a assistir ou não
ao grande julgamento, consiste em prepará-la e, quando chegar o momento, supondo-se,
repito, que você assuma a responsabilidade, acompanhá-la...
- Eu?... Acompanhá-la, eu, ao julgamento de Lúcifer?
E, sem poder conter-se, foi assaltado por um ataque de riso. O Kheri Heb,
consciente da tensão que ele vinha suportando, deixou que o "soror" aliviasse o ânimo.
- Sinto muito, Mestre - dominou-se afinal -. Não pude evitá-lo... Mas você sabe
que não tenho sangue de herói. Não passo de um homem atormentado, que despreza a si
próprio. Por que precisamente eu?...
- Eu poderia responder em parte essa questão; mas não o farei... por ora. Se você
aceitar essa missão, haverá alguém muito mais importante que eu que poderá satisfazerlhe
a curiosidade. Por outro lado, tentarei esclarecer-lhe a pergunta anterior. Por que ser
você o acompanhante da filha da raça azul no julgamento de Lúcifer? Em primeiro lugar
(de acordo com os planos superiores), uma vez completado o treinamento da filha da raça
azul, sua missão também terá terminado... a não ser que, livre e voluntariamente, você
aceite unir-se à "eleita" para localizar os arquivos secretos de IURANCHA. Será o final
dessa primeira fase da missão. Só então, quando esses arquivos tiverem sido descobertos,
começará para a filha da raça azul (e talvez para você) a segunda e última parte dessa
"aventura" apaixonante: a presença no julgamento de Lúcifer.
- Os arquivos secretos de IURANCHA!
Sinuhe disse as palavras com reverência. Ele sabia que o nosso planeta é
conhecido no Universo não como a "Terra", mas como IURANCHA. Estudara também
que, depois do caos produzido pela rebelião, os arquivos secretos do mundo - com toda a
sua História - haviam caído em poder dos rebeldes. Amparados pela rígida "quarentena"
decretada sobre IURANCHA, os partidários de Lúcifer e Caligastia haviam ocultado esse
imenso "tesouro" das vistas dos seus legítimos proprietários: os humanos autóctones de
IURANCHA. Assim, mantendo a humanidade alheia e distante da Verdade, sua
possibilidade de controle e domínio dos povos se mantinha viva, semeando a dúvida, a
confusão e a ignomínia entre os cegos e desditosos povoadores do planeta.
A Escola da Sabedoria tivera conhecimento da existência desses arquivos secretos
através dos papiros da "Quinta Revelação". Mas, até aquele momento, todas as tentativas
para descobri-los e resgatá-los se haviam frustrado.
Sinuhe assentiu com a cabeça. Agora, sim, começava a compreender.
"Os arquivos secretos!..."
Vibrando de emoção, aceitou.
- Farei tudo o que estiver em minhas mãos. Mas por onde devo começar?
O Kheri Heb, sorridente, dirigiu-se ao cofre, voltando com um grande envelope
fechado. Depositou-o nas mãos do discípulo, dizendo-lhe:
- Você tem aqui informações precisas para iniciar o adestramento da filha da raça
azul. Você deve estudá-las meticulosamente. Parte delas já lhe foi revelada pelo Templo.
O resto, e dada a natureza da missão que você acaba de assumir, foi expressamente
autorizado pelo Grão-Conselho. Não se surpreenda com o que logo vai conhecer...
Guarde-o no fundo do coração e procure fazer bom uso disso. Você deverá transmitir
esses conhecimentos à "eleita" de "Ra". Quando julgar oportuno, junte-se a ela e inicie
sua preparação. Dificilmente poderá assistir ao julgamento de Lúcifer, se antes não se
tiver feito luz em seu espírito. Mas essa "luz" não se encontra só neste conhecimento que
lhe estou entregando. Assim que terminem esse primeiro treinamento, a filha da raça azul
e você mesmo deverão coroar a preparação com a busca dos arquivos secretos de
IURANCHA e com a Verdade que encerram.
O investigador acariciou o lacre vermelho que selava o envelope, que trazia
impresso o escudo da Loja: uma serpente enroscada entre dois olhos... Permaneceu assim,
pensativo, por longos momentos.
Finalmente, levantando o olhar para o Mestre, perguntou:
- E se a filha da raça azul não aceitar? O Kheri Heb pareceu surpreso.
- Você, que a conhece, duvida?
Uma vez mais, o Mestre ficava com a razão. Sinuhe sabia que Glória não era dessa
espécie de pessoas que recuam ante as dificuldades ou os desafios. No fundo, era como
ele...
- Mais alguma pergunta?
- Sim, claro... Uma vez concluído o adestramento, como saberemos?...
O Mestre apontou o envelope e respondeu:
- Siga as instruções. Já lhe referi que outra "personalidade", muito mais importante
que eu, abrir-lhes-á o caminho...
O jornalista se pôs em pé e, antes de estreitar a mão do Kheri Heb, comentou quase
de si para si:
- Uma "personalidade", suponho, que tem muito que ver com "Ra"...
Mas o Mestre, com um sorriso de cumplicidade, limitou-se a dizer:
- Boa sorte, Sinuhe!... E que a força e a sabedoria do Gerador o acompanhem.
Esperarei, impaciente, seu feliz regresso.
3. A "QUINTA REVELAÇÃO"
A algumas horas dessa nova e secreta entrevista, Sinuhe viu-se, uma vez mais,
assaltado pela dúvida. Ao examinar o conteúdo do envelope lacrado, seu entusiasmo
esfumou-se quase todo. Em sua mente, fruto talvez de seu afiado senso crítico, foi-se
instalando uma idéia que por pouco não o faz desmontar daquela missão aparentemente
disparatada.
"Estarei ficando louco?..."
A contragosto, obrigado somente pela promessa feita perante o Mestre, retomou
uma vez ou outra as informações que devia transmitir à filha da raça azul. O Templo do
Conselho Supremo da Escola da Sabedoria pusera em suas mãos parte dos chamados
papiros sagrados da "Quinta Revelação". Textos remotíssimos que Sinuhe, tal como os
demais membros da Loja, fora conhecendo paulatinamente. A primeira parte dessa
documentação - a referente à "Organização Administrativa do Universo Central e dos
Superuniversos" - era-lhe sobejamente familiar. O mesmo não acontecia com a segunda,
que, sob o sugestivo e genérico título de "A Primeira Família Humana em IURANCHA",
dava a conhecer insólita e fascinante versão dos primeiros seres humanos no planeta
Terra. Narração "revelada", como o resto dos papiros sagrados, por uma plêiade de
"autoridades celestes", tão enigmáticas e perturbadoras como o conteúdo desses papiros.
A hipotética "paternidade celeste" fora motivo, em número infindável de vezes, de duros
confrontos entre Sinuhe e os demais "sorores" da Loja. Para investigador, a lógica
formidável dos papiros não justificava a plena aceitação deles pela Ordem e, muito
menos, seu caráter de "revelados". E foi esta circunstância que, uma vez concluído o
estudo desses informes sobre a História de IURANCHA, voltou a espicaçar a sua
curiosidade.
Sinuhe não podia, apesar de tudo, relegar as últimas experiências vividas na aldeia
da filha da raça azul.
"Seja como for" - confabulou consigo mesmo -, "talvez a resposta para essas
indagações esteja precisamente nessa desvairada e absurda busca dos arquivos secretos..."
E, um pouco mais animado, resolveu viajar para Sotillo e transmitir à amiga o que
lhe fora recomendado.
A senhora da Casa Azul e os demais conhecidos de Sinuhe já não se surpreendem
com suas súbitas aparições e desaparições. Por isso, a nova e inesperada visita do amigo e
"irmão" não foi motivo de estranheza. Alguns minutos depois de sua chegada, Glória
percebeu-lhe no olhar, no entanto, aquela luz característica e inconfundível, de quando
Sinuhe trazia algo importante. Mas, a filha da raça azul, com a prudência habitual, deixou
que ele próprio tomasse a iniciativa.
Naquela mesma noite, sentados no átrio da Casa Azul, debaixo de um céu
resplandecente de estrelas, Sinuhe rogou-lhe que prestasse atenção.
- Querida amiga - disse ele sem saber exatamente por onde começar a exposição -,
não me pergunte no momento quem me terá facilitado a informação que devo transmitirlhe.
Cumpro uma missão na qual você, precisamente, se der seu consentimento, deverá
desempenhar papel de extrema importância...
Glória, sempre com seu sorriso acolhedor, animou-o a prosseguir.
- Claro que eu lhe ficaria muito agradecido se, durante a minha narrativa, você me
pedisse esclarecimentos para as dúvidas que surjam.
E, com o espírito animado pela paz intensa que a fisionomia da amiga refletia,
apontou para a rústica encadernação azul do livro pousado em seus joelhos.
- Não lhe vou ocultar minhas próprias dúvidas quanto ao que encerram estes
documentos. Foram "revelados", segundo informações que recebi, por uns seres dos quais
você já ouviu falar... Mas comecemos pelo começo. De acordo com essa "revelação", este
universo que contemplamos - explicou Sinuhe, voltando o olhar para a imensa e cravejada
echarpe da Via Láctea - não é mais que uma ínfima e quase ridícula fração de todo um
Universo-Mestre (também chamado Universo dos Universos) e que reúne a
totalidade do espaço astronômico. Este Universo-Mestre está conformado, de um lado,
pelo que esses seres qualificam de Grande Universo (habitado ou habitável) e, por outra
parte, do Espaço Exterior, ainda inabitável, com suas zonas anulares de espaço
"impenetrado", alternando com outras áreas de espaço "penetrado" por múltiplos circuitos
energéticos
Sinuhe levantou a vista do livro que começara a ler, para observar a filha da raça
azul. Ela, com os olhos cerrados, acompanhava atenta as explicações do amigo.
- Essas zonas "penetradas" são formadas por imensos universos em formação, que
os telescópios e radiotelescópios vão aos poucos descobrindo. Neste Universo-Mestre,
como lhe dizia, existe o chamado Grande Universo que é, em realidade, o verdadeiro
objetivo desta informação. O referido Grande Universo encontra-se, por sua vez,
subdividido em departamentos administrativos. Quero acentuar-lhe este conceito:
"departamentos administrativos", para que você não caia no engano de associá-los com
divisões puramente astronômicas. Pois bem, depois do parêntese, continuo: esses
departamentos puramente administrativos estão organizados segundo o sistema decimal,
com uma exceção septenária no vértice.
"Resumindo ao extremo, dir-lhe-ei que este Grande Universo em que vivemos é
formado por um Universo Central, chamado Havona e localizado à volta da Ilha Eterna e
Estacionaria do Paraíso, e um total de sete superuniversos que giram ao redor de Havona,
seguindo uma trajetória elíptica enormemente alongada e muito plana.
Sinuhe fez nova pausa. Tentando tornar sua exposição o mais acessível e lógica
possível, saltou com essa intenção as páginas em que se falava dessa misteriosa Ilha
Eterna e Estacionaria do Paraíso.
Se você me permite - continuou, retomando o fio da leitura-, falar-lhe-ei agora
desses sete superuniversos que gravitam em torno do Universo Central de Havona. Cada
um deles acha dividido, ad-mi-nis-tra-ti-va-men-te falando, da seguinte forma:
"10 setores maiores, cada um deles com 100 setores menores. Cada setor menor,
por sua vez, com um total de 100 universos locais, criados ou por criar."
"Cada universo local consta de 100 constelações (criadas ou por criar) e, por sua
parte, cada constelação é integrada por 100 sistemas."
"Finalmente, cada sistema reúne cerca de 1 000 planetas, criados ou por criar."
