sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Que pretendia Ra criando aquele seu brumoso duplo?
Imobilizado pelo punho férreo, o investigador descobriu, assombrado, como
haviam aparecido, no peito daquele segundo "Sinuhe", umas letras misteriosas, também
lavradas em fumo:
"ALEF-MEN-TAV."
Esses caracteres hebreus, formados nessa ordem, compunham a palavra "EMET"
("verdade"). Mas Sinuhe, aturdido com o cada vez mais rápido desaparecimento do corpo
da companheira na areia, não chegou a intuir, naqueles dramáticos momentos, os
propósitos do amigo. Irritado, ao ver como as tétricas mãos continuavam arrastando
Nietihw sabe Deus para que abismo, interpelou Ra pela segunda vez, pressionando-o a
que os liberasse daquele novo pesadelo. Como única resposta, a branca e fumegante
escultura ajoelhou-se junto ao quase desaparecido corpo da filha da raça azul, soprando,
com todas as forças, o rosto lívido da mulher. E pela boca do "duplo" surgiu um jorro de
letras: as mesmas que ele exibia no tórax. No mesmo instante, a delicada epiderme de
Nietihw cobriu-se de uma espécie de neve, cujos flocos nada mais eram que centenas de
"alef", "men" e "tav". Para surpresa do verdadeiro Sinuhe, aquele inexorável enterramento
da amiga suspendeu-se. Imediatamente, como se tivessem sido alertados por "algo" muito
mais cobiçado que o corpo que arrastavam para as profundidades da praia, destacaram-se
da areia os famintos e ameaçadores dedos das quatro mãos. E todas elas, em uníssono,
dirigiram-se para a "nevada" face da senhora.
Impassível, o segundo Sinuhe - de quem se desprendiam ininterruptas e delgadas
tiras de fumo branco - esperou que os quatro tocos de mão cavalgassem até o rosto de
Nietihw, onde se detiveram visivelmente irritadas. Pôs-se então a pulverizar entre os
dedos as centenas de consoantes hebraicas. Aquele, sem dúvida, era o momento esperado
pela criatura que Ra criara... Assim, antes que as mãos demolidoras pudessem reagir, o
"duplo" abriu novamente a boca, aspirando profundamente. Ante a perplexidade de
Sinuhe, todas as letras "alef" que ainda estavam pousadas na face de Nietihw eram
absorvidas pela aspiração poderosa, penetrando outra vez na fumegante figura. Sobre o
rosto permaneceram tão-somente as "men" e as "tav", formando assim, de repente, uma
nova palavra: "morte". As mãos, desprevenidas, abriram-se ao contato com a "morte".
Mas já era tarde demais. As centenas de "men" e "tav", por sua vez, tinham começado a
devorá-las. Em segundos, aquelas sombrias garras ficaram reduzidas a um monte de
ossos.
O "duplo" voltou-se assim para a outra mão, a última: a que continuava agarrando
o pé do investigador. Mas, quando se preparava para repetir a operação, os dedos soltaram
o tornozelo de Sinuhe, sumindo, qual escorpião, na areia esmeraldina.
Da mesma forma que havia surgido, assim Sinuhe viu extinguir-se seu segundo
"eu": sem que ninguém pudesse evitá-lo, o alvo fumo voltou a ser absorvido pelo anel e
desapareceu.
Sinuhe precipitou-se então sobre o corpo imóvel da amiga. Limpou-]he do rosto os
restos de "neve", arrojando para longe as esqueléticas garras. Não sem esforço conseguiu
afinal desenterrar Nietihw. O corpo, efetivamente, voltara a ser o de sempre. Alarmado,
porém, o amigo constatou que o coração dela estava mudo.
- Não!... Nietihw!
Inúteis todas as tentativas para reanimá-la. A filha da raça azul, imersa numa
palidez mortal, parecia efetivamente sem vida. Desconsolado, ele ajoelhou-se junto a ela
e, envolvendo-lhe com os braços a cabeça, entregou-se a um amargo pranto. Bem
depressa, no entanto, impelido por uma indignação irreprimível, arrancou o anel do dedo
e, amaldiçoando a aparente passividade de Ra, arrojou-o violentamente em direção aos
restos do navio.
- Por quê?. .. Por que você o permitiu?
Cego de raiva e de dor, Sinuhe não percebeu outro fato surpreendente: das
profundezas daquele firmamento tenebroso surgiu, de repente, o adejar de um pássaro.
Entre seu bico ele tomou o anel, voou para onde estava o casal, pousando sobre o ventre
de Nietihw.
Receoso, Sinuhe tentou espantar o enorme corvo. Este, porém, depois de engolir o
anel, abriu novamente o enegrecido bico e exclamou com voz grave:
- Filhos de IURANCHA! Não temais! Estou vindo para saldar minha dívida
antiga... Sinuhe retrocedeu, alarmado ante aquela ave falante.
- No princípio dos tempos - prosseguiu o corvo -, um dos meus antepassados
desobedeceu a um humano chamado Noé. Foi solto depois do grande dilúvio, mas não
regressou à arca. Por isso, e como castigo por sua desobediência, sua primitiva plumagem
branca foi substituída por outra negra e sombria.
E o pássaro deu alguns passos curtos sobre o corpo de Nietihw, introduzindo o
bico em um dos bolsos da túnica. Ao retirá-lo, vinha com o pequeno frasco de vidro
contendo os luminosos e misteriosos grãos de areia que Sinuhe recolhera no claro do
bosque, e que fora seu original presente de aniversário. Sinuhe ignorava, naturalmente,
que Glória ou Nietihw o escondera na túnica.
O corvo, saltando sobre a areia, foi depositá-lo aos pés do seu perplexo e
emudecido observador.
- Agora estamos em paz - retomou o corvo, assestando os olhos azeviche em
Sinuhe -. Basta que os lábios de tua companheira toquem os "ibos" para que volte à vida.
- Os "ibos"?! Mas que é isso?!
O pássaro, depois de bicar insistentemente a parede de vidro do recipiente que
jazia na areia, abriu as asas pronto para remontar vôo.
- Algum dia, em IURANCHA, chamarão "tempo" aos "ibos".
E bateu solenemente a plumagem, elevando-se dentro da luz esmeralda. Mas, nem
bem começara o seu vôo, a tonalidade escura do seu corpo desapareceu, sendo substituída
por outra muito alva e deslumbrante. E o corvo continuou distanciando-se rumo ao sol
negro do qual havia surgido.
Sem saber o que fazer, Sinuhe se pôs a contemplar o frasco de areia. Não sabia
como, mas em tudo aquilo adivinhava a mão de Ra. Não obstante, seu "amigo" fora
tragado por aquele oportuno corvo branco. Tal pensamento voltou a tranqüilizá-lo.
Desviou os olhos para Nietihw e, ao vê-la imóvel e indefesa, compreendeu que a missão
de busca dos arquivos secretos de IURANCHA chegara a um momento sumamente
delicado: ele perdera seu amigo Ra e Nietihw, sua coroa mágica...
Mas, acostumado desde sempre às variações de sorte, não se deixou abater.
Recolheu o providencial presente de aniversário e, após examiná-lo, pôs-se de joelhos
junto ao corpo da filha da raça azul. Abriu o vidrinho e, levantando ligeiramente a cabeça
de Nietihw, aproximou-o aos lábios lívidos a boca do frasco. Os grãos deslizaram
cintilantes até tocá-la. Nesse momento, ao tocar a pele, cada partícula daquela areia
cinzenta perdeu sua luminosidade, convertendo-se em microscópicas gotas douradas. Ao
contato com aquela espécie de "ouro potável", Nietihw reagiu. Sinuhe sentiu
estremecimentos no corpo da companheira. Os lábios se entreabriram e o punhado de
"ibos" desapareceu-lhe na boca.
- Nietihw!
Presa de intensa emoção, foi assistindo à progressiva recuperação da mulher. A
palidez esfumou-se e, aos poucos, se lhe abriram os olhos.
- Oh!.. . Nietihw! Que está acontecendo com você?
Ela abriu e fechou os olhos. Finalmente, fixou o olhar na fisionomia assustada do
companheiro. E Sinuhe pôde contemplar as formosas pupilas que emanavam leques
luminosos, formados pelas sete cores do arco-íris. A cada pestanejar, os arco-íris
desapareciam, reaparecendo quando Nietihw conseguia manter abertos os olhos. Aqueles
feixes multicoloridos chegavam a propagar-se até a pessoa, coisa ou lugar em que
Nietihw fixava sua visão. Assim, quando a filha da raça azul - totalmente recuperada -
resolveu levantar-se, os fachos coloridos que partiam dos seus olhos iluminaram primeiro
seu próprio corpo e, ato contínuo, a criatura que jazia na praia, a flecha e, por último, os
restos distantes do navio encalhado.
Não tardaria a vir a pergunta fatal. Nietihw levou as mãos aos cabelos e descobriu
que o diadema desaparecera; interrogou o companheiro em silêncio. Ele se limitou a
apontar para aquele ser ali perto, inanimado.
- Que aconteceu? - suplicou-lhe, banhando-lhe o rosto com aquelas catorze cores.
O investigador lhe foi relatando tudo o que vivera e presenciara e, ao concluir,
interrogou-a, por sua vez, sobre a razão que a teria levado a deixá-lo ficar sozinho com
Samej, a serpente.
Nietihw, com evidentes sinais de desalento, deixou-se cair sentada na areia.
Afundou o rosto nos joelhos e desandou a chorar. Sinuhe, querendo mostrar que nem tudo
estava perdido, apressou-se emocionado a consolá-la. Quando ergueu a cabeça o rapaz
notou, maravilhado, que as lágrimas da amiga, em lugar de resvalar-lhe pelas faces, eram
capturadas pelos leques de luz, deslizando por eles como chuva sobre cristal. E algumas
daquelas lágrimas passaram, dessa forma, para os alhos e o rosto do próprio Sinuhe, que,
perplexo, sentiu como se a consternação e a tristeza da amiga lhe inundassem também o
próprio coração.
- Sinto, Sinuhe, mas pelo que consigo recordar, "Eim" (o "E") chegou a alertar-me
contra alguma coisa.. . melhor, contra alguém.
Sinuhe concordou, lembrando-se do lançamento da letra por cima do alcantil.
- Logo depois, ao pisar a praia, foi tudo muito rápido e confuso. . . Sem consultarme,
o "W" saltou do meu diadema e me foi arrastando até este mesmo lugar. Estendida na
areia, mais ou menos como agora, achava-se esta ou qualquer outra criatura parecida.
Inclinei-me sobre ela e, quando estava quase convencida de que se achava morta, os
braços dela arremeteram-se contra mim. A partir de então, tudo escureceu. . .
- Não posso dizer com certeza, mas quase posso garantir-lhe que ela só queria a
coroa que você trazia. ..
O par fez silêncio. Mas eles dois, movidos pelo mesmo impulso, voltaram seus
olhares para o ser que provocara a súbita catástrofe.
Não obstante, como já intuíra Sinuhe, nem tudo estava perdido. ..
Verificando que Nietihw tomava entre as mãos o frasco de areia, decidiu-se a
externar o pensamento que lhe acabava de nascer na mente e que, evidentemente, era
compartilhado pela amiga:
- Você crê que os "ibos" poderiam. . .?
- Logo o veremos - replicou a mulher, dirigindo-se cem decisão até a criatura.
Sinuhe porém a deteve já ao pé do minúsculo ser.
- Um momento. . .
Debruçando-se sobre o enxuto corpinho descobriu, meio alarmado, que a cabeça
da flecha, em lugar de penetrar no peito, havia com suas fauces mordido a escura e
encarquilhada pele, justamente na altura do estranho emblema: um círculo vermelho com
outro menor, preto, ao centro.
- Deus!.. .
- Mas o que há? - perguntou Nietihw, intrigada. Sinuhe mostrou-lhe aquele espécie
de escudo e, em tom solene, anunciou:
- Esta criatura traz no peito a bandeira de Lúcifer. . . Ternos de agir com
precaução.
Nietihw retrocedeu, assustada. O companheiro, com muito cuidado, empreendeu
meticuloso estudo do corpo do presumível servidor do Maligno. Tal como havia
suspeitado, a estrutura daquele ente era quase idêntica à daqueles que vira em Sotillo:
enorme cabeça provida de dois minúsculos olhos, tão negros quanto a pele e circundados
por aquela estranha e repulsiva calosidade e, no lugar do que poderia ser a boca, uma
espécie de orifício igualmente circular.
Sinuhe não deu com fossas nasais nem ouvidos. O resto do corpo - de um metro de
comprimento, no máximo - era coberto e protegido por uma pele flexível. Os braços,
extremamente longos e finos, escorriam até abaixo dos joelhos, arrematados por mãos
quase infantis, com cinco dedos iguais, mas desprovidas de polegares. Já aos pezinhos
lhes faltavam dedos.
Tampouco possuía sexo. Consternado, Sinuhe não se explicava por que não teria,
aquela monstruosa criatura, um corpo transparente como os que ele vira nas outras
ocasiões passadas. Aquela diferença substancial, por quê? Se o inquieto investigador
tivesse podido pressentir, naqueles momentos, as turbulentas circunstâncias através das
quais chegaria ele a desvelar esse novo mistério, o mais provável é que ali mesmo tivesse
implorado pelo fim fulminante da missão... Mas, absorto naquela exploração minuciosa,
não podia sequer imaginar o que lhes reservava o destino.
Ao reparar de novo nas fauces da flecha observou, preocupado, como entre as
presas de gelo, que aprisionavam e desgarravam parte do tórax, não aparecia sangue.
Desconfiado, colou o ouvido ao peito, mas a atenta escuta não lhe revelou som algum. Ou
aquele ser carecia de coração ou, fato provável, estava realmente morto... Assim,
tranqüilizado, preparou-se para arrancar-lhe a seta. Nietihw vencera parte do medo e,
ajoelhando-se junto do amigo, preparou o frasco com os "ibos".
Foi empunhar a haste de gelo da flecha, e a cabeça reduzida de Samej cobrou vida
e se lhe abriram as fauces, liberando a presa. Sinuhe soltou a seta que, traçando uma curva
sobre a cabeça dele, foi alojar-se na aljava.
O casal, expectante, aguardou. Mas a criatura continuou imóvel, os olhos vidrados,
fixados naquele céu verde-esmeralda.
Sinuhe, munindo-se de coragem, passou o braço esquerdo por debaixo daquela
cabeça em forma de campânula, deslocando-a da areia. Quando sua mão roçou aquela
pele rugosa como a palha, um calafrio estremeceu-lhe as vísceras. Dissimulando,
entretanto, animou a amiga a que abrisse o recipiente e vertesse algum tanto da cintilante
areia no tenebroso agulheiro que parecia servir-lhe de boca...
E Nietihw, mãos trêmulas, aproximou o frasco da cara do monstro.
Por medida de precaução, Sinuhe pediu à companheira que se afastasse. Segurou
firmemente os braços da criatura, e esperou.
Os finíssimos e cintilantes grãos de areia que o corvo branco havia chamado de
"ibos", e que o investigador começava a identificar com "porções de tempo", foram
caindo na boca circular do ente. E, tal qual como sucedera com a filha da raça azul, de--
pressa converteram-se naquele "ouro líquido". Porém, teriam o mesmo efeito revitalizador
que no caso de Nietihw?
A resposta não se fez esperar...
A primeira coisa que chamou a atenção dos "iuranchianos" foi uma poderosa
luminosidade no emblema centrado no peito. Pelas numerosas dentadas que a tríplice
fileira de dentes de Samej praticou, surgiram outros tantos fios de luz, de vivo escarlate.
Misteriosa atividade começava a manifestar-se no interior da criatura. Curiosamente, as
mordeduras da serpente haviam deixado sobre a bandeira de Lúcifer uma figura familiar:
os três anéis concêntricôs que constituíam, precisamente, o símbolo contrário: o de
Micael. Cada um desses "círculos" fora delineado por vinte e quatro pequenos orifícios
provocados, repito, pelos dentes caninos da flecha de gelo. No total - contou Sinuhe - os
três círculos somavam 72 fendas, pelas quais escapavam outros tantos raios luminosos.
Fascinados por aquela tríplice coroa escarlate que brotava do tórax da criatura,
nem Sinuhe nem Nietihw perceberam que os olhos dela começaram a pestanejar... E
pouco a pouco a luminosidade avermelhada foi perdendo força, até extinguir-se por
completo. A criatura, erguendo o crânio enorme, cravou seus olhos na mulher. Nietihw,
pálida, não conseguiu desviar o olhar daqueles círculos impenetráveis. E, por alguns
minutos, suas catorze cores foram misteriosamente absorvidas pelas negras e opacas
paredes que formavam aqueles olhos.
O rosto de Sinuhe havia ficado a pouco mais de um palmo daquela cabeça
horrenda. Consciente do risco que poderia correr se soltasse os braços da criatura,
continuou na mesma posição: escarranchado, de joelhos sobre o frágil corpo.
O ente percebendo o medo crescente de Sinuhe, girou a cabeça para ele, e o
orifício que lhe servia de boca abriu-se. Ante a surpresa do casal, exclamou com voz
rouca e cavernosa:
- Agradeço-vos por me haverdes concedido um novo período de vida... Não
temais. Embora a minha missão, como a dos meus irmãos, os "medianos" primários,
consista em aniquilar-vos, em minha memória sobram restos de um sentimento que,
agora, é mais forte que a ordem dada por Belzebu...
Sinuhe, desconcertado, interrompeu a amiga com o olhar. E Nietihw, convencida
da sinceridade do "mediano", fez um gesto de aprovação.
Sinuhe preparou-se para soltar a criatura. Temeroso, porém, lançou mão ao mesmo
tempo da flecha de gelo e a apontou para o emblema de Lúcifer.
O "mediano" se pôs em pé, ao mesmo tempo em que movia a cabeça
negativamente, em reprovação à atitude ameaçadora do homem:
- Meu nome é Vana e, como vos disse, meus criadores (Van e Amadon) souberam
desde o princípio dotar-me do sentimento de gratidão. Como posso demonstrá-lo?
- Se é verdade o que dizes - interferiu Nietihw -, indica-nos como chegar até
Solônia, o guardião do Éden. ..
Vana parecia hesitar. Mas, finalmente, levando a mão esquerda aos círculos
vermelho e preto gravados no peito, falou assim:
- Outros 40 000 seres como eu, residentes em IURANCHA desde a chegada dos
"Cem de Caligastia", zelam pela segurança dos arquivos que buscais com tanto
empenho... Vou saldar minha dívida de gratidão para convosco, porque (estou certo)
minha revelação não porá em perigo o sagrado mistério que envolve tais arquivos... A
Solônia só se pode chegar por intermédio dos homens "Pi".
- Os homens "Pi"? - perguntou Sinuhe enquanto devolvia a seta a seu estojo -.
Quem são?
O "mediano" ficou em silêncio. Deu vários passos em direção ao interlocutor e,
tomando entre os dedos o colar de números que pendia do colo de Sinuhe, argüiu:
- E tu mo perguntas?.. . Só os membros da Ordem do Grande Número podem levar
este distintivo. . . Entretanto - refletiu Vana -, é evidente que nem tu nem a mulher sois
homens
"Pi".
Nietihw, cada vez mais inquieta, nem deixou que à criatura terminasse:
- E como podemos chegar até eles?
O "mediano" voltou-se então para o barco e, estendendo o braço esquerdo na
direção daqueles restos, acrescentou:
- Dalamachia...
Antes porém que pudesse prosseguir, a superfície da areia sobre a qual se
encontravam começou a agitar-se. E Vana, Nietihw e Sinuhe descobriram, com horror,
que dezenas de escuros e nervosos dedos surgiam entre seus pés...
- As "golem"!.. . Fugi!. .. São as "golem"!
A voz do "mediano" quebrou-se. Uma vintena daquelas esgalhadas mãos agarrarase
aos seus caniços, arrastando-o para o interior da terra.
- Fugi!
Sinuhe, de um salto, esquivou-se das primeiras garras que já investiam contra ele
e, tomando do braço da companheira, arrastou-a em direção ao navio encalhado.
Nietihw, presa do pânico, obedeceu ao amigo correndo desesperadamente.
Sinuhe virou-se para trás e viu que a cabeça de Vana desaparecia, tragada por
torvelinhos de poeira verde-esmeralda.
Quando o "mediano" foi definitivamente devorado, um bando daquelas garras
ossudas, saltando e avançando qual exército de aranhas negras, precipitou-se atrás dos
dois.
Ofegantes, continuaram correndo em direção ao casco, mas a corrida sobre a areia
tornava-se cada vez mais lenta e fatigante. E aquelas mãos, muito mais ágeis, iam
ganhando terreno.
Não faltavam mais que cinqüenta metros para alcançar o navio e uma das garras,
mais veloz do que as outras, prendeu-se à túnica de Nietihw. Ao senti-la, a filha da raça
azul estacou, paralisada pelo medo.
- Não! - gritou-lhe Sinuhe -. Não pare!. .. Continue!.. . Continue!
Os afiados dedos puxavam para o chão, enquanto as demais mãos, adivinhando a
crítica situação dos humanos, freou seu atropelado avanço, agora deslizando com
movimentos lentos e calculados.
Sinuhe, sem tempo para pensar, puxou a flecha de gelo e, erguendo-a por cima da
cabeça, alvejou a garra com preciso golpe. As fauces de Samej, escancaradas no instante
mesmo em que foram retiradas da aljava, trancaram-se mortalmente nas nervosas
articulações da parte posterior. Os dedos, feridos pela cabeça da seta, largaram a túnica e
Nietihw, aos gritos imperiosos do companheiro, continuou fugindo para o barco.
Sem perda de tempo o investigador colocou a flecha no arco e, apontando para o
fervedouro de garras, disparou. Mas a seta, com a presa entre os dentes, foi cair na areia,
entre o arqueiro e a multidão enfurecida. No mesmo instante, aos olhos atônitos do
"iuranchiano", em estertores contínuos, as extremidades daqueles dedos agonizantes
começaram a alongar-se, brotando em cada uma delas cabeças de serpente. E as novas
cinco Samej caíram, por sua vez, sobre outras tantas garras. Estas, sofrendo igual
metamorfose, foram enterrar-se nas demais que, desorientadas, começaram a retroceder.
Aproveitando a confusão, Sinuhe correu no rastro de Nietihw. Ela, do alto da
coberta do navio, tinha os olhos aprisionados àquele vibrante bosque de serpentes
implacáveis que, pouco a pouco, iam exterminando as diabólicas e sibilinas "golem".
Já sem respiração, o companheiro alcançou, finalmente, o casco adernado. Mas,
antes de saltar para junto de Nietihw, alguma coisa lhe chamou a atenção. Naquela banda
de bombordo, junto à proa, dava para ler ainda um nome desgastado: "DALAMACHIA".
Ao vê-lo sobre a carcomida coberta, Nietihw, presa de um ataque nervoso,
precipitou-se entre os braços dele.
Sinuhe, sem perder de vista a singular batalha que se travava na praia, acaricioulhe
os cabelos, tentando tranqüilizá-la. Entretanto, enquanto seus corações batiam ainda
vertiginosamente, outro acontecimento veio sacudi-los: de repente, aquela "atmosfera"
esverdeada que os envolvia tornou-se escura. E ficou tudo submerso em uma luz violeta...
- Deus meu!.. . Mas que é isso?
À vista espantada do casal, o sol negro caminhava já muito próximo do horizonte,
a ponto de, praticamente, esconder-se atrás de uma das cadeias de montanhas.
- Temos de nos apressar - reagiu Sinuhe, adivinhando
que aquelas estranhas mutações de cores na atmosfera deviam guardar estreita
relação com o movimento daquele estranho sol -. Devemos procurar o caminho que nos
leve aos homens "Pi"...
Nietihw concordou.
Aquela brusca "escuridão violácea" descera para complicar ainda mais a já
angustiosa situação de nossos amigos. Mal se conseguia distinguir- a coberta do navio, e a
praia, naturalmente, constituía tenebrosa incógnita. Que teria acontecido com Samep.
Sinuhe constatou que a seta não regressara à aljava. E uma idéia perturbadora
começou a fustigá-lo: teriam as "golem" vencido o único aliado deles?
Nem a filha da raça azul nem seu companheiro sentiam-se dispostos a esperar o
resultado daquele encontro sangrento entre a cabeça da serpente e as mãos amputadas.
Então Sinuhe, lembrado da última indicação de Vana, o "mediano" rebelde, sugeriu a
Nietihw que descessem o mais depressa possível ao fundo da embarcação. Talvez ali, em
algum lugar do velho casco, descobrissem o caminho para os enigmáticos homens "Pi".
A mulher, movida por irrefreável desejo de distanciar-se das "golem", aderiu na
hora. Os raios multicoloridos de seus olhos iluminaram a cobertura, revelando para os
lados da popa o que parecia ser a única entrada. Os arco-íris que seus olhos projetavam
exploraram ligeiramente a cabina escura; depois de lançar um último olhar para o lado da
praia, Sinuhe introduziu seu arco de gelo pela pequena escotilha, comprovando,
decepcionado, que a distância até o fundo do porão passava de cinco metros. Como
poderiam pular daquela altura? Ra desaparecera e, para o cúmulo, já não tinham o
diadema cósmico de Nietihw, roubado e enterrado por uma daquelas "golem"...
