quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Os discípulos não ficaram muito satisfeitos, em especial Simão, o
Zelota, que fizera o último turno de vigilância na porta do horto e temia,
mais do que ninguém, pela segurança do Mestre e do resto do grupo.
Quanto a mim, aquele obstinado hermetismo de João Marcos só
serviu para despertar mais ainda a minha curiosidade. Tinha de averiguar
o que acontecera naquela quarta-feira e que, nos textos dos
evangelistas, aparece igualmente em branco, em relação às actividades
do Nazareno. Mas, como podia fazer falar o fiel acompanhante de
Jesus? Naquela mesma tarde de quinta-feira se apresentaria a grande
oportunidade...
Jesus não tardou a aparecer. O rosto apresentava leves olheiras,
resultado, provavelmente, das poucas horas de sono.
Ao vê-lo, senti-me responsável. Se não O tivesse envolvido na minha
conversa, certamente teria descansado um pouco mais. E ao pensar
naquilo que O esperava, comecei a tremer. Aquela, na realidade, fora a
Sua última noite em paz...
Mas as minhas preocupações desvaneceram-se imediatamente. O
Galileu estava de um humor invejável. Saudou todos e, segundo o Seu
costume, encaminhou-se para o largo alguidar de barro, com o objectivo
de se lavar. Mas, a meio do caminho, João Marcos – que acabava de o ver
– saiu a correr, abraçando-se à sua cintura. O Mestre, surpreendido por
aquela calorosa recepção, envolvendo o rosto da criança nas suas grandes
mãos e inclinando-se levemente para ele perguntou-lhe num tom de
cumplicidade:
- Lembraste-te das passas de Corinto?
O pequeno sorriu e fez um aceno afirmativo de cabeça. E Jesus,
esfregando as mãos em sinal de contentamento, começou a despir-se.
Passas de Corinto? Pensei. A que se referirá? E, de repente,
lembrei-me de uma das explicações de Lázaro. O Mestre gostava
muitíssimo das uvas sem grainha, como as que nasciam da parreira que o
pai do ressuscitado plantara no pátio central de sua casa.
E dispus-me a levar a cabo outra das missões encomendadas pela
Operação Cavalo de Tróia. Parecia ser boa altura...,, disse para comigo
tentando tranquilizar-me.
O Gigante terminou as abluções e, quando recebia das mãos de uma
das mulheres o lenço com que devia secar-se, aproximei-me, pedindo-Lhe
que me permitisse ajudá-Lo. O Nazareno resistiu mas, perante a minha
insistência, deixou parte do pano nas minhas mãos, enquanto Ele -
divertido com o que parecia um jogo e uma delicadeza – se esfregava
com a outra ponta do lenço.
A manobra tinha, na verdade, duplo objectivo: por um lado, proceder
à exploração manual e directa do corpo de Jesus – o que não seria lógico
nem fácil se não aproveitasse uma oportunidade daquelas e, em segundo
lugar, tentar a medição das principais partes anatómicas. Este segundo
objectivo, principalmente era de vital importância para uma melhor
análise do Seu organismo durante as horas da Crucifixão.
Através daquele suave pano, as minhas mãos foram-lhe apalpando o
pescoço, ombros e costas. Aquele galileu – tal como se depreendia de
uma simples observação visual – era um exemplar robusto. Os músculos
da parte posterior e superior do tronco – em especial os trapézios –
estavam muito desenvolvidos. Esta sensação de força fruto, sem dúvida,
de um duro e constante trabalho manual durante muitos anos – alongavase
igualmente aos músculos deltóides, na zona dos ombros. Estes, e
também os sólidos conjuntos musculares, que se distribuíam de um e
outro lado da coluna vertebral (os grandes dorsais e os infra-espinhosos)
levaram-me a pensar que Jesus gozava de uma perfeita sincronização no
encher e no esvaziar da caixa torácica.
Os braços, de acordo com a configuração e o considerável volume
dos músculos dos ombros e parte superior e posterior do tronco, eram
igualmente maciços. Em minha opinião os bicípites braquiais eram
especialmente espessos e poderosos. Também os grandes peitorais (o
que familiarmente conhecemos por peito) se encontravam fortemente
consolidados, como se o Galileu tivesse praticado a natação. A sua
capacidade respiratória tinha de ser excelente.