"Se dispusermos em números (e sempre de acordo com esta revelação), cada um
dos sete superuniversos conta com:
"10 setores maiores;
"1 000 setores menores;
"100 000 universos locais;
"10 000 000 de constelações;
"1000 000 000 de sistemas e, aproximadamente, um bilhão de planetas habitados
ou habitáveis no futuro.
Sinuhe, consciente da extrema e deduzível dificuldade de uma primeira
assimilação destas cifras enfadonhas, preferiu conservar-se silencioso por alguns
segundos.
- Tente dominar a emoção - recomendou-lhe Sinuhe -, porque mal estamos
começando...
"Cada uma dessas divisões administrativas acha-se regida por uma capital, sede do
correspondente Quartel-General Administrativo. Esses planetas-capitais, assim como seus
satélites imediatos, não são mundos naturais. Muito pelo contrário: trata-se de esferas
"arquiteturais" artificiais, construídas segundo normas específicas preestabelecidas pelos
chamados Mestres Arquitetos do Universo. Cada planeta-capital é dotado dos meios
necessários para viver na beleza e assegurar as funções próprias de uma capital de tais
características. IURANCHA, verdadeiro nome do nosso mundo, ao contrário dessas
esferas artificiais e tal como outros milhões de planetas, foi arrancada da massa solar
gasosa e lentamente solidificada, com inumeráveis contribuições de meteoritos, tal como
determinam as leis da Natureza.
"Pois bem, de acordo com essa revelação, nosso planeta (IURANCHA) acha-se
situado no sétimo superuniverso, chamado Orvonton, cuja capital é Uversa. O núcleo
central desse sétimo superuniverso é a nossa Via Láctea.
Glória, de olhos cerrados, não chegou a ver a quase imperceptível careta de
incredulidade que aquela última frase provocara em Sinuhe. O investigador não pôde
jamais compreender como o núcleo central de todo um superuniverso", com 100 000
universos locais e dez milhões de constelações, podia ser formado por uma simples
galáxia... Porque é isso o que é a Via Láctea. Mas, fiel a seu compromisso, preferiu
silenciar suas dúvidas.
- Segundo estes documentos - continuou -, nosso setor maior chama-se Splandon;
sua capital, Umajor a Quinta. Por sua vez, nosso setor menor, chamado Ensa, tem como
planeta-capital Uminor a Terceira.
"Mas, concentrêmo-nos no capítulo que mais nos interessa: os universos locais.
Entre esses cem mil, que o sétimo superuniverso de Orvonton abarca, o nosso, Nebadon,
tem sua capital ou quartel-general em Salvington. Esses universos locais constituem as
divisões administrativas de maior importância dentro de cada superuniverso. Nebadon,
como os demais, compreende cem constelações. Nós (IURANCHA) nos encontramos na
constelação de Norladiadek. Capital, Edência... Grave bem esse nome, Edência, porque
tem muito a ver com outro assunto de vital importância: "o Jardim do Éden"...
A filha da raça azul abriu os olhos, surpresa. E murmurou o nome de Edência.
- Continuemos. Esta constelação de Norladiadek reúne cem sistemas. Não se trata
de sistemas solares, como seria o nosso, mas de todo um conjunto de sóis, com seus
correspondentes cortejos planetários. E desses cem sistemas, o nosso leva o número 24. É
conhecido fora da Terra como o sistema de Satânia. Seu planeta-capital é Jerusem.
Satânia (sempre segundo esta "Quinta Revelação") conta atualmente com 619 mundos
habitados. IURANCHA figura com o número sistêmico 606. Geralmente, não há mais
que um ou dois planetas habitados em cada sistema solar...
Sinuhe tornou a observar Glória, que já começava a inquietar-se, logicamente, com
a dificuldade de reter tantos nomes e cifras.
- Não se preocupe; uma vez que eu termine minha exposição, você poderá dispor
destes documentos e estudá-los a fundo.
"Como lhe dizia, nosso universo local, Nebadon, está situado na fronteira exterior
de Orvonton, o sétimo superuniverso. Estes sete formidáveis superuniversos
evolucionários giram em sentido levogiro ao redor do Universo Central de Havona.
Torna-se praticamente impossível representar as astronômicas proporções de tais
superuniversos, tanto quanto do Universo Central de Havona e de sua Ilha Eterna do
Paraíso."
"Cada um dos sete superuniversos é uma criação inacabada. Surgem neles e se
organizam, de forma constante, novas nebulosas. Para que você faça uma idéia das suas
dimensões, nosso superuniverso (Orvonton) tem um diâmetro de uns 500 000 anos-luz,
com um total, até este momento, de mais de dez trilhões de sóis. Aqui, de IURANCHA,
percebemos-lhe o núcleo central na forma lenticular e achatada da Via Láctea, cujo
diâmetro aproximado é de 250 000 anos-luz."
"Na realidade, nosso planeta (como já vêm intuindo todos os homens) é parte
infinitesimal nesse sublime e quase inconcebível projeto-realidade que é a Criação
Divina. Nosso sistema solar é conhecido no nosso universo local como Monmatia, e é
oriundo da antiga nebulosa de Andronover. Esta será, porém, outra questão de que
trataremos mais tarde...
"Agora, se você quiser, falaremos de um dos aspectos mais extraordinários desta
fantástica cosmogonia: do Universo Central de Havona e da Ilha Eterna e Estacionaria do
Paraíso...
- O Paraíso?
A filha da raça azul não conseguiu dissimular a emoção.
- Sim - respondeu Sinuhe em tom solene -. O Paraíso!... Embora profundas as
minhas dúvidas sobre tudo isso, como creio você já terá percebido, devo por outro lado
reconhecer que esta estranha descrição é tão bela que talvez merecesse ser correta.
"No coração desse Universo Central de Havona encontra-se a Ilha Eterna e
Estacionaria do Paraíso, meta e destino de todos os seres humanos evolucionários e
"ascendentes" de todos os superuniversos.
Glória foi compelida a fazer sua primeira pergunta:
- Então, a idéia do Paraíso não é uma utopia...
- É certo que não, segundo esta "Quinta Revelação". Não é utopia! Sua imensidão,
sua glória e beleza material ultrapassam toda compreensão. A Ilha Eterna do Paraíso é o
único ponto fixo do Universo dos Universos. Suas dimensões colossais, digo-lhe,
desafiam qualquer imaginação. Tem a forma de um disco oval e plano, com uma face
superior, o Alto Paraíso, e, outra inferior, o Baixo Paraíso. As direções definidas por seus
eixos maior e menor são Norte, Sul, Este e Oeste absolutos, sobre os quais se orientam
geograficamente todos os universos. O eixo maior é um sexto mais longo que o menor.
No momento, só posso adiantar-lhe que o Paraíso existe independentemente do Tempo e
do Espaço... É a origem de todas as energias físicas e controla a gravitação universal.
"Ao redor do Paraíso, circulando em sentido dextrogiro (como agulhas de relógio),
encontram-se os chamados "três Circuitos Trinitários", cada um incluindo sete "esferas
sagradas". As proporções dessa Ilha Eterna do Paraíso são tão formidáveis que, para
fazermos uma idéia aproximada, essas vinte e uma "esferas sagradas" nos pareceriam
minúsculos pontos."
"Esses três circuitos, com suas vinte e uma "esferas sagradas", servem de suporte
para certas atividades das Três Pessoas da Trindade: o Pai Universal, o Filho Eterno e o
Espírito Infinito. "E imediatamente encontramos, também em sentido dextrogiro, em
torno da Ilha Eterna e dos seus gigantescos vinte e um satélites sagrados, o Universo
Central e Eterno de Havona, com mil milhões de esferas "arquiteturais" ou artificiais".
São mundos habitados, de beleza e perfeição inimagináveis. É formado por sete circuitos,
todos eles dextrogiros. O interior soma mais de 35 milhões de esferas e o exterior, mais
de 245 milhões."
"Todo esse imenso Universo Central é circundado por dois circuitos inabitados,
formados por número incrível de corpos de "gravidade escuros" ou esferas colossais, que
não refletem a luz. Um desses circuitos acha-se no mesmo plano que os mil milhões de
esferas de Havona e o outro, em plano perpendicular. O circuito interior é tubular e
levogiro, seguindo uma elipse cujo eixo maior é cinco vezes o eixo menor. Tais circuitos
de esferas escuras, que não absorvem nem refletem a luz, envolvem Havona tão
completamente que chegam a ocultá-lo, até mesmo dos superuniversos mais próximos.
Por um duplo efeito giroscópico, o conjunto desses corpos de "gravidade obscuros"
garante a estabilidade do Universo Central e regula a gravitação universal. A massa de
Havona, somada à do Paraíso, vai além da dos trilhões de estrelas dos sete
superuniversos."
"Essa Ilha Eterna e Estacionaria do Paraíso, o Universo Central de Havona e os
sete superuniversos que os rodeiam - Sinuhe procurou sintetizar - conformam o que,
inicialmente, eu lhe definia como o Grande Universo. E este, conjuntamente com o
chamado Espaço Exterior, é considerado o Universo-Mestre ou Universo dos Universos.
Como você pode ver, algo que escapa à compreensão humana..."
"Esse Espaço Exterior (com seus quatro níveis elípticos ainda inabitados e que
correm ao redor do Grande Universo em sentido dextrogiro e levogiro, alternadamente)
constitui a mais admirável "recompensa" (supondo-se que possamos utilizar-nos deste
conceito) que jamais possa conceber ser humano evolucionário algum..."
- Recompensa, você diz - interrompeu a filha da raça azul -, para quem?
- De acordo com estes documentos, para aqueles humanos "ascendentes" que, ao
final, alcancem o Paraíso. Creio que você entende aonde quero chegar... Nesses quatro
níveis do Espaço Exterior, ainda inabitados, milhões de galáxias encontram-se em pleno
período de formação. Nossos astrônomos já começaram a descobrir muitas delas.
Principalmente no primeiro nível. Este, atinge uns 500 000 anos-luz para além das
fronteiras do sétimo e último dos superuniversos e dele se encontra separado por uma
zona 'de espaço "semitranqüilo", zona desprovida de pó cósmico. O fato de as galáxias
daquele nível girarem em sentido inverso ao nosso ajuda a emprestar-lhes aparência de
fuga.
"Esses quatro níveis do Espaço Exterior são, insisto, imensos. Sua largura e a das
áreas elípticas "semitranqüilas" que os separam atingem milhões de anos-luz. Os
próximos telescópios de IURANCHA, aperfeiçoados, revelarão algum dia a maravilha de
mais de 375 milhões de galáxias. Mas não é tudo. No Espaço Exterior existem uns 70 000
agregados de matéria. E um só deles é maior que qualquer dos nossos superuniversos.
Sinuhe, visivelmente esgotado por aquela arrebatada explanação, decidiu concluíla
com um pensamento que já havia germinado - e para sempre - no coração de Glória.
- E, segundo essa "Quinta Revelação", os astrônomos cósmicos de Orvonton,
nosso superuniverso, já vislumbram nesses níveis do Espaço Exterior os sinais
preparatórios de algumas manifestações de energia, mais extraordinárias ainda.
"Tudo isso, Glória querida, parece representar tão somente o início de uma superrevolução
estelar em que nós, humanos, que "viajamos" em direção à Perfeição,
ocuparemos um papel-chave. É possível que alguns mortais ressuscitados, perfeitos e
dotados de um corpo espiritual e de uma vida eterna, sejam enviados a esse Espaço
Exterior... com maravilhosa missão... em longínquo futuro.