Compreendendo o problema, ela apontou para o "colar de números" que ele
portava, sugerindo-lhe que lançasse mão dele.
- Mas acontece que ele mal alcança meio metro de comprimento. .. - rebateu
Sinuhe, descartando a idéia.
Sorrindo, Nietihw tomou o colar entre as mãos e pediu-lhe que se lembrasse a que
letra hebraica estava ligado o número "pi".
- A "samej" - respondeu, mas sem saber até onde ela queria chegar.
- E qual é o seu valor numérico?
- Sessenta... Claro! - descobriu finalmente o membro da Ordem da Sabedoria -.
Sessenta!
E, segurando a "cadeia" de números flutuantes, invocou a letra e seu número
sagrado:
- "Samej"!... Sessenta!
Na mesma hora, aos quinze primeiros dígitos do número "pi" encadearam-se
outros quarenta e cinco, até formar uma seqüência de sessenta.
Sem titubear, Sinuhe arrojou pela escotilha a "corda" mágica de números. Nietihw,
decidida, foi a primeira a descer pela escada improvisada.
Já' o investigador hesitou. Prenderia o primeiro número - o 3 - na moldura de
madeira do escotilhão e escorregaria assim até o porão, ou recolhia a "corda" e vencia a
distância de um salto? Se se inclinasse para a primeira solução, o mais provável seria que
não pudesse recuperar seu "colar", convertido agora em um longo cabo.. . E, em uma de
suas típicas reações, enrolou nervosamente a "cadeia" à volta da cintura e projetou-se no
vazio.
Ao vê-lo cair, Nietihw deu um grito e escondeu o rosto entre as mãos. Quando
fechou os olhos, a obscuridade do fundo do barco se fez escuridão total.
Em seu empenho em conservar a "corda" mágica, Sinuhe não calculou bem a
distância. Na realidade, eram sete metros. Quando estava a ponto de estatelar-se, "alguma
coisa" freou-lhe a queda.
Assim que a filha da raça azul descobriu o rosto, os fachos coloridos tornaram a
iluminar o recinto. O corpo desfalecido do repórter balouçava a pouco mais de metro e
meio do solo. Nietihw correu em sua ajuda e então descobriu por que o amigo ficara
providencialmente suspenso no ar: Samej, a seta de gelo, mostrava-se vibrante atrás dele,
com as fauces cravadas no "cinturão" de números.
Lentamente a flecha foi baixando, até que os pés de Sinuhe tocassem o piso do
porão. A cabeça da serpente soltou então sua presa já salva, e retornou ao carcás vazio.
Recuperados do susto, dedicaram-se ambos a uma exaustiva exploração do lugar.
Os olhos de Nietihw, única fonte de luz, percorreram a peça até se persuadirem, com
surpresa, de que se encontravam em um reduzido quarto vazio. . . de forma piramidal.
Curiosamente, o vértice de onde confluíam os quatro tabiques inclinadíssimos era
constituído pela pequena escotilha por onde acabavam de descer.
Em poucos minutos, surpresa e desilusão eram os sentimentos que dominavam
aqueles corações aventureiros. Surpresa porque, como puderam verificar, aquelas quatro
faces da pirâmide não eram construídas de madeira como a cobertura do barco e o casco.
As supostas anteparas eram formadas por vinte e três fileiras de pedra cada uma. E cada
fileira, por sua vez, integrada por graníticos blocos retangulares. . .
Desilusão porque, por mais que tateassem e revistassem, não havia ali porta ou
qualquer conduto.
- Que é isso?. . . Pegamos caminho errado? - explodiu Sinuhe, dirigindo um olhar
impaciente para a claridade violácea recortada pelo escotilhão.
A companheira, porém, meio ajoelhada junto a uma das paredes, nem parecia ouvir
os comentários do amigo. Seus dois leques coloridos estavam concentrados em uma
pintura misteriosa, em que mal haviam reparado até aquele momento.
Sinuhe, cada vez mais aflito, continuava falando sozinho, tateando com frenesi as
geladas pedras das fileiras, pedras talhadas e ajustadas de forma impecável. De repente,
diante de tudo aquilo, teve a sensação de que haviam caído em uma armadilha...
Entretanto, preferiu silenciar aquele súbito sentimento. Mas, intrigado com o
silêncio da companheira, acabou por juntar-se a ela. Aos seus olhos, ocupando boa parte
de uma das paredes, aparecia, não uma pintura, mas um relevo delicado, talhado sobre a
apertada rede de blocos retangulares. As catorze cores que Nietihw emanava foram
passeando de cima para baixo, da esquerda para a direita, revelando ao membro da Escola
da Sabedoria uma conhecida amostra da arte milenar egípcia: um disco - símbolo do deus
Ra - do qual partiam nove longos raios luminosos, cujas
extremidades eram rematadas por mãos humanas. Após alguns minutos de
observação atenta, Sinuhe pediu à filha dá raça azul que focalizasse toda sua luz naquelas
mãos. Nietihw atendeu e descobriu, por sua vez, que em cada uma das palmas aparecia
lavrada uma pequena letra hebraica.
".. .D.. .A.. .L.. .A.. M. . .A. . .C. . .H.. .I.. .A.. ." A voz do investigador, quando lia
e traduzia os caracteres, propagou-se pelo acanhado recinto pontiagudo, com solene eco.
- "Dalamachia" - repetiu Sinuhe, mergulhado em profundas reflexões.
Mas o insólito criptograma não parava aí. Nietihw baixou os olhos e iluminou, ao
pé do ideograma, uma série de hieróglifos. Assim, o "soror", treinado pela Loja secreta na
leitura e interpretação da tríplice escritura do Egito - a hieroglífica, a hierática e a
demótica -, não tardaria a concluir que aqueles grafismos correspondiam a esta última: as
dos iniciados...
Ao terminar a tradução da referida legenda, ante a expectante Nietihw, com uma
exclamação de triunfo passou a ler em voz alta:
- Sim, Nietihw. . . Compreendo agora. Escute: "Ó Rá, a língua sagrada ilumina o
número do teu olho: chave de Dalamachia."
Parecendo-lhe obscuras aquelas palavras, a mulher pediu-lhe que esclarecesse o
sentido delas.
- Alguém (não sei quem) escreveu nesta parede a cifra para entrar em
Dalamachia...
- Mas que é Dalamachia? Sinuhe deu de ombros.
- Isso eu não sei... Entretanto, a julgar pelo que nos disse Vana, esse nome deve ter
alguma relação com os homens "Pi"... E a única forma de averiguá-lo será pôr em prática
o que esconde este relevo.
- E que devemos fazer?
- Observe - apontou - que a língua sagrada em questão só pode ser a hebraica: a
que forma a palavra "Dalamachia".
- Continuo não entendendo.. .
- Observe também - continuou Sinuhe com entusiasmo crescente - que cada uma
dessas letras hebraicas tem um valor numérico... Pois bem, se somarmos todos e cada um
desses valores, que número você crê que se obtém?
Desta vez foi Nietihw quem encolheu os ombros.
- O 6! - explodiu Sinuhe.
- Outra vez o 6... - murmurou com ar preocupado.
- Sim, preste atenção... Não há dúvida...
E Sinuhe, ajoelhando-se diante das nove mãos, entoou a primeira letra - o D -,
como se se tratasse de um "mantra":
- Daleth!... o 4...
O eco se propagou pela pequena pirâmide; imediatamente, no centro do disco ou
círculo superior destacou-se, intenso, um ponto vermelho.
- Deus meu!... Sinuhe, olhe!
Estupefato, o casal permaneceu por uns segundos com a vista no círculo de pedra.
De onde viria aquela luz avermelhada?
Sinuhe, compreendendo que a ponta de cada uma das letras provocava a ativação
de alguma mola ou mecanismo secreto no disco, apressou-se a entoar a segunda:
- Aleph!. ..o 1.
Novo eco confundiu-se com os restos do primeiro e, tal como havia suposto, um
segundo ponto vermelho apareceu no símbolo solar.
- Lamed!... o 30.
Tal qual um milagre, assim que ele pronunciou o "L", uma terceira áscua escarlate
fulgiu no grande círculo.
- Aleph!. ..o 1.
- Mem!.. . o 40.
- Aleph!. ..o 1.
- Cheth!... o 8.
Ao cantar o "CH", um sétimo ponto - também tirante a vermelho - abriu-se no
disco e Nietihw, que iluminava sempre a parte superior do relevo com seus arco-íris,
sussurrou, enquanto se aferrava, medrosa, ao braço de um Sinuhe exultante:
- Não continue!
Ele, porém, fazendo ouvidos moucos às cautelosas palavras da mulher, entoou a
penúltima letra:
- Yod!... o 10.
No centro do círculo, os oito pontos compunham já a figura de um "6", de
vivíssimo escarlate. Sinuhe, ao vê-lo, repetiu vitorioso a legenda que acompanhava o
ideograma:
- "Só a língua sagrada ilumina o número de teu olho: chave de Dalamachia".
Antes, porém, que o investigador chegasse a cantar o último "A", uma corrente
gelada soprada do escotilhão levou-os a mirar para o alto...
Os feixes multicoloridos dos olhos de Nietihw iluminaram então uma figura
quadrangular. Estava suspensa a pouca distância acima da boca - também quadrada - por
que haviam penetrado no interior do barco. E o par, intuindo novos e graves
acontecimentos, apressou-se a se colocar na vertical do escotilhão. Nesses precisos
momentos, enquanto observavam como aquela espécie de lousa se precipitava para o
truncado vértice da pirâmide, Sinuhe voltou a experimentar a angustiosa sensação de que
haviam caído em uma armadilha. O estalo da peça ao encaixar-se na escotilha, tampandoa,
foi a trágica confirmação.
- Oh! Mas não!.. . Fomos apanhados!
Nietihw, trêmula, aferrou-se novamente a Sinuhe, implorando-lhe que fizesse
alguma coisa. Mas havia nele tanto medo quanto na amiga. Apesar do vento gelado que
precedera o "sepultamento", o rosto dele suava copiosamente.
Foram necessários alguns minutos, aliás intermináveis, para que, superando o
terror, conseguisse reagir. Agora aparentando calma, pediu à companheira que iluminasse
outra vez os muros oblíquos da pirâmide. Nietihw o fez entre soluços. Ele, ante a
perplexidade da filha da raça azul, dedicou-se a contar as sucessivas fileiras de pedras que
armavam a parede.
Concluída a contagem, dirigiu-se à parede contígua, repetindo a operação com um
mutismo irritante.
Ao terminar, iluminou-se-lhe o rosto. Nietihw soube então que seu enigmático
amigo descobrira alguma coisa. Mas ele, dominado pela incerteza, preferiu guardar
silêncio e esperar.
Contou igualmente as fileiras de pedras do terceiro e do quarto muros; então,
satisfeita a curiosidade, bateu palmas, exclamando com um fio de esperança:
- Nietihw, creio que acertei!.. . Ela o mirou, ansiosa.
- Cada uma dessas paredes - explicou o "soror" - consta de vinte e três carreiras ou
filas de blocos de pedra. E as quatro,
como você pode ver, rematam a cúspide de uma pirâmide... Não lhe diz nada tudo
isso?
Nietihw refletiu:
- A cúspide de uma pirâmide? Vinte e três carreiras de pedra?...
Sinuhe não chegou a captar o trejeito de impotência na fisionomia da amiga.
Absorto em suas meditações, voltara para um dos muros, tentando calcular a altura de
vários daqueles silhares.
- Exato! - comentou consigo mesmo -. Onze décimos de pés!. . . Agora só resta
uma última comprovação.
E na frente dos olhos atônitos de Nietihw desandou a caminhar - de Norte- a Sul,
de Este a Oeste - pela plataforma quadrada que constituía o piso da pirâmide.
- Não há dúvida. Cada lado deste quadrado soma um pouco mais de vinte e um
passos: a famosa unidade linear do antigo Egito. Isto é, tendo-se em conta que cada um
desses pés "egípcios" equivale a 0,5432 metros. . . sim, pouco mais ou menos a metade. ..
Isso significa uns onze metros.
Nietihw, consumida pela impaciência e aterrorizada pela idéia daquele
sepultamento em vida, explodiu:
- Não estou entendendo nada, Sinuhe! Que é que você pretende? Como é que
vamos escapar desta armadilha?
- Não perca a calma... Se não me engano, nós nos encontramos na parte superior da
Grande Pirâmide de Quéops...
A mulher, temendo que aquela série de acontecimentos tivesse transtornado a
mente do companheiro, tomou-lhe as mãos entre as suas e, iluminando o rosto de Sinuhe
com seus arco-íris, interrogou-o, sem poder dissimular sua preocupação:
- Você está bem?
Sinuhe compreendeu e, esboçando um sorriso, replicou:
- Todo o bem que esta loucura me pode permitir. Acompanhando as dúvidas
lógicas de Nietihw, narrou-lhe detalhadamente tudo quando averiguara:
- Você sabe que, na atualidade. . . quer dizer, nesta "atualidade" a que
pertencíamos antes de "saltar" para este estranho "mundo", a famosa Grande Pirâmide do
rei Quéops encontra-se ou encontrava-se trancada.
A filha da raça azul assentiu. Ela, tanto quanto Sinuhe, sabia que o cimo da
pirâmide fora mutilado há séculos; provavelmente no século IX, na época do califa Al-
Mamum, que foi quem ordenou o desmantelamento dos blocos de pedras que revestiam a
construção.
- Pois bem, segundo os egiptólogos, em princípio a Grande Pirâmide estaria
composta de 226 carreiras de blocos. Nessa "atualidade" ou "tempo" ou "mundo" de que
procedemos, a tumba de Quéops só tem 203 carreiras. Faltam, portanto, 23...
Sinuhe mostrou então os quatro muros que os encarceravam, declarando:
- Por acaso, este arremate piramidal tem as mesmas carreiras e dimensões que a
cúspide arrebatada à Grande Pirâmide: vinte e um pés e pouco em sua base ou, se você
preferir, onze metros e meio e um pouco mais de treze pés de altura.
- Não seria o caso de um erro ou de uma coincidência? Sinuhe tornou a sorrir.
Como membro da Loja secreta da
Sabedoria, ele fora instruído na chamada "Mística dos Números", praticada
sistematicamente pelos egípcios e, em especial, pelos construtores de pirâmides.
- Você não ignora que a mística do número (autêntica religião para os egípcios)
exigia deles que toda quantidade, qualquer que fosse a sua natureza, devia refletir o
simbolismo da Justeza. Esta "Justa Medida", por seu turno, era o símbolo da virtude
humana. E uma das mais significativas manifestações dessa Justeza era constituída pelos
chamados triângulos retângulos sagrados. Os egípcios os utilizaram em todas as suas
construções importantes; a Grande Pirâmide não foi uma exceção. Em meus estudos sobre
essa Maravilha pude constatar como, a partir da carreira 203 (em que nos encontramos
neste instante), unicamente a 226 equivalia quantitativamente ao diâmetro potencial de
uma circunferência de 709,9999 de comprimento, cuja fração infinitesimal faz com.que
sua leitura virtual seja de 710 inteiros, convertendo-se, com seu diâmetro de 226 inteiros
na mais perfeita circunferência, símbolo, como lhe digo, dessa "Justa Medida".. . e
perfeito testemunho do conhecimento que tinham seus construtores da razão existente
entre o diâmetro e sua circunferência.
"Por outro lado, uma dessas medidas que acabo de verificar (sete metros e pouco
de altura) equivale à vigésima parte do volume da Pirâmide, de 270 pés ou 146,6 metros
de altura...
Sinuhe percebeu que Nietihw mal podia seguir - e muito menos compreender - as
explicações matemáticas que ele lhe estava transmitindo. E resumindo "sua" descoberta,
concluiu:
- O que quero dizer-lhe é que só a Grande Pirâmide de Quéops reúne ou reunia as
medidas concretas a que me estou referindo. Conseqüentemente, e não me pergunte como
nem por quê, estamos prisioneiros no mais alto dela.
Nietihw não teve tempo para formular a próxima e mais importante pergunta:
como escapar daquela angustiante clausura? As medições de Sinuhe tinham interrompido
as sucessivas invocações das letras sagradas e isso, à vista do que acabava de brotar no
cabalístico relevo, poderia precipitar os acontecimentos...
Oito das nove mãos humanas que arrematavam os raios luminosos expedidos pelo
disco ou símbolo solar começavam a recobrar vida. Nietihw apercebeu-se e, apavorada,
mostrava o relevo enquanto o iluminava com seus feixes coloridos. O casal, mudo e
paralisado, ficou observando aqueles dedos de pedra que se contraíam e se articulavam,
esforçando-se para se desprender do muro. Só a última mão - a que na palma trazia o "A"
que completava a palavra "DALAMACHIA" - continuava mantendo o primitivo e pétreo
aspecto.De repente, a primeira das mãos fechou-se violentamente, esmagando a letra "D".
A filha da raça azul focalizou seus arco-íris naquelas garras, comprovando, estarrecida,
que as afiladas falanges se tingiam de negro. No mesmo instante, com sinistro estalido, a
garra partiu-se à altura do punho, caindo no lajeado.
- As "golem"!
Nietihw e Sinuhe retrocederam para o centro da pirâmide, enquanto as outras
mãos, convulsivas e serpeantes, cerravam-se, pulverizando cada uma das letras alojadas
nas respectivas palmas. E, uma após outra, tal como a primeira, desprendiam-se do relevo,
caindo sobre o piso e avançando, lenta e ameaçadoramente, na direção dos
"iuranchianos".
- Sinuhe! Que faremos?
O primeiro impulso do homem foi lançar mão de sua flecha de gelo. Antes, porém,
de utilizar-se da Samej, entoou a última das letras sagradas:
- Aleph!. ..o 1.
O eco do novo "mantra" reboou enlouquecido pelas paredes da cúspide daquela
que Sinuhe supunha ser a Grande Pirâmide de Quéops. No mesmo instante apareceu um
nono e derradeiro ponto escarlate, configurando um "6" definitivo no centro do disco do
agora mutilado alto-relevo.
A partir de então, tudo se precipitou. As "golem", como se intuíssem que suas
vítimas fossem escapar novamente, arquearam os enegrecidos dedos, aparentemente
dispostas a saltar, como felinos, sobre o casal. Entretanto, como digo, os acontecimentos
iriam atropelar-se uns aos outros...
Os nove pequenos círculos que emitiam a luz avermelhada abandonaram
rapidamente sua forma em "6" e, adotando posição horizontal, converteram-se em um
"olho" amendoado.
- Olhe, Nietihw! - exclamou Sinuhe, convencido de que aquele tinha de ser o
"olho" a que se referia a misteriosa inscrição.
Do centro do círculo de pedra o "olho" começou a pestanejar. A cada pestanejo, do
"olho" de Ra foram expulsos milhares de flocos brancos e luminosos, iguais aos "ibos"
que eles viram ascender da "areia" da clareira. Em segundos, tudo - incluindo paredes e
pavimento da pirâmide -- ficou coberto pelas torrentes dos corpúsculos emitidas. E antes
que as garras, também banhadas pelos "ibos", chegassem a reagir, estes - os "ibos" -
cristalizaram-se, convertendo-se em incontáveis e minúsculos espelhos triangulares.
Somente os corpos de Sinuhe e de Nietihw ficaram livres da transformação.
As "golem" - atarantadas - suspenderam o ataque iminente. Aquela constelação de
espelhos começara a refletir as nevadas e reluzentes figuras dos humanos em milhares de
pontos opostos, incluindo as superfícies abruptas das garras. E as catorze cores que
partiam dos olhos de Nietihw, refletidas agora no mosaico de espelhos compostos por
cada uma das 1 185 pedras retangulares que formavam as quatro paredes, assim como no
lajeado do pavimento e ainda nas igualmente espelhantes mãos, encheram o recinto com
mais de cem mil faixas multicoloridas que se entrecruzavam e de novo se refletiam,
tecendo uma diabólica teia de aranha.
Entretanto, passados os primeiros momentos de confusão, várias das "golem"
saltaram para o centro da pirâmide. E suas curvas das unhas fizeram dos rostos de Sinuhe
e de Nietihw seus alvos.
As garras, comprovando que seu ataque dera certo, avançaram com fúria contra o
casal. Muitas "golem" estrangularam o pescoço dos "iuranchianos", enquanto outras,
sedentas de sangue, disparavam os dedos sobre os olhos deles, cravando-os ali como
ganchos.
Ao ter Nietihw perfurados os seus globos oculares, os arco-íris se extinguiram e,
com eles, o labirinto multicolorido que inundava a pirâmide. Apenas os milhões de flocos
brancos que cobriam as hieráticas figuras de Sinuhe e da filha da raça azul continuaram
cintilando na escuridão. Quase simultaneamente os imóveis corpos do casal começaram a
desmoronar.
Como se fossem de fato estátuas de areia, aquelas "esfinges" vieram abaixo,
arrastando as "golem" em sua desintegração.
Coléricas, as garras foram emergindo do meio dos luminosos montes de "ibos" a
que estavam reduzidos os corpos de Nietihw e do seu companheiro. Mas, quando as
amputadas e espelhantes mãos conseguiram desembaraçar-se dos refulgentes grãos, outro
incrível acontecimento as esperava: obcecadas pelo instinto assassino, as "golem" não
prestaram atenção ao disco de pedra nem ao seu enigmático "olho" a pestanejar... Este,
apartando-se do muro, sobrevoou o lugar, detendo-se sobre as garras. Seu pestanejar fezse
então mais e mais rápido, e os milhões de "ibos" foram sendo absorvidos para o alto,
penetrando em torvelinho pela pupila escarlate. E o "olho" de Ra multiplicou seu fulgor,
até converter-se em uma esfera avermelhada e palpitante. As "golem" correram a
encolher-se em um dos ângulos da pirâmide e, de repente, a pequena nuvem esférica
começou a gotejar, salpicando de vermelho o grande espelho que revestia o enlousado.
Duas daquelas gotas aumentaram de tamanho e o resto, impelido por um poder oculto,
distribuiu-se à sua volta, compondo um entrelaçado sanguinolento que foi inchando sobre
o pavimento polido.
Aquilo que fora o "olho" de Ra acabou por dissolver-se e, quando a última gota
escarlate se precipitou sobre a monstruosa forma que crescia sempre sobre o solo da
pirâmide, rachou-se a totalidade dos espelhos. Com um bramido, aquela figura decolou
para o alto, iluminando a peça com dois enormes olhos circulares injetados de sangue: era
Samej, a serpente!
Seu corpo truculento continuou emergindo de entre as lousas, enquanto a cabeça
girava e balanceava no ar, em busca de "alguma coisa"... Finalmente, o ofídio descobriu
as "golem". Arqueou o ventre e, abrindo as fauces, exalou espesso jorro de fumaça que
envolveu as garras.
Cumprida a missão, o corpo de Samej retrocedeu, fundindo-se e desaparecendo
pelo mesmo orifício de onde viera. Quando seus imensos olhos circulares desapareceram
definitivamente sob as lousas, elas se fecharam sobre a serpente, e as trevas voltaram a
reinar na pirâmide.
Entretanto, que teria acontecido com as "golem"? E, sobretudo, que teria sido de
Sinuhe e da filha da raça azul?
Quando Sinuhe voltou a si, seus olhos estavam afetadas pelos intensos leques
luminosos que emanavam de Nietihw. A filha da raça azul, ajoelhada, mantinha entre
suas mãos a cabeça do amigo. - Oh, Deus meu! - suspirou aliviada -. Até que enfim! O
membro da Escola da Sabedoria afastou a vista do rosto da companheira, esforçando-se
por se lembrar do que lhes sucedera. Mas, por mais que brigasse com a memória, mal lhe
ocorreram ao cérebro algumas recordações, tão enevoadas quanto desconexas. Via, isso
sim, aquela "chuva" de flocos muito brancos que acabaria por envolvê-los e mais os
milhares de espelhos no interior da pirâmide. A partir daí, tudo se esfumava.
Interrogou Nietihw. Ela fez sinal negativo. Que lhes teria acontecido? Onde
estavam?
Com movimentos inseguros, ajudado pela amiga, conseguiu pôr-se em pé. Os arcoíris
projetados por Nietihw percorreram o ambiente e os dois compreenderam que se
achavam em um quarto de forma cúbica, de uns dois metros quadrados, construído com
sólidos blocos de granito. Em um dos lados abria-se um túnel, de boca estreita e
retangular. Aproximaram-se dele de cócoras, mas só distinguiram um longo e escuro
corredor descendente, de apenas um metro de altura por oitenta centímetros de largura.
O casal, movido pelo mesmo temor, preferiu evitar, no momento, aventurar-se por
aquele lugar tenebroso. Sinuhe tateou as paredes ásperas da acanhada sala onde haviam
aparecido. Por mais que quebrasse a cabeça, não atinava como nem por que teriam
chegado até ali. Nietihw foi iluminando ponto por ponto cada uma das áreas e ângulos
que o companheiro solicitava e, finalmente, o "soror" da Grande Loja guardou silêncio,
mergulhando em uma de suas costumeiras e herméticas reflexões. Para ele, aquela
inexplicável mudança de cenário tinha de ser obra de Ra. Mas não era este o pensamento
que o atormentava. Se os seus cálculos não estavam errados, aquela câmara e o túnel que
dela partia teriam necessariamente estreita relação com o interior da Grande Pirâmide de
Quéops. E, embora tentasse dissimulá-lo, um estremecimento o sacudiu da cabeça aos
pés.