Nem a cintura nem a parte inferior das costas apresentavam um
grama de gordura (1). E o mesmo apreciei na face frontal do abdómen; a
parede muscular do grande recto era lisa, sem qualquer indício de tecido
adiposo.
Quanto às coxas e pernas, tanto os costureiros como os músculos
adutores, bicípite crural, semitendinosos e gémeos apresentaram-se ao
tacto firmes e duros como pedras. Em minha opinião, as pernas teriam
sido a inveja de um corredor de maratona...
Esta harmoniosa e musculosa constituição – unida à elevada estatura
do Mestre – convertiam-No, sem qualquer tipo de dúvidas, num exemplar
especialmente atraente. Era como se a Natureza tivesse sido
especialmente cuidadosa na altura de moldar Aquele homem. À sua
evidente perfeição natural tinha de juntar também aqueles três últimos
anos de incansável actividade, percorrendo todos os caminhos de Israel,
que lhe tinham proporcionado uma invejável forma física.
Uma vez concluída a minha exploração – e ante o espanto de quantos
me observavam – retirei o pequeno cordel do fundo da minha bolsa de
borracha e, antes de Jesus se envolver na túnica, supliquei-lhe que
aguardasse uns instantes. O Mestre, sem perder o Seu sorriso, deixoume
actuar com uma docilidade que apenas serviu para me aturdir mais.
De mútuo acordo com o meu companheiro no módulo, fora previsto
que – uma vez terminada cada medição – eu pressionaria o ouvido direito,
transmitindo-lhe o número correspondente.
Desta forma, Eliseu poderia registar as medidas, submetendo-as
posteriormente a um estudo mais complexo.
* Nesta exploração chamou-me poderosamente a atenção a grande
superfície que devia ocupar a membrana aponevrótica romboidal (em
toda a região lombar) e que marcava igualmente a tremenda força
daquele homem. (N. Do M.)
Como já assinalei, aquela corda – totalmente branca – fora dividida
em centímetros. Contudo, em vez de os numerar, cada separação era, na
realidade, uma marca negra para ser mais exacto uma circunferência,
que rodeava totalmente o perímetro do cordel. Para poder efectuar os
cálculos com precisão e com o fim de iludir qualquer tipo de suspeita,
Cavalo de Tróia imaginara um sistema de numeração, baseado em cores e
letras (de dez em dez centímetros, a separação correspondente, em vez
de ser negra, fora pintada de acordo com as seis cores básicas do
espectro. A partir do centímetro número setenta e até ao cem as cores
voltavam a repetir-se.) A ordem para as cores era a seguinte, da menor
para a maior: violeta, azul, verde, amarelo, laranja e vermelho. Os
centímetros existentes entre estas dez numerações foram convertidos
em letras, segundo o alfabeto grego. Assim, por exemplo, quando a
medição marcava trinta centímetros, eu devia anunciar a Eliseu verde.
Se se tratava de oitenta centímetros, azul-duplo, se, pelo contrário,
eram quarenta e um centímetros, a cifra era amarelo e alfa (primeira
letra do alfabeto grego).
Sem perda de tempo, comecei pelos membros superiores. Do ombro
à ponta do dedo médio, a medição registou oitenta e dois centímetros. A
cifra para transmitir aquela medição foi, portanto, azul-duplo e beta. A
estas medidas seguiram-se as das extremidades inferiores, perímetros,
altura da cabeça, pescoço, etc.2
* Os nove primeiros números – correspondentes a cada um dos
centímetros – foram associados às nove primeiras letras do alfabeto
grego: alfa para o 1, beta para o 2, gama para o 3, delta para o 4 epsilon
para o 5, dzeta para o 6 tau para o 7, zeta para o 8 e iota para o 9. (N.
Do M. ).
2 As naturais dificuldades para proceder a uma medição
antropológica rigorosa – que teria exigido a utilização de instrumentos
mais idóneos – foram resolvidas, em parte, no módulo, mediante um
estudo computadorizado dos números que foram transmitidos por mim,
de acordo com padrões normativos. Estas medições anatómicas - uma vez
processadas – deram os seguintes resultados.
Membros superiores (total): oitenta e dois centímetros (braço:
trinta e sete centímetros e antebraço quarenta e cinco centímetros.
Destes últimos, vinte correspondiam à mão).
Comprimento dos membros inferiores (total): noventa e quatro
centímetros (medidos do calcanhar à articulação da anca).