A sutil sugestão de Sinuhe de adiar por aquela noite a exposição da insólita
cosmogonia universal, segundo os papiros da Escola da Sabedoria, não foi aceita pela
filha da raça azul. Ao contrário: aquela informação havia excitado de tal maneira a
curiosidade dela que suplicou ao amigo que prosseguisse.
E o "soror", enternecido com o interesse da companheira, resolveu aproveitar tão
boa disposição para enveredar por um dos departamentos mais eletrizantes e
revolucionários do texto que manejava: as inumeráveis e não menos fantásticas
personalidades que governam e administram esta magnífica Criação Divina.
- Mas antes - preveniu Sinuhe -, convém que você compreenda, embora eu saiba
ser ocioso este esclarecimento, que o nosso mundo (IURANCHA) é, ou melhor, era um
planeta vulgar, perdido em um universo local relativamente jovem (Nebadon data
somente de 400 mil milhões de anos), que atualmente, segundo reza a "Quinta
Revelação", reúne já 3 841 101 planetas habitados e outros muitos milhões susceptíveis
de sê-lo em futuro mais ou menos distante. Um universo local entre os 700 000 que
abrigam os sete superuniversos... Apesar do imensurável, IURANCHA, como cada um de
todos os mundos, encontra-se meticulosamente registrado nos arquivos do Universo.
Nosso planeta está designado assim: "O número 606 do sistema de Satânia, na
constelação de Norladiadek, universo local de Nebadon, setor menor de Ensa, setor maior
de Esplandon e superuniverso de Orvonton".
Perplexa, Glória pediu a Sinuhe que repetisse. Ao concluir, ele acentuou:
- Esta "guia" é o bastante para que qualquer mensageiro de Deus encontre o nosso
mundo e, nele, quem quer que seja...
A filha da raça azul retornou às recentes palavras de Sinuhe:
- Por que ao referir-se a IURANCHA, ao nosso mundo, você se corrigiu,
afirmando que "era" um planeta vulgar?
Sinuhe sabia que aquela matização não escaparia à perspicácia da interlocutora. E
tentando ordenar as idéias, prosseguiu:
Você diz bem. Talvez tenha sido um planeta comum... até há 1991 anos,
exatamente. Naquela data (21 de agosto do ano 7 antes de Cristo), "algo" ocorreu que
faria com que IURANCHA entrasse na História, pelo menos, do nosso universo local de
Nebadon: o nascimento na Palestina do Criador e Soberano deste universo local. Ser
excepcional, reconhecido durante sua encarnação humana como Jesus de Nazaré.
Sinuhe sabia da delicadeza do terreno em que estava por aventurar-se. Mas o
"adestramento" da filha da raça azul exigia, acima de tudo, que se lhe mostrasse a
Verdade. Uma Verdade, segundo a "Quinta Revelação", que fora sistematicamente
escondida por todas as Igrejas e que hoje, em pleno século XX e depois de tanto tempo de
encobrimento, só poderia ser suscitada entre seres humanos muito evoluídos. Verdade
que, entretanto, longe de minimizar ou desmerecer o plano de Deus, torna-o muito mais
sublime e atraente. Este era, entre suas dúvidas, o pensamento de Sinuhe. Antes de
enveredar de cheio em tão profundas e sagradas proposições, nosso, homem procurou
sistematizar os complexos e prolixos documentos relativos à organização administrativa
do Universo dos Universos.
- Como você já terá começado a intuir, querida Glória, esse Universo-Mestre, essa
maravilha incomensurável, é meticulosamente regido e administrado por uma plêiade de
seres, perfeitamente hierarquizados, que os humanos evolucionários e "ascendentes"
como nós não podem ver com os olhos físicos. Entre si, porém, são perfeitamente
visíveis. E em ocasiões determinadas, quando assim o dispõem essas personalidades
celestes, alguns desses seres podem tornar-se visíveis também para os mortais. Esses
milhares de milhões de raças humanas que povoaram, povoam e povoarão os mundos dos
sete superuniversos submetem-se a essa administração que, não lhe vou ocultar, exige
certa harmonização com o plano geral de Deus, embora o livre arbítrio dos homens- e dos
anjos, como veremos, seja respeitado ao máximo pela referida administração.
"E, como parece, é pelo Amor que a ordem e a unidade acham-se garantidas em
todos os universos. Todas as criaturas que amam a Deus (e quase todas aquelas que o
conhecem acabam por amá-lo) trabalham num mesmo espírito, fazendo Sua vontade.
"No topo dessa hierarquia encontra-se Deus, também denominado a Causa sem
Causa e o Absoluto que todas as criaturas mortais vêm adorando sob centenas de nomes.
Deus procura expressar sua natureza amorosa nos universos, sem impor um absolutismo
pessoal. E o consegue, diz esta revelação, graças à Trindade Absoluta, composta de Três
Pessoas coexistentes desde toda a Eternidade, atuando sempre com unanimidade e, no
entanto, hierarquizadas. Na unidade essencial do seu conjunto, perfeitamente coordenado,
que constitui a Deidade Absoluta ou Absoluto Divino, cada uma das Três Pessoas da
Trindade conserva um papel especializado. Poderíamos simplificá-lo assim: o Pai
representa a Mente; o Filho, a Palavra; e o Espírito, a Ação.
"O Pai Universal ou Causa-Centro-Primeira despojou-se voluntariamente dos seus
atributos (exceto da Volição ou Vontade absoluta e da Paternidade, igualmente absoluta)
a favor das outras Duas Pessoas da Trindade. É o Pai, por conseguinte, quem dispõe da
Vontade final e quem concede a "personalidade"... - Sinuhe calcou este conceito - aos
seres aos quais deseja outorgá-la...
Bem depressa a filha da raça azul formulou a pergunta que Sinuhe vinha
esperando:
- Que classe de "personalidade" é essa?
- Na Criação, ao que parece, há numerosas classes de seres inteligentes "não
personalizados", à espera precisamente de personalização. São também chamados seres
"pré-pessoais". Adiantar-lhe-ei, por ora, apenas uma pista: para um ser humano
"ascendente", a perda dessa "personalidade" equivale à morte cósmica ou segunda
morte...
Ficaram ambos em silêncio.
- Agora - anunciou Sinuhe com voz trêmula -, permita-me que lhe fale de outro
assunto que, talvez, lhe enevoe o coração: é da Segunda Pessoa da Trindade, conhecido
também como o Filho Eterno.
A filha da raça azul aguardou impacientemente.
- Como você se deve lembrar, faz agora dez anos, em um conhecido contato que se
deu em terras do Peru por parte de seres do Espaço, que você sempre chamou (muito
acertadamente) "os irmãos maiores", alguém perguntou a esses "guias" sobre quem era
realmente Jesus de Nazaré. Você se lembra?
Glória acenou que sim.
- E você se recorda, da resposta daqueles "guias"? - voltou a perguntar Sinuhe.
- Creio que sim. "Vocês" - dizia p contato - "não estão preparados ainda para saber
quem era Jesus."
- Exato - disse o "soror" -. Naquela ocasião e ao longo de todo este tempo, você,
outras muitas pessoas e eu próprio estivemos nos interrogando sobre esse ponto... Por que
não quiseram, aqueles seres do Espaço, revelar-nos quem era o Cristo? Pois bem; nesta
"Quinta Revelação" achamos a resposta. Uma resposta que, insisto, talvez lhe cause
estremecimento e que, como o resto da informação em meu poder, não pode ser
demonstrada. Por isso, peço a Deus de todo o coração que não lhe magoe o espírito...
- Você sabe - retrucou Glória - que a Verdade nos tornará livres. Deixe portanto a
cargo do meu coração julgar e filtrar o que você está expondo...
- Bem - disse um Sinuhe agradecido -, eis a questão: rezam estes documentos que a
Segunda Pessoa da Trindade (também chamado Filho Eterno ou Causa-Centro-Segunda)
é a expressão da Personalidade do Pai Universal. Consiste sua missão em revelar o Pai a
todos os universos. Até aqui, como você vê, tudo parece ajustar-se ao que vêm ensinando
as diferentes Igrejas, especialmente a Católica. E milhões de seres humanos identificaram
e identificam ainda esse Filho Eterno com nosso Jesus de Nazaré. Foi ele próprio quem
disse: "... Eu sou o Filho de Deus vivo".
Sinuhe fez pausa pela enésima vez. Apesar da amizade com a filha da raça azul,
era evidente que lhe era difícil abordar aquele tema. Glória, conservando o sorriso,
esperou, animando-o com outra xícara de café.
- ... Pois bem, segundo a "Quinta Revelação" essa manifestação do Pai a todas as
criaturas (missão específica, repetimos, do Filho Eterno) não é efetivada, de forma direta,
pelo Filho Eterno, mas por uma série de "intermediários"...
Glória, com o café a meio caminho dos lábios, não pestanejou.
- ... E esses intermediários são conhecidos como os Filhos Criadores ou
"Micaeles": soberanos criadores dos universos locais.
- Então - ponderou a filha da raça azul -, Jesus de Nazaré era...
- Sim, o Soberano Criador do nosso universo local de Nebadon. Um dos muitos
Cristos ou "Micaeles", filhos do único Filho Eterno, que não deveriam ser confundidos
com a Segunda Pessoa da Trindade.
- Mas Jesus falou do seu Pai Celestial... - retrucou Glória, desconcertada.
- Certo. Mas não é menos verdade que pudesse ter-se referido ao "verdadeiro" Pai:
o Filho Eterno. Jesus de Nazaré (e isso, sim, você tem que admitir comigo) não poderia
fazer com que compreendessem, aquelas pessoas simples de há mil novecentos e poucos
anos e duvido que a nós, a maravilhosa profundidade desses mistérios. Teve de falar com
palavras e conceitos elementares e acessíveis. Sua missão em IURANCHA foi, entre
outras razões, revelar aos homens o Pai Celestial. E o fez. Que pode importar-nos (tendo
em vista sua mensagem) que o Cristo-Micael fosse em realidade um dos múltiplos "netos"
do Pai Universal ou Primeira Pessoa da Trindade? Na realidade, e à margem desses
detalhes, Jesus era em verdade o Filho de Deus.
"Esse Cristo-Micael, criador de Nebadon, ofereceu inigualável exemplo a todas as
criaturas que habitam este universo local. Em sua sétima e última efusão (precisamente a
registrada em nosso planeta), esse Filho Criador adquiriu a experiência completa como
Filho do Homem, assumindo a seguir, com pleno direito, o título de Filho de Deus,
Soberano Supremo do universo local que havia criado e do qual era apenas sub-gerente,
antes de ter sofrido, fisicamente, as mesmas experiências sofridas pelos seres mortais que
Ele criara. Você sabe que muita gente considerou Jesus de Nazaré apenas um homem.
Outros, em compensação, qualificam-no única e exclusivamente como Deus. A verdade é
que ele "fundiu" as duas naturezas em uma só, em sua passagem por IURANCHA. Hoje,
Cristo-Micael é o Soberano Supremo e indiscutível de Nebadon. De um lado, por ter sido
confirmado nesta sétima efusão por Deus. Por outro, porque todas as criaturas de
Nebadon dignas de sobreviver obedecem-lhe e servem voluntariamente, por amor a Ele e
por sua maravilhosa e inspiradora forma de vencer as provas mais duras que um ser
encarnado pode sofrer...
"Como você pode ver pelo pouco que falei de Jesus de Nazaré, aqueles "guias" do
Espaço (se é que tudo isto está certo) tinham razão: "Não estamos preparados para saber
quem é em verdade o Filho do Homem..."