- Que há com você? - interrogou Nietihw.
Sinuhe entretanto, ao menos naquele momento, não queria inquietar a amiga com
suas lucubrações. Ele estudara a estrutura interna da Grande Pirâmide e sabia da diabólica
rede de corredores, câmaras e poços traçada por seus construtores, e a dificuldade que
redundaria evadir-se dali. Outros muitos antes deles - especialmente saqueadores de
tesouros - o haviam tentado e a maioria, não achando a saída, havia enlouquecido e
morrido no labirinto. Mas, provavelmente, estaria enganado. ..
- Nada, não há nada comigo. Talvez o frio.. .
Efetivamente, pela boca do túnel vinha uma ligeira corrente de ar fresco. E o
investigador, mostrando aquela entrada, animou Nietihw a prosseguir na busca dos
homens "Pi". Na realidade, não tinham alternativa. Aquela câmara, com seus blocos de
pedra imensos e desnudos, começava a parecer-lhes angustiosa e asfixiante.
O casal se dispôs a penetrar naquele inquietante e tenebroso passadiço. Antes, a
pedido de Sinuhe, fizeram um inventário do que ainda lhes restava. Inexplicavelmente o
arco de gelo, a aljava e a solitária seta haviam desaparecido. Ao contrário, a "cadeia" com
os sessenta primeiros dígitos do número "pi" continuava cingindo a cintura de Sinuhe.
Quanto a Nietihw, sua única bagagem era o pequeno frasco de vidro com os
"ibos".
Sinuhe, pressentindo graves e iminentes dificuldades, tornou a sentir falta do seu
"amigo" desaparecido: o disco...
A sorte, uma vez mais, estava lançada. E, tomando a Nietihw pela mão,
enveredaram os dois pelo silencioso e negro corredor...
O angusto do túnel os obrigou a caminhar curvados, o queixo colado aos joelhos.
Sinuhe, roçando com o corpo a parede esquerda, situou-se um pouco à frente, enquanto
Nietihw, agarrada à sua mão direita, procurava iluminar o corredor resvaladiço e a cada
passo mais inclinado. Entretanto, os fachos multicoloridos que lhe brotavam dos olhos
não chegavam a localizar o fundo da passagem. E um temor crescente foi apoderando-se
deles. Que os aguardava ao final do túnel?
Nos primeiros metros, somente o arrastar rítmico dos pés sobre o piso tosco e suas
respirações, cada vez mais cansadas, romperam aquele silêncio espesso, tão impenetrável
como os muros entre os quais deslizavam.
Sinuhe, diante da progressiva inclinação do passadiço - que naquele ponto devia
oscilar pelos vinte e cinco graus - parou. Era melhor ter cuidado disse-o a Nietihw. Ela,
buscando mais estabilidade, deixou livre a mão direita do companheiro. E, amparando-se
nas paredes laterais com as respectivas palmas, tratou de frear a inércia imposta pela
ladeira.
De repente, alguma coisa chamou a atenção do investigador. Seus olhos tinham
ficado plantados no teto da passagem. A filha da raça azul concentrou o olhar naquele
ponto e as catorze cores iluminaram três séries de hieróglifos, toscamente pintados em
vermelho.
Após breve observação, o "soror" constatou tratar-se de marcas, provavelmente
feitas pelos canteiros que haviam trabalhado na construção e que, em escritura oval e
tipicamente egípcia, reproduzia os nomes: "Khufu-Knum Khufu-Knum".
- Meu Deus!
A exclamação de Sinuhe, carregada de maus presságios, só serviu para aumentar a
inquietação da companheira. E ela, no afã de descobrir a razão do lamento, deixou para
trás o amigo, caminhando precipitadamente para a zona sob as inscrições.
Sinuhe não teve tempo de detê-la. E antes que pudesse evitá-lo, os pés da filha da
raça azul resvalaram e ela foi precipitar-se de bruços no fundo do túnel.
- Sinuhe... Socorro!
O grito propagou-se qual tiro de canhão pelo estreito corredor, gelando o sangue
do amigo, que bem depressa a perdeu de vista.
Por alguns segundos, o eco lamentoso confundiu-se com o contínuo e cada vez
mais apagado som do roçar do corpo na ladeira resvaladiça-. Em seguida, depois de
intermináveis instantes, ele tornou a escutar um segundo grito. Desta vez, mais agudo e
terrível. Subitamente, quebrou-se a voz. E o silêncio invadiu tudo.
Às cegas, o coração apertado, Sinuhe lançou-se passadiço abaixo. Mas, como
aconteceu com Nietihw, após três ou quatro passos perdeu o equilíbrio e rolou pelo
tobogã.
Finalmente, após inacabável série de golpes contra os muros, foi dar com seus
doloridos ossos em um patamar, também de pedra. Aturdido, levantou-se a custo mas, ao
descobrir o que se lhe levantava à frente, por pouco não caiu desmaiado.
Aquele túnel descendente o conduzira a uma segunda câmara bastante mais
espaçosa que a primeira. Em uma de suas paredes - exatamente aquela à frente da saída
do passadiço - o corpo de Nietihw, de costas para ele, Sinuhe, achava-se firmemente
abraçado por um ser que, nos primeiros momentos, o investigador, aterrado, pensou ser
um esqueleto.
- Jesus Cristo!
Foi aproximando-se cautelosamente. Os arco-íris de sua companheira imóvel,
focando a parede, emprestavam ao recinto uma medíocre claridade. Essa aparente
contradição o confundiu mais ainda. Nietihw, em pé, o corpo colado à parede, permanecia
na mais absoluta imobilidade, firmemente segura por aqueles longuíssimos braços que lhe
cingiam as costas. "Se está desmaiada" - refletiu - "como é possível que seus olhos
continuem emanando luz?" A resposta chegaria quando Sinuhe, em atitude defensiva,
colocou-se em frente ao costado direito da desventurada amiga.
- Deus do céu!
Os fachos multicoloridos lhe revelaram, então, a verdadeira natureza do ente que
ele confundira com um esqueleto: a filha da raça azul achava-se agarrada por braços
mumificados.. . que brotavam da pedra. Aquelas pergaminhosas extremidades superiores
e mais um crânio - igualmente mumificado e que também emergia do muro, acima da
cabeça de Nietihw - compunham a repulsiva criatura que mantinha em tenazes a sua
companheira.
- Como é possível? - murmurou, ao mesmo tempo em que seu punho esmurrava a
pedra -. Isto é puro granito!.. .
Sua primeira impressão, e lógica, foi que os restos daquela múmia teriam sido
sepultados no interior do sólido e imenso muro. Mas, como?
Uma vez ciente da macabra natureza daqueles macérrimos braços, mal cobertos
por sujos farrapos de pano, sua atenção toda se concentrou em Nietihw..Efetivamente,
respirava. As palmas das mãos achavam-se pregadas à parede, como se tentasse rechaçar
aquele abraço sinistro. A cabeça, inexplicavelmente reta e inclinada para trás, apontava
para o crânio que sobressaía mais acima.
Os olhos, esgazeados, refletiam tal espanto, que Sinuhe temeu pela vida dela. Era
na realidade aquele pânico insuperável - mais que o abraço de ferro - o que a mantinha
paralisada.
Guiado pelo instinto, Sinuhe agarrou um dos braços, puxando-o com todas as
forças. O cepo entretanto não cedeu um único milímetro. Foi tentar de outro ângulo.
Inutilmente. Aquele punhado de tendões e músculos tinha a mesma consistência daquele
granito a que se achava unido. Então o membro da Escola da Sabedoria, sufocado,
deixou-se desmoronar junto à parede, sem saber onde achar a solução. Se não conseguisse
liberar Nietihw, nem ela nem ele teriam a menor oportunidade de sobreviver naquele
tenebroso subterrâneo.
Reagindo contra a desesperação, desencostou-se da parede e começou. minucioso
exame do recinto. Mas os frios e desnudos muros não lhe esclareceram grande coisa.
Tratava-se - e isso parecia evidente - de uma das múltiplas câmaras ou antecâmaras
existentes na Grande Pirâmide. A malfadada inscrição descoberta no teto do passadiço
descendente, com o nome de "Khufu" - verdadeira identidade do rei Quéops -, o
convencera de que se encontravam no interior dela. E, conhecendo como conhecia a
tendência dos construtores para elaborar todo tipo de armadilha que um dia confundisse e
frustrasse possíveis intrusos ou violadores de túmulos, chegou à conclusão de que sua
companheira fora vítima da fatalidade e, claro, de um daqueles ardis. Pode ser que essas
reflexões, e mais a dramática realidade da filha da raça azul, prisioneira daquele monstro
parido de um bloco de granito, tivessem acabado por arruinar o ânimo de quem quer que
fosse. Mas Sinuhe sabia também que a maior parte das arapucas da Grande Pirâmide
dispunham de vários e secretos dispositivos capazes de anular seus efeitos mortais,
sempre e quando fossem descobertos a tempo... E esta - conjeturava Sinuhe - não tinha
por que ser uma exceção. Entretanto, onde se esconderia essa hipotética e misteriosa mola
que permitiria a liberação de Nietihw?
Desalentado, ele voltou para junto da parede em que estava ainda a amiga. Tornou
a alisar a pedra retangular de onde surgiam a cabeça e os braços da múmia, atento a
qualquer resquício ou sinal. Em vão. Aquela mola granítica, solidamente encaixada, não
revelava nenhuma pista.
Deixou-se cair sentado no chão, literalmente arrasado. Encostou-se no bloco
fatídico. À sua direita, o corpo de Nietihw, estático e na ponta dos pés. E foi esse detalhe,
que até ali não lhe chamara a atenção, que o conduziria a outra descoberta decisiva.
Quando tinha os olhos fixos nos pés da amiga, percebeu que a extremidade inferior da
túnica oscilava brandamente. A mal perceptível oscilação do tecido fez com que reagisse.
- Como não me dei conta antes?
Maldizendo a má estrela, buscou a borda do muro que parecia enfunar aquela parte
da túnica de Nietihw. Colocou as mãos a quatro ou cinco centímetros da rocha e, com
efeito, detectou uma finíssima corrente de ar. Alvoroçado, acompanhou com os dedos a
trajetória da invisível fissura, comprovando que se estendia até um quarto do solo e a toda
a largura do muro. Se não estivesse enganado, ali talvez encontrasse a chave.
Retrocedeu uns passos, postando-se na direção de Nietihw. Observou a parede e,
depois de breve meditação, convenceu-se de que se encontrava diante de uma possível
porta basculante, bem típica do engenho egípcio. "Sendo assim, talvez a rotação da lousa
provoque a abertura dos braços... Mas como fazê-lo?"
"O único dispositivo capaz de mover este granito só pode estar do outro lado da
parede. . . A não ser que..."
Acabava de assomar-lhe ao cérebro uma idéia feliz. Em seus anos de estudo e
preparatório no universo da Loja da Sabedoria, tivera a oportunidade de comprovar como
algumas dessas portas secretas podiam abrir-se, graças a um mecanismo escondido em
algumas das múmias que faziam as vezes de gênios-guardiães. Tal dispositivo tinha, além
disso, um caráter de amuleto para a múmia que o encerrava. Algumas dessas "molasamuletos"
em forma de placas linguais, tinham sido vistas por ele em múmias do Royal
Scottich Museum de Edimburgo, do Gulbekian de Durham, na Inglaterra, e do
Rijksmuseum van Oudheden de Leiden.
Que podia perder experimentando?
Decidido, dirigiu-se até o crânio que emergia da rocha. Mas a cabeça estava a mais
de dois metros do solo, e Sinuhe, com sua estatura mediana, viu-se na irritante
contingência de roçar não mais que o pontiagudo queixo do cadáver. Só havia uma
solução. Decidido, saltou sobre os braços que aprisionavam Nietihw, encarando assim a
caveira.
A boca, tal como supusera, estava entreaberta, ostentando uma fileira amarela de
dentes. Sobre o lábio inferior, à altura dos incisivos e caninos, descobriu uma pequena
lâmina de forma retangular e arqueada que se perdia no interior.
Sinuhe agarrou a extremidade da lingüeta e, com o coração acelerado, puxou-a.
Os efeitos do puxão foram mais rápidos e bruscos do que podia imaginar o
voluntarioso Sinuhe. A lâmina metálica - provavelmente de ouro - cedeu coisa de dez
centímetros e, ato contínuo, movidos por um mecanismo oculto, os braços da múmia
abriram-se de golpe. Sinuhe, que se havia instalado de cócoras sobre os resistentes
antebraços, não teve nem tempo de saltar. Seu próprio impulso, ao puxar a mola-amuleto
e a automática abertura dos braços, provocou-lhe uma nova queda que o estatelou no duro
enlousado.
Do solo, assistiu a um não menos fulminante girar da parede de pedra. Esta teve
um movimento de báscula sobre um artifício oculto no centro do retângulo granítico -
presumivelmente ao longo do eixo menor - fazendo com que a parte inferior da parede se
elevasse em direção ao corpo recentemente liberado de Nietihw. A rocha, impossível de
ser parada, empurrou a filha da raça azul, deslocando-a e derrubando-a muito perto de
Sinuhe. E ela quedou estendida no chão, imóvel, com seus fachos multi-coloridos a
iluminar o teto da câmara.
E, antes que o nosso homem pudesse reagir, a porta secreta completou a volta
determinada por aquele mecanismo secreto, fechando-se de novo.
Sinuhe, contente com a liberação da amiga, não prestou maior atenção ao fato de a
folha de pedra ter voltado a encaixar-se, fechando-lhes novamente a passagem. Ajoelhado
junto a Nietihw, tentou chamá-la a si. Depois de muito rodeá-la, viu-se obrigado a aplicarlhe
duas sonoras bofetadas. Finalmente, os olhos dela pestanejaram e se lhe foi
extinguindo a extrema palidez do rosto.
- Nietihw!
Um tanto recuperada, ela se soergueu; passeou o olhar ao seu redor e, ao descobrir
o companheiro, lançou-se aos seus braços, vítima de um ataque de nervos.
- Fique tranqüila!... O pior já passou...
Sinuhe evitou qualquer referência à queda no túnel e ao posterior e trágico
encontro com os braços da múmia. Depois de secar-lhe as lágrimas, suplicou-lhe que
dominasse o medo.
- Agora, o importante é sair deste maldito lugar. ..
Pela primeira vez, desde que voltou a si, a filha da raça azul dirigiu o olhar em
direção à parede onde ficara presa; após uma breve pausa, perguntou:
- Onde estamos?
Sinuhe recordou-lhe os hieróglifos em pintura vermelha descobertos no teto do
corredor inclinado, fazendo-lhe ver que, se seus cálculos procediam, encontravam-se em
um dos tobogãs que cruzavam, talvez, o maciço central da Grande Pirâmide de Khufu ou
Queops e que, de acordo com seus conhecimentos, poderia conduzi-los bem até à câmara
do Rei ou da Rainha, ou à parte mais profunda da pirâmide: à tenebrosa câmara
"subterrânea". Sinuhe, no entanto, não fez menção aos incontáveis perigos que, como no
caso do abraço mortal da múmia, poderia reservar-lhes a passagem por aqueles
corredores...
- E esta - finalizou o "soror", mostrando as paredes que os rodeavam - tem de ser
uma das câmaras-"armadilha" que, por sua vez, nos separaria do caminho que nos levaria
até os homens "Pi".. .
- Os homens "Pi"!... - exclamou muito cética -. Você crê, de verdade, que
chegaremos até eles?...
- Tenho certeza - fingiu Sinuhe -. Não se esqueça de que ainda tenho a "cadeia".. .
Entretanto, interromperam-se as palavras do investigador. Em meio à penumbra,
"algo" começara a brilhar.. .
Voltaram-se para a lousa de granito que acabava de fazer o movimento basculante.
No centro, começara a cintilar um pequeno objeto. . .
A mulher quis aproximar-se, mas o companheiro, desconfiado daquela aparição
tão súbita, impediu-a e a reteve ao seu lado. Nietihw banhou então as paredes todas com
seus arco-íris e os dois, maravilhados, observaram como, sobre a áspera superfície da
pedra e, acima do refulgente objeto, ia aparecendo uma série de hieróglifos.
Ao incidir sobre a minúscula e fulgurante peça, os leques luminosos que partiam
de Nietihw sofreram refração instantânea, propagando-se em todas as direções. E aquele
objeto manifestou-se ante os "iuranchianos" em toda a sua beleza.
Nietihw, esquecida da prudente atitude do companheiro, deu um passo em direção
ao muro, a fim de examinar de perto a jóia. Pois disso se tratava. Diante do casal, alojada
em um nicho de uns dez centímetros quadrados, surgira uma gema prodigiosa, formada
por doze perfeitas e transparentes faces. Do núcleo do diamante partia uma luz branca
ofuscante que irradiava para cada um dos pentágonos regulares que delimitavam o valioso
dodecaedro.
Sinuhe imitou a companheira, e pôde comprovar como a pedra preciosa flutuava
fluida no oco praticado na rocha. E, após atenta observação, levantou a vista, tentando
decifrar aquele novo ideograma.
Em voz alta, o membro da Loja foi traduzindo os caracteres: "Estrangeiro: estás
diante da primeira porta. . ." Sinuhe hesitou. Alguns dos símbolos, apesar de sua recente e
misteriosa aparição sobre a pedra, estavam danificados, como se tivessem sido traçados
há centenas ou milênios de anos. Nietihw concentrou toda a sua luz sobre os hieróglifos e
os dois descobriram, então, o motivo daquelas imperfeições: da mesma forma que se
desenharam nas pedras - como eles testemunharam - assim também haviam começado a
auto-eliminar-se. Por conseguinte, não havia tempo a perder. E Sinuhe percorreu a
legenda a toda velocidade:
- "... que conduz a Dalamachia. . . EBEN é meu nome." Nem bem haviam
terminado aquela única e precipitada leitura, e as três fileiras hieroglíficas apagaram-se. E
diante do casal ficou apenas o tesouro deslumbrante. . .
A filha da raça azul repetiu as palavras que o amigo acabara de pronunciar e,
voltando-se para ele, quis saber do significado.
"Estrangeiro: estás diante da primeira porta que conduz a Dalamachia" -
memorizou Sinuhe, em atitude reflexiva -. "EBEN é o meu nome."
- E daí? - insistiu a filha da raça azul.
Mas o investigador não fez mais que encolher os ombros.
- A não ser. . .
- Fale, pelo amor de Deus! - recriminou Nietihw.
- A não ser que esse nome ("Eben") tenha relação com a pedra preciosa que o
Zohar ou Livro do Esplendor menciona; é um dos mais antigos e intrincados textos
cabalísticos dos judeus. O Zohar remete para os começos dos tempos uma gema de
incalculável valor, à volta da qual a história humana foi somando suas sucessivas
intuições do Infinito. Ao explicar a criação do mundo, o texto diz que o Criador, do seu
majestoso trono, arrojou a.o abismo uma pedra preciosa. Uma das extremidades do
maravilhoso prisma foi mergulhar na escuridão; o outro emergiu do caos. A Tradição dá a
esse diamante o nome de "Eben Hashetiaj" e, dizem os cabalistas, sobre essa base
estabeleceu-se o mundo. Essa pedra se teria perdido e todas as lendas afirmam que aquele
que a possuir | dominará o mundo. . .
Por um momento, conforme ia ele desenvolvendo sua exposição, a filha da raça
azul creu descobrir nos olhos do amigo uma chispa que a encheu de inquietude. É que
Sinuhe, com a vista cravada no diamante, parecia mergulhado em reflexões insólitas.
Finalmente, estendendo as mãos para a gema, sussurrou com voz desconhecida:
- Sim, aquele que a possuir dominará o mundo -. E, agarrando a pedra, retirou-a do
nicho.
Nietihw, desconcertada, não soube o que dizer.
- E por que não podemos apoderar-nos dela? - obtemperou o investigador, indo de
encontro às inquietudes que vagavam no ânimo da companheira -. Afinal de contas, quem
está arriscando a vida nesta tresloucada missão?. . .
A filha da raça azul não respondeu. Limitou-se a baixar os olhos, enquanto o
amigo acariciava o fulgurante tesouro.
Foram momentos de grande tensão. Desarmada ante a surpreendente cobiça do
companheiro, não soube reagir. Inesperadamente, porém, da mesma forma como se havia
apoderado da gema, Sinuhe voltou a depositá-la no oco do muro. Nietihw buscou,
ansiosa, o olhar do amigo e, quando se cruzaram, comprovou aliviada que se extinguira
aquele violento desejo de posse, tão rápido quanto havia chegado.
Nietihw não fez comentário algum. No entanto, ao contemplar o diamante,
diáfano, devolvido ao seu escrínio, compreendeu que aquela oportuna reação de Sinuhe
significava uma difícil vitória. A aguda intuição da filha da raça azul era perfeita.
No momento em que a jóia foi devolvida ao nicho, a luz do diamante se foi
tornando mortiça, até ficar reduzida a um remoto •ntilar interno. E ante a surpresa dos
nossos protagonistas, suas doze faces pentagonais abriram-se, transformando-se em outras
tantas pétalas de cristal. No fundo daquela rosa flutuante continuava viva a centelha que
fora o "coração" da gema.
Nietihw e Sinuhe entreolharam-se perplexos. E o membro da Ordem da Sabedoria,
levado por aquele incurável afã de vasculhar tudo, colou o nariz à delicada e cristalina
flor. Em poucos segundos, voltando-se para a amiga expectante, comentou sem dissimular
o desconcerto:
- Não pode ser!. . . Veja, Nietihw!
E, com o índice, foi enumerando as arestas que somavam as doze pétalas
pentagonais.
- Sessenta!. . . Somam sessenta: o valor numérico de Samej! A filha da raça azul
não pôde reprimir um calafrio ao ouvir
o nome da serpente. Mas, dominando-se mostrou, por sua vez, o cinturão de
números que Sinuhe portava, acrescentando uma observação que havia escapado ao
meticuloso companheiro:
- Ou o valor do número "pi" se considerarmos tão-só seus cinco primeiros dígitos:
3,1416...
Sinuhe, não muito de acordo com a observação, moveu a cabeça negativamente. A
amiga, porém, convencida de que aquela era uma "pista" transparente na busca dos
homens "Pi", colocou as duas mãos sob a ligeira e translúcida "rosa" e, com suma
delicadeza, retirou-a do nicho. No mesmo instante, ao contato com a pele, as doze pétalas
abriram-se ao máximo e a minúscula e branca luz do seu interior foi aumentando de
volume e intensidade, até inundar por completo a concha das mãos de Nietihw.
O que aconteceu em seguida foi tão rápido como um relâmpago: paredes, teto,
pavimento da câmara estremeceram como se sacudidos por um violento sismo.
Instintivamente, Nietihw protegeu a "rosa" junto ao peito, enquanto o companheiro caía,
derrubado pelo forte abalo. A vibração cessou depressa. E o casal, sem alento, assistiu ao
desmoronamento da laje de granito que abrigara o valioso diamante. Enquanto as demais
paredes não pareciam ter sofrido dano algum, a porta secreta que Sinuhe fizera mover-se
como báscula ficou reduzida a um grande monte de pó. Diante dos "iuranchianos" abriuse
um segundo e escuro corredor.
Enquanto Sinuhe ponderava sobre aquele tremor, negando-se a admitir-lhe a
origem telúrica, sua companheira retirou a rosa do peito e, abrindo as mãos, contemplou
maravilhada como da massa luminosa desprendiam-se, uma a uma, as doze pétalas
pentagonais.
Incapazes de articular palavra, Nietihw e Sinuhe contemplavam a beleza daquelas
perfeitas formas geométricas a revoar pelo espaço, indo fundir-se umas com as outras, até
compor uma formosa e gigantesca mariposa de cristal, com asas transparentes e
articuladas. Boquiaberto, o casal via como o enorme inseto batia as asas, perdendo-se nas
trevas do passadiço que acabara de abrir-se ante eles.
Um súbito grito da filha da raça azul fez com que de novo Sinuhe estremecesse.
Nietihw, com,seus arco-íris iluminando suas próprias mãos, ficara paralisada. A
massa brilhante que mantinha entre as palmas, da qual haviam escapado as doze pétalas
de cristal, acabava de perder sua luminosidade. Em seu lugar apareceu um cérebro
reduzido, do tamanho aproximado de um punho, mas igualmente transparente.
Atemorizada, ela não conseguira reter o grito. O companheiro precipitou-se em seu
socorro e ficou a contemplar, também atônito, a pequena massa cerebral - lembrando a de
um ser humano - que palpitava entre os dedos da filha da raça azul. Debaixo da casca,
distinguia-se um núcleo avermelhado e brilhante como um rubi.
- Deus meu, Sinuhe! - exclamou desorientada -. Que é isso?
O companheiro, tão desconcertado quanto ela, não soube o que responder.
- Não sei que sentido terá tudo isso - disse o investigador, rompendo assim o
silêncio -, mas a verdade é que devemos continuar.
E, apontando para o fundo do passadiço escuro, animou-a a reencetar a caminhada.