Coxa: cinquenta e cinco centímetros e perna trinta e nove
centímetros.
Largura dos ombros (medida entre os pontos acromiais): quarenta e
cinco centímetros.
Tronco do manúbrio ou zona superior do esterno ao ponto
trocanteriano ou saliente do fémur, ao nível da articulação): sessenta e
dois centímetros.
Diâmetro torácico (nas costas): quarenta e um centímetros.
Perímetro da caixa torácica (medida por altura do grande peitoral):
noventa e nove centímetros.
Comprimento máximo da cabeça (do ponto opistocraniano à glabela):
19,9 centímetros.
Largura máxima da cabeça (entre parietais): quinze centímetros.
Largura bizigomática (da apófise zigomática: de pómulo a pómulo):
catorze centímetros.
Altura total da cara (do gónio ao ponto alveolar ou próstio): 18,9
centímetros.
Perímetro da cabeça: cinquenta e oito centímetros.
Perímetro máximo dos braços: trinta e cinco centímetros.
Perímetro máximo do antebraço: trinta e um centímetros.
Como salta aos olhos, o Mestre era um homem de compleição
atlética, com um poderoso desenvolvimento do esqueleto e da
musculatura.
Os seus membros eram longos e o tórax realmente imponente, com
ombros largos e sólidos como rochas. A gordura ou tegumento adiposo
era muito escasso, praticamente inexistente.
A cabeça apresentava-se firme e alongada, com um rosto igualmente
alongado na parte média e queixo e relevo ósseos acentuados. O crânio,
como já disse, era alto e estreito.
Estas características faziam com que se destacasse da média
normal da raça judaica daquela época. Segundo os estudos de Von
Luschan e Renan, entre os judeus da Rússia do Sul, a altura média
oscilava pelo metro e sessenta, chegando a um metro e setenta entre os
hebreus de Londres e os judeus espanhóis de Salónica. O tipo
mesocéfalo de Cristo também não era frequente. Entre os hebreus da
Rússia do Sul, por exemplo, a percentagem de indivíduos braquicéfalos
(de crânios curtos) era de 81 %, alcançando os mesocéfalos 18% e os
dolicocéfalos 1 o/o. Entre os judeus de Salónica – expulsos de Espanha –
os dolicocéfalos eram 14,6% e os braquecéfalos 25%.
Além da sua elevada estatura -1 metro e 81- Jesus de Nazaré
* Perímetro máximo da anca: cinquenta e sete centímetros.
Perímetro máximo de perna: quarenta e seis centímetros.
Joelho (perímetro máximo): quarenta e dois centímetros.
Estatura: 1 metro e 81 centímetros.
A linha média ou axial (da nuca ao canal interglúteo: ponto superior
da prega interglútea) surgia recta, sem desvio.
Comprimento máximo do pé: trinta e um centímetros (planos de
primeiro grau).
Segundo os índices de Decourt e Pende, o morfotipo somático de
Jesus Cristo era fundamentalmente macrossómico, participando do tipo
atlético” e, em certa medida, do pícnico”. Os índices – resultantes da
multiplicação das suas medidas reais pelos factores encontrados pelos
mencionados cientistas para o caso dos homens – foram os seguintes:
Altura: 181 centímetros x factor 0,470 = 85,07; altura trocânter:
94 cm x 0,457 =
42,96;; bitrocanteriano: 37 cm x 1,250 = 46,25: bi-humeral: 45 cm x
1,052 = 47,34;
occipito-mento: 22 cm x 0,870 = 19,14; perímetro torácico: 99 cm x
0,470 = 46,53 e
bimaxilar: 14 cm x 1,820 = 25,48.
Quanto ao índice de Pignet, Cavalo de Tróia comprovou que o
Mestre correspondia à descrição de MUITO FORTE” (índice de Pignet =
altura em centímetros – perímetro torácico em expiração máxima mais o
seu peso, em quilos = 181 – 97 mais 80 = 4). Naturalmente, os últimos
dois números – perímetro torácico em máxima expiração e peso – são
calculados. (O índice de Pignet estabelece a seguinte classificação
média: IP 10 = pessoa muito forte; IP 15 a 20 = pessoa forte; IP 20 a 25
= pessoa mediana; IP 25 a 30 = pessoa fraca e IP 30 = pessoa muito
fraca.)