Inevitável torvelinho de perguntas abateu-se sobre Sinuhe. Longe de repudiar o
que acabava de ouvir, Glória "sentiu" que em tudo aquilo havia "algo" maravilhosamente
lógico, que centuplicava sua visão da Divindade. E resolveu não dar trégua ao informante.
Ela sabia que Sinuhe estava expondo apenas um mínimo do que conhecia.
- Então, segundo essa "Quinta Revelação", quem nos criou, a nós os humanos?
- Neste universo local (Nebadon), Micael ou, se você prefere, Jesus de Nazaré...
- Mas - titubeou a filha da raça azul - se você diz que há 700 000 universos locais,
existem também 700 000 Filhos Criadores ou "Micaeles".
- Só posso dizer-lhe que a Ordem dos Micaeles é imensa...
- Deus meu!... E como e quando e por que criou Nebadon?
- Antes de tentar satisfazer-lhe essa tríplice pergunta, é preciso que você conheça
primeiro a organização e as atribuições de algumas das muitas "personalidades" celestes...
Tenha calma. Devemos manter certa ordem na exposição. Agora, quero falar-lhe da
Terceira Pessoa da Trindade: o chamado Espírito Infinito ou Ator Conjunto ou Causa-
Centro-Terceira.
Glória se resignou, mais ou menos.
- O Espírito Infinito representa a passagem para a ação. É a manifestação
inteligente da vontade conjunta do Pai Universal e do Filho Eterno. Atua com prodigiosa
variedade de meios, operando com infinita delicadeza. Cada uma das Três Pessoas da
Trindade manifesta-se por um Espírito. O Pai Universal tem a sublime faculdade de
fracionar-se em "chispas" divinas (as palavras, como você vê, limitam-nos sempre) prépessoais,
que esta "Quinta Revelação" chama "Harmonizadores do Pensamento" ou
"Monitores de Mistério". Proponho-lhe um exemplo: quando uma criança toma sua
primeira decisão moral (geralmente um pouco antes dos cinco anos de idade), o Pai
Universal envia um destes harmonizadores para que habite em sua mente. Isso
proporciona ao humano a capacidade de conhecer a Deus, a necessidade de encontrá-lo e
o desejo de parecer-se com Ele. O harmonizador de pensamento atua na supra
consciência, sem que os homens, em linhas gerais, dêem-se conta de sua presença. Essas
"personalidades" misteriosas preparam os mortais para a vida eterna, ajudando-os a
formar seu caráter e provocando, em todos nós, o sentido do pecado.
"Você não deve confundir a presença do harmonizador - esclareceu Sinuhe - com á
consciência humana ordinária, que é uma reação puramente psíquica."
"Asseguro-lhe que pouquíssimas pessoas em IURANCHA chegaram a descobrir a
presença do seu harmonizador de pensamento e a entabular "diálogo" com ele."
"Em qualquer universo local o Espírito de Verdade emana do Filho Criador desse
mesmo universo. Atrai todas as criaturas para o Filho e traduz, debaixo de um aspecto
apropriado ao universo local, o Espírito de Verdade que nasce conjuntamente das duas
primeiras Pessoas da Trindade: o Pai Universal e o Filho Eterno. Foi esse Espírito de
Verdade que Jesus de Nazaré derramou sobre toda a Humanidade de IURANCHA no
Pentecostes, depois de sua desaparição no Monte das Oliveiras. Consiste essencialmente
em reconhecer a paternidade de Deus e, como conseqüência imediata, a fraternidade entre
os homens.
"Convém não confundir o Espírito de Verdade com o Espírito Santo, que já existia
antes dele. O Espírito Santo é o circuito espiritual que emana da chamada Divina Ministra
do universo local, filha do Espírito Infinito... Essa Divina Ministra é a associada
complementar e eterna do Filho Criador... É independente do Espaço, enquanto o Filho
Criador é independente do Tempo...
Sinuhe observou a filha da raça azul. No mesmo instante compreendeu que a
mente dela se havia perdido. Era lógico.
- Creio que por hoje - concluiu o "soror", dando por terminada a exposição - é mais
do que suficiente... Amanhã passaremos por alto muito dessa "burocracia" celeste para
tentar alcançar um dos capítulos diretamente vinculado a essa missão de que lhe falei: a
busca da ignorada História dos primeiros tempos de IURANCHA...
Nem aquela nem as jornadas subseqüentes à aparição de Sinuhe na Casa Azul
poderão jamais ser esquecidas pela filha da raça azul. À margem das revelações que ia
recebendo então, Glória intuía que "algo" de extraordinário estava por suceder-lhe. O que
não podia nem imaginar é que ocorresse tão abruptamente. Mas antes de encetar a
narração da incrível aventura dos dois personagens, entendo que - da mesma forma que a
filha da raça azul - o leitor compreenderá melhor o que aconteceu se receber antecipada
informação sobre determinados sucessos, como também sobre algumas das chamadas
"personalidades celestes" que integram, segundo os papiros da "Quinta Revelação", a
imensa rede dos Peregrinos Descendentes da Trindade.
Na manhã seguinte, depois de uma noite em que a inquietação mal lhe permitiu
conciliar o sono, Glória se mostrou disposta a prosseguir imediatamente com aquele
absorvente rio informativo. Sua sede de conhecimentos era tão viva e permanente como o
era em Sinuhe. O que, indubitavelmente, facilitou o trabalho do membro da Ordem da
Sabedoria.
- Como lhe adiantei ontem à noite - iniciou Sinuhe o seu discurso -, procurarei
eludir a complexa "burocracia" que administra os universos, a fim de nos concentrarmos
nas hierarquias e fatos que têm diretamente que ver com nossa missão...
"Você já terá intuído que, de acordo com esta documentação, entre as
personalidades espirituais que habitam a Ilha Eterna e Estacionaria do Paraíso e as que
residem ou visitam as "unidades administrativas" menores (os planetas) existe toda uma
formidável escala, perfeitamente organizada. Tal "rede" celeste forma a chamada corrente
dos Peregrinos Descendentes da Trindade ou Filhos de Deus. Todos eles, desde sua
criação no Tempo, foram dotados de vida eterna. Do ponto de vista potencial, são seres
perfeitos, embora precisem ir adquirindo experiência para lograr então uma perfeição
manifesta. Essa experiência (mandam as leis celestes) eles só a conseguem através da sua
passagem pelos níveis materiais inferiores. Tome como exemplo o caso de Cristo-Micael
que, em sua sétima efusão, chegou, sob a figura de Jesus de Nazaré, a assumir carne
humana...
"Para que você possa compreendê-lo mais facilmente, dir-lhe-ei que toda essa
incontável população celeste se move, conforme sua natureza, em níveis diversos de
energia e inteligência. Poderíamos agrupar esses níveis em cinco categorias fundamentais:
"1. O nível Absoluto. É inacessível à nossa inteligência. Corresponde à Deidade.
"2. O nível Espiritual. Nele encontra-se a maioria desses Peregrinos Descendentes
da Trindade.
"3. O nível Moroncial ou da alma. Esta palavra não tem equivalente na
terminologia humana. A "morôncia" designa uma vasta rede de realidades e energias
intermédias entre os níveis espiritual e material. É matéria sutil que escapa a nossos
sentidos físicos. É a substância da alma (nem espiritual nem material), da mesma forma
que uma criança não é nem seu pai nem sua mãe, ou que a água não é nem oxigênio nem
hidrogênio, mas ambos.
Poderíamos definir a substância "moroncial" da alma como o resultado da fusão
entre o espírito do harmonizador de pensamento' e o pensamento físico do ser humano,
por eles habitado: Como talvez tenhamos oportunidade de estudar depois, se a alma for
julgada digna de sobreviver à morte física, a personalidade humana, após a morte, será
ressuscitada por meio de uma estranha técnica nos chamados "mundos moronciais".
"Em determinadas circunstâncias, os seres e formas "moronciais" podem tornar-se
visíveis para os humanos. Foi o caso, segundo a "Quinta Revelação", das dezenove
aparições de Jesus aos discípulos, depois da ressurreição.
"Sucedem a esses níveis o Mental e o Físico ou Material, que é o último na escala.
A energia Física se divide, por sua vez, em três categorias:
"a. A Força Cósmica ou energias procedentes do Absoluto Incondicionado e que
não equivale à gravidade do Paraíso.
"b. A Energia Emergente, que, essa sim, equivale à gravidade circular da Ilha
Eterna, embora nada tenha a ver com a gravidade lineal ou local. Corresponde ao nível
pré eletrônico da energia-matéria.
"c. O Poder Universal ou Força do Universo, que corresponde à gravidade do
Paraíso e à gravidade lineal ou local. equivale ao nível eletrônico da energia-matéria e é
manejada nos universos pelos chamados "Diretores de Poder Universal", entre outras
personalidades. A transição entre a Energia imaterial e a material manifesta-se pela
aparição de "ultimatones", que são uma espécie de grânulos de energia extremamente
pequenos, girando a inconcebível velocidade. É de tal ordem essa velocidade, que os
"ultimatones" são dotados de poder de antigravitação. Um elétron, por exemplo, é
formado por cem "ultimatones".
"Mas continuemos com a organização administrativa do Grande Universo.
"É o Espírito Infinito, de que já lhe falei, quem cria os sete Espíritos Mestres. Cada
qual garante a supervisão central de um dos sete superuniversos. Esses sete Espíritos
Mestres representam os sete aspectos possíveis da atividade das Três Pessoas da
Trindade, atuando conjunta ou separadamente. Residem na periferia do Paraíso, de onde
exercem influência sobre os superuniversos, por intermédio dos sete Administradores
Supremos. Estes têm a respectiva sede. em cada uma das sete esferas do Espírito, que
gravitam ao redor da Ilha Eterna. Designa-se cada uma das esferas com o nome do
superuniverso correspondente.
"A política administrativa da Trindade do Paraíso é executada pela "Hierarquia dos
Dias", que compreende sete classes de personalidades supremas, criadas pela Trindade:
"1. Os Secretos de Supremacia Trindatizados;
"2. Os Eternos dos Dias;
"3. Os Anciãos dos Dias ou Chefes dos Superuniversos;
"4. Os Perfeição dos Dias;
"5. Os Recentes dos Dias;
"6. Os União dos Dias e Conselheiros dos universos locais;
"7. Os Fiéis dos Dias.
"Os primeiros (os Secretos de Supremacia) somam um total de setenta e operam
em grupos de dez, em cada um dos sete planetas do circuito interior do Pai, próximo ao
Paraíso. Em cada grupo de dez, sete dirigem os departamentos maiores e três representam
a Deidade Trina junto aos outros. Nessa combinação estará talvez a origem do sistema
decimal, freqüentemente misturado nos universos com o sistema setenário.
"No cume da "Hierarquia dos Dias" estão os "Eternos dos Dias", os "Espíritos
Mestres do Universo Central". O escalão seguinte reúne os "Anciãos dos Dias", Três
desses "Anciãos" residem na esfera capital de cada superuniverso. São seus regedores e
estão rodeados por uma multidão de seres celestes, tais como "Conselheiros Divinos",
"Sensores Universais", "Prefeitos de Sabedoria", "Mensageiros Poderosos" etc.
"A "rede", como você vê, é complicadíssima, pelo menos para as mentes dos seres
mortais, como nós. Mas, enveredemos em que nos importa: os universos locais. Sei que,
da mesma forma que ocorreu a mim, a descoberta de Jesus de Nazaré como Soberano e
Criador do universo local de Nebadon, afetou você.
"Suponho que se perguntará como funciona cada um desses universos locais...
- Sim, fale-me de Nebadon - entusiasmou-se a filha da raça azul.