O novo túnel, descendente também, embora de menor inclinação, foi muito mais
cômodo que o anterior. O casal, sempre ajudado pelos raios multicoloridos, pôde penetrar
nele sem necessidade de abaixar-se. As paredes laterais, agora caiadas de branco,
chegavam a quase dois metros de altura. E Nietihw, com o pequeno cérebro entre as
mãos, ficou reconfortada quando sentiu o braço amigo sobre seus ombros.
A mente do investigador escaldava ainda com a lembrança do suposto terremoto.
Havia "algo" estranho, muito estranho naquele tremor. "Algo" que não conseguia decifrar
e que, ao mesmo tempo, fustigava-lhe o coração.. .
Por que não teriam escutado o estrondo que normalmente acompanha tais
movimentos sísmicos? Por que a comoção das paredes da câmara teria coincidido com o
desabrochar das doze pétalas de vidro, naquele instante em que Nietihw teve a iniciativa
de tomar a "rosa" entre as mãos?
Por uma fração de tempo os nervos de Sinuhe se relaxaram um pouco, entretidos
por aqueles pensamentos. No fundo, o que desejava era esquecer que estava enveredando
por aquele corredor tenebroso, ao encontro do desconhecido. .. Por outro lado, a
descoberta do novo passadiço o pusera inseguro quanto ao ponto a que se dirigiam.
Lembrava-se de que a entrada da pirâmide de Quéops, situada na face norte, tinha um
tobogã em declive de 53 pés. Chegados a esse ponto, o túnel deveria ter-se dividido em
dois: um ramal que subia em direção ao centro da tumba - onde se achavam as câmaras do
Rei e da Rainha - e o outro, que dava no subsolo: na tétrica "câmara subterrânea".. . Deste
passadiço, entretanto, nunca tivera notícia. "Além do mais" - confabulou - "que garantias
temos nós de que a nossa entrada na Grande Pirâmide se teria dado pela entrada
principal?"
Como lhe acontecia habitualmente, desde que se vira envolvido naquela aventura,
suas meditações foram bruscamente interrompidas. Nietihw focalizara o que parecia ser o
fim do túnel.. . - Olha!
A voz da mulher - um sussurro, quase - propagou-se qual um dardo no meio das
trevas. Em frente, tenuemente iluminada pelas catorze cores de Nietihw, levantava-se
uma mole escura e reluzente, onde se espelhavam dois olhos.
Assustada, a filha da raça azul piscou. Mas a intermitência na semi-escuridão só
contribuiu para realçar mais a vivacidade daquele olhar. Depois desses momentos de
tensa espera, Sinuhe decidiu-se a avançar. E, lentamente, naquele silêncio que asfixiava,
venceu a distância que o separava daquele novo mistério. Uns metros atrás, e a pedido do
amigo, Nietihw aguardou expectante.
Ao aproximar-se, ele percebeu que a informe massa negra que lhes fechava a
passagem era, na realidade, uma imponente escultura.
Examinou-a com calma, constatando que se encontravam diante de uma esfinge,
esplendidamente talhada em um bloco de basalto negro. À diferença da famosa esfinge de
Gizé, esta não ostentava aspecto totalmente "humano". A volumosa cabeça - que ocupava
quase todo o espaço do túnel - exibia um curvado bico de falcão e, entre os lábios,
destacava-se longa e afiada língua bifendida, característica das serpentes. Quanto aos
olhos, rasgados como os de uma pantera, tinham sido magistralmente coloridos. Uma
envoltura de bronze, fazendo as vezes de pálpebras, cobria o globo, feito por seu turno
com um fragmento de quartzo branco raiado de rosa. No centro, representando as pupilas,
Sinuhe observou vários pedaços de cristal de rocha. E sob eles, um cravo re-fulgente
determinava cada um dos pontos visuais, provocando, à luz dos olhos de Nietihw, uma
irradiação plena de vida. . .
O corpo que sustentava a titânica cabeça - metade homem, metade animal -
correspondia ao de um leão sedestre, com duas poderosas patas.
Sinuhe reclamou a presença da amiga e então os dois tributaram toda a atenção às
três colunas de hieróglifos talhadas no torso da majestosa esfinge.
- "Ô Ra" - traduzia o membro da Escola da Sabedoria -, "deste garras ao leão...
Dotaste de vôo o pássaro... Puseste a peçonha na boca da cobra. . . Mas, que arma
reservaste para o estrangeiro que chegou à tua segunda porta?"
Sinuhe repassou os símbolos.
- Garras ao leão? Vôo ao pássaro? Veneno para a serpente?. . . Que chave
encerrará essa inscrição?
Nietihw desviara a vista para o pequeno e cristalino cérebro que guardava entre
suas mãos. À medida que se ia aproximando da esfinge, o núcleo cor de granada se ia
manifestando mais e mais brilhante, até o ponto de impregnar os hemisférios com sua
tonalidade rubi. E agora, junto da escultura, a massa cerebral desencadeara uma série de
palpitações.
A filha da raça azul chamou a atenção do companheiro sobre o intrigante
fenômeno.
- Há algo que parece claro - disse Sinuhe, voltando-se para os símbolos lavrados
no peito do leão -. Esse cérebro tem de guardar alguma relação com a esfinge. Mas qual?
- O segredo - retrucou Nietihw - deve esconder-se nessa última frase: "... que arma
reservaste para o estrangeiro que chegou à tua segunda porta?"
- Segunda porta? Que segunda porta? Onde está?
Sua companheira não soube o que responder. E juntos, de pé ante a esfinge, caíram
em longo silêncio.
Incapaz de resolver o enigma, o investigador logo abandonou suas reflexões,
entregando-se à rigorosa inspeção, pormenorizada, de cada uma das partes da escultura.
Deslizou os dedos pelas frias patas do leão, na esperança de descobrir, quem sabe, alguma
nova mola secreta. Mas foram inúteis as pesquisas. Por último saltou para o alto da
gigantesca cabeça.
Nietihw, sem que ela mesma pudesse precisar por quê, continuava obcecada pela
última parte do hieróglifo. Sua intuição a levava, inclusive, mais além. "A chave" -
repetia-se mentalmente - "tem de estar na palavra "arma"..."
Inesperadamente, um comentário trivial de Sinuhe, que continuava encarapitado no
alto da esfinge, veio clarear a incógnita:
- Aqui há só um pequeno poço - anunciou, apontando para uma pequena e
escondida cavidade praticada na própria base da cabeça.
- Um poço? - inquiriu ela em um tom que a Sinuhe pareceu exagerado.
- Sim, mas não vejo que importância. . .
- Que dimensão tem? - perguntou um tanto brusca. Sinuhe começou a compreender
que alguma idéia adejava na cabeça da amiga e, submisso, palpou o orifício, deduzindo
que naquela cavidade mal entraria um punho cerrado. E assim o transmitiu a Nietihw.
- Um punho? - clamou a filha da raça azul com ar triunfante -. Será que você não
entende?
Na fisionomia de Sinuhe, esmaltada pelos fachos coloridos dos olhos da amiga,
esboçou-se uma expressão interrogativa.
- Lembre-se do crânio de pedra da Esfinge de Gizé. Não dispunha também de um
poço... e no mesmo lugar?
O investigador assentiu.
- E agora diga-me: se as "armas" do leão, do pássaro e da cobra são suas garras,
vôo e veneno, respectivamente, qual será a do homem?
Os dois voltaram seus olhares para o cérebro palpitante.
- Sim - sentenciou Nietihw, levantando as mãos em direção à fronte da esfinge -, a
razão!
O investigador desceu para junto da sagaz companheira e, sem perda de tempo,
ajudou-a a chegar até o lugar que ele acabara de abandonar. Uma vez ali, Nietihw, com
extremo cuidado, passou a depositar o cérebro fulgente no reduzido orifício. O
acoplamento foi matemático. E a filha da raça azul, sorridente, contemplou entusiasmada
como a enigmática massa acelerava suas pulsações. Mas, subitamente, assim como se a
implantação daquele cérebro tivesse disparado algum mecanismo oculto, fecharam-se as
pálpebras de cobre da esfinge. E uma nova vibração fez oscilar o passadiço...
- Nietihw!... Cuidado!
Sinuhe não pôde sequer estender a mão para ajudar a companheira. Os muros e o
teto oscilaram violentamente - como que sacudidos por violenta e ciclópica onda cósmica
- e a boca da esfinge, diante do espanto do investigador, abriu-se de par em par.
- Jesus Cristo!
Aturdido com a imensa bocarra, Sinuhe, em um movimento reflexo, não teve
tempo senão para proteger o rosto com os braços. Da goela da esfinge - que teria
permitido a passagem de vários homens ao mesmo tempo - brotaram línguas de fogo. . .
branco! E aos borbotões, como um rio flamígero, precipitaram-se pelo túnel, envolvendo
Sinuhe à sua passagem. Ele, arrastado pela singular torrente, bracejou com desespero,
percebendo, com não pouca surpresa, que as chamas, longe de abrasá-lo, comportavam-se
como uma corrente de água, chegando a molhar-lhe as roupas.
Meio asfixiado, lutou pela superfície. Ao emergir daquelas "águas de fogo", viu
quanto fora arrastado por aquela impetuosa força até perto do final do passadiço, e que
perdera de vista a sua Nietihw. E, saltando as cristas espumosas das chamas que
inundavam o corredor, nadou com todo o elã em direção à boca da esfinge.
À luz que o silencioso e nacarado "caudal" irradiava - coroado, como digo, por
línguas sucessivas de um fogo frio e úmido - o investigador, enlouquecido, atinou com
outro fato que o impeliu a bracejar mais desesperadamente ainda: o nível da "vaga de
fogo" continuava subindo inexoravelmente, ameaçando inundar totalmente o túnel.
- Sinuhe!. . . Aqui!
De repente, das encabritadas chamas que se quebravam como ondas contra o corpo
do nosso homem, destacou-se a voz de Nietihw. E Sinuhe, enchendo de ar os pulmões,
submergiu na torrente, nadando em direção às fauces da escultura. Assim avançou mais
rapidamente. Mas, a ponto de desfalecer, teve de buscar a superfície. Depois de uma
vigorosa batida de pés no chão do corredor, nadou rijamente para o alto.
- Aqui!. .. Aqui!
Ao emergir daquele fantástico e agitado meio fluido, os olhos do jovem
reconheceram a mão da amiga, estendida para ele, a pouco mais de meio metro. A filha da
raça azul, empoleirada no alto do crânio de basalto, lutava para resgatar o companheiro.
Por um momento, Sinuhe temeu pela vida de Nietihw: as "águas" cobriam já os
olhos da esfinge, e não tardariam a sepultá-la. ..
- Vamos! - gritou ela, impaciente -. Agarre-se de uma vez!
Dominado pelo instinto de conservação, arremessou-se para aquela mão, a ela se
aferrando com todas as forças. Durante segundos a mulher agüentou o peso, segurando-se
firmemente, com a mão esquerda, à base da cabeça de pedra. Inesperadamente, porém, o
fluxo da corrente mudou e o investigador foi puxado para as fauces submersas.
- Deus meu!.. . Nietihw!
Súbito remoinho se fez em torno de Sinuhe que, arrastado, acabou por largar a mão
da amiga. E os leques luminosos que brotavam dos espantados olhos de Nietihw
iluminaram o companheiro naquele exato e crítico momento em que o torvelinho o
devorava e ele desaparecia dentro da ardente espuma branca.
- Sinuhe!... Não!
Nietihw não hesitou. E, com uma reação que nem ela mesma chegaria jamais a
explicar-se, saltou atrás do companheiro, sendo também colhida por aquela armadilha
infernal.
A forte corrente arrastou-a para as escancaradas fauces da esfinge e, por algum
tempo, seu corpo ficou à mercê daquele "rio" espesso e turbulento, chocando-se, sem
cessar, contra as paredes daquilo que parecia uma continuação do corredor que lhes dera
acesso à monumental escultura de basalto negro.
Com os pulmões a ponto de estourar, a filha da raça azul sentiu-se finalmente
impelida para o fundo do túnel. Ali a maré branca mudou de cor e as línguas de fogo se
diluíram, transformando-se em fumaça verdosa. Nietihw, entretanto, não teve tempo para
compreender: a força da torrente terminara por vomitá-la fora do passadiço. E de repente,
envolta naquela bruma esmeralda, viu-se estendida sobre um reluzente piso dourado.
Aturdida, roupas ensopadas, descobriu, por entre as faixas daquele gás esverdeado, a
figura de Sinuhe, de pé na sua frente.
O membro da Escola da Sabedoria investiu contra a companheira e, sem meias
palavras tomou-a pelos braços arrastando-a, sem consideração, para o centro do recinto
onde foram "desaguados".
Nietihw, sem entender o estranho comportamento, tentou safar-se. Mas ele,
fisionomia grave, mostrou-lhe o ponto de onde acabara de tirá-la. -
A filha da raça azul voltou a cabeça e um grito escapou-lhe da garganta. Sobre as
lâminas de ouro que revestiam o aposento, ziguezagueava pesadamente uma velha
conhecida: Samej, a serpente. As fauces abertas, mostrando as ameaçadoras filas de
dentes, exalava o já familiar jorro de fumo verdolengo. Aquele mesmo que Nietihw vira
ao final do túnel por onde fora arrastada.
A mulher, lívida, buscou refúgio nos braços do amigo.
- Como é possível?... Então, os corredores e esse rio de fogo...?
Sinuhe confirmou os balbuciantes pensamentos da amiga:
- Não há outra explicação, Nietihw. Durante todo esse tempo permanecemos no
interior de Samej...
O ofídio então, como a querer confirmar a dedução de Sinuhe, ergueu-se sobre os
primeiros patamares do seu ventre e fez desaparecer seu "alento" esmeralda, lançando do
mais profundo da traquéia uma golfada daquelas chamas brancas e úmidas que haviam
inundado o segundo passadiço. E, entre as oscilantes línguas que brotaram de Samej, o
casal viu aparecer, por último, a delicada figura da borboleta de cristal... No mesmo
instante, as brancas e delgadas "chamas de água" desapareceram. E a serpente cerrou a
goela, iniciando uma de suas temíveis aproximações para junto dos indefesos
"iuranchianos"...
Nietihw foi a última a dar-se conta da repentina perda dos seus arco-íris. Ao ser
expelida, tal como Sinuhe o foi, das entranhas da grande serpente, seus olhos recobraram
a normalidade.
Afortunadamente, o lugar em que se encontravam parecia iluminado por intensa e
dourada claridade, que irradiava do profuso chapeado que recobria totalmente a peça, teto
e pavimento incluídos. Em circunstâncias menos dramáticas, possivelmente teriam ficado
extasiados e fascinados com aquele esbanjamento de ouro. Mas ao centro da refulgente
sala quadrangular e desnuda Samej desafiava...
Sinuhe ajudou a companheira a levantar-se e, com um rápido passar de olhos,
procurou um possível refúgio. Desolado, percebeu que as paredes não proporcionariam
nem abrigo nem possibilidade de evasão. No centro de cada um dos quatro muros -
remota esperança - acreditou distinguir portas formadas igualmente por lâminas douradas
de mais de dois metros de altura. Para o cúmulo dos cúmulos, nem a filha da raça azul
nem o amigo dispunham, na ocasião, de arma alguma. Só a "cadeia" de números
continuava cingindo a cintura de Sinuhe. Entretanto, acossados como estavam pela
proximidade ameaçadora da serpente, nenhum deles se lembrou da existência do
"cinturão" mágico.
O casal retrocedeu e, instintivamente, correu para uma daquelas hipotéticas portas.
E Samej, com seus olhos circulares tingidos de rubro, contraiu os anéis centrais do corpo,
lançando-se em demanda de nossos amigos.
- Sinuhe! - bradou a mulher, apavorada -. Não é possível!
Apesar do ritmo frenético com que lutavam para alcançar a porta, o muro de ouro
se ia afastando, inteirinho, com a mesma velocidade com que corria o casal. Dali a poucos
minutos tiveram de deter-se, os dois, esgotados e perplexos ante aquele inexplicável
distanciamento da parede. Sinuhe, com o rosto molhado de suor, contemplou o muro,
agora tão imóvel quanto eles e a pouco mais de dez metros de distância. Era inútil
ponderar. Então, girando sobre os calcanhares se dispôs a enfrentar Samej. Antes, porém,
em derradeira tentativa para salvar Nietihw, indicou-lhe outra das misteriosas portas -
aquela situada, no momento, à esquerda do casal - ordenando-lhe que corresse para lá. Ela
titubeou. Mas ele, com gesto autoritário obrigou-a a obedecê-lo. E a filha da raça azul
empreendeu uma nova e desesperada carreira. Entretanto, tal como já o suspeitava o
investigador, também aquela segunda parede dourada distanciou-se, tornando inútil a fuga
da amiga, aturdida.
Sinuhe reparou então que, das quatro paredes que compunham o recinto, só aquela
que a amiga tentava alcançar deslocava-se a grande velocidade, convertendo o lugar em
uma interminável sala retangular.
A serpente, surpreendida com aquela inesperada separação de suas vítimas,
suspendeu por uns momentos o seu avanço. Parecia hesitar. Alçou a cabeça até quase
tocar o teto e, após contemplar a trêmula figura do homem desdenhou-a, voltando o
crânio couraçado para aquele frágil corpo que se afastava para parte alguma...
O colo de Samej oscilou. As fauces tornaram a abrir-se e a tríplice fileira de
lâminas faiscou durante uns segundos, espelhando o ouro dos muros. E o réptil rastejou
atrás dos passos da filha da raça azul.
Desesperado, Sinuhe saltou sobre o lombo de Samej e, engatinhando pelas pétreas
placas que o cobriam, tentou chegar até a cabeça. Galgou o amplo pescoço, mas, a uma
das violentas oscilações da serpente, foi projetado ao solo. O ofídio revolveu-se então
para o lado do desgraçado "iuranchiano" e, levantando a cauda, preparou-se para esmagálo.
Sinuhe, olhar fixo nos sanguinolentos olhos do monstro, creu ter chegado o seu fim...
Sorte ou azar para o membro da Loja secreta, suas aventuras não acabariam ali,
debaixo do peso do corpo ciclópeo de Samej...
Quando já se considerava perdido, uma olvidada silhueta cruzou vertiginosamente
por cima da balouçante cauda do réptil. Era a diáfana mariposa de diamante. Impetuosa
como raio, ela precipitou-se sobre a extremidade de Samej, cravando-lhe uma das asas
entre as placas. Ferida, a serpente estremeceu e violenta convulsão se lhe propagou pelo
corpo todo. Quando a onda alcançou o ponto em que se achava incrustada a oportuna
borboleta, esta saltou no espaço, atirada como se fora um trapo. Imediatamente, pela
brecha aberta na cauda brotaram aquelas chamas brancas e úmidas entre as quais Sinuhe
estivera imerso.
Aterrorizado, o investigador se atirou para um lado. Dessa vez, seus reflexos
evitaram que o corpo de Samej o envolvesse. O animal, em meio aos estremecimentos,
orientou a cabeça para a zona ferida, e nela arrojou espesso jorro de fumo verde. Mas o
nosso homem, a quem o ataque da borboleta animara, aproveitou aqueles momentos de
confusão e recolheu do solo a heróica amiga. As asas dela estavam ainda rígidas e afiadas
como um machado.
Nesse ínterim, Somej conseguira fechar a ferida e, com as fauces meio escondidas
por ininterruptas colunas de fumaça, rumou para o lado de Sinuhe e o encurralou com a
cauda.
O réptil deitou o crânio para trás e, retraindo os anéis, postou-se para o ataque
final.
Consciente do perigo, Sinuhe apanhou a borboleta por uma das asas e, erguendo-a
acima de sua cabeça, arrojou-a contra o ofídio. Em décimos de segundo, o duplo
machado, girando sobre si mesmo como uma hélice mortal, atravessou o espaço que o
separava de Samej, enfiando-se no pescoço dela, sob a grande mandíbula.
O investigador, sem se demorar junto à serpente para ver o resultado do lance, foi
correndo na direção de Nietihw.
A poucos metros, o exausto casal de humanos observava Samej ir perdendo o
equilíbrio e, entre estertores, chocar sua cabeça, violentamente, contra as lâminas de ouro
do pavimento. Uma das asas da borboleta penetrara profundamente no pescoço, abrindo
uma nova e aparatosa ferida, por onde começara a fluir, aos borbotões, um riacho daquela
"água de fogo".
Samej tentou cobrir a brecha com suas volutas de gás. Entretanto, os contínuos e
exasperados movimentos da cabeça só logravam aprofundar cada vez mais a asa de
diamante, cravada justamente sob as fauces. Duas aterrorizantes batidas de corpo
anunciaram o fim iminente do monstro. E Samej, agonizante, girou o crânio na direção do
casal. Seus olhos, então, foram perdendo aquela cor escarlate, substituída por um azul
intenso.De repente, sem que Sinuhe conseguisse evitá-lo, a filha da raça azul, compadecida
ante o trágico final do inimigo, precipitou-se sobre suas fauces entreabertas.
- Não!. . . Nietihw!
A impetuosa mulher desatendeu a advertência; de joelhos, desafiando os
pontiagudos dentes, pôs-se a esvaziar o frasco dos "ibos" na boca de Samej.
Quando Sinuhe conseguiu resgatar o braço da amiga do interior do réptil, mais da
metade dos grãos luminosos se havia perdido na garganta do monstro.
- Por quê?... Por que você fez isso?
Nietihw não respondeu. Mas Sinuhe, ao passo que a levava para longe do ofídio,
soube ler-lhe no olhar um misto de piedade e reconhecimento por aquele misterioso ser
que, à sua maneira contribuíra - e não pouco - para o desenvolvimento da missão.
E, ante o crescente temor do rapaz, os efeitos da "areia" mágica não tardaram a
manifestar-se.
Da goela da serpente brotou uma golfada de fumo esmeralda, mais densa e
abundante que as anteriores. Sinuhe, temendo um retorno à vida de Samej, inclinou-se
para trás, protegendo Nietihw. Mas, ao contrário do que esperava, o corpo do réptil não
experimentou movimento algum. As nevadas línguas de fogo continuavam fluindo pela
brecha, cada vez mais abundantes e velozes. Se aquela "torrente" leitosa e em permanente
torvelinho era o sangue de Samej, não havia dúvida de que o animal se estava
dessangrando aceleradamente. Essa hipótese não o tranqüilizou. Se a "vaga de fogo"
continuasse manando naquele ritmo, a sala estaria submersa em questão de minutos. E,
em tal caso, que fazer? Por onde escapar?
A "água de fogo" já cobria os pés dos "iuranchianos", quando, inesperadamente, a
extremidade superior da grande coluna de fumo verde sofreu convulsões. E um não
acabar de pequenas volutas, girando e borbulhando sem cessar, deu forma a uma cabeça
familiar. . .
Os dois, ao reconhecer aquela figura trêmula e fumegante, recuaram. Mas a maré
branca que continuava subindo, começou a entorpecer-lhes a marcha. Além do mais, para
onde ir?
Nietihw e o companheiro, avançando penosamente, afastando com as mãos as
densas chamas, optaram pela porta mais próxima. Desta vez, o muro não se distanciou. E
os nossos protagonistas sem atrever-se a olhar para trás, toparam finalmente com as
douradas pranchas que vestiam aquele lado da peça.
Mas voltaram-se e o espetáculo os deixou sem fala. As línguas de fogo cobriam
quase completamente o corpo inerte de Samej e, pelas fauces meio neufragadas, brotava
sempre aquela coluna de fumo esmeralda. Porém o "alento" da serpente se transformara
em uma segunda e espectral Samej. . .
Nietihw, sentindo-se responsável pelo inesperado e pouco desejado final,
prorrompeu a chorar.
E a vibrante serpente de fumaça, desenhando no vazio um imenso arco, foi
aproximando-se do aterrorizado par.
A filha da raça azul, com as espumantes cristas do rio de fogo a roçar-lhe já a
cintura, escondeu o rosto entre as mãos, soluçando desconsoladamente. Mas, para
surpresa deles, a vaporosa cabeça de Samej se deteve, a curta distância. E ali se manteve,
impassível, vigilante, os circulares e opacos olhos esverdeados cravados em Nietihw.
Esta, admirada por não se dar o novo ataque que imaginava, foi descobrindo seus olhos
macerados. Nesse instante, a boca de fumaça daquele fantasma abriu-se, desvelando, uma
após outra, as doze pétalas de cristal que pouco antes haviam dado vida à providencial
mariposa de diamante.
E, diáfanas, ficaram no ar, evoluindo lenta e pausadamente sobre si mesmas, como
à espera de alguma decisão da atônita filha da raça azul.
Sinuhe, sem saber que fazer, estendeu as mãos, como que para recebei as
fulgurantes peças. Elas, porém, não baixaram. Finalmente Nietihw, compreendendo,
imitou o amigo.
E, uma após outra, as pétalas pentagonais se foram pousando em suas palmas.
Quando o último cristal tomou contato com a pele de Nietihw, as peças se
iluminaram e, alinhando-se, converteram-se em uma fúlgida chave.
Satisfeita, a segunda Samej deslizou ondulante sobre a superfície do rio de fogo e,
para surpresa do casal, foi afundando na agitada massa de chamas brancas, até
desaparecer.