Em relação ao índice craniano ou cefálico, os peritos de Cavalo de
Tróia – sempre de acordo com as medidas obtidas – deduziram que Jesus
de Nazaré era mesocéfalo, com uma ligeiríssima dolicocefalia. Este
índice – 75o/o – foi obtido de acordo com a fórmula convencional:
I.C = - 1 15 x 100 = 75
19,9
DAP (medida entre opistio e gabela)
Na avaliação lateral, o índice craniano deu 100,5 %. Quer dizer,
hipsocéfalo. Por outras palavras, com uma altura craniana claramente
superior ao diâmetro longitudinal.
Por último, ao examinar o crânio frontalmente, o índice do Galileu
foi de setenta e cinco por cento. Quer dizer, com uma ligeira tendência
para a estenocefalia (crânio estreito). (N. Do M. )
Chamava também a atenção pelo seu perímetro torácico, maior que a
média dos seus compatriotas.
Além disso, esta tipologia atlética condizia consideravelmente com o
temperamento enequético, descrito por Mauz: fraca reacção ante os
estímulos, movimentos seguros e vigorosos, ainda que escassamente
pródigos. De maior força que precisão.
Foi sem dúvida essa força física que pôde contribuir para suportar
em parte, o brutal castigo que o aguardava. Apesar de tudo – como bem
depressa veremos – os médicos e especialistas de Cavalo de Tróia jamais
puderam entender como aquele Homem conseguiu resistir até ao final à
cadeia de horríveis torturas a que foi submetido.
Tenho de o confessar. Aquela parte da missão foi possivelmente a
mais ingrata. Durante muito tempo, e apesar da docilidade demonstrada
por Jesus, tive a sensação de que, submetendo-o às citadas medições
antropométricas, tinha abusado daquele Homem. E ainda hoje o continuo
a sentir...
Felizmente para mim, nenhum dos presentes se lembrou de me
perguntar porque me empenhara naquela insólita – quase ridícula
operação. A verdade é que, desde o princípio, gozava entre os adeptos
do Rabi da fama de homem estranho e isto – não o sei muito bem pôde
explicar talvez o meu comportamento singular naquela esplêndida manhã
de quinta-feira, 6 de Abril.
O Mestre acabou de se vestir e, continuando com aquele bom
humor, juntou-se ao grupo de amigos que o esperavam para a refeição da
manhã.
Filipe pôs-se a distribuir o pão – ainda quente – que nos trouxera o
rapaz e as mulheres distribuíram as tigelas de leite. No cesto havia
também muito grão tostado, figos secos e uma jarra de barro, cheia das
famosas passas de Corinto. Tudo aquilo, oferta da família de João
Marcos ao Mestre e ao Seu grupo.
O próprio João se encarregou de abrir a jarra e, radiante de
satisfação, derramou um bom punhado daquele fruto negro e brilhante
nas palmas da mão de Jesus. Depois, seguindo as instruções do Galileu,
foi distribuindo o resto das passas por quantos se encontravam no horto.
Aquela refeição matutina decorreu num ambiente descontraído.
Os apóstolos pareciam um pouco mais serenos que na noite anterior,
ainda que alguns – como Pedro, Tomás e o Zelota – não tardassem a
descobrir que faltava Judas. Contudo, pelos comentários que pude
apanhar, os discípulos atribuíram o facto às habituais obrigações do
Iscariotes como administrador geral do grupo e, mais concretamente,
aos pormenores da preparação da festa da Páscoa. Nenhum dos que ali
estavam reunidos sabia, ao certo, onde e como o Mestre a pensava
celebrar. Na minha opinião, e à vista dos graves acontecimentos que se
iam desenrolando, por causa da determinação do Sinédrio em prender
Jesus, o tema da Páscoa também não os preocupava excessivamente.
Pelas dez da manhã apareceu no acampamento José de Arimateia.
Acompanhava-o um dos seus servos. Ao vê-lo, o Nazareno convidou-o
a sentar-se junto do grupo. Mas José recusou amavelmente, dizendo que
precisava de Lhe falar a sós.
O Mestre levantou-se e ambos se afastaram uns passos, até se
deterem junto ao muro da cuba de pedra destinada a lagar de azeite.
O de Arimateia com semblante sério, gesticulava, expondo ao
Galileu o que eu já sabia sobre os planos de Judas.