- Cada um desses universos locais é regido, repito, por um soberano: um Filho
Criador da Ordem dos Micaeles, sempre
acompanhado de uma Filha Criadora da Ordem dos Espíritos-Mãe.
Sinuhe interrompeu a leitura e, com sorriso malicioso, comentou:
- Se tudo isso está certo, Glória, aí por fora, ao contrário do que se passa na Igreja
Católica, o papel da mulher, aí sim, é reconhecido e considerado...
- Não caçoe e vamos...
- Cada Filho Criador é abençoado em sua missão por um "União dos Dias", que o
ajuda como consultor. Habita em sua capital e garante certas relações superuniversais. Em
Salvington, capital de Nebadon, b "União dos Dias" tem o nome de... Emmanuel.
Ao ouvir pronunciar tal nome, a filha da raça azul estremeceu.
- Aquele cujo nome significa "Deus está conosco"?
- Sim. Emmanuel é citado por Jesus de Nazaré como seu irmão maior. Mas essas
palavras não foram bem interpretadas, logicamente. Emmanuel, segundo a "Quinta
Revelação", assumiu a soberania de Nebadon durante a encarnação de Micael em
IURANCHA.
"Cada Micael soberano, como nosso Jesus, é ajudado em seu universo local por
legiões de seres celestiais; entre eles, por exemplo, posso citar-lhe Gabriel, também
conhecido como a "Radiante Estrela da Manhã", chefe executivo de Nebadon e que
também, como você sabe, foi encarregado da Anunciação às mães de João Batista e de
Jesus de Nazaré, respectivamente.
Emocionada, a filha da raça azul repetiu o formoso qualificativo de Gabriel...
- A Radiante Estrela da Manhã!
- Dentro dessa imensa e divina multiplicidade - acentuou Sinuhe -, citar-lhe-ei,
também, entre outros, os chamados Melchizedeks, admiráveis instrutores e
administradores; os Portadores de Vida, que transportam a vida aos planetas e a modelam,
criando novas formas e novos ambientes de desenvolvimento; os Espíritos Mentais
Auxiliares, que dotam os seres com qualidades mentais e afetivas; os Mensageiros
Solitários, que levam suas mensagens a uma velocidade superior a cinco milhões de vezes
à da luz; os Serafins ou anjos guardiães, que também asseguram a desmaterialização e o
transporte interestelar dos mortais; as Brilhantes Estrelas da Tarde, os Arcanjos e um
longo etcétera que tornaria interminável esta relação...
"Continuando esta primeira ordem na escala "descendente" do Paraíso, chegamos
às constelações, regidas por três Filhos da Ordem dos Vorondadeks, assistidos, por sua
vez, por um observador da Ordem dos Dias, um Fiel dos Dias. Os Filhos Vorondadeks
trazem, ainda, o cognome de "Mui Altos" ou "Pais da Constelação". Diz esta
documentação que freqüentemente os autores da Bíblia confundem os "Mui Altos" com
Deus...
"Eis que chegamos à menor unidade administrativa, antes dos planetas
propriamente ditos: os sistemas, de que já lhe falei. Cada sistema, com um milhar de
mundos habitados ou por habitar, encontra-se sob o controle de um soberano sistêmico,
um Filho da Ordem dos Lanonandeks. Preste bem atenção neste nome (Lanonandeks)
porque tem muito que ver com a nossa missão e, em definitivo, com uma personagem de
que você ouviu falar: Lucifer.
Glória mal prestou atenção às últimas explicações do amigo. Em sua mente outras
palavras ficaram gravadas: os Mensageiros Solitários. E interrompeu Sinuhe:
- Você diz que podem viajar a cinco milhões de vezes a velocidade da luz?
Sinuhe contemporizou a exposição sobre Lúcifer e sua revolta e, voltando atrás na
documentação, leu alguns parágrafos relacionados com o ponto que estava interessando a
filha da raça azul.
- É isso aí. Dizem que esses Mensageiros Solitários podem viajar à média de uns 5
400 milhões de quilômetros por hora...
Sinuhe, ele próprio, compartilhava o mesmo sentimento de incredulidade que se
esboçava na fisionomia de Glória. Mas continuou:
- O Espaço e o Tempo (aqui está na "Quinta Revelação") são características
essenciais do universo material. O Espaço se concebe por síntese e o Tempo, por análise.
O Espaço se mede pelo Tempo e não o Tempo pelo Espaço. As criaturas materiais (nós)
dependem do Espaço e do Tempo; passou-se isso com Jesus de Nazaré, enquanto ele
esteve encarnado. Mas, enquanto Filho de Deus, era e é independente do Tempo, embora
subordinado ao Espaço. Quero dizer, por exemplo, que não pode estar presente em dois
lugares ao mesmo tempo, mas pode deslocar-se instantaneamente de um lugar para outro.
- Fantástico! - exclamou Glória.
- Caso inverso se dá, por exemplo, com o Espírito-Mãe do universo local: é
independente do Espaço; isto é, dotado de onipresença, mas está submetido ao Tempo.
Em outras palavras: não pode modificar por si mesmo a duração de um fenômeno, nem
pode viver simultaneamente em duas épocas. Deus, ao contrário, é independente por sua
vez do Espaço e do Tempo. Pois bem, entre Ele e os homens, temos essa imensa escala de
seres capazes de deslocar-se; inclusive, a velocidades superiores à da luz. Isso os torna
mais ou menos independentes, do Tempo e do Espaço.
- Por exemplo?
- Além dos Mensageiros Solitários, os Supernafins, que podem transportar os
mortais ressuscitados a duas vezes a velocidade da luz: quase 600 000 quilômetros por
segundo. E ainda assim, posso dizer-lhe, esses seres precisam de milhares de anos para
transportar-se de um extremo a outro dos universos. Entretanto, como já lembrei
anteriormente, tampouco o Tempo que você e eu conhecemos é o mesmo para esses
seres...
"Há personalidades celestes, como os Mensageiros da Gravidade e os Espíritos
Inspirados da Trindade, entre outros, que podem ir a todas as partes quase no mesmo
instante. É o caso, igualmente, dos Harmonizadores de Pensamento ou "centelha" prépessoal
do Pai Universal. Você, eu, seus filhos, os meus e todos os humanos temos nosso
próprio harmonizador de pensamento...
- Jesus de Nazaré também?...
- Claro que sim. Dir-lhe-ei algo mais. Foi precisamente o Harmonizador dele
quem, no histórico momento do batismo do Cristo-Micael, no Jordão, viajou em segundos
desde aquele ponto até uma das esferas "arquiteturais" próxima à Ilha Eterna do Paraíso,
regressando para trazer a célebre mensagem que figura no Evangelho: "Este é meu muito
amado Filho, em quem tenho minhas complacências". Um Mensageiro Solitário,
entretanto, teria precisado de várias semanas para cobrir o mesmo trajeto.
"Essas "viagens" (simplificando a linguagem) realizam-se ao longo de circuitos
preestabelecidos pelos Mestres Arquitetos do Universo. E há uma infinidade de circuitos:
espirituais, de gravitação, mentais, de energia física etc. Todos eles partem da Ilha Eterna
e Estacionaria do Paraíso e a ela retornam. E, já que falamos do Espaço e do Tempo,
posso dizer-lhe também que o Paraíso
é eterno e independente do Tempo. Ali, as decisões são concomitantes com os
atos; e os resultados, instantâneos.
"Mas não nos afastemos do objetivo final desta exposição: Lúcifer e sua rebelião
catastrófica...
A filha da raça azul não lograva compreender por que tanto interesse por aquele
odioso e repulsivo personagem, Lúcifer. Desde criança, sem saber por quê, bastava o
nome daquele que sempre foi considerado o diabo ou Satanás para que sentisse funda
repugnância. Por isso, não foi de bom grado que se dispôs a escutar.
- Pouco sabemos sobre esse personagem - esclareceu o amigo -. As Sagradas
Escrituras e outros textos mais ou menos sacros de outras religiões e culturas fazem
referência à sua existência, mas sempre de forma bem vaga...
Sinuhe compulsou seus papéis.
- Para base do que vou expor-lhe em seguida, aqui estão alguns testemunhos
bíblicos que, mais ou menos, fazem alusão a essa não menos alta "personalidade" celeste.
No Evangelho de Lucas, por exemplo (10, 17-21), está dito: "Os setenta e dois voltaram
com alegria, dizendo: 'Senhor, até os demônios se nos submetem em teu nome!' Jesus lhes
disse: 'Eu via Satanás cair do céu como um raio. Eis que vos dei o poder de pisar
serpentes, escorpiões e todo o poder do inimigo, e nada poderá vos causar dano. Contudo,
não vos alegreis porque os espíritos se vos submetem; alegrai-vos, antes, por que vossos
nomes estão inscritos nos
céus.'"
"Também Lucas (4, 1-14) fala-nos das famosas tentações de Jesus em seu retiro no
deserto. Nesse texto se repete a palavra "diabo".
"No Evangelho de João (8, 44-46), Jesus afirma: "Vós tendes por pai o diabo e
quereis satisfazer os desejos do vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio, e não
permaneceu na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele mente, fala do que lhe é
próprio, porque é mentiroso e pai da mentira. Mas, porque digo a Verdade, não credes em
mim. Quem, dentre vós, me acusa de pecado?"
"Em Mateus (25-41) também li: "Em seguida dirá também aos que estiverem à sua
esquerda: 'Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e
seus anjos'."
"Quanto ao Apocalipse de João, talvez seja o mais extenso e sugestivo. No
capítulo 12, 7, conta-nos sobre a mítica "batalha no céu": "Então houve uma batalha no
céu. Miguel e seus anjos guerrearam contra o Dragão. O Dragão batalhou, juntamente
com seus anjos, mas foi derrotado, e não se encontrou mais um lugar para eles no céu. Foi
expulso o grande Dragão, a antiga Serpente, o chamado Diabo e Satanás, sedutor de toda
a terra habitada; foi expulso para a terra, e seus anjos foram expulsos com ele. Ouvi então
uma voz forte no céu, proclamando: 'Agora atuou a salvação, o poder e a realeza do nosso
Deus, e a autoridade do seu Cristo; porque foi expulso o acusador dos nossos irmãos,
aquele que os acusava dia e noite diante do nosso Deus. Eles, porém, o venceram pelo
sangue do Cordeiro e pela palavra que testemunharam, pois desprezaram a própria vida
até a morte. Por isso alegrai-vos, ó céus, e vós que os habitais! Ai da terra e do mar,
porque o Diabo desceu para junto de vós cheio de grande furor, sabendo que lhe resta
pouco tempo. O Dragão, ao ver-se precipitado sobre a terra, perseguiu a mulher que tinha
dado à luz o filho varão. Ela, porém, recebeu as duas asas de uma grande águia para voar
ao deserto, para o lugar em que, longe da Serpente, é alimentada por um tempo, dois
tempos e metade de um tempo?"
"Mais à frente - concluiu Sinuhe -, ao falar das "duas Bestas", no capítulo 13, João
termina com "algo" que não quero que você esqueça: "... E fez com que todos, pequenos
ou grandes, ricos ou pobres, livres e escravos, recebessem um sinal na mão direita ou na
testa, de forma tal que ninguém possa comprar ou vender se não tiver sido marcado com o
nome da Besta ou com o número do seu nome. Eis a sabedoria. Aquele que tenha
inteligência, calcule o número da Besta, um número de homem. Seu número é 666".
E Sinuhe repetiu a última frase:
- Seu número é 666.
- Não sei aonde você quer chegar - comentou Glória, impaciente.