Nietihw manuseou a chave com curiosidade: observou que os dentes eram
formados por letras, igualmente transparentes e. como o resto do inesperado presente de
Samej, de dureza diamantina. Incapaz de decifrá-las, apressou-se a depositar a chave nas
mãos do amigo, não menos desconcertado. Sinuhe, no momento, não lhe prestou atenção.
Seus olhos estavam presos ao ponto onde eles viram submergir a serpente de fumo.
Subitamente, aquelas línguas de fogo úmido começaram a girar, provocando um
remoinho que ameaçava propagar-se pela alva lagoa em que se convertera a câmara
dourada. E, temendo que a força daquelas "águas" pudesse arrastá-los para o olho do
torvelinho, segurou a companheira, colando-lhe as espáduas contra a porta do muro.
A filha da raça azul, obedecendo ao instinto, pediu a Sinuhe que utilizasse a chave.
- A chave? - exclamou sem compreender -. Como?
- Os dentes dela formam uma palavra!... Aí deve estar a revelação! - gritou-lhe a
mulher, sentindo já como a corrente os puxava para o centro, mais e mais encrespado da
superfície da "água de fogo".
E Sinuhe, batalhando por manter-se junto à parede, levantou a chave acima das
águas flamejantes, descobrindo, com efeito, que os dentes compunham a palavra hebraica
"HESED".
Desgraçadamente, nem um deles dispunha de tempo para refletir sobre o novo
enigma. O remoinho corrupiava agora com ímpeto vertiginoso e Sinuhe, sem perda de
tempo, prendeu a chave entre os dentes e tratou de soltar a "cadeia" de números que
conservava ao redor da cintura. Ligou uma de suas extremidades ao olho da chave e,
depois de gritar à amiga que se lhe aferrasse ao pescoço, levantou a chave, lançando-a ao
ar. Mas o violento e espumoso torvelinho branco os agarrou. E Sinuhe, com a
companheira firmemente soldada às suas costas, foi sugado para o centro da lagoa.
De repente, em meio ao enlouquecido e cada vez mais rápido rodopiar do
remoinho, Sinuhe, que se agarrava ainda e desesperadamente à "cadeia" de sessenta
números, sentiu um fortíssimo puxão. Mas seus braços, quase desconjuntados, resistiram
ao embate. A chave, tal como esperava o membro da Escola da Sabedoria, fora incrustarse
em algum lugar da câmara.
Palmo a palmo, coberto por vezes pelas embravecidas línguas de fogo, encetou
uma aproximação, lenta, para o desconhecido mas providencial ponto em que supunha
ter-se cravado ou enganchado a não menos mágica chave...
Com as mãos ensangüentadas, Sinuhe, à beira do desfalecimento, conseguiu
finalmente livrar-se do olho do torvelinho. E, depois de descansar uns minutos sobre a
tensa superfície das "águas", prosseguiu em seu avanço, aferrado sempre à "cadeia" do
número "pi".
Quando o extenuado casal já se achava a poucos metros da parede, o nível da lagoa
baixou bruscamente. E, sem que soubessem como, as alvas chamas começaram a
desaparecer pelo olho do redemoinho, como se misteriosa mão tivesse aberto um buraco
no chão da câmara.
Sinuhe e a companheira logo tiveram pé. Mas, esgotados, deixaram-se ficar
estendidos, ainda seguros à "cadeia".
Quando as últimas línguas escorreram e a sala voltou ao seu primitivo brilho
dourado, Nietihw rasgou um pedaço da fralda da túnica e, amorosamente, enfaixou as
mãos ao amigo.
- Ânimo! - sussurrou-lhe, esforçando-se por convencê-lo e convencer-se de que o
pior já tinha passado -. Vamos sair daqui!
No entanto, no mais recôndito de sua alma, a filha da raça azul sabia que as provas
que lhes estavam infligindo não tinham chegado ao fim.
O jovem se levantou e, sacudindo as roupas, acompanhou o trajeto da "cadeia". A
poucos passos percebeu que os negros e brilhantes números, magicamente engrenados
entre si, conduziam a uma das portas. Concretamente, a uma fechadura colocada em
altura média e na qual, com efeito, se havia introduzido a chave de diamante.
Silencioso, passou a soltar os números que ligara à chave, recolhendo
ininterruptamente a "cadeia". Mas agora, em vez de cingi-la à cintura, colocou-a em torno
do pescoço. E com indisfarçável curiosidade, pôs-se a inspecionar os painéis de ouro que
adornavam ou protegiam o acesso misterioso.
Nietihw, a seu lado, lembrou-lhe a palavra que dava forma aos dentes e quis saber
do significado dela. O investigador, distraidamente, respondeu-lhe que "HESED" era um
vocábulo hebreu que queria dizer "clemência". Mas, ensimesmado em sua busca de
alguma inscrição ou sinal que pudesse arrojar um raio de luz sobre o novo enigma, não se
deu conta do imprudente distanciamento da companheira.
A mulher, confiando na sagacidade de Sinuhe, esqueceu por momentos u problema
da porta. Pois desde que vira desaparecer as brancas chamas sentia irrefreável
curiosidade. Como e por onde haviam escorrido aquelas "águas de fogo"?
Quietinha, sem que o amigo o percebesse, caminhou para o centro da câmara
dourada...
Mas, quando apenas alguns passos a separavam do escuro círculo que já
adivinhava sobre o pavimento, súbito pressentimento esteve a ponto de fazer com que
voltasse.A curiosidade, não obstante, foi mais poderosa, e então ela continuou até a beirada
de um buraco de pouco mais de um metro de diâmetro, perfeitamente delimitado pelas
lâminas de ouro. Aproximando-se descobriu um poço mergulhado na mais negra
escuridão.
- Nietihw, creio que tenho a solução!...
As palavras de Sinuhe, que acabava de volver a cabeça em busca da companheira,
ficaram-lhe bloqueadas na garganta. Impotente, contemplou como a filha da raça azul era
arrebatada por uma sombra.
De um salto, separou-se da porta, lançando-se atrás da amiga, Mas quando
alcançou a abertura Nietihw já havia desaparecido.
Não chegou nem a olhar para o interior do poço. Antes que o fizesse, catapultada
de lá do mais profundo, subiu uma prancha igualmente dourada que o fechou
hermeticamente. Todos os seus esforços foram inúteis. Esmurrou e pisoteou a lâmina.
Invocou "Ra", o amigo perdido, suplicou e, finalmente, caindo de joelhos no pavimento,
chorou amargamente.
Era a segunda vez que perdia Nietihw e, só a idéia de que pudesse ter sido
capturada pelas "golem" ou pelos "medianos" rebeldes, fê-lo mergulhar em fundo
abatimento. Que poderia fazer pela companheira? Como, e de que lado procurá-la?
Encontrava-se só e perdido no interior daquilo que supunha ser a Grande Pirâmide de
Quéops e, ainda por cima, sem armas nem qualquer ajuda. ..
Em uma de suas bruscas mudanças de estado de ânimo, Sinuhe secou as lágrimas
e, com passo decidido, coração queimante de raiva, lançou-se em direção à porta onde
sobressaía a chave de diamante. Colérico, maldizendo a hora em que aceitara a missão,
girou a chave com ambas as mãos. Um estalido escapou da fechadura e, no mesmo
instante, os painéis de ouro da porta se gretaram. E pelas mil fendas escaparam
minúsculas chamas azuis, que se propagaram velozmente, consumindo as douradas
lâminas quarteadas.
O investigador, temendo que o fogo celeste pudesse alcançá-lo, deu um passo para
trás. As línguas vorazes, de apenas uma polegada de comprimento, extinguiram-se,
entretanto, tão rapidamente como haviam surgido.
Ao volatilizar-se o chapeado, a porta foi convertida em um imenso espelho
retangular. Esta, pelo menos, foi a primeira impressão de Sinuhe. Ali, à sua frente,
recortava-se sua própria imagem. Mas, ao observar a si mesmo com mais cuidado, ficou
perplexo: o Sinuhe que aquele suposto espelho refletia, não exibia
ao colo a "cadeia" de números. O resto, sim, era seu retrato vivo. "Como pode
ser?", perguntou-se alarmado, ao mesmo tempo em que levava a mão direita ao colar, em
um tímido e quase mecânico gesto para convencer a si mesmo de que estava sonhando ou
de que sofria alguma alucinação. Mas a "cadeia", essa sim, continuava sobre seu peito.
Um calafrio foi o prelúdio de outro sucesso não menos fantástico. Atônito, viu
como a imagem que permanecia à sua frente não repetia o movimento que acabara de
efetuar. Pela lógica, se na verdade se achava diante de um espelho, o braço da imagem -
"seu" braço - deveria ter-se erguido também em direção ao colar.
Aturdido, começou a gesticular. O "outro", entretanto, não se movia. E continuou a
mirá-lo, impassível, com os braços caídos ao longo do corpo, enquanto Sinuhe, com um
sentimento crescente de ridículo, terminava por abaixar as mãos.
A cólera inicial dera lugar a um misto de admiração e temor. "Algo" especialmente
singular estava a ponto de acontecer. E Sinuhe, intuindo-o, sentiu aquela velha e familiar
cocegazinha nas entranhas, sempre prévia do início de alguma aventura.
Entretanto, não satisfeito, avançou até o espelho, tocando-lhe a superfície com as
pontas dos dedos trêmulos. A sensação recebida foi inequívoca: "aquilo" era uma fria
lâmina compacta, sabe-se lá de que metal polido, ou de cristal azougado...
Cada vez mais inquieto, retrocedeu de novo, e interrogou a imagem:
- Quem é você?
E o rosto do "outro" Sinuhe mudou sua expressão impenetrável em um sorriso
acolhedor. E o verdadeiro Sinuhe - ou não se tratava do verdadeiro? - viu que os lábios da
imagem se abriam e uma voz conhecida - a sua - ressoava do fundo do espelho.
- Sou Ka, seu outro EU.
- Meu o quê...?
O sorriso acentuou-se mais e, em tom benevolente, repetiu o que o Sinuhe "deste
lado" do espelho já havia escutado claramente.
- Seu outro EU, Sinuhe...
E antes que nosso perplexo amigo tivesse tempo para organizar as idéias,
acrescentou:
- Você sabe que em cada mortal convivem duas personalidades. Uma (você, no
caso), primitiva e agressiva. Feroz.
Enraizada no animal que todos os humanos evolucionários levam dentro. Outra
(eu), nascida diretamente do Pai Universal e que constitui sua chispa pré-pessoal em cada
ser. Eu, Ka, represento o Amor, a Beleza e a Sabedoria.
- E o que deseja de mim? - gaguejou o investigador.
- A clemência da sua companheira, a filha da raça azul, com Samej permitiu-lhes
chegar até a terceira porta. A partir de agora, serei eu quem prosseguirá na grande busca.
A este lado de "Duart" (o limiar de Dalamachia), a cólera, a ambição e a mentira não têm
acesso.
Irritado por aquelas suas próprias palavras e com o cérebro já no limite da
resistência, o Sinuhe "deste lado" levantou os punhos em atitude ameaçadora. Mas, antes
que chegasse a esmurrar o espelho, os braços de Ka saíram da polida superfície,
arrebatando-lhe o colar de números. E Sinuhe, a ponto de sofrer um ataque histérico, viu
quando seu "outro" EU introduzia a "cadeia" no interior do espelho e a depositava, por
sua vez, no próprio colo. E, fazendo com a mão direita um gesto de saudação, sorriu de
novo. Ato contínuo, o espelho e, com ele, toda a sala dourada foram envolvidos por
densas trevas.
Ao vê-la, teve a sensação - quase a certeza - de que aquela tocha fora colocada ali
especialmente para ele. Retirou-a do aro de metal que a mantinha obliquamente ao muro
e, intrigado, passeou a chama amarelenta ao seu redor. Onde estava? Que teria
acontecido? Suas recordações e vivências estavam intactas em sua memória: os túneis em
plano inclinado, o pequeno cérebro de cristal, a esfinge, aquele "rio" de fogo úmido, a
sala dourada e a dramática experiência com a serpente, a desaparição de Nietihw e,
inclusive, a aparição do seu "outro EU" no espelho... Mas, a partir daquele escurecimento,
o arquivo de sua memória se negava a funcionar. Por mais que se esforçasse, não foi
capaz de rememorar como chegara até ali. Examinou o lugar, verificando que se
encontrava no alto de um lanço de escadas, toscamente cavadas na rocha. Às suas costas,
fechava-lhe a passagem uma muralha rochosa também de mais de dois metros de altura
por qualquer coisa mais de metro e meio de largura. Apalpou as paredes laterais e
concluiu serem elas tão maciças quanto o muro que se levantava atrás dele. A partir do
reduzido patamar em que se achava, começava o lanço de escadas e, em seguida, à frouxa
e crepitante luz da acha, Sinuhe divisou um corredor escuro. Era óbvio que só naquela
direção encontraria a única saída possível.
Será que a sala dourada ficava do outro lado da muralha? Supondo que sim, como
teria ele atravessado semelhante bloco de pedra?
Convencido de que suas dúvidas não teriam resposta pelo caminho da lógica e do
raciocínio, preferiu prescindir de tais inquisições. Agora, a única coisa importante era
averiguar onde estava e, sobretudo, como dar com o paradeiro da amiga.
Desceu os dezesseis degraus e, vendo-se na boca do novo passadiço, estacou por
uns momentos, assombrado com sua própria serenidade. Quando pensou na filha da raça
azul não o fez, como era de esperar, cheio de angústia ou de cólera. E mais: seu pulso não
parecia alterado diante do tenebroso lugar nem ante os perigos que provavelmente o
aguardariam. Não é que o fantasma do medo lhe tivesse desaparecido do coração, mas,
inexplicavelmente, sua alma estava plena de paz. Era assim como se soubesse que parte
daquela "batalha" estava ganha e que os arquivos secretos de IURANCHA estavam quase
ao alcance de suas mãos... Mas a inquietante solidão daquele corredor não tardaria a
devolvê-lo à realidade. O passadiço, bem amplo, apresentava uns muros - incluídos teto e
pavimento - tão toscamente trabalhados como os que acabava de abandonar. Tratava-se
de um túnel retangular, perfurado em um calcário consistente, cujas paredes,
evidentemente, foram lavradas a golpes de picareta. Enquanto ia avançando por ali, a
ausência dos blocos graníticos que delineavam os passadiços pelos quais haviam
deslizado anteriormente o induziu a uma nova dúvida: estaria fora da Grande Pirâmide?
Ou, ao contrário, teria penetrado na plataforma rochosa sobre a qual se sustentava a
Primeira Maravilha do mundo? Sinuhe - o novo, talvez o autêntico Sinuhe - precisaria de
algum tempo para elucidar a nova incógnita...
Na expectativa de algum sinal ou inscrição foi avançando lentamente. Dentro em
pouco, quando mal havia dado uma vintena de passos, a luz da tocha iluminou o final do
túnel. Cautelosamente, adiantou o facho, descobrindo que o passadiço desembocava em
uma sala também retangular, de uns oito por quatro metros. Por alguns minutos, imóvel
no limiar da câmara, quase não se atrevia a respirar. O amarelento bruxulear da tocha foi
empurrando as trevas e, subitamente, sobre a parede à direita de Sinuhe, surgiram umas
oscilantes sombras disformes. Apesar de sua crescida coragem, ele tornou a sentir medo
e, com um calafrio esteve a ponto de deixar cair a maça de madeira que lhe servia de
archote. Retrocedeu um par de passos colando as costas aos últimos metros do muro direito
do corredor. E a escuridão voltou a encher o recinto silencioso. Que seriam aquelas
sombras que ele vira oscilar na parede? Os calafrios se propagaram agora em cadeia e
todos os pêlos do corpo se lhe eriçaram.
Com o rosto voltado para a semi-iluminada porta de acesso à câmara, esperou o
pior. "Aquelas sombras" - confabulou - "têm de pertencer a alguma coisa ou a alguém. No
segundo caso, se se tratar de seres vivos, ao serem surpreendidos pela luz da tocha, talvez
seja imediato o seu ataque..."
E, imerso em um silêncio de morte, esperou que assomassem ao umbral, a
qualquer momento, as silhuetas de sabe Deus que monstruosas criaturas.. .
Os segundos transcorreram densos e intermináveis. Mas, para estranheza de
Sinuhe, nada nem ninguém apareceu no umbral da câmara. Então, arrastando as costas
pelo muro, tornou a andar.
A boca do túnel se abria exatamente no centro da câmara e, por conseguinte, a
parede em questão ficava a uns quatro metros do trêmulo Membro da Escola da
Sabedoria. O facho iluminou a peça pela segunda vez e, com efeito, ele distinguiu as
sombras temidas. Seus olhos se acostumaram rapidamente com a penumbra e
distinguiram o agente das sombras. À sua frente levantavam-se duas figuras humanas,
cobertas, em parte, por brilhantes superfícies douradas que, ao refletir a luz do archote,
pareciam dotadas de um halo próprio.
Ao compreender do que se tratava, respirou aliviado e, pouco a pouco, pé ante pé,
foi aproximando-se delas.
Encostadas à parede - em face uma da outra - quais sentinelas, erguiam-se duas
estátuas negras, de tamanho natural, com saiotes, peitorais, braceletes pelos braços e
antebraços e sandálias de ouro. Cada uma portava uma maça na mão direita, enquanto
com a esquerda seguravam báculos - cada qual o seu - também dourados. À cabeça, lenço
tipicamente egípcio, perfeitamente ajustado até as sobrancelhas e chapado em ouro. À luz
do archote aproximado, surgiram inconfundíveis as feições de Mut, o abutre guardião do
antigo Egito. Sinuhe pressentiu que se encontrava na ante-sala de um túmulo. Mas de
quem? Ele sabia que os arqueólogos não tinham encontrado múmia alguma no interior da
pirâmide de Queops. Ao menos nas câmaras e passadiços descobertos até hoje...
Uma emoção intensa se foi apoderando de todo o seu ser. Que nova surpresa lhe
reservava o destino? Que se esconderia do outro lado daquele muro? Porque certamente
aquelas sentinelas com cabeça de abutre tinham sido colocadas ali como gênios ou deuses
protetores... Impunha-se um imediato e minucioso reconhecimento do pano de rocha
situado entre as duas sentinelas de madeira; então o investigador, não podendo conter a
ansiedade, levou a acha para junto da parede. Já no primeiro exame vislumbrou uma
possível confirmação de suas suspeitas: aquela zona central do muro apresentava uma
superfície diferente da do tosco calcário do resto da câmara.
- Parece gesso... - comentou em voz baixa.
E, erguendo a chama amarelenta descobriu que, com efeito, tinha diante de si uma
porta taipada, engessada e... selada!
Em crescente excitação, aproximou rosto e archote do pequeno selo oval, impresso
com perfeição em argila, e distinguiu na parte superior o clássico cão deitado e, a seus
pés, os nove cativos inimigos do Egito.
- Não é possível! - exclamou dentro de uma grande confusão.
Voltou a inspecionar o selo e, ciente do que tinha diante dos olhos, deixou-se cair
ali, junto ao muro, escoltado pelas hieráticas figuras de Mut e suas sombras ameaçadoras.
Aquele, se a memória não o traía, era o selo da Necrópole Real, situada no
chamado Vale dos Reis. Como era possível, então, que se encontrasse no interior da
Grande Pirâmide? Ou será que, como já vinha suspeitando, aquele não era o túmulo do
faraó Queops?
Sentado em meio à penumbra, dedicou algum tempo a refletir. Logo desistiu.
Naquele lugar - fosse ou não a Grande Pirâmide - ocorreram fatos demasiado estranhos e
fantásticos para que tentasse agora julgar a presença daquele selo real com um mínimo de
rigor científico.
"Suponho que o mais prático" - concluiu - "seja deixar-me levar pelos
acontecimentos..."
Para começar, o mais importante e primordial seria atravessar aquela porta taipada.
Mas como consegui-lo? Não dispunha de ferramentas, muito menos as adequadas e,
mesmo que as tivesse, a demolição do muro lhe tomaria tempo demais. Tinha de haver
outro sistema...
Repassou cada uma das estátuas, cuidadosamente, com a remota esperança de
localizar algum dispositivo secreto. Depois de múltiplas tentativas, infrutíferas,
abandonou o propósito e passou a centralizar a atenção no recinto. Caminhou de baixo
para cima. Palpou e inspecionou as paredes e o solo e, finalmente, à beira da rendição,
voltou para a porta irritante. Embora lutasse por espantá-lo, um sentimento de angústia
começava a invadi-lo. E se realmente estivesse enterrado vivo?
Iluminou a placa de gesso, percorrendo-a desde o lintel até o chão. Foi em uma
segunda inspeção dessa porta que, de repente, na sua extremidade inferior esquerda,
descobriu um novo selo, menor que o anterior. Nervoso, colocou a tocha sobre o piso e,
deitando-se em frente ao círculo de argila, pôs-se a decifrá-lo.
Com o coração nas mãos, foi traduzindo os pequenos e delicados hieróglifos:
"Aqui... em DUART, MUT vela o sono... do Senhor do Oeste, irmão e genro do..."
A leitura foi interrompida. Como se sopradas por uma corrente de ar, as chamas da
tocha oscilaram. Sinuhe, sobressaltado, voltou a cabeça em direção às trevas que pesavam
sobre a câmara. Entretanto tudo parecia tranqüilo. Atribuindo aquelas oscilações a algum
movimento nervoso, ele recomeçou a leitura do selo real.
". .. irmão e genro do último depositário do Grande Tesouro do Reino em Meio ao
Mar... Sua primeira adaga aponta para Dalamachia..."
- Dalamachia! - exclamou, sem dissimular a surpresa e a alegria. Aquele nome
endiabrado, agora convertido no objetivo básico na busca dos homens "Pi", estimulou-lhe
os ânimos, e ele atacou a tradução com renovados brios.
"... A segunda, para o traidor: Horemheb."
Fechou os olhos e verificou se havia sido capaz de memorizar o hieróglifo.
"Aqui, em DUART, MUT vela o sono do Senhor do Oeste, irmão e genro do
último depositário do Grande Tesouro do Reino em Meio ao Mar. Sua primeira adaga
aponta para Dalamachia. A segunda, para o traidor: Horemheb."
Reabriu os olhos e releu o criptograma.
- Exato! - se disse, felicitando-se pela excelente memória.
Apanhou novamente o archote e, sentando-se a um par de metros da porta selada,
preparou-se para esmiuçar tudo quanto havia lido no camuflado sigilo da Necrópole Real.
Mas seu coração abalou-se pela segunda vez: as chamas amareladas do facho que ele
segurava com as duas mãos foram sacudidas por outra rajada. Desta vez, porém, o
"sopro" chegou-lhe frio e claro até as faces.
Seu primeiro impulso foi pôr-se em pé. Aquelas oscilações da tocha não podiam
ser acidentais. Na câmara, com exceção do acesso ao túnel, não havia aberturas e nem
resquício de alguma. Não que ele o tivesse detectado. E, na suposição de que tudo se
devia a uma corrente de ar nascida ou provocada a partir do corredor, por que as chamas
se teriam dobrado justamente para o seu rosto, como que empurradas da parede taipada?
O normal, tratando-se de uma corrente e estando a boca do passadiço à direita e atrás de
Sinuhe, seria que ela tivesse impulsionado a chama em qualquer direção, menos na que
acabava de tomar.
Tais deduções se atropelavam, enquanto seus olhos, fixos na resinosa ponta da
acha, observavam como as chamas, em segundos, recuperavam a verticalidade e,
portanto, a normalidade. Seus pêlos, porém, continuavam eriçados. A sensação de que
"alguém" lançara o poderoso sopro contra a tocha era inquestionável. E o medo o
manteve ancorado ao rugoso solo da câmara. Que poderia fazer? Se "algo" ou "alguém"
se encontrava ali, invisível em meio à penumbra, não restava senão esperar. Mas
esperar.. . o quê?
Sem atrever-se a mover um só músculo, lançou olhares para cada uma das estátuas.
"Nem uma das duas" - pensou, no seu afã de acalmar-se - "terá podido girar a cabeça de
madeira e soprar..."
Era uma conclusão lógica. Se as figuras talhadas ficavam face a face, dificilmente
poderiam ser as responsáveis pelo movimento da chama. Ou sim?
Depois, Sinuhe examinou os báculos e maças de ouro, mas não encontrou nada
suspeito. As maças, formadas por cabos cilíndricos, rematados por esferas magistralmente
lavradas, eram os únicos objetos - dada sua posição, à altura do nascimento das coxas das
estátuas - que coincidiam com o nível da tocha. Mas repeliu a idéia de que tais maças
fossem as causadoras das agitações da chama.
Os minutos se foram escoando em calma absoluta e, progressivamente, o espírito
de Sinuhe recuperou também seu ritmo frio e habitual. Aquela trégua devolveu-lhe o
interesse pela inscrição descoberta no ângulo inferior esquerdo do tabique que tinha à
frente. Convencido de que os crípticos hieróglifos escondiam alguma informação decisiva
para o bom desenlace de sua acidentada busca, enfronhou-se nas hipotéticas
interpretações deles.