Felizmente, nenhum dos discípulos conseguiu escutar o tema da
conversa do ancião e do seu Mestre. Este ouviu-o sem se perturbar. E
quando José acabou de falar, agarrou-lhe o braço, iniciando ambos um
breve passeio ao longo do muro de pedra.
Durante quinze ou vinte minutos, Jesus dialogou com o demitido
membro do Sinédrio. Naquela mesma noite – já madrugada – de quintafeira,
José revelar-me-ia as palavras que lhe dirigira o Mestre durante
aquele breve encontro no acampamento.
A súbita chegada de José de Arimateia e a misteriosa troca de
impressões com o Rabi não passaram despercebidas aos discípulos. Todos
imaginaram razões quanto ao motivo daquela visita. E a maioria acertou...
em metade. Murmurando entre si, os apóstolos opinavam que alguma
coisa de grave estava para acontecer e que essa alguma coisa tinha
muito a ver com a prisão do Mestre e com a possível desintegração do
movimento em que participavam. E as suas almas voltaram a ficar na
dúvida.
Terminada a conversa, José dirigiu-se a uma das tendas, trocando
umas quantas palavras com David Zebedeu. Por último, e depois de se
despedir de todos, afastou-se na direcção de Jerusalém.
Jesus, que tinha voltado para o grupo, à espera em volta da
fogueira, parecia um pouco mais sério. E antes que alguém resolvesse
fazer perguntas, pediu aos homens e às mulheres que O acompanhassem.
Pelas dez e meia, o grupo completo – constituído por umas cinquenta
pessoas – começou a subir a encosta do monte das Oliveiras. Eu, que me
deixara ficar para trás, avisei Eliseu da direcção que o grupo seguia,
prevendo a aproximação da zona de segurança do módulo. Ao chegar ao
cimo do monte, o Nazareno rogou aos amigos que se sentassem e
ouvissem as Suas palavras. Felizmente, a nave encontrava-se muito mais
a norte.
Havia tanto inquietação como expectativa nos olhares daqueles
galileus. No fundo, só desejavam ter a certeza de uma coisa: que o
Mestre tomara a decisão – como já fizera noutras ocasiões de se retirar
da jurisdição da Cidade Santa, evitando assim as ameaçadoras castas
sacerdotais. Mas não foi isto que escutaram, embora o Rabi fizesse
algumas alusões ao poder terreal...
- Os reinos deste mundo – disse entre outras coisas – sendo, como
são, materiais, podem considerar frequentemente que é necessário
empregar a força física para a execução das leis e manutenção da
ordem.
No reino do céu os crentes não recorrem ao emprego da força
física.
O reino do céu, sendo, como é, uma irmandade espiritual entre os
filhos de Deus, pode promulgar-se unicamente pelo poder do espírito.
Esta distinção de procedimento não anula, no entanto, o direito de
os grupos sociais de crentes a manter a ordem nas suas fileiras e
administrar disciplina entre os membros ingovernáveis e indignos. Não é
incompatível ser filho do reino espiritual e cidadão do governo secular e
civil. É dever do crente dar a César o que é de César e a Deus o que é de
Deus... Não pode haver desacordo entre estes dois requisitos. A não ser
esclareceu Jesus – que um César tente usurpar as prerrogativas de Deus
e peça homenagem espiritual e que se lhe preste culto supremo. Nesse
caso só deveis adorar a Deus, enquanto tentais iluminar esses dirigentes
mal guiados. Não deveis prestar culto espiritual, aos dirigentes da terra.
Também não deveis empregar a força física dos governos terreais.
Ser filhos do reino, do ponto de vista de uma civilização avançada
prosseguiu Jesus, dirigindo-me uma significativa mirada deve convertervos
em cidadãos ideais dos reinos terrenos. A fraternidade e o serviço –
não o esqueceis – são as pedras angulares do evangelho.
O apelo do amor do reino espiritual deve provar que é efectivo na
hora de destroir o instinto do ódio entre os cidadãos não crentes e
guerreiros do mundo terreno. Porém, estes filhos das trevas, com
mentalidade material, nunca saberão da vossa luz espiritual, a não ser
que vos aproximeis deles. Por isso deveis ser honrados e respeitados
entre os cidadãos e entre os dirigentes deste mundo. Esse serviço social
generoso é apenas consequência de um espírito que vive na luz.