- Bem, vamos ao miolo. Essas passagens e outras semelhantes falam-nos do
"Diabo". Entretanto, os teólogos e exegetas mais modernos não parecem dar muita
importância à figura desse personagem, ao contrário de toda a tradição e, inclusive, do
papa Paulo VI. Você deve lembrar-se de que, em 29 de junho de 1 972, em célebre
discurso, ele falou da "fumaça de Satanás" e afirmou que ela "penetrara em determinados
setores da própria Igreja Católica". Referiu-se na ocasião a Satã como um "ser pessoal"...
Pois bem, segundo estes documentos, equivocam-se uma vez mais os teólogos. Mas
equivocou-se também Paulo VI...
- Isso é muito forte! - retrucou a filha da raça azul.
- Eu sei. Na realidade, toda essa "Quinta Revelação", supondo-se que esteja certa,
é dinamite pura.
- E por que é que você garante que nem mesmo o Papa tinha razão?
- Porque, tanto quanto a tradição e a imensa maioria dos crentes, confunde Lúcifer
com Satã e com Caligastia e Belzebu. Afinal de contas, foram todos "etiquetados" com a
mesma e comum definição: "o diabo". Mas, como você verá, trata-se de personalidades
celestes diferentes.
- E qual é a sua versão?
- Minha versão não - corrigiu Sinuhe -. Versão da "Quinta Revelação"... isso sim.
De acordo com ela, cada sistema (não se esqueça de que um superuniverso abriga por
volta de mil milhões de sistemas) é regido por um soberano sistêmico: um filho da
chamada Ordem dos Lanonandeks. O nosso, Satânia, foi governado por uma dessas
brilhantes criaturas: Lúcifer. Era, como os demais seres dos quais lhe falei, um "peregrino
descendente" da eternidade. Todo um anjo de luz que, há cerca de 200 000 anos, fez
estalar uma revolta em nosso sistema, arrastando um total de 37 dos 619 planetas
habitados.
"Satã, ao contrário, era seu lugar-tenente. Tratava-se também de uma criatura
perfeita, "peregrino descendente" e, como Lúcifer, pertencente à Ordem dos Lanonandeks
Primários. Coube a Satã um papel de destaque, já que seu "chefe" encarregou-o de
representá-lo e de manter viva a rebelião em diferentes mundos, entre eles IURANCHA.
"Quanto a Belzebu ou Belzebub, era outra criatura, chefe dos chamados
"medianos" rebeldes, que também se aliaram às forças de um quarto e não menos
importante personagem: Caligastia, o príncipe planetário de IURANCHA naquela época.
Como já lhe disse, os planetas são a última unidade na organização administrativa dos
universos. Cada mundo dispõe de um príncipe planetário que pode alcançar o grau de
soberano. Talvez você se lembre da alusão que Jesus de Nazaré fez, durante sua vida em
IURANCHA, ao "príncipe deste mundo"... Referia-se precisamente a Caligastia que,
depois da rebelião, foi deposto.
- Quem eram esses... "medianos"?
- Quase nada posso falar-lhe deles. Sabemos que não se tratava de criaturas
"descendentes do Paraíso" e que tiveram muito que ver com o Estado-Maior de
Caligastia. Este é, precisamente, um dos objetivos da missão que nos deram: averiguar
quem são os "medianos" e, sobretudo, onde se encontram os arquivos secretos de
IURANCHA...
Sem querer, Sinuhe acabava de revelar à filha da raça azul a primeira parte da
missão.
- Arquivos secretos? Sobre quê?
- Segundo a "Quinta Revelação", repito, a cerca de 200 000 anos terrestres
explodiu uma revolta em nosso sistema: a terceira em toda a história do universo local de
Nebadon. E, dos 619 mundos habitados de Satânia, 37 uniram-se a Lúcifer. Entre eles, o
nosso: IURANCHA.
"Quando um soberano sistêmico atua normalmente, as personalidades (invisíveis
para os olhos dos humanos) que integram sua hierarquia administrativa podem
comunicar-se livremente com todos os planetas do sistema, assim como com os níveis
superiores. Parece porém que, ao iniciar-se uma rebelião, as personalidades celestes
superiores atuam vertiginosamente, cortando determinados circuitos de comunicação com
esses planetas, de forma que a su-blevação não possa propagar-se. Assim, todos os
planetas ficam submetidos a uma "quarentena". Foi o que aconteceu no sistema em que
vivemos e com esses 37 mundos "rebeldes". Pois bem, em conseqüência do terrível
isolamento a que IURANCHA está sujeita, boa parte das forças rebeldes (os "medianos"
entre outros) continua dominando a Terra e levando ao caos, à violência e ao erro
constante as diferentes humanidades que vão desfilando pelo globo. Temos informações
de que foram esses seres enigmáticos (os "medianos" rebeldes) que se apoderaram do
controle dos arquivos secretos do planeta Terra...
- Insisto - interrompeu Glória, preocupada com sua pergunta anterior -, que contêm
esses arquivos?
- A verdadeira história da rebelião de Lúcifer e as tremendas conseqüências que
dela redundaram, especialmente para os humanos de IURANCHA. As forças do Mal não
se dispõem a abrir aos mortais "ascendentes" (a nós) esses arquivos secretos. Isso talvez
significasse uma mudança na atitude dos seres humanos, o que não os interessa...
Glória aproveitou a nova pausa do amigo:
- Sempre nos ensinaram - afirmou com alguma reticência - que Lúcifer se rebelou
contra Deus porque pretendeu ser como
Ele. Estou enganada?
Sinuhe esperou que a filha da raça azul descobrisse por si mesma o absurdo de
semelhante hipótese.
- ... Embora, pensando friamente - prosseguiu Glória -, pareça muito esquisito que
uma criatura perfeita, criada diretamente por Deus e por conseguinte inteligente, quisesse
ser Deus...
- Você o disse: extraordinariamente inteligente. Pergunto-lhe eu: você sabe de
algum ser humano realmente inteligente (talvez tivesse de escrever com letras
maiúsculas) que seja soberbo? Os seres INTELIGENTES de verdade são, quase sempre,
os mais humildes...
- Você insinua - cortou Glória - que houve "outras razões" que teriam provocado a
revolta de Lúcifer?
- Suspeitamos que sim, da mesma forma que não acreditamos que Adão e Eva
tenham sido nossos primeiros pais; também suspeitamos que a serpente e a maçã sejam só
um mito ou símbolo francamente infelizes...
- Um momento. Você conhece a verdadeira história da rebelião de Lúcifer?
Mas antes que Sinuhe respondesse, a filha da raça azul o abordou com outra
pergunta sutil:
- Por que você diz "suspeitamos" e "acreditamos"? Sinuhe, sorridente, decidiu-se a
abrir-lhe definitivamente o coração.
Boa parte daquele segundo estágio em Sotillo foi dedicada a pôr Glória a par de
alguns antecedentes, conhecidos por Sinuhe, sobre "Ra", sua mensagem e a "necessidade
de levar a termo determinada missão". No momento, não considerou oportuno falar-lhe
sobre a vinculação com a Escola da Sabedoria, tampouco das experiências que ele viveu
no bosquezinho próximo daquela Casa Azul em que dialogavam.
Foi sobretudo a mensagem de "Ra" que causou impacto especial na filha da raça
azul.
- ... Por tudo isso - declarou Sinuhe, ao passo que incitava a amiga a que se
definisse -, fomos indicados para tentar localizar esses arquivos secretos, em poder dos
"medianos" rebeldes. Se você aceitar (e devo sabê-lo o quanto antes), no momento
oportuno ampliarei alguns detalhes, imprescindíveis para encetarmos a grande aventura...
Glória hesitou.
- Há muitas coisas que não consigo entender bem...
- Por exemplo? - animou-a o amigo.
- Se vocês, os depositários dessa "Quinta Revelação" ou quem quer que seja
conhecem a verdadeira história da rebelião de Lúcifer, por que- não a oferecem ao
mundo? Evitar-se-ia, penso, engajar-se nessa missão incompreensível.
- Você tem razão, em parte. Não dispomos senão de uma fração do que supomos
ser a autêntica história da revolta. Como também só conhecemos uns poucos sucessos
relacionados com as conseqüências da rebelião em IURANCHA; assim como ignoramos,
quase completamente, em que consistiu, na verdade, o erro de Adão e Eva (supondo-se
que tal erro tenha existido), que foram os nossos mal chamados "primeiros pais", e
quando se instalaram no Jardim do Éden...
"Tudo isso e muito mais acha-se depositado nesses arquivos. Fôssemos capazes de
chegar até eles e desvendá-los, a Humanidade inteira conheceria a Verdade, o que, não
duvide, traria sensíveis benefícios a todos os mortais "ascendentes" ao Paraíso. O homem,
salvo exceções, acha-se perdido e confuso. Não sabe por que nasceu nem qual o seu
destino final. Não entende a dor e se rebela contra Deus e contra si próprio, sem perceber
que tudo isso não é por casualidade. O Conhecimento, enfim, sempre serviu para serenar
o espírito dos humanos e acelerar-lhe o caminho rumo à suprema Perfeição.
- Você me falou dos muitos seres que compõem o fluxo de "Peregrinos
Descendentes da Eternidade" ou da "Ilha Eterna do Paraíso". Compreendi. Mas que
somos nós, os mortais?
- Poderíamos descrevê-lo como "o contrário": um refluxo de "Peregrinos
Ascendentes" do Tempo. Cada humano é criado por Deus...
A filha da raça azul interrompeu, evidentemente confusa.
- Deus? Mas por qual dessas pessoas que formam a Trindade?
- Em realidade, e respondendo concretamente, por seus "intermediários": pelos
Filhos Criadores de universos locais. Deus, em geral, é um símbolo verbal que se usa para
designar todas as personalidades da Deidade. Nestes escritos, o termo Deus é utilizado
para os seguintes significados. Ouça atentamente, e não se alarme:
"1. Deus o Pai: Criador, Controlador e Sustentáculo. É o Pai Universal e a Primeira
Pessoa da Deidade.
"2. Deus o Filho: Criador Coordenado, Controlador do Espírito e Administrador
Espiritual. É o Filho Eterno e a Segunda Pessoa da Deidade, de que também já lhe falei.
"3. Deus o Espírito: Ator Conjunto, Integrador Universal e Dispensador de
Pensamento. É o Espírito Infinito e a Terceira Pessoa da Deidade.
"4. Deus o Supremo: é o Deus do Tempo e do Espaço, expandindo-se ou
evolucionando. Deidade Pessoal concebendo a identidade entre criaturas e Criador por
associação e sua realização por experiência no Espaço-Tempo. O Ser Supremo executa
pessoalmente a experiência de realizar a unidade da Deidade, como Deus evolutivo e
"experiencial" das criaturas evolucionárias do Tempo e do Espaço.
"5. 'Deus o Sétuplo: Personalidade da Deidade operando em todos os sentidos, de
maneira efetiva no Tempo e no Espaço. São as Deidades Pessoais do Paraíso e seus
associados criadores, operando dentro e fora das fronteiras do Universo Central.
Personaliza seu poder como Ser Supremo no primeiro nível da criatura, unificando no
Tempo e no Espaço a revelação da Deidade. Esse nível é o Grande Universo, a esfera de
onde as personalidades do Paraíso descendem no Espaço-Tempo, em recíproca associação
com as criaturas evolucionárias que ascendem no Espaço-Tempo.
"6. Deus o Último: exteriorização do Deus do Supertempo e do Espaço
transcendido. Segundo nível "experiencial" de manifestação da Deidade unificadora.
Deus o Ultimo inclina-se a conceber limpidamente a síntese dos valores discordantessuperpessoais
que transcendem o Espaço-Tempo e exteriorizam a experiência. Coordenaos
nos níveis criadores finais da realidade divina.