A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi a palavra "Duart". O seu "outro
EU", ao falar-lhe do espelho, fizera menção dela: ".. .Deste lado de "Duart" (o umbral de
Dalamachia), a cólera, a ambição e a mentira" - recordava Sinuhe - "não têm acesso."
Parecia claro, por conseguinte, que a expressão "aqui, em 'Duart'" devia significar que
aquela câmara em que se achava - ou talvez o que se ocultava do outro lado da porta
taipada - era precisamente "o umbral da ansiada Dalamachia". "Por outra parte" -
prosseguiu meditando - "a palavra "Duart", na linguagem do antigo Egito, exprimia 'o
além'. Como poderiam conjugar-se, então, os dois conceitos? Seria Dalamachia
considerada 'o além'?"
O galimatias se tornou mais intrincado quando ele analisou as palavras seguintes.
Talvez a menos complicada fosse "Mut". O membro da Escola da Sabedoria associou
logo o termo com as estátuas que montavam guarda junto à porta selada. Aqueles rostos
com forma de abutre correspondiam exatamente à figura de Mut, uma das aves
carniceiras mais abundantes no Egito (a gyps fulvus) e que, desde a mais remota
antigüidade, havia cumprido o papel de "guardião". Estava claro, por conseguinte, que
aquelas esculturas em madeira preta, com olhos e bico de abutre, "velavam" ou
guardavam o sono do Senhor do Oeste, "irmão e genro do último depositário do Grande
Tesouro do Reino em Meio ao Mar".
Foi nessas frases onde, como digo, ele tropeçou com maiores dificuldades. A
expressão "Senhor do Oeste" só podia fazer referência - sempre segundo as crenças do
antigo Egito - a um rei que, ao morrer, recuperava assim sua qualidade de deus; quer
dizer, de "Senhor do Oeste".
Os pensamentos de Sinuhe retrocederam às velhas teorias sobre o faraó Quéops.
Porém, havia outro dado que evidentemente deitava por terra essa possibilidade. Tratavase
da palavra "Horemheb". Este famoso general vivera em tempos dos não menos
famosos faraós Amenofis IV (o singular rei "herege", também conhecido como
Akhenaton), Tutankhamon e Ay. O "Senhor do Oeste" a que o hieróglifo fazia menção
tinha de ser, fatalmente, um desses três reis. O qualificativo de "traidor", além do mais,
vinha coincidir com a imensa maioria das hipóteses dos egiptólogos, que não hesitam em
considerar Horemheb como um usurpador do trono do Egito. De acordo com o que
estudara Sinuhe, o referido general, após a morte do rei e "Pai Divino" Ay, último faraó
da XVIII dinastia, havia assumido o poder absoluto do Egito, fundando a XIX dinastia.
Entretanto, a qual faraó poderia referir-se a inscrição? Que grande rei "dormia o
sono da morte" do outro lado daquela parede?
Depois de não poucas voltas ao cérebro, o membro da Escola da Sabedoria chegou
a uma conclusão provisória: dentre os três monarcas citados, apenas um podia ser "irmão
e genro", ao mesmo tempo, daquele desconhecido "depositário do Grande Tesouro do
Reino em Meio ao Mar". No momento, não quis vasculhar a natureza de tão intrigante
tesouro... Fazia-se mister ir por partes. E Sinuhe, espanando seus estudos sobre
Egiptologia, considerou que aquele "Senhor do Oeste" poderia ser Tutankhamon, filho,
como seu antecessor no trono - Akhenaton - de Amenofis III e, conseqüentemente, irmão
do "herege". Além do mais Tutankhamon, o "rei adolescente", obedecendo os complexos
costumes da época, contraíra matrimônio com a princesa Ankhsenamon, uma das seis
filhas do seu irmão Akhenaton, casado, por sua vez, com a belíssima Nefertiti. Ay, por
sua vez, estava descartado como protagonista de semelhante parentesco. Somente o faraó
Tutankhamon, segundo esses cálculos, estava duplamente vinculado - como irmão e
genro - ao fascinante "rebelde" da teologia egípcia: Akhenaton.
Quereria isso dizer que o rei enterrado do outro lado da parede era Tutankhamon?
Parte do enigma parecia esvaziado: o faraó Akhenaton tinha de ser o "depositário
do Grande Tesouro". Mas de que tesouro? E, sobretudo, que espécie de relação existiria
entre esse Grande Tesouro e Tutankhamon?
As novas incógnitas acenderam mais ainda os ânimos já excitados do investigador.
Era preciso encontrar um meio para atravessar aquela maldita porta taipada. ..
Quanto ao "Reino em Meio ao Mar", Sinuhe desistiu. Por mais que repassasse a
história do velho Egito, não soube ou não pôde vislumbrar a que poderia referir-se.
Do que não havia dúvida era que, do outro lado, em algum lugar, dois punhais ou
duas adagas pertencentes ao rei morto apontavam, uma para Dalamachia, a outra, para
Horemheb, o traidor. Isso tudo significaria que a misteriosa Dalamachia já estaria ao
alcance de suas mãos? E, que pensar de Horemheb? Esconderia aquela advertência novos
perigos? Releu a inscrição pela enésima vez, mas, desgraçadamente, aquela informação
parecia referir-se apenas ao que, presumivelmente, poderia encontrar além do tabique que
lhe vedava a passagem. Quanto à receita para atravessá-la, nada...
No fundo, sua situação era mais penosa do que antes de descobrir o segundo selo
real: adivinhava que estava muito perto de "algo" fascinante e decisivo e, no entanto, não
via como passar para o outro lado.
"Tenho de encontrá-lo!"
Aborrecido e irritado consigo mesmo, continuava obcecado pelo segundo selo real.
Até que, em um daqueles tensos olhares interrogativos lançados ao tabique, reparou
melhor no oval de argila - o primeiro selo - colocado no centro geométrico da porta
taipada.
A figura impressa na parte superior - o cão deitado, imagem do rei defunto após as
mágicas transformações que devia sofrer antes do renascimento definitivo para a
imortalidade - não lhe sugeriu nada. O que não aconteceu com os nove escravos gravados
abaixo do cão. Achavam-se distribuídos em três fileiras de três, quatro e dois prisioneiros,
respectivamente.
Mecanicamente, em uma sondagem mais, o membro da Ordem da Sabedoria
converteu cada um daqueles números nas letras correspondentes do alfabeto hebraico, de
acordo com o rigoroso método prescrito pela Cabala. E aí começou uma curiosa série de
descobertas.. .
Dessa forma, o 3 equivalia à letra sagrada "Gimel", que é o símbolo da "garganta".
O 4 queria significar "Daletty", o "peito".
O último - o 2 - corresponde em hebreu à letra "Beth" ou "boca", como órgão da
palavra humana.
- Curioso! - murmurou Sinuhe, perplexo -. Muito curioso! Do ponto de vista
esotérico, aquelas três palavras - "boca", "garganta" e "peito" - estavam quase a gritar que
talvez a emissão de algum som ou "mantra" mágico - como já acontecera na cúspide da
pirâmide - poderia franquear-lhe o caminho... Mas que palavra ou palavras comporiam
essa chave?
O achado seguinte chegou naturalmente. Ao somar as três fileiras de cativos
verificou que aparecia o não menos sagrado 9, Sinuhe, pondo-se em pé, sentiu o quanto
estava perto da solução.
Seguindo o mesmo procedimento cabalístico, este número - o 9 - tinha seu
equivalente na letra hebraica "Teth". "E qual é o seu significado oculto ou esotérico?",
perguntou-se o investigador que, supostamente, conhecia a resposta:
- "Muralha ou parede oculta" - disse em voz alta, ao mesmo tempo em que,
contente, batia no tabique com as palmas das mãos -, "erigida para abrigar um tesouro e
zelar por um objeto querido.. . em meio a perigos." Jesus Cristo!, como não me dei conta
disso muito antes?
Agora lhe vinha com mais clareza: alguma palavra de poder intenso e profundo,
que brotasse do peito, garganta e boca de um ente humano, era o meio oculto para
derrubar, abrir ou anular aquele obstáculo.
Esforçando-se por dominar a ansiedade, buscou então o segundo selo. Essa
"chave", se existir, tinha de estar escondida nos hieróglifos que acabara de decifrar. Mas
onde? Em que palavra ou frase?
Tendo revisto cada vocábulo, convenceu-se de que nenhuma daquelas expressões
guardava relação com a cifra buscada.
- E se experimentasse com o total das palavras? - animou a si mesmo
Então, usando os dedos, encetou a conversão a números de cada uma das letras
seguindo, para tanto, o método conhecido por "Gematria". Porém a soma final, ainda que
"familiar" - 3 327 ou "6" - não lhe disse nada. . . no momento.
Em novo assalto à "mensagem", inclinou-se para soletrar cada sílaba, fazendo a
soma delas. Aí, surgiu o inesperado...
- "A-qui, em DUART, MUT ve-la o so-no do Se-nhor do O-es-te, ir-mão e gen-ro
do úl-ti-mo de-po-si-tá-rio do Gran-de Te-sou-ro do Rei-no em Meio ao Mar. Sua primei-
ra a-da-ga a-pon-ta pa-ra Da-la-ma-chia. A se-gun-da, pa-ra o trai-dor: Ho-rem-heb."
Setenta e duas sílabas? - perguntou-se, incrédulo.
Contou de novo e viu que estava certo: 72!
Mentalmente, não se atrevendo a pronunciá-lo, ressuscitou na memória o "Nome
Inefável e Temível" - soma das 72 sílabas sagradas - que, segundo a mais arcana das
tradições hebraicas, fora utilizado por Moisés para separar as águas do Mar Vermelho:
"SHEM HAMEFORASH".
Esse nome, assim como o integrado pelo Tetragrama YOD-HE-VAV-HE, uma das
designações da Divindade, e de que se derivou uma grosseira tradução fonética (Yaveh,
ou Jeová), goza de misterioso e mítico poder, conhecido somente pelos completamente
iniciados.
Agora estava claro para ele. Se quisesse acesso para o "outro lado" - sem dúvida
uma câmara funerária - teria de pronunciar o "nome" que as 72 sílabas sintetizavam -
"SHEM HAMEFORASH" - ao qual só se poderia chegar com a interpretação cabalística
e complementar dos dois sigilos reais.
"Toda uma complexa mas eficaz medida de segurança para preservar o 'tesouro'
que, indubitavelmente, esconde-se detrás desse muro", deduziu Sinuhe, convencido de
que se achava a um passo da Verdade que tanto anelaram, ele e a companheira
desaparecida.
E, depois de minuciosa revisão dos cálculos, postou-se em frente ao selo ovalado,
decidido a pronunciar o "Nome Inefável e Temível" com todo o respeito e solenidade de
que era capaz. . .
Inspirou profundamente, enchendo ao máximo os pulmões. Aquele "nome" -
"SHEM HAMEFORASH" - devia nascer-lhe no mais profundo do peito e, tal como lhe
haviam ensinado os Kheri Hebs de sua Ordem secreta, brotar por garganta e boca,
sublimado em forma de sucessivas "mantras" ou sons mágicos. Só assim faria efeito.
Entretanto o "soror" não pôde articular uma sílaba sequer. O archote começara a oscilarlhe
na mão direita, contagiado pelo tremor do pulso.
Sinuhe desistiu. Compreendeu que primeiro teria de dominar os nervos; então
sentou-se em frente ao tabique, depositou a tocha no solo, entre si e a porta engessada.
Cruzou as pernas, adotando uma das clássicas posturas da ioga e fechou os olhos. Depois
de longa e ritmada série de inspirações, quando achou que seu ritmo cerebral havia
descido abaixo dos catorze ciclos por segundo, emitindo assim as benéficas ondas "alfa",
preparou-se para vocalizar o "Nome Inefável e Temível". Antes porém, como medida
preventiva ante os possíveis perigos que lhe poderiam sobrevir naquela aventura,
"fabricou", mentalmente, uma bolha transparente e blindada que o rodeasse. Dessa forma,
com o espírito reconfortado e protegido no interior da sua própria criação mental, Sinuhe
- com voz grave - encheu a câmara silenciosa com potentes e rotundos "mantras". . .
- SHEM. . . HAM. .. E.. . FO. . . RASH!...
O eco das palavras bateu nas quatro paredes enchendo o lugar e o coração do
investigador de presságios ameaçadores. Quando o eco se extinguiu ele, expectante, abriu
os olhos, aguardando que o muro pudesse vir abaixo. Mas nada aconteceu... pelo menos
naqueles primeiros momentos.
Consumido pela impaciência, chegou a pensar que sua entonação não tivesse sido
correta ou, pior ainda, que aquele não era o "nome chave". Entretanto, não teve tempo
para continuar com suas lucubrações. Bruscamente, um terceiro e sibilante sopro incidiu
sobre a acha, apagando as chamas.
Apesar de saber-se defendido pela "bolha mental", o sopro súbito e as densas
trevas que se precipitaram no recinto o atemorizaram. Que fazer agora? Devia levantar-se
e dirigir-se para a porta taipada? Mas como agir em meio àquela escuridão?
Obedecendo ao instinto preferiu esperar. Mas sua angustiosa espera não foi longa.
De repente, bem perto, de algum ponto que ele acreditou ser próximo ao tabique lacrado,
vieram alguns ruídos. Forçou a vista mas as trevas eram espessas demais. Os ouvidos, em
compensação, afiados pelo medo, continuaram registrando aquela série de sons, cada vez
mais nítidos e próximos.
- Sim, parecem passos. ..
E um suor frio, incontido e perturbador banhou-lhe as mãos e o rosto.
Efetivamente, pareciam passos. Sinuhe virou a cabeça em todas as direções, mas
"aquilo" - o que quer que fosse - não chegava nunca até ele. Trêmulo, aguçou ao máximo
os ouvidos, e descobriu que, na realidade, os passos correspondiam não a um ente, mas a
vários. Desconcertado, sentiu que davam voltas ao seu redor, a coisa de um ou dois
metros. Justamente no local em que se levantava a parede de sua "bolha". Seria possível
que aqueles seres - homens ou bestas - estivessem rodeando a "esfera mental"?
E, com que intenção?
A resposta chegou fulminante: subitamente os passos cessaram e o investigador
não pôde evitar que seus cabelos se eriçassem de terror. A julgar pelos sinistros arranhões
e estalidos que vinham da parede de sua "bolha", dentes, garras ou seja lá o que for,
aquelas criaturas tentavam rasgar-lhe a "blindagem" mental. Ficava óbvio, portanto, que
pretendiam capturá-lo. . . ou matá-lo.
Em um último esforço fechou os olhos e, concentrando-se, "fabricou" no interior
da primitiva esfera uma segunda "bolha". Desta vez, ainda reforçou a parede da nova
"blindagem" com seus mais queridos e belos sonhos: seu amor pelo mar, seus filhos,
Nietihw, sua recente paixão por Jesus de Nazaré e, sobretudo, com o sonho mais difícil: a
busca da Verdade. . .
Súbito estalo obrigou-o a abrir os olhos. Aquelas criaturas tinham conseguido
perfurar a primeira "bolha" e, quando o fizeram, a "esfera mental" saltou pelos ares,
iluminando a câmara com um resplendor azul, tão intenso quanto fugaz.
Sinuhe, espantado, ainda teve tempo para distinguir vários dos seres. Sua primeira
impressão foi a de estar rodeado de macacos ou gorilas. Mas, imediatamente, quando as
trevas voltaram a invadir o recinto, lembrou-se de haver visto umas grenhas compridas
que caíam pelos ombros dos seus atacantes e que, por conseguinte, não poderiam
corresponder a símio algum. Então, quem seriam? E outra idéia lhe veio à mente. Não
tivera tempo Seriam nove? "Nesse caso" - pensou - "poderia tratar-se dos nove cativos
que ele vira no selo real?" E, embora o aspecto das misteriosas criaturas - cobertos apenas
por uma tanga - fosse muito semelhante ao que ele observara nas nove figurinhas
gravadas na argila, rechaçou, por absurda, tal possibilidade.
Em parte, o fato de desprezar aquela hipótese foi motivado, não apenas pelo
ridículo da suposição, mas, muito especialmente por terem eles voltado à carga, atacando
a nova e inesperada "blindagem" mental com fúria inenarrável.
Desarmado, Sinuhe assistiu então a uma chuva de dentadas e unhadas, vindas de
todos os ângulos e com tal violência e selvageria, que tremeu até seu último átomo.
E, convencido de que seus "sonhos" não poderiam resistir àquele segundo e bestial
embate, fechou os olhos disposto a assumir o que lhe parecia ser o fim...
Naqueles últimos segundos, cansado e derrotado, o membro da Escola da
Sabedoria viu desfilar-lhe pela mente os principais momentos de tão insólita aventura. O
peso de uma tristeza infinita baixou-lhe a cabeça. Ao menos no que lhe tangia a missão
fracassara. Já não seria possível chegar até aos arquivos secretos de IURANCHA e
revelar ao mundo a Verdade sobre a rebelião de Lúcifer e suas conseqüências. . .
Nesses instantes críticos, enquanto as coléricas criaturas esmurravam - com
violência cada vez maior - a parede da sua última proteção, Sinuhe quisera ter chorado.
Mas o coração, ressequido, não correspondeu.
De repente, quando tudo parecia irremediavelmente perdido, os barulhos pararam.
E um silêncio absoluto voltou a descer na câmara escura. Que teria acontecido?
Sinuhe levantou o rosto, sentindo que sua segunda "bolha" continuava ali, intacta e
hermética. Ato contínuo, percebeu que as criaturas se afastavam precipitadamente, e o
ruído de seus passos se foi perdendo até uma distância que, apesar das reduzidas
dimensões da sala, ele não conseguiu avaliar. E, com o coração a ponto de estourar,
pensou distinguir em meio às trevas um ponto luminoso e distante. A julgar pela posição
do "soror", achava-se justamente na direção que ocupava - ou que devia ocupar - o muro
selado... Mas por que parecia tão distante? A resposta não tardaria.
A princípio lentamente, depois com aceleração crescente, aquele "ponto" de luz se
foi aproximando do perplexo Sinuhe. E foi então, ao deslocar-se a velocidade maior, que
ele percebeu que não se tratava de um único foco luminoso. Eram dois! E o investigador,
de novo sobressaltado, descobriu que eram olhos de perfil felino, dos quais manavam
feixes de luz âmbar.
Como que empurrado por alguma mola, se pôs em pé. Os olhos, ao chegarem junto
à "bolha", estacaram. Piscaram e, num instante, fundiram-se, convertendo-se no símbolo
do infinito. E aquele signo ( ? ), sem perder a vivíssima e amarelada luminosidade,
começou a elevar-se, seguindo a curvatura da "esfera mental". Uma vez sobre a vertical
de Sinuhe, a hélice enigmática girou sobre si mesma, transformando-se em um disco
irradiante. E dela partiram milhares de finíssimos raios também ambarinos que, ao contato
com a "esfera dos sonhos", derramaram-se por sua superfície, em forma de ouro líquido.
O que depois aconteceu resulta pouco menos que impossível de descrever: em
meio a um banho de luz dourada, a "bolha" se desintegrou silente e, vagarosamente,
diáfanas e majestosas, suas partículas - convertidas agora em milhares, talvez milhões de
"sonhos" diminutos - vieram pousar, uma a uma, sobre o corpo de Sinuhe. Maravilhado,
conforme os via cobrirem-lhe pele, cabelos e roupas, foi identificando muitas das ilusões
que tivera ao longo de sua vida. Ali, como rutilantes e minúsculas estrelas douradas,
apareceram os mais entranhados e longínquos "sonhos" da meninice, da juventude e
também os últimos e cada vez mais raros de sua maturidade.
Inexplicavelmente, nem uma só daquelas ilusões perdera a pureza da primitiva
ingenuidade, nem o dourado brilho da beleza.
Levantou então os olhos para o símbolo do infinito mas, por muito que buscasse, a
"hélice" desaparecera. E ali ficou, embrulhado no mais surpreendente "traje" que jamais
pudera imaginar: uma espécie de macacão de astronauta, flexível, leve como cada uma
das ilusões que o compunham e brilhante, despedindo milhares de raios que tornavam
perfeitamente visível o campo ao seu redor...
Sem poder crê-lo, palpou suas novas "roupas", sentindo que as estrelinhas que se
entrelaçavam sobre o coração eram precisamente os seus "sonhos" e "ilusões" mais
queridos: os que se haviam forjado na infância...
E com o espírito repleto de alegria, dirigiu o olhar para a porta taipada...
Alumiado pelo resplendor dourado que emitiam as milhares de milimétricas
estrelas ou "ilusões" engastadas entre si e que lhe cobriam o corpo dos pés à cabeça, deu
um passo em direção ao muro sobre o qual havia lançado o "Nome Inefável e Temível".
Mas quando sua própria luz alcançou as hieráticas e negras representações de Mut,
deteve-se. O tabique volatilizara-se! Nada mais havia no lugar. O gesso e os tijolos de
adobe que taipavam a porta eram agora uma tênue obscuridade, umbral de outro recinto,
em cujas profundidades ele creu distinguir confusos e esfumados brilhos avermelhados.
"Essa tem de ser a câmara funerária", pensou inquieto. Que novos perigos e
enigmas o aguardavam do outro lado da porta que se lhe abria?
Antes de dar o passo decisivo, outro fato lhe chamou a atenção. A seus pés
achavam-se os restos do primeiro selo real. E, junto ao oval de argila, várias cordas de
esparto, revoltas e como que abandonadas às pressas. Estranhando abaixou-se e, tomando
o selo entre as mãos, observou que as inscrições que decifrara -. o cão deitado e os nove
cativos, símbolo dos grandes inimigos do Egito - tinham-se apagado. Acariciou a
superfície do cartucho real e descobriu que as referidas gravações, contrariamente ao que
havia suposto em um primeiro momento, não pareciam limadas ou apagadas.
Simplesmente, como ocorrera com os escombros da porta taipada, haviam-se
esfumado. . .
Aquilo e mais as cordas que achou, deixaram o investigador sumamente intrigado.
E ao contar os enegrecidos cordéis, o pressentimento que já o rondara quando se
encontrava encerrado na "bolha" mental, ressuscitou qual furacão: será que os
prisioneiros que apareciam manietados com as mãos às costas recuperaram a vida? Que
outra explicação poderiam ter entáo aquelas nove - justamente nove - cordas que havia
encontrado junto ao selo real, agora "vazio"?
"Se esta fantástica idéia se confirma" - meditou, cravando o olhar na penumbra
escarlate da câmara que o aguardava - "é quase certo que as bestas que destruíram a
primeira "esfera" tenham fugido nessa direção..."
Um calafrio percorreu-lhe a espinha. A hipótese inquietante podia significar novo
confronto com os cativos. . . supondo-se que tivessem fugido para aquela sala.
Por breves instantes hesitou. Que fazer com as cordas e o oval de barro? Deixá-los
ali e enveredar definitivamente pela câmara que se abria para ele, ou os levaria consigo?
Uma vez mais deixou-se arrastar pela intuição e, separando delicadamente as
"estrelas" que cobriam um de seus bolsos, guardou o selo real. No mesmo instante aquelas
"ilusões" - como se tivessem vida própria - recuperaram sua posição primitiva, tampando
a cavidade deixada pela mão de Sinuhe. Quanto às nove cordas, preferiu amarrá-las em
torno do punho esquerdo. Por último, depois de inspirar profundamente, atravessou o
umbral com passos decididos...
Ao entrar naquela sala vazia, Sinuhe compreendeu por que os olhos felinos e
luminosos que avistara do interior da sua "bolha" mental pareceram-lhe tão distantes.
Nessa primeira observação, imóvel e emocionado depois de cruzar a porta, calculou que
se encontrava em uma câmara de uns cinco metros por sete, por outros três de altura,
aproximadamente. O silêncio, se é possível, mais profundo, quase sagrado. E entendeu,
igualmente, o porque da penumbra escarlate que entrevira do outro lado: os muros que se
erguiam à direita e à esquerda - isto é, os menores - ostentavam uma série de curiosos
"archotes", embutidos obliqua-mente e a coisa de metro e meio do solo. O excitado
membro da Escola da Sabedoria não tardaria a descobrir que aquelas tochas, na realidade,
não eram tochas... Mas não nos adiantemos aos acontecimentos.
Desde o primeiro instante, só teve olhos para um enorme vulto que se erguia no
centro geométrico do que ele considerava uma câmara sepulcral. Uma tumba que, de
acordo com as inscrições do segundo selo real, talvez guardasse os restos do faraó
Tutankhamon, falecido por volta de janeiro de 1 343 antes de Cristo. Entretanto seu bom
senso - apesar de tudo o que vivera até ali - continuava rebelando-se contra hipótese tão
absurda. O mundo inteiro assistira em novembro de 1 922 ao formidável achado no Vale
dos Reis da entrada na tumba subterrânea do mencionado rei. H. Carter, o descobridor,
após laboriosa escavação, abrira o sarcófago de Tutankhamon em 1 923. E a múmia do
faraó, examinada e reconhecida por um sem-fim de peritos... Como entender então que
ele pudesse encontrar-se naqueles momentos críticos na câmara funerária do irmão e
genro de Amenofis IV?