Como homens mortais sois em verdade cidadãos dos reinos terrenos
e deveis ser bons cidadãos e muito mais quando tiverdes voltado a
nascer no espírito. Tendes, portanto, uma tripla obrigação: servir a
Deus, servir ao homem e servir à fraternidade de crentes em Deus.
Não adoreis os chefes temporais nem empregueis a força para o
fomento do reino espiritual. Mas manifestai-vos num honrado ministério
do serviço do amor, tanto aos crentes como aos não crentes. É, no
evangelho do reino que reside o poderoso Espírito da Verdade. Eu
verterei sobre vós esse Espírito de Verdade e os seus frutos serão
poderosas alavancas sociais que elevarão as raças das trevas. Em
verdade vos digo que este Espírito chegará a ser o vosso fulcro, com um
poder multiplicador.
Espalhai sabedoria e mostrai sagacidade nos vossos contactos com
os dirigentes civis não crentes. Por meio da discrição, mostrai-vos
peritos na altura de aplanar desacordos pouco importantes e resolver
fúteis erros de entendimento.
Procurai, por todos os processos leais, viver pacificamente com
todos os homens. Sede sempre sábios como as serpentes e tão
inofensivos quanto as pombas...
Sereis melhores cidadãos se souberdes iluminar o vosso espírito
com a verdade do evangelho. E os dirigentes nos assuntos civis
melhorarão, como resultado desta crença no reino celestial.
Enquanto os chefes dos governos terrenos procuram exercer a
autoridade, como ditadores religiosos, vós – os que acreditais no
evangelho – só podeis esperar problemas, perseguições e, mesmo, a
morte...
Jesus fez uma pausa, deixando que aquelas últimas palavras
flutuassem como um negro presságio.
- Mas eu vos digo – prosseguiu o Mestre num tom firme e
esperançoso – que essa mesma luz que levareis ao mundo, e até o modo
como padecereis por ela, iluminará finalmente por si mesma toda a
humanidade e dará, como resultado, a separação gradual da política e da
religião.
O Galileu voltou a fixar os olhos em mim. E continuou: A persistente
pregação deste evangelho do reino conduzirá um dia as nações a uma
nova e inacreditável libertação, a uma liberdade intelectual e à liberdade
religiosa.
Eu vos anuncio agora que, com as próximas perseguições dos que
odeiam este evangelho da alegria e da liberdade, vós florescereis e o
reino de Meu pai prosperará. Mas não vos enganeis. Correreis grave
perigo quando, nos tempos posteriores, a maioria dos homens falam bem
dos crentes no reino e muitos, mesmo, ocupando altos cargos, aceitem o
evangelho. Aprendei a ser leais ao reino, mesmo em tempo de paz e
prosperidade. Não tenteis os anjos que vos vigiam. Não os tenteis a
levar-vos por caminhos semeados de dificuldades, como amante
disciplina quando vos deixeis arrastar pela moleza e a vanglória. Recordai
que deveis pregar este evangelho – o supremo desejo de fazer a vontade
do Pai, junto com a alegria suprema na realização da fé de serem filhos
de Deus – e não deveis deixar que nada desvie a vossa atenção.
Fazei que toda a humanidade beneficie do extravasamento do vosso
amante ministério espiritual, iluminando a comunhão intelectual e
inspirando o serviço social. Mas nenhum destes humanitários labores
deve ocupar o verdadeiro objectivo dos vossos corações: proclamar o
evangelho. Não deveis procurar a promulgação da Verdade, nem
estabelecer a honradez por meio do poder dos governos civis, como
também não pela promulgação de leis seculares.
Podeis trabalhar para persuadir as mentes humanas, mas nunca
nunca – vos deveis atrever a impor-vos. Não esqueceis a grande lei da
justiça humana que vos ensinei: o que desejardes que outros vos façam,
fazei-o vós a eles...
Quando um crente for chamado a servir o governo terreno, deixai
que preste esse serviço como cidadão temporal do referido governo,
embora tenha de mostrar todos os traços e sinais vulgares da cidadania.
Estes foram realçados pela ilustração espiritual da enobrecedora
associação da mente do homem mortal como o espírito divino que nele
habita. Se o não crente chega a qualificar-se como um servidor civil
superior, deveis perguntar-vos seriamente se as raízes da Verdade do
vosso coração não morreram por falta das águas vivas da comunhão