"7. Deus o Absoluto: o Deus experimentador dos valores superpessoais
transcendidos e dos significados da Divindade agora existencial como Deidade absoluta.
É o terceiro nível de expansão e de expressão da Deidade unificadora. Nesse nível
supercriador, a Deidade esgotou o potencial personalizável, completou a Divindade e vê
estender-se a atitude de revelar-se a si mesma em níveis sucessivos e progressivos de
personalizações diferentes. Neste ponto, a Deidade reencontra o Absoluto
Incondicionado, contraria-se a si mesma e realiza a experiência de identificar-se consigo
mesma...
Glória fez um movimento negativo com a cabeça.
- Eu sei - argumentou Sinuhe -, tudo isso é pouco menos que indecifrável... para os
humanos. Posso esclarecer-lhe que na "Quinta Revelação" há centenas de páginas em que
se tenta tornar compreensível a idéia múltipla da Divindade. Talvez, para que nos
entendamos, pudéssemos resumir essa sétupla versão de Deus dizendo que a existência
divina não poderá jamais ser provada nem compreendida através de experiências
científicas ou de deduções lógicas da razão pura. Ninguém pode conceber Deus
claramente, mais que fora dos reinos da experiência humana. No entanto, como você
sabe, o verdadeiro conceito da realidade de Deus é razoável para a lógica, plausível para a
filosofia, essencial para a religião e indispensável para toda esperança de sobrevivência
pessoal.
"Em teoria, pode-se pensar em Deus como Criador e, efetivamente, é o Criador
Pessoal do Paraíso e do Universo Central de Havona. Entretanto, os universos do Tempo
e do Espaço foram, todos eles, criados e organizados pelo Corpo Paradisíaco dos Filhos
Criadores. E entre ELES está nosso Micael: Jesus de Nazaré.
"O Pai Universal não é o Criador do Universo local de Nebadon. Este, você
também o sabe, é criação de seu Filho Micael. Entretanto, mesmo que o Pai Universal não
crie pessoalmente esses universos evolucionários, Ele os controla em muitas de suas
relações universais e em algumas de suas manifestações de energias físicas, mentais e
espirituais. Lembre-se do caso dos Harmonizadores de Pensamento ou "centelha" prépessoal
do Pai Universal em cada um de nós...
"Em resumo, Deus o Pai é o Criador Pessoal do Universo do Paraíso e, associado
com o Filho Eterno (Segunda Pessoa da Trindade), o Criador de todos os Criadores
pessoais de universos.
"Como controlador físico no Universo-Mestre material, a Causa-Centro-Primeira
funciona nos arquétipos da Ilha Eterna do Paraíso. Em metade desse centro de gravidade
absoluto, o eterno Deus exerce um supercontrole cósmico do plano físico, tanto no
Universo Central quanto de um extremo a outro do Universo dos Universos. Como
Mente, Deus obra pela Deidade do Espírito Infinito. Como Espírito, Deus se manifesta na
pessoa do Filho Eterno e na dos divinos "filhos" do Filho Eterno. Essas relações mútuas
da Causa-Centro-Primeira (Deus) com as Pessoas e os Absolutos coordenados do Paraíso
não excluem, de forma alguma, a ação pessoal direta do Pai Universal em toda a Criação
e em todos os seus níveis. Pela presença de seu Espírito fragmentado, o Pai Criador
mantém contato imediato com seus filhos-criaturas e seus universos criados.
"Todos nós mortais, finalmente, somos criados pelo correspondente Soberano do
universo local e, ao contrário do que acontece com os seres "descendentes", nós,
entretanto, não somos criados perfeitos, mas somos dotados do potencial de perfeição e de
vida eterna. Nessa associação de Deus o Sétuplo, os Filhos Criadores de universos locais
trazem o mecanismo pelos quais nós mortais chegamos a ser imortais e o finito pode ser
abarcado pelo infinito.
"Se, depois de sua vida física em seu planeta natal, o humano "ascendente" for
julgado digno de sobreviver, entra no caminho da ascensão do Paraíso. São ressuscitados
dentre os mortos, seja individualmente (ao "terceiro dia" depois de sua morte), seja
coletivamente, ao fim de cada milênio.
A filha da raça azul ia de surpresa em surpresa. Emocionada, exclamou:
- Fale-me dessa passagem!... O que acontece depois da morte?
Sinuhe observou-a com semblante grave.
- Você sabe muito bem o que acontece quando se passa para "o outro lado" -
censurou-a.
- Sim, mas não a sua versão... Perdão, a versão dessa "Quinta Revelação".
- No momento da morte, o ser humano dorme no nada. Seu harmonizador de
pensamento e seu anjo da guarda o abandonam. Em outras palavras: durante certo tempo
(aceitando o difícil conceito de "tempo sem tempo" dessa nova experiência), o humano
deixa de ter personalidade. Se destinado a sobreviver, será ressuscitado pelas
"personalidades celestes" responsáveis por tal incumbência, nesse que chamam o Mundo
dos Moronciais ou das Casas. Nesse caso recebe um corpo "moroncial" e seu
harmonizador volta a habitar-lhe a mente, ao mesmo tempo que seu anjo da guarda lhe
restitui o psiquismo e a memória do passado. Sua personalidade é inteiramente
reconstruída e, a partir daí, as entidades qualificadas da hierarquia celeste vigiam seu
progresso espiritual.
"O corpo "moroncial" é repetidas vezes substituído por outros corpos
"moronciais", cada vez, porém, mais sutis e espiritualizados. Essas mudanças sucessivas
foram reveladas em IURANCHA por grandes instrutores celestes, mas os humanos se
enganaram interpretando-as como reencarnações sucessivas...
- Então, a reencarnação não existe?
- Segundo a "Quinta Revelação", não como nós os humanos a entendemos. Os
mortais (se diz aqui) não tornam a nascer nem no seu planeta natal nem com um corpo
físico. As reencarnações são, na realidade, um fenômeno "moroncial". Depois dessa
experiência "moroncial" ou experiência da alma, começa a prolongada experiência
espiritual. Corpo sutil, alma e espírito se fundem progressivamente e o "peregrino
ascendente" no Tempo é lançado em uma vertiginosa e promissora vereda a um destino
maravilhoso: a Ilha Eterna do Paraíso. E essa "vereda", reza a "Quinta Revelação",
constitui uma resplandecente sucessão de experiências, de todo tipo, que vão "abrindo" ao
filho de Deus caminhos de revelações cada vez mais extraordinárias... Impossível
descrever com palavras o que realmente nos aguarda "do outro lado".
Glória, os olhos úmidos de emoção e alegria, nem sequer respirava.
- Todos esses "peregrinos ascendentes" - continuou Sinuhe -, vão sendo
transportados de mundo em mundo pelos chamados serafins transportadores, dentro de
uma "técnica" prodigiosa. E o número de mundos a visitar antes de alcançar o Universo
Central de Havona é extraordinário. Digo-lhe mais: nesse mesmo Universo de Havona,
como já lhe expliquei, é preciso que se conheçam as mil milhões de esferas antes de se
estar qualificado para a longa viagem interestelar que leva à Ilha Eterna. Mas não se
assuste. Os conceitos humanos de tempo não têm relação alguma com os milhões de anos
dessa "carreira" para o Paraíso, e é curta a sua duração se a relacionamos com o conceito
de Eternidade.
"Antes de nós, massas incontáveis de mortais já fizeram o percurso. Essa "carreira"
tem um único fim: transformar os seres humanos evolucionários em seres "aperfeiçoados"
ou "finalistas", semelhantes, sob muitos conceitos, aos seres "perfeitos" por natureza que
habitam normalmente as esferas paradisíacas, mas que não desfrutam da experiência do
Espaço-Tempo.
- De acordo com isso - observou Glória -, podemos chegar a ser mais afortunados
que esses seres criados "perfeitos" desde sua origem...
Sinuhe encolheu os ombros.
- Só posso dizer-lhe que, se tudo que está aqui for verdade, a promessa de Jesus de
Nazaré de toda uma "recompensa e um lugar na casa de meu Pai" parece acanhada...
- Que são os "finalistas"? - atacou Glória com seu entusiasmo natural.
- A totalidade desses mortais afortunados que conseguem alcançar a Ilha Eterna
agrupa-se no que chamam o Corpo da Finalidade. O destino deles, entretanto, não foi
desvendado ainda. A "Quinta Revelação" permite entrever a fantástica possibilidade de
que todos esses "peregrinos ascendentes", juntamente com miríades de anjos, sejam os
futuros povoadores desse Espaço Exterior, ainda inabitado, de que já lhe falei.
E Sinuhe formulou um pensamento em voz alta:
- É fantástico!... Muito mais do que jamais pôde ensinar-nos Igreja ou doutrina
alguma... Talvez agora, por tudo isso, meu coração está buscando Deus com mais força...
Voltando os olhos para Glória, formulou-lhe a pergunta decisiva:
- Depois de tudo o que você escutou, aceitaria sair comigo em demanda desses
arquivos secretos e transmitir seu indubitável "tesouro" de conhecimentos?
Iluminou-se o rosto de Glória ao ouvir aquela proposta solene. Sinuhe sabia que a
companheira, desde o primeiro momento e no recôndito da alma, dissera "sim" à missão.
Mas, fiel à recomendação de seu Kheri Heb, preferia ir devagar, meticulosamente.
- Você sabe - recriminou a amiga - que o acompanharia ao fim do mundo. E com
mais razão quando "alguém", não sei exatamente quem, mas pouco importa, nos oferece a
oportunidade única de nos enfrentarmos com nosso próprio passado e, o que é mais
importante, com nossa verdadeira história e identidade como humanos. Não sei o que
tenho a fazer nem como, mas "sim"... Como resposta, Sinuhe levantou-se e, aproximandose
de Glória, beijou-lhe as duas faces.
- Obrigado.
- Mas, antes que você me fale sobre os preparativos para essa missão - acrescentou
a senhora da Casa Azul, cuja memória era bem mais implacável que a de Sinuhe -, tire-me
uma dúvida: que é a "raça azul"?
Nosso homem voltou aos documentos e já se dispunha a dilucidar a incógnita
quando, subitamente, à porta do salão apareceu a corpulenta figura do alcaide de Sotillo.
Sinuhe silenciou. Glória, percebendo que seu informante não desejava falar
daqueles assuntos na presença de José Maria, desviou com tato a conversação. O
investigador, no fundo, agradeceu aquela interrupção. Era necessário que ambos, a filha
da raça azul e ele próprio, refletissem sobre o que trataram aqueles dias. Sinuhe sentia
cada vez mais próximo o momento de empreender a missão. Estava consciente, também,
de que boa parte do êxito dela dependia não só dos ensinamentos que Glória recebesse,
como - muito especialmente - do entusiasmo nascido do interior de cada um deles. Isso, é
óbvio, requeria tempo. Era duro, ao menos para Sinuhe, não saber com precisão por que
fora eleito para a missão e, naturalmente, como levá-la a cabo. Mas Glória jamais soube
de tais dúvidas.
Discretamente, Sinuhe interrogou o prefeito a respeito do velho relógio da Câmara
Municipal. Ainda lhe palpitava no ânimo o desejo de inspecionar a maquinaria e a
torrezinha metálica, em busca sabe Deus de que nova "pista". Mas José Maria só
contribuiu para esfriar o entusiasmo do investigador. Como é habitual nesses pequenos
lugarejos rurais, "as coisas de palácio vão muito mais devagar..." Assim, durante o tempo
todo transcorrido desde a última visita de Sinuhe a Sotillo, a fechadura da porta de acesso
à Câmara continuava emperrada, bloqueando a entrada ao edifício.