"Sem dúvida" - meditou ao passo que se aproximava do vulto enigmático - "estou
enganado. Esta não pode ser a sepultura de Tutankhamon. Além do mais, quando Howard
Carter, lorde Carnavon e o resto dos arqueólogos penetraram finalmente na verdadeira
câmara mortuária do faraó, primeiramente, antes de chegar ao sarcófago, tiveram de ir
desmontando as quatro capelas sagradas que, encaixadas uma dentro da outra, cobriam-no
e protegiam-no. E aqui, evidentemente, não vejo tais capelas..."
Mas essas deduções racionais se embaçaram sob outra realidade não menos
evidente: os hieróglifos do selo em que se fazia clara menção ao "sono de
Tutankhamon".. .
Agindo com sua típica prudência, Sinuhe preferiu rodear aquela massa meio
iluminada pelos estranhos "archotes". Com passos lentos, pendente do menor ruído ou
movimento suspeito, deu-lhe uma volta completa, sem chegar perto. Ajudado pelo
resplendor dourado que seu próprio "traje" emitia, identificou o vulto com uma espécie de
bloco - pétreo talvez - de uns três metros de comprimento por metro e meio de altura e
largura. Na parte de trás havia uns altos-relevos que Sinuhe, dada a prudente distância,
não distinguiu com clareza.
Durante minutos deixou-se ficar em frente a ele, refletindo. Sentiu-se tentado a
abordá-lo. Mas antes de aventurar-se quis certificar-se da natureza e características de
quanto o cercava. E começou pelos singulares "archotes". Desde que penetrara na câmara
outro fato desconcertante lhe chamara a atenção: embora fosse verdade que alumiassem
com um frouxo brilho avermelhado, aquelas "tochas", porém, não ardiam. Pelo menos,
não se consumiam como habitualmente acontece com uma acha. Sinuhe não visualizou
chamas. E no entanto irradiavam aquela luz escarlate, suficiente para romper, embora
precariamente, as trevas do lugar.
Com muita curiosidade, dirigiu-se aos archotes que se alinhavam na parede à
esquerda da porta de entrada e, ao chegar até eles, não pôde reprimir sua admiração.
Solidamente cravados e obliquamente ao muro, erguiam-se cinco remos ocos e
transparentes, de metro e meio e - à primeira vista - idênticos. Mais ou menos até a
metade, cada remo alargava-se em forma de pá. No interior destas últimas foi que
observou "algo" que lhe lembrou a água. Mas uma "água" em ebulição, irradiando aquela
luminosidade avermelhada. O resto do remo, porém, parecia vazio.
Maravilhado, foi examinando um a um. A seguir caminhou para a parede oposta,
verificando que ali eram quatro os archotes de cristal. No total, portanto, havia nove
remos a semi-iluminar a câmara. E o membro da Loja secreta se recordou, perturbado, de
que no túmulo de Tutankhamon também foram descobertos outros tantos remos mágicos,
depositados no solo da cripta "para levar a barca do rei através das águas do Mundo
Inferior", tal como rezava o Livro dos Mortos do antigo Egito. Entretanto, aqueles que
Carter achou eram muito mais prosaicos que estes. Não passavam de toscas pás de
madeira...
Uma torrente de perguntas assaltou o investigador: quem teria fabricado
semelhantes "tochas" de cristal? Que continham elas? Sua única missão seria alumiar -
debilmente - o recinto?
Ao inspecionar aquela parede descobriu também no lugar que poderia ter sido
ocupado por um décimo remo, um quadrado inexplicável pintado de branco e com pouco
mais de um metro de lado. Ao tocá-lo as pequenas "estrelas" douradas que lhe revestiam
os dedos cobriram-se de gesso.
- Assombroso!
Justificava-se a perplexidade do investigador. Aquela camada estava úmida como
se tivessem acabado de aplicá-la... As demais partes dos muros, no entanto, embora
igualmente recobertas com gesso e pintadas de amarelo, estavam secas. Aquele tom
dourado que, em certa medida, suavizava a dureza do lugar, assim como as pinturas que
Sinuhe foi descobrindo nas paredes mais compridas, confirmavam suas suspeitas iniciais:
aquela tinha de ser uma câmara funerária. Em todos os túmulos de Tebas esse tipo de
pintura amarela nas paredes simbolizava o pôr do deus-sol sob as montanhas do Oeste.
Daí, precisamente, derivava-se a denominação aplicada a essa classe de câmaras. "A Casa
de Ouro, onde o Uno descansa."
Os temas, além do mais, estavam desenvolvidos nas pinturas que adornavam as
paredes de sete metros. Tinham todos eles caráter funerário e religioso.
Dois dos murais, sobretudo, causaram impacto especial em Sinuhe. Estavam
desenhados na parede oposta à da porta e à base de cores vivíssimas vermelhas, pretas,
brancas e amarelas. Em um deles via-se a cena do traslado do cadáver do suposto
"inquilino" da cripta. O rei era conduzido sobre andas ou caixões aos ombros dos
cortesãos, todos eles usando os típicos saiotes egípcios e, sobre as perucas e cabeças
raspadas, as respectivas vendas brancas em sinal de luto. A múmia aparecia sobre uma
padiola em forma de leão instalada no interior de uma capela montada, por sua vez, sobre
uma barca e esta, por último, descansando nas referidas andas.
A segunda pintura, na opinião do investigador, reportava-se a outra cerimônia
muito particular no antigo Egito: a chamada "abertura da boca" do defunto. Na realidade,
os egiptólogos jamais chegaram a um acordo sobre o significado desse ritual. Na pintura
se podia ver um personagem de grande relevância manipulando uma estranha "alavanca"
com a qual, aparentemente, devia abrir a boca do morto. E entre os dois, colocados sobre
uma mesa, vários objetos necessários nesse cerimonial: um dedo humano, o quarto
traseiro de um boi, um leque com uma única pluma de avestruz e outro objeto
desconhecido em forma de duplo penacho. Acima deles, via-se uma fila de cinco taças de
ouro e prata.
E de repente, enquanto inspecionava aquele mural, Sinuhe viu-se assaltado por
inequívoca e aguda sensação: "alguém" parecia observá-lo às suas costas. . .
Não era a primeira vez que experimentava aquela sensação tão clara. Um frio polar
percorreu-lhe a espinha dorsal e o medo do desconhecido, uma vez mais, deixou-o tenso.
Na tentativa de surpreender o hipotético observador, girou velozmente em direção
ao centro da câmara. Seus olhos esquadrinharam a penumbra avermelhada e, submerso
naquele silêncio que o abrumava, buscou o "intruso". Ninguém. Ali, tão-somente o negro
túmulo rompia, a duras penas, a solidão da cripta.
"E se se tivesse escondido atrás do bloco de pedra?"
Tal idéia veio desassossegar-lhe ainda mais o quebrantado ânimo. Com o coração
na mão, começou a rodear o que ele já imaginava ser um sarcófago.
Em guarda, punhos cerrados, mantendo-se sempre a uns três metros do
monumento enigmático, foi caminhando ao seu redor. Mas aquela exploração redundaria
também estéril. No momento era ele o único visitante da câmara sinistra. . . Uma vez
mais, Sinuhe se enganava.
Nesses instantes, com o pulso mais refeito, observando os costados do catafalco,
ficou fascinado pelos altos-relevos que adornavam as quatro quinas. Tratava-se das
deusas Isis, Neftis, Neith e Selkit, dispostas de forma tal, que asas e braços estendidos
rodeavam totalmente as paredes do túmulo em simbólico abraço protetor.
Já não havia dúvida: aquele bloco de pedra tinha de esconder os restos, senão a
múmia, de um faraó. Possivelmente, como anunciava a inscrição do selo real, a do faraó
Tutankhamon. Animado por esses pensamentos tão excitantes, o membro da Escola da
Sabedoria tomou a decisão de tentar abrir o sarcófago. Mas como consegui-lo? A enorme
lousa que o cobria devia pesar mais de uma tonelada...
"Tem de haver um jeito...", refletiu, animando-se e dirigindo-se ao centro do
gigantesco bloco. Mas, ao chegar a um metro do túmulo, "alguma coisa" inesperada
cortou-lhe a passagem e o arrojou ao solo.
- Oh, Deus!...
Aturdido, viu-se arrojado ao solo rochoso com a mesma velocidade com que se
havia levantado. Examinou sua proteção de "sonhos" e, após verificar que não sofrerá
dano algum, repetiu a aproximação, sem poder crer no que acabava de experimentar.
Entretanto quando seu corpo chegou de novo a um passo do sarcófago uma espécie de
furacão - silencioso e com ímpeto - surgiu pela segunda vez de algum ponto do bloco,
tornando-lhe impraticável o avanço e lançando-o novamente por terra.
Dessa vez, perplexo, não se levantou tão rapidamente. Era evidente que uma
"muralha" invisível protegia a última morada daquele rei, E, tentando inteirar-se, deu uns
passos ao redor do túmulo.
"Talvez experimentando pelo outro lado..." Mas a terceira tentativa foi tão
catastrófica quanto as precedentes. E c atribulado "iuranchiano" rolou pelo solo. Apesar
disso, não se rendeu. Pondo-se em pé tratou de abordá-lo pelas duas paredes restantes. A
cada vez, entretanto, o vento reapareceu pontual e implacável, empurrando-o como a um
boneco.
- Santo Deus! - lamentou-se desmoralizado -. É inabordável!
Seu cérebro e, pior ainda, sua vontade apagaram-se. Sozinho, sem armas,
perturbado e sem saber como vencer a nova dificuldade, sentiu-se à beira da rendição.
Porém naquele "Sinuhe" - o que surgira do espelho - havia, sobretudo, uma tenacidade
indestrutível. Passados os primeiros momentos de confusão, uma serena coragem o
impulsionou pela enésima vez na direção do misterioso túmulo.
"O dispositivo para anular esse furacão, supondo-se que ele exista, deve estar em
outro lugar... Mas onde?"
Engatinhando, aproximou-se da zona limítrofe do vendaval invisível. Esforçandose
por não ser novamente arremessado, foi rodeando o sarcófago na esperança de
encontrar em suas paredes alguma possível solução para neutralizar a "muralha"
protetora. No entanto, com exceção das quatro deusas aladas, os demais costados -
finamente trabalhados em maciço bloco de quartzito amarelo - não ofereciam quaisquer
inscrições ou sinais.
De cócoras diante do sarcófago deduziu finalmente que sua busca deveria orientarse
em outra direção. Mas, quando se preparava para explorar a câmara pela segunda vez,
uma agitada respiração rompeu o silêncio...
Em fração de segundos, os pensamentos de Sinuhe despencaram. J Incapaz de
mover-se afiou os ouvidos na esperança de que aquela respiração fosse só um engano ou
talvez um perverso jogo do seu atormentado subconsciente. Mas não. Rítmica, intensa e
clara tornou a soar às suas costas; e ele estremeceu.
Alguém estava muito perto. Podia quase sentir-lhe o alento compassado, o ruído
rouco e gutural. E lentamente foi voltando-se. Aquela sensação que experimentara
enquanto examinava as pinturas funerárias - sensação inconfundível que delatava a
presença de um observador - parecia a ponto de confirmar-se.
Em meio à penumbra escarlate, levemente iluminados também pelo resplendor
dourado do seu "traje", apareceram ante Sinuhe aqueles olhos felinos de cor âmbar que já
tivera ocasião de contemplar quando se achava no interior da "bolha".
O susto foi inevitável. Em movimento reflexo inclinou o corpo para trás, caindo
em cheio no raio de ação do vento. O furacão, automaticamente, jogou-o para longe do
túmulo e ele foi cair debaixo dos olhos do suposto inimigo.
Machucado, levantou a cabeça, verificando, horrorizado, que aquela criatura se
achava a um palmo de seu rosto. Estendido e dominado pelo medo, só teve forças para
contemplar umas delgadas patas pretas terminadas em pezunhos armados com cinco
ameaçadoras e curvadas unhas de prata.
Seu primeiro pensamento, pouco tranqüilizador, foi que estivesse aos pés de um
animal.. . Um felino, talvez. . . Mas com garras de prata?
Pouco a pouco foi percorrendo o resto daquele corpo. Ao descobrir a cabeça,
reconheceu um focinho longo e afilado e mais as orelhas, enormes, eretas e pontiagudas.
E no centro do crânio escuro aqueles olhos de âmbar rasgados e penetrantes como
espadas.
"Não, não se trata de um felino" - considerou atropelada-mente -. "Parece um
chacal".
Os olhos do animal, como se tivessem captado a angustiosa dedução, cintilaram à
luz dos milhares de estrelas que cobriam Sinuhe. E o investigador se deu conta de que
aquelas pupilas tinham qualquer coisa de estranho. Pareciam artificiais e com
incrustações de ouro, calcita e obsidiana. Também o corpo - mais parecido ao de um
galgo que ao de um chacal - denotava qualquer coisa fora do normal. A pele, negra e
lustrosa, parecia pintada...
Obedecendo a um impulso, confiado na aparente docilidade, estendeu a mão
trêmula, até tocar numa das patas dianteiras. O chacal não se moveu, mas a respiração se
tornou mais rápida e soturna, e Sinuhe, perplexo, acabou por confirmar o que já
suspeitava: aquela criatura era de madeira!
Foi tal o seu desconcerto, que só conseguiu fechar os olhos e esperar que ao abrilos
de novo aquela impossibilidade tivesse desaparecido. Mas, ao fazê-lo, ali estava o
animal petrificado.
Sinuhe compreendeu que se fosse esse seu propósito, o chacal já o teria atacado.
Que pretenderia então? Por que estaria ali? Antes que tivesse a oportunidade de propor-se
novas interrogações, o afilado focinho se abriu, deixando a descoberto duas fileiras de
dentes ocos e transparentes que irradiavam uma luz escarlate idêntica à dos remos de
cristal.
Na câmara então ecoou uma voz que lhe recordou a de um jovem.
- Eu sou Anúbis - falou o chacal -, primeira transformação do grande rei que
dorme e descansa neste túmulo.
O investigador se pôs em pé e, boquiaberto, contemplou o surpreendente galgochacal.
Não havia dúvida: aquelas palavras vieram de sua boca... Temeroso, rodeou o
animal, verificando que, efetivamente, tratava-se de belo exemplar, de um metro de
altura, cauda longa, reta, caída e peluda, em forma de cabo.
- Surpreendente! - exclamou, lembrando-se da efígie desse mesmo chacal sagrado
que tivera oportunidade de ver esculpido no friso superior da parede norte do túmulo de
Baqt. Simultaneamente veio-lhe à memória o ancestral costume egípcio de venerar
Anúbis como uma das deidades protetoras dos mortos. Em quase todas as sepulturas do
antigo Egito - inclusive a do faraó Tutankhamon - aparece montando guarda muito perto
do defunto. Seu papel, como "abridor dos Caminhos" e "senhor do cofre e da
mumificação", era relevante. Em realidade, assumia a primeira das mutações que o morto
devia sofrer em seu caminho para "Duart": "o além".
Sinuhe, postando-se frente ao chacal, atreveu-se enfim a perguntar:
- Quem é o grande rei de quem falas?
Anúbis dirigiu seu olhar amarelado em direção ao túmulo, respondendo logo:
- Foi conhecido em vida como Tutankhamon, irmão e genro do último depositário
do Grande Tesouro...
- O Grande Tesouro! - murmurou Sinuhe, lembrando-se da inscrição do segundo
selo real. Sem esconder sua curiosidade, interrogou o chacal sobre a natureza e o
paradeiro dele.
- O Grande Tesouro do Reino em Meio ao Mar encontra-se em poder dos homens
"Pi". Eu, primeira mutação de Tutankhamon, tive o grande privilégio de contemplá-lo e
conhecê-lo... mas agora és tu que deves descobrir-lhe o paradeiro. Eu sou apenas o
guardião da porta que pode levar-te até ele.
- Então é verdade que estou mais próximo que nunca. .. O chacal moveu a cabeça
afirmativamente. E acrescentou:
- Vossa missão está chegando ao fim. Os arquivos secretos de IURANCHA ser-teão
abertos... sempre e quando saibas vencer Horemheb, o traidor.
O investigador esteve a ponto de perguntar-lhe sobre o general mencionado. Mas
outra questão, mais premente, começara a inquietá-lo...
- Dize-me, Anúbis: esse Grande Tesouro tem alguma coisa que ver com os
arquivos secretos que buscamos?
O chacal não respondeu. Sinuhe tampouco insistiu. Em realidade, o silêncio fora
eloqüente. . .
E apontando para o grande sarcófago de pedra o membro da Escola da Sabedoria
formulou outra pergunta:
- Sei que para cruzar essa porta (a que deve levar-me a Dalamachia e aos homens
"Pi"), é preciso antes que seja aberto este túmulo. Podes ajudar-me?
E Anúbis, em resposta, deu meia-volta, mergulhando na penumbra sepulcral da
câmara.As palavras do chacal sagrado confirmaram as suspeitas de Sinuhe, abrindo-lhe o
coração para a esperança. Se ali no túmulo repousavam os restos mortais de
Tutankhamon, o hieróglifo gravado no segundo selo começava a fazer sentido. O membro
da Loja secreta sabia que Howard Carter, ao explorar a múmia do 'Irmão e genro" de
Amenofis IV (o grande Akhenaton), encontrara dois preciosos punhais entre as
complexas vendas de Tutankhamon. Uma daquelas adagas era de ouro e a segunda de
ferro. Isso, como digo, coincidia com a última parte do enigma: ".. . Sua primeira adaga
aponta para Dalamachia. A segunda, para o traidor: Horemheb."
Pois bem, supondo-se que Anúbis o ajudasse a abrir o catafalco e que, de fato, ali
repousasse a múmia do referido faraó, como poderia ele distinguir uma adaga da outra?
Qual delas apontaria para o traidor? A de ferro, talvez?
Veio-lhe à mente também que naquela época - pelos anos 1 300 antes de Cristo - o
ferro era um metal praticamente desconhecido no antigo Egito e que, por conseguinte, seu
valor poderia ser muito superior ao do ouro. Teria tal circunstância alguma coisa que ver
com o duplo dilema? Pela lógica, só a abertura do sarcófago real lançaria luz sobre
aquelas questões tão obscuras c problemáticas.. .
Da mesma forma como o havia visto esfumar-se na penumbra em direção à parede
em que ardiam os quatro remos mágicos, assim surgiu Anúbis dentre as sombras. Por
mais que vasculhasse os recantos daquele lado da câmara, Sinuhe não conseguiu
vislumbrar a silhueta do galgo-chacal e muito menos o ponto ou o meio de que se valera
para desaparecer tão misteriosamente.
O caso é que ali estava ele de novo, com seu grácil e lustroso corpo molhado pela
aura dourada que fluía dos milhares de "sonhos" e 'ilusões" que cobriam Sinuhe. O chacal
trazia alguma coisa entre os dentes e, levantando a cabeça em direção ao "iuranchiano",
deu-lhe a entender que a devia pegar. O investigador entendeu na hora. Examinando a
"coisa", concluiu que se tratava de um estojo de escriba, como aqueles que se utilizavam
nos remotos tempos faraônicos: uma "paleta" ou estreita caixa retangular de uns trinta
centímetros de comprimento, toda ela de marfim. Em um dos seus extremos apareciam
seis pequenos orifícios, contendo outros tantos panos coloridos: branco, amarelo,
vermelho, verde, azul e preto. No centro a paleta tinha uma abertura retangular pela qual
fora introduzida uma dúzia de finíssimos juncos castanhos do mar. Eram os calamos ou
estilos, cujas pontas - talhadas - faziam as vezes de pincéis.
Sinuhe, maravilhado, leu a delicada inscrição que rodeava o orifício retangular por
onde assomavam os juncos.
"A filha do rei, Meritaton, amada e nascida da Grande Esposa Real,
Neferneferunefertiti."
Ligeiro tremor fez tremeluzirem seus milhares de estrelas douradas. Já não havia
dúvida. Aquela paleta era, justamente, um dos múltiplos e valiosos objetos encontrados
por Carter e seu grupo em 1 922, quando desvendou outra das salas do túmulo de
Tutankhamon, contígua à cripta e que, casualmente, foi batizada como a "do Tesouro".. .
Entre o enxoval ali depositado, os egiptólogos encontraram uma representação em
madeira do deus Anúbis e, entre suas patas, aquela mesma paleta pertencente à princesa
Meritaton, uma das seis filhas de Akhenaton e da belíssima Nefertiti.
Sinuhe olhou o chacal e suspeitou de que aquele equipamento de escriba poderia
vir, precisamente, de algum lugar próximo - talvez dessa enigmática "sala do Tesouro",
depósito, por que não? dos arquivos secretos de IURANCHA -, de que Anúbis, a julgar
per suas próprias palavras, parecia fiel guardião. Fosse assim, e tudo se encaixaria com
precisão. A figura de tamanho natural do deus chacal, talhada em madeira e envernizada
com resina preta e descoberta pelos arqueólogos em 1 922 às portas da referida "sala do
Tesouro", em um anexo da cripta de Tutankhamon, tinha de ser aquela prodigiosa figura
de madeira que agora o contemplava com seus radiosos olhos de âmbar. Porém, os
últimos e cada vez mais esgarçados farrapos de sua lógica encarregaram-se de lembrarlhe
de que "aquilo" era absolutamente impossível... Ele não podia estar no interior do
túmulo de Tutankhamon. Aquele não era o Vale dos Reis...
- Eis a resposta à tua pergunta.
A voz do chacal retumbou na solidão da câmara funerária, arrancando Sinuhe à sua
áspera luta interior.
- Minha pergunta? - balbuciou, sem entender bem a que se referia Anúbis.
- Lembra que solicitaste minha ajuda para abrir o sarcófago...
Sinuhe fixou o olhar na paleta de marfim. Sua memória, com efeito, voltara a
funcionar. Entretanto não chegava a entender os propósitos do interlocutor.
Anúbis, adiantando-se à pergunta iminente do humano, mostrou seus dentes de
cristal e falou nos termos seguintes:
- Só há um meio para franquear este túmulo...
E o galgo-chacal caminhou devagar até o limite do quartzito amarelo. Um passo
mais, e o furacão brotaria qual invisível fantasma. Mas o guardião do "Tesouro mais
recôndito" limitou-se a farejar as proximidades do catafalco. Depois, tocando com o
focinho a caixa que Sinuhe sustinha, acrescentou em tom solene:
- Aquele que for capaz de cerrar os olhos das quatro deusas protetoras, não só terá
aberto o sarcófago do Senhor do Oeste, mas, sobretudo, restituir-lhe-á ao seu último
estado, no além.
Sinuhe conhecia essas crenças religiosas do antigo Egito. Tinha deduzido que
Anúbis era a primeira transformação do rei Tutankhamon. Entretanto, como proceder para
consumar essa segunda e derradeira mutação? Como cerrar os olhos das deusas aladas
que cingiam o túmulo? Era mister, antes, neutralizar a barreira que o protegia.
- Dize-me, Anúbis. Por que puseste em minhas mãos esta paleta?
- Só com as cores sagradas de Meritaton é possível esboçar meu verdadeiro nome:
o que me foi dado por Tiyi no momento em que nasci. .. Mas esse nome solar - concluiu o
chacal - embora signifique minha ressurreição definitiva, não cabe a mim invocá-lo.
Anúbis fora explícito o suficiente para revelar-lhe boa parte do segredo. Entre os
costumes egípcios havia um que se revestia de especialíssima transcendência. Todo
recém-nascido devia receber um nome - o chamado "solar" - no próprio instante do
nascimento. E era a invocação desse nome, uma vez morto o indivíduo, que abria ao
defunto as portas de "Duart": o além. Daí que, para qualquer egípcio, a maior desgraça
consistia na mudança de nome: castigo aplicado principalmente a ladrões e criminosos.
Sinuhe sabia que Tiyi, esposa de Amenofis III e mãe de Tutankhamon lhe dera, no
instante em que o trouxe ao mundo, o estranho nome de Tutankhaton. E uma chispa de
esperança fez-lhe brilhar os olhos com especial fulgor.
Sem perda de tempo, extraiu um dos pequenos juncos e, colocando-se de cócoras
em frente à primeira das deusas - Isis - introduziu o pincel no pequeno depósito circular
que continha a tinta branca. A ponta umedeceu-se e o investigador, com pulso vacilante,
começou a desenhar no ar os hieróglifos correspondentes à primeira sílaba de
Tutankhaton. Prodigiosamente, aqueles signos - de um branco resplandecente - pairaram
no ar, a um fio da "parede" de vento.
Nosso homem, perplexo, voltou-se para o chacal e acreditou visualizar em suas
pupilas de ouro e obsidiana - feito luz - um sentimento humano.
Em silêncio, dirigiu-se à segunda quina e, molhando o pincel no mágico depósito
amarelo, desenhou a segunda sílaba: "tan".
Na terceira - sempre sob o olhar vigilante de Anúbis -, traçou em vermelho a
terceira sílaba - "Kha" (1) - e, diante da quarta e última deusa alada, em símbolos verdes,
a sílaba "ton".
(1) Esse grupo consonantal "Kh" tem um som aspirado gutural, diferente do "R" de
"Ra". Lembra o "j" espanhol. (Nota do tradutor.)