As palavras do prefeito, prometendo solução imediata, não serviram de consolo a
Sinuhe. Ele "sentia" que devia entrar no velho casarão. Mas como?
Nessa mesma segunda-feira, 16 de julho, a incógnita se aclarou.
Absorvido pelos preparativos da missão - o que não era de estranhar dada sua
habitual distração -, Sinuhe não se dera conta de que no dia seguinte, 17 de julho, Glória
celebraria seu 49.° aniversário. O primeiro, "casualmente", sem o marido. A
circunstância, muito especial, atraiu seus amigos mais íntimos para Sotillo, a fim de fazerlhe
companhia.
Assim pois, ao longo daquela segunda-feira, a Casa Azul foi paulatina e
alegremente agitada por um tráfego contínuo de pessoas e bagagens. E a filha da raça azul
e Sinuhe, de comum acordo, decidiram adiar suas conversações secretas.
Ao entardecer, com a desculpa de uma caminhada rotineira pelos arredores, o
membro da Escola da Sabedoria deu um jeito de entrar sozinho no bosquezinho que cerca
a Câmara Municipal, onde vivera tão estranha experiência.
Nessa segunda visita, Sinuhe não percebeu nada de anormal. As copas das árvores,
inundadas de Sol, eram testemunhas imóveis do jogo incansável de dezenas de andorinhas
e gaivões, cujos trinados afogavam por vezes o zumbido das libélulas e o sibilo de
cigarras escondidas.
O objetivo dele era alcançar o claro do bosquezinho e verificar o que acontecera
aos seis misteriosos sinais gravados nos troncos por aquela criatura monstruosa.
Apesar de ter assistido à cena, de ter tocado o emblema que decora a "bandeira de
Micael de Nebadon" e de ter ainda recolhido um punhado da não menos perturbadora
areia do solo da clareira, continuava a rebelar-se o espírito analítico e racionalista de
Sinuhe.
Mas esfumou-se logo a incerteza. Ao ganhar a orla do claro, o sangue voltou a
ferver-lhe nas entranhas. Ali estavam as seis marcas! Negras, intactas, testemunhas frias e
palpáveis de todo o acontecido.
Trêmulo de emoção, Sinuhe caminhou até o centro geométrico da clareira. Uma
vez ali, levantou os olhos em direção ao círculo azul que se recortava, quase como um
milagre, entre os altos choupos.
Sem saber por quê, sentiu-se pleno de uma paz intensa. Vieram-lhe ao cérebro as
palavras cada vez mais familiares que, sem dúvida, havia-lhe transmitido aquele ser:
"Lembre-se do meu sinal... o de Micael".
Sinuhe baixou a vista, fixando-a em cada um daqueles círculos concêntricos. E a
súbita paz que o inundava foi dando lugar a uma mistura de nostalgia e serena melancolia.
Se tudo aquilo não era sonho, encontrava-se diante do símbolo do Criador: os três círculos
que, segundo a "Quinta Revelação", constituem a bandeira do Filho Criador do universo
local de Nebadon, Jesus de Nazaré. Uma bandeira branca com três círculos azuis e
concêntricos ao centro. Bandeira que Micael jamais utilizou durante sua vida terrena em
IURANCHA. "Bandeira", meditou Sinuhe, "que resume todo o mistério e a grandiosidade
da Trindade."
E ele, inditoso e contraditório mortal, havia sido eleito para tão alta missão?
Sinuhe não podia entendê-lo, embora reconhecesse que havia "algo" sumamente
familiar ou conhecido em tudo aquilo que o impelia a prosseguir, mesmo contra a
vontade.Antes que umas lágrimas ameaçadoras lhe brotassem dos olhos, recolheu um par
de punhados dos grãos luminosos, enchendo um pequeno frasco que - contrariando suas
próprias dúvidas - levara consigo ao bosque.
Minutos mais tarde o investigador - presa de crescente e no momento inexplicável
nostalgia - afastava-se do lugar, caminhando a esmo em direção às geladas neves da
Sierra Cebollera.
Sinuhe permaneceu na solidão da serra até bem entrada a noite. E, embora aquelas
fugas a paragens tão longínquas quanto sombrias costumassem ser freqüentes em suas
impenitentes corre-rias em demanda do mistério, naquele instante - caído diante da
imensa faixa da galáxia - o atormentado repórter pediu, com mais força que nunca, algum
tipo de sinal que lhe aliviasse as dúvidas...
Mas esse "sinal" não chegaria, pelo menos não como nosso homem supunha. Um
tanto decepcionado, abandonou aquelas trevas, imerso em outras muito mais densas: as do
próprio coração.
Glória começava a impacientar-se com a tardança do amigo. Assim, respiraram
todos quando ele apareceu e assentou-se, como era costume, no estrado do salão, com as
costas apoiadas na fria e silenciosa lareira da Casa Azul.
Sinuhe dedicou alguns minutos a observar os que ali estavam reunidos. Todos, em
maior ou menor grau, compartiam das in-quietudes da filha da raça azul e a conversação,
como era de esperar, deslocou-se para assuntos esotéricos agora, paranormais depois,
revestidos sempre de profunda inquietação espiritual. Em meio ao animado colóquio, o
inexplicável fenômeno das 66 badaladas não foi esquecido. Alguém interrogou-a, mas
Glória, maliciosamente, se esquivou, deixando a possível resposta a cargo de Sinuhe.
O investigador, sem alterar-se, mal desvelou alguns detalhes, evitando,
naturalmente, qualquer indício ou notícia que se relacionasse com a missão encomendada
pela Ordem. A atitude hermética do jornalista - a que já estavam sobejamente
acostumados todos os que o conheciam -, longe de encerrar o caso, aguçou mais ainda a
curiosidade de todos. Vários dos presentes à tertúlia fecharam o cerco em torno de
Sinuhe, acossando-o com perguntas. Glória assistia, divertida, a essa chuva de veladas
perguntas e sugestões. Mas o investigador, curtido em mil escaramuças como aquela e até
mesmo piores, não era fácil de se conquistar e muito menos de se enganar. Assim pois,
como também lhe era habitual, conduziu o diálogo para um terreno aparentemente inócuo
que, entretanto, para grande surpresa dele, ia trazer-lhe o "sinal" que tanto implorara na
serra.
Sinuhe explicou que, antes de chegar a qualquer tipo de conclusão sobre as
misteriosas badaladas, seria mister fazer minuciosa revisão da maquinaria do relógio. E
lamentou que tal exame não tivesse podido ainda ser levado a termo, graças ao estúpido
acidente da chave, que bloqueou a fechadura.
- Enquanto não houver possibilidade de passar em revista aquela cabina - mentiu -,
tudo serão especulações...
Nesse instante, Joana, velha amiga de Glória e que com ela compartilhara dos
primeiros anos de exílio voluntário da família em Sotillo, insinuou a possibilidade de
subir à torre da Câmara "por outro caminho".
Desta vez foi Sinuhe, ao sentir que lhe disparavam todos os seus "alarmas"
mentais, quem fez uma única e rotunda pergunta:
- Como?!
Joana lembrou-lhe que, durante a longa temporada que passara na aldeia, morara
precisamente na velha e desabitada vivenda do secretário da Câmara Municipal.
Justamente na parte baixa da chamada Casa Consistorial.
- Certo! - exclamou Sinuhe, começando a compreender. - Então, há alguma porta
de comunicação com a parte alta do casarão?
Joana respondeu que sim.
Sinuhe, levantando-se, deixou-se levar por uma de suas típicas intuições:
- Então, que estamos esperando?
- Agora? - clamaram perplexos alguns dos convivas - É quase meia-noite...
- Além do mais - tornou Joana -, essa porta está selada há vários anos e "taipada"
por um pesado armário que eu mesmo ajudei a arrastar até ali...
- Mas - insistiu Sinuhe, sem nem sombra de desfalecimento - não seria possível
deslocar o móvel e abrir a porta?
- Suponho que sim - apressou-se Joana, já começando a entusiasmar-se com .a
excitante perspectiva.
Vários dos amigos, especialmente as mulheres - Ulla à frente -, assumiram a idéia
esportivamente e aderiram a Sinuhe.
- Um momento - reagiram os outros -; o velho casarão está às escuras... Pode ser
perigoso... Não sabemos o que pode haver no ático... Não seria mais prudente esperar até
amanhã?
Um dos "dissidentes", num último esforço para dissuadir Sinuhe e as mulheres que
se dispunham a sair para a Câmara, evocou as 66 badaladas, enfatizando a hipótese de que
talvez "aquilo fosse coisa de fantasmas ou de almas penadas..."
Algumas das amigas de Glória empalideceram. Mas Joana freou aquele medo
incipiente, com uma de suas habituais tiradas:
- Se é assim, levaremos "pedrinhas"!...
Ignorando os conselhos sensatos da maioria, Sinuhe mais quatro ou cinco
mulheres, munidos de velas e uma lanterna, com passos decididos atravessaram a praça
da Lastra.
A filha da raça azul ficou em casa, fiel a um dos seus costumeiros pressentimentos.
Faltavam poucos minutos para seu 49.° aniversário e ela "sentia" que, ao final daquele seu
sexto ciclo humano, iria deparar-se com grandes surpresas...
Sinuhe se deteve por alguns segundos. Do centro da praça solitária da Lastra
levantou o olhar para as estrelas. A lua, embora já perdida sua branca redondeza,
arrancava ainda fulgores do bronze do sino e da acinzentada silharia da torre da Câmara
Municipal. O silêncio era apenas e levemente perturbado pelos nervosos e fugazes
cochichos das mulheres e pelo doce manar da fonte de Diana Caçadora. A aldeia dormia.
Apenas as luzes da Casa Azul rompiam a escura geometria da noite.
Joana, que naqueles dias voltara a ocupar o antigo e temporário lar, empurrou a
porta de folha dupla. Cortesmente, Sinuhe deu passagem às acompanhantes. Ao verificar
porém a proximidade dessa porta com a que estava bloqueada, reprochou-se pelo que ele
achou ser uma grave distração. Como não se havia dado conta de que a antiga vivenda do
secretário podia também conduzir à cabina da maquinaria do relógio?
Sem perda de tempo, Joana mostrou aos amigos a parede por onde poderiam
penetrar no casarão da Câmara. Um pesado armário de pouco mais de metro e meio, com
efeito, escondia dois terços da vetusta e carcomida porta. Sinuhe depois de um rápido
exame dos pés do armário, curtos e gastos, passou a arrastá-lo.
Em segundos, a porta estava liberada. Tal como anunciara Joana, três tiras de fitas
adesivas selavam aquele acesso. Na mente de Sinuhe, uma dedução lógica: "Se alguém,
na famosa madrugada das 66 badaladas, tivesse entrado na Câmara por aquela porta, além
de ver-se na contingência de deslocar o incômodo armário, teria tido que romper ou
descolar aquelas bandas adesivas..." Mas as fitas estavam intactas e perfeitamente coladas
ao fio do umbral e da madeira da porta, respectivamente.
O investigador pegou o lenço e, debaixo dos olhares expectantes das mulheres,
friccionou-o suavemente na superfície de uma das tiras. O pó, nelas acumulado durante os
cinco anos em que a casa esteve fechada, passou imediatamente para o tecido. Parecia
óbvio que, se o suposto intruso tivesse entrado e depois saído por ali, embora se tivesse
dado o trabalho de tentar selar de novo a porta com aquelas mesmas bandas, estas, ao
serem dispostas e friccionadas, teriam perdido o brilho e, naturalmente, a generosa capa
de poeira que as cobria.

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