Satisfeito e intrigado, deu um passo para trás, caminhando ao redor do túmulo. As
quatro sílabas ("Tu"-"tan"-"kha"-"ton"), oscilantes e iluminadas quais pedras preciosas,
mantiveram-se ainda por curtos momentos no ar. Subitamente, porém, rasgando a
penumbra e o silêncio da câmara, de cada um dos remos de cristal partiu um sibilante raio
escarlate. E os nove finíssimos feixes luminosos fizeram de três das quatro sílabas
flutuantes o seu alvo...
Sinuhe, diante dos cantos traseiros onde flutuavam as sílabas "kha" e "ton",
permaneceu imóvel, atento àqueles raios vermelhos. Observou de soslaio o chacal e, ao
vê-lo estático, fez o mesmo. O desenlace veio rápido. As três séries de hieróglifos
iluminados, correspondentes às sílabas "tu", "tan" e "ton", acabaram por fundir-se,
convertendo-se na letra hebraica "T" ("Teth"). Imediatamente, o "escudo"-furacão se
tornou visível, invadido por uma irradiação escarlate que emanava de cada uma das letras
hebraicas, levitando ainda a metro e meio do solo. E o vento, tingido assim de vermelho,
apareceu ante Sinuhe em toda a sua magnitude, cobrindo paredes e lousa tal qual um
segundo sarcófago. O investigador compreendeu que, não fora Anúbis, e jamais teria tido
acesso ao túmulo. Mas a cadeia de acontecimentos fantásticos apenas começava...
Enquanto observava o "T" situado à sua frente veio-lhe à memória uma de suas
últimas peripécias, vivida quando buscava um meio para atravessar o tabique. A soma dos
nove cativos no primeiro selo real o havia conduzido precisamente àquela mesma letra, o
"Teth", cujo valor simbólico era o 9. E essa letra, do ponto de vista esotérico,
representava, como naquele caso, "uma muralha erigida para guardar um tesouro"...
O fio de sua reflexão não chegou ao final. Adiantando-se a estes pensamentos,
cada um dos três "T" se transformou em um "9" e, ato contínuo, fulminada, a "couraça"
avermelhada desvaneceu-se. E com ela os três noves, os raios escarlates e os nove remos
de cristal. A obscuridade, ao se desintegrarem os misteriosos "archotes" embutidos nos
muros, tornou-se quase total, aliviada apenas no centro da câmara pelo dourado brilho do
"traje" de Sinuhe. Ele, sem saber a que se ater, buscou o chacal com o olhar. Anúbis,
porém, continuava impávido, os olhos amarelos cravados na única sílaba sobrevivente:
"kha".
Embora fosse evidente que o furacão havia desaparecido, tornando possível o
contato com o bloco de pedra, Sinuhe não se atreveu a mover-se. A presença da última
sílaba, a flutuar em frente à cabeça da deusa Selkit, e a imobilidade estatuária do
companheiro, o galgo-chacal, deram-lhe a entender que o processo de abertura do
sarcófago não se havia concluído. Não se enganava. Enquanto contemplava os caracteres
vermelhos de "kha", o "kh" da sílaba trouxe-lhe à mente seu equivalente no alfabeto
hebreu: "Jod". E inconscientemente rememorou seu secreto e cabalístico significado: a
mão do homem. Movido por seu afã de desvendar aquele novo enigma e assomar-se
quanto antes ao interior do túmulo, teve um súbito desejo: converter a sílaba "kha" de
Tutankhaton em "Jod" ou "J" do hebreu e esta, por sua vez, em mão. Mão humana, capaz
de ir cerrando os olhos das quatro deusas aladas...
Sua surpresa exorbitou quando, de improviso, aquele desejo se tornou realidade. O
"kha" foi modificando seus traços até transformar-se em branca, fumegante e delicada
mão; e fiel ao pedido mental do investigador, foi pousar-se sobre os olhos de Selkit,
baixando-lhe as pálpebras. Logo em seguida dirigiu-se à deusa lavrada naquele mesmo
costado do sarcófago, repetindo a operação com Isis. Repetiu-se tudo com Neftis e Neith.
Aquele novo e súbito prodígio fez com que Sinuhe estremecesse. Então lembrou-se de
que minutos antes associara igualmente o "T" das sílabas restantes do nome solar de
Tutankhamon ao "9", e este - ou a letra hebraica "Teth" - ao símbolo da "muralha". A
imensa dúvida começou a fustigá-lo: será que seus desejos podiam tornar-se realidade?
Como entender de outra forma aqueles espantosos sucessos... Mas se for verdade, se seus
desejos podiam materializar-se, por que agora e naquele lugar? Uma resposta iluminoulhe
o cérebro como imediata e inequívoca cristalização daquele último "desejo": o "traje"!
Sim, essa tinha de ser a explicação... Enquanto estivesse coberto de "sonhos" e "ilusões"
seus anelos podiam ser satisfeitos. Aquilo, por outro lado, explicaria seus "acertos"
quando decifrou os selos reais... E quase automaticamente evocou um querido e saudoso
nome: Nietihw. Sinuhe não podia saber, então, que aquele, justamente aquele, era o único
desejo que não podia fazer-se realidade... Bem depressa compreendeu por quê.
Desiludido por seu aparente malogro, por não ter conseguido fazer da aparição da
companheira uma realidade, concentrou-se outra vez no túmulo. Anúbis parecia
definitivamente petrificado. Chegou a tocar-lhe a cabeça, comprovando que os olhos se
estavam apagando. Rodeou o sarcófago, mas não encontrou rastro da mão que cerrara os
olhos das deusas protetoras. Palpou também a grande lousa que cerrava o catafalco,
verificando o que já havia intuído: aquela tampa de granito rosa devia pesar acima de mil
quilos... Surgia, portanto, outro problema difícil. Como levantá-la?
Apesar da recente decepção, retrocedeu até colocar-se a um par de metros do
bloco. Se na verdade o "traje" que o cobria tinha a capacidade fantástica de tornar
realidade os seus desejos, a lousa não tardaria em ceder... Foi inútil. Por mais força que
pusesse naquele sentimento, a tampa não se moveu. Desiludido, acabou por render-se.
Dirigiu um olhar suplicante ao chacal, mas a vida de Anúbis, como suas próprias
esperanças, esvaía-se.
- Será possível que agora, a. um passo do fim, esteja tudo perdido?
Docemente, imperceptivelmente, os felinos olhos mortiços de Anúbis se
obscureceram. E no centro da câmara sepulcral tal frágil vaga-lume dourado, abatido e
com medo, quedou Sinuhe, devorado pelas trevas e pela sua própria impotência...
Assim como ocorrera quando viu desaparecer no poço a figura da amiga querida,
aqueles foram, também, momentos amargos. Ele intuía - sabia - que ali muito perto,
talvez do outro lado daquela tumba, talvez no fundo daquele sarcófago, encontrava-se
0 "Tesouro" que tanto haviam buscado: a Verdade sobre a rebelião de Lúcifer.. . a
Verdade, em suma.
Mas o "novo Sinuhe" não estava definitivamente aniquilado.
Levou tempo, mas afinal compreendeu. Não bastava apenas desejar. Não era
suficiente entregar-se e entregar a alma: para levantar a lápide tinha também de atuar,
agir. Há muitos anos já, desde que descobrira a irreversível senda do mundo interior,
Sinuhe sabia que todos os desejos, sonhos e ilusões - por mais utópicos que fossem -
podiam converter-se em realidade se, principalmente, soubesse imaginar como fazê-lo.
Assim pois, desamarrando oito das nove cordas que conservava enroladas no
pulso, foi depositando-as - de duas em duas - sobre os quatro ângulos da tampa.
Em seguida, sem saber exatamente por quê, deixando-se levar pela intuição,
dirigiu-se a cada uma das deusas, pondo-se a somar as plumas que lhes compunham as
oito asas. Ao conhecer o resultado - 1 832 plumas de quartzito -, não pôde deixar de
sorrir. Somando-se estas cifras (1+8 + 3 + 2) obtinha-se 14. Quer dizer - seguindo uma
vez mais o método cabalístico -1 + 4 = 5. E por conversão ao alfabeto hebraico que
representava esse "5"?: a letra "H" ou "Hai", velha conhecida de Sinuhe e de Nietihw,
quando ela ainda levava sua coroa com o nome cósmico. "Hai", "casualmente", era -
sempre do ponto de vista esotérico - o símbolo do ar. E qual a melhor fórmula que umas
asas para representá-lo?
Maravilhado, lançou um último olhar às deusas aladas, perguntando-se como era
possível que os artífices que as haviam lavrado sobre o mesmo bloco do féretro tivessem
podido manejar e "esconder" aquele segredo cabalístico 1 343 anos antes de Cristo,
quando Moisés - possível "inventor da Cabala" - ainda não havia nascido...
Tudo aquilo parecia tão confuso quanto fascinante.
Animado por essa descoberta, sentou-se frente ao túmulo e fechou os olhos. E
imaginou e o fez com todo o coração e com toda a sua mente. Imaginou que as asas se
desprendiam do sarcófago e, com elas, os corpos estilizados de Isis, Neftis, Neith e Selkit.
Assim Sinuhe, em sua imaginação, desejou que aquelas asas de pedra batessem suave e
majestosamente, fazendo com que ascendessem as deusas protetoras acima do sarcófago.
Uma vez no ar, as deusas apanharam as oito cordas que ao contato com suas mãos
converteram-se em outros tantos bumerangues de negro e pesado ébano. O resto foi
simples. Em sua imaginação, o membro da Escola da Sabedoria desejou e fez com que as
oito curvadas armas fossem introduzidas pelas deusas na beirada rebaixada do catafalco,
sobre a qual fora encaixada a lousa. Bastou um esforço pequeno para que os bumerangues
- funcionando como alavancas - fizessem saltar a tampa de granito. Sem perda de tempo,
enquanto as deusas se sustinham no ar, Sinuhe "prensou" a tonelada e um quarto de pedra,
reduzindo-a a um diminuto e reluzente coração de ouro. Apoderando-se dele, dirigiu a
imaginação até o hierático corpo de Anúbis. E por desejo expresso de sua vontade, o
chacal abriu as fauces, e o coração palpitante tomou posse do seu corpo de madeira. E os
olhos felinos voltaram a iluminar-se...
Seus desejos - guiados pela imaginação - consumaram-se. O investigador abriu os
olhos. Diante dele se desenrolava um espetáculo que jamais olvidará: do túmulo, agora
descoberto, brotava, mui lentamente, uma espécie de névoa branca que já começara a
derramar-se pelas laterais, avançando e propagando-se pelo solo da câmara. E sobre os
ângulos do bloco de quartzito amarelo, agitando as asas, apareciam as quatro deusas com
os bumerangues entre os dedos e os olhos cerrados.
Sinuhe quis interrogar Anúbis mas, por muito que vasculhasse na névoa que se
esparzia inexorável em torno do catafalco, não viu nem sombra do chacal. O coração do
"iuranchiano" voltou a ensombrecer-se. A que se devia aquela nova desaparição?
Um pressentimento o alertou. "Algo" desconhecido e grave parecia brotar daquela
sepultura, entremeado com a estranha "bruma"...
Não encontrando o galgo-chacal, resolveu debruçar-se no túmulo. Deu um passo
até o bloco mas, como se fosse uma advertência, um frio pungente subiu-lhe dos pés,
obrigando-o a adiar a inspeção do sepulcro. Atônito, observou a bruma leitosa que já lhe
ocultava um terço das pernas, e deduziu que aquela sensação gelada provinha
necessariamente do "fumo" que emergia do sarcófago. No afã de comprová-lo, abaixou-se
e mergulhou as mãos na névoa.
- Jesus Cristo!
Sensação idêntica, cortante como mil alfanjes, obrigou-o a arrancá-las do alvo e
enigmático "fumo". Ao contemplá-las descobriu, angustiado, que as pequeninas estrelas
douradas - seus "sonhos" e "ilusões" - que protegiam aquelas mãos haviam desaparecido.
Outro tanto acontecia com as que lhe cobriam os pés e parte inferior das pernas...
- Oh, não!
Com efeito, aquela bruma, expandindo-se e ascendendo a pouco e pouco, possuía
tal poder que começara a dissolver ou aniquilar seu "traje" protetor. Consciente do perigo
iminente que o tingia, precipitou-se sobre a beira do catafalco, disposto a desvelar-lhe o
segredo...
Mas, ao aproximar-se, uma visão decepcionante se apresentou ante seus olhos.
O halo dourado que emanava do seu "macacão" de estrelas iluminou enorme vulto,
completamente recoberto com finas vendas de brancura semelhante à da névoa. Sinuhe
esticou a mão direita até tocá-lo. Sua imaginação sofrerá duro revés. Em lugar dos restos
mumificados do faraó Tutankhamon, achou apenas um gigantesco "embrulho" - de
aspecto humano, isso sim - enfaixado dos pés à cabeça.
- Oh!
Ao roçar os dedos, no que supunha fossem tiram de linho, eles afundaram ali.
Como podia ser? As vendas, na realidade, eram pedaços daquele "fumo" que brotava
pelos interstícios. Aquele corpo - ou o que quer que fosse - fora vendado... com névoa! E
os dedos, ao se afundarem na "bandagem", experimentaram novamente aquela chicotada
de gelo.
Não havia alternativa. A névoa, ascendendo sempre sobre o nível do solo, ocupava
já a totalidade da superfície da cripta. Urgia decifrar aquele mistério e, sobretudo, buscar
as adagas que o segundo selo real mencionava. Uma devia "apontar" para Dalamachia. A
outra, para o traidor: Horemheb.
Trincando os dentes, lutando por superar as gélidas pontadas que haviam
começado a amortecer-lhe pernas e mãos, foi desenrolando as tiras de névoa, rasgando-as
e arrojando-as para fora do catafalco. Quando acabou de retirar a última, o "fumo" deixou
de manar do interior do sepulcro. E um murmúrio de perplexidade escapou dos lábios do
investigador. Em frente, ocupando todo o interior do sarcófago, surgira uma esfinge de
ouro. Tratava-se, sem dúvida, da tampa de um féretro resplandecente, em forma humana.
Aquele ataúde, de uns dois metros de comprimento, descansava sobre andas com figura
de leão. Os traços da face da esfinge, soberbamente lavradas em lâmina de ouro,
trouxeram-lhe imediatamente à memória o rosto do jovem rei Tutankhamon. "Então,
apesar de tudo" - pensou, excitado - "eu estava certo..."
Os olhos foram confeccionados com aragonita e obsidiana, e as sobrancelhas e
pestanas, finamente adornadas à base de incrustações de lápis-lazúli.
Aquela máscara intrigou Sinuhe. Enquanto o resto do ataúde fora recoberto de um
ouro brilhante, em forma de plumas, o das mãos e do rosto era diferente, um pouco mais
acinzentado, simulando assim a cor dos mortos. As mãos, cruzadas sobre o peito,
sustinham os emblemas reais: o cajado e o chicote, com incrustações de faiança azulescuro.
Sobre a fronte da figura jacente do rei menino, Sinuhe reconheceu imediatamente
os dois emblemas e símbolos do Alto e Baixo Egito: a cobra e o abutre.
- Já não há dúvida! - exclamou, estourando de impaciência -. Aqui dentro deve
jazer a múmia do Senhor do Oeste, irmão e genro do último depositário do Grande
Tesouro do Reino em Meio ao Mar...
Sua alegria, porém, foi anuviada por aquela névoa, cada vez mais alta. O frio
alcançava-lhe já os joelhos...
Antes de começar a abertura do féretro, lançou um olhar nervoso à sua volta.
Anúbis ainda desaparecido e a névoa, embora já não brotasse do túmulo, continuava
enchendo a câmara.
Aqui e ali, justamente nos lugares em que, recordava-se, jogara as tiras de "fumo",
apontavam pequenos remoinhos. As deusas, com as pálpebras descidas, estáticas com
seus bumerangues nas mãos de pedra, continuavam com seu interminável e silencioso
bater de asas. Sinuhe observou também suas amareladas, quase transparentes figuras,
constatando que, apesar de se acharem a pouco mais de um metro acima do sarcófago,
aquele movimento alado não provocava a menor corrente de ar.
- Quanto tempo permanecerão assim? - perguntou-se, inquieto.
Mas, como eu dizia, o frio encerrado na névoa mordia-lhe já os joelhos. Não havia
tempo a perder. Inclinou-se sobre o ataúde de ouro e, examinando-lhe os lados, descobriu
quatro asas de prata - duas de cada lado - dispostas, sem dúvida, para facilitar a remoção
da tampa. Tremendo de frio e ansiedade, agarrou as asas mais próximas e puxou com
força. Ao contrário do que supusera, a tampa do ataúde era sumamente leve. E, à luz do
seu minguado "traje", debruçou-se, impaciente e trêmulo, sobre o conteúdo do féretro.
Segunda decepção caiu sobre ele. No interior só havia um outro fardo, desta vez envolto
em um tecido grosso de gaze, sumamente escurecido e estragado. Sobre o pano
repousavam guirlandas de flores, arranjadas com folhas de oliveira e de salgueiro, pétalas
de loto-azul e de centáurea.
- Incrível!
As coroas de flores conservavam um viço absoluto. Assim como se acabassem de
ser trançadas...
- Como é possível? - perguntou-se enquanto acariciava as pétalas de loto -.
Tutankhamon morreu há mais de 3 300 anos!
Com profundo respeito e veneração, Sinuhe foi retirando as grinaldas deixando-as
cair sobre a névoa. Ao invés de afundar, começaram a flutuar sobre a superfície do
"fumo", balançando-se suavemente. Mas o investigador, sem dar maior importância ao
novo e estranho fato, afainou-se em despojar o fardo de sua gaze. Ao rasgá-la, surgiram
algumas incrustações de vidro multicolorido, com ricos engastes de ouro. Suas mãos se
detiveram por alguns segundos. Sinuhe, de repente, lembrou-se da histórica descoberta de
H. Carter no Vale dos Reis. Também naquela ocasião, os egiptólogos - ao abrir o
sarcófago real - haviam encontrado um primeiro ataúde. E no seu interior um segundo
féretro; e um terceiro, matematicamente ajustado e arrumado no anterior. Era isso o que o
aguardava, ao "iuranchiano"? Se for assim, onde estarão as adagas?
Incapaz de controlar curiosidade e impaciência, precipitou-se sobre a tela arruinada
rompendo-a em longas tiras, que foram sendo amontoadas desordenadamente em todo o
perímetro do ataúde. Porque, efetivamente, foi isso o que apareceu ante os olhos atônitos
do nosso homem: um segundo sarcófago, de dois metros de comprimento, de forma e
desenho semelhantes ao primeiro. Todo ele se achava suntuosamente recoberto com
grossas lâminas de ouro, com incrustações de vidro opaco, talhado e gravado, imitando
jaspe vermelho, lápis-lazúli e turquesa, respectivamente.
Todo ele, incluída a máscara funerária, lembrava a tampa que acabava de apoiar no
túmulo. Tudo, menos um detalhe: as mãos. Cruzadas também sobre o peito, não
seguravam os emblemas reais - o cajado e o flagelo - mas... uma adaga!
- Até que enfim! - gritou Sinuhe, que já sentia o gelo da névoa à altura de suas
coxas.
Protegida por aquelas mãos de ouro, efetivamente, a empunhadura dirigida para a
cabeça, havia surgido, finalmente, aquilo por que tanto ansiava. Ao contemplar a bainha,
finamente lavrada em ouro, assim como o já citado punho - delicadamente trabalhado em
ouro granulado e a intervalos adornada com pedaços de cristal de rocha colorido - Sinuhe
viu-se assaltado por tremenda dúvida: achava-se ante a primeira ou a segunda adaga? A
criptografia decifrada na porta tabicada só fazia alusão a uma "primeira adaga", que devia
apontar para Dalamachia, e uma "segunda", que apontava, de acordo com a interpretação
do investigador, para o traidor: Horemheb.
Que fazer? Como saber se aquele formoso punhal era o primeiro ou o segundo?
Com as pernas doloridas por aquela névoa infernal, Sinuhe enfrentou por alguns
segundos o enervante dilema.
Antes de começar a retirar a adaga estudou sua posição. Observou a empunhadura,
concluindo que estava orientada justamente para uma das pinturas funerárias que tanto lhe
haviam chamado a atenção: aquela que representava um alto dignitário com uma espécie
de "alavanca" preta entre as mãos e a ponto de efetuar a chamada "abertura da boca" do
defunto rei, pintado, por sua vez, em forma de múmia e diante desse dignitário. A ponta
do punhal vinha a coincidir com a porta pela qual tivera acesso à câmara. E um enxame
de dúvidas acossou-lhe a mente.
Supondo-se que aquela adaga "apontasse para Dalamachia", para que lado devia
ele encaminhar-se? Paia a parede pintada ou em direção à porta que havia atravessado?
Se, ao contrário, se tratasse da "segunda adaga", qual dos extremos apontava para o
"traidor"?
Confuso, abandonou o túmulo e abrindo passagem pela branca névoa gelada foi
postar-se ante o mural funerário. Os raios dourados que ainda emitiam seu ventre, torso,
braços e cabeça permitiram-lhe repassá-la com certa comodidade. Chegou mesmo a tocar
a figura do nobre egípcio averiguando que efetivamente tratava-se apenas de gesso
colorido. Aquele personagem desconhecido, toucado com uma coifa verde, vestia saiote
branco e cobria os ombros com uma bonita pele de leopardo.
Resignado, deu meia-volta e retornou ao catafalco. Uma vez mais naquela louca
aventura estava ele forçando os acontecimentos. E esse, obviamente, não era o
procedimento mais prático...
Entretanto, enquanto arrastava as pernas quase insensíveis, as palavras de Anúbis
em relação a Horemheb fizeram com que se virasse para o mural.
"... Os arquivos secretos de IURANCHA te serão abertos. .. sempre e quando
saibas vencer o traidor."
- O traidor?... Traidor de quem/ De Tutankhamon?
De repente, em meio ao silêncio espesso, seus pensamentos voltaram-se contra ele,
advertindo-o: "Por que, ao evocar a sentença do chacal, havia dirigido o olhar
precisamente para aquele personagem?"
Embora ao longo da missão se tivesse visto envolvido em circunstâncias tão
críticas quanto aquela, ao verificar como a neve lhe dissolvia já as estrelas do ventre, não
pôde evitar um sentimento de alarma. Se era verdade que se achava tão próximo aos
homens "Pi" ou aos arquivos secretos ou a Dalamachia, seus inimigos - forças talvez
integradas pelos "medianos" rebeldes - não lhe concederiam trégua nem quartel. Era
preciso estar mais desperto que nunca mas, paradoxalmente, Sinuhe notava que se lhe
escapavam as forças por momentos... Jamais se sentira tão abatido.
Saltando os pequenos remoinhos, cada vez mais vigorosos, que abriam as névoas
nas proximidades do bloco de quartzito, colocou-se em frente à figura jacente do jovem
rei. E sem pensar, tomou da empunhadura da adaga, puxando-a. A bainha dourada
solidamente segura pelas mãos da esfinge não se moveu. Mas a folha do punhal, em
compensação, deslizou fácil e documente. Com o punho direito cerrado sobre a
guarnição, Sinuhe, devorado por aquele gelo invisível e por sua própria incerteza, foi
aproximando a adaga até a altura dos olhos. O cintilar de suas estrelas douradas fez então
brilhar a afiada e pontiaguda folha... de ferro!
Foi tudo simultâneo: no cérebro do investigador disparou um sinal de perigo, os
olhos das deusas aladas se abriram e os oito bumerangues estremeceram, ao mesmo
tempo em que intensa chama azul partida do punhal, cegando Sinuhe.
Sem largar a adaga inclinou-se para trás tampando o rosto com a mão esquerda.
Quando, enfim, aquela explosão luminosa que, em silêncio, brotara da folha de ferro se
foi dissipando em suas retinas doloridas, o "iuranchiano" descobriu, assombrado, que as
quatro deusas protetoras já não flutuavam sobre o catafalco. Voltou-se automaticamente
e, tal como vinha suspeitando há algum tempo, viu, horrorizado, que a figura do "alto
dignitário" desaparecera da pintura funerária. Em seu lugar, de perfil também, aparecia
uma das deusas adornada e provida de oito asas e de outros tantos braços, mas sem os
bumerangues...
Com o coração aos pulos, fez um primeiro gesto para aproximar-se da parede. Mas
um ceceio próximo o paralisou. Era o primeiro som que escutava na penumbra da cripta
desde que Anúbis e sua respiração agitada desapareceram. E chegava nítido às suas
costas.
No primeiro momento pensou reconhecer aquele som. Abalado, porém, rechaçou a
idéia aterrorizante...
Com sumo cuidado, foi voltando-se. E lentamente, com a adaga no alto,
aproximou-se do interior do túmulo.
O gelo que lhe atravessava o corpo propagou-se em vagas sucessivas até
desembocar no coração. Mas aquele frio que lhe comprimia o peito agora não vinha da
névoa, mas do pavor fulminante que lhe provocara a visão do segundo ataúde. Sobre o
ouro e o vidro multicor da figura jacente, retorciam-se oito sibilantes cobras.
Paralisado, com o braço no alto, Sinuhe lembrou-se dos bumerangues.
- Deus meu! - disse a si mesmo, sentindo como o gelo lhe encharcava a garganta -.
Primeiro, foram cordas. Depois, bumerangues de ébano, e agora... agora converteram-se
em serpentes.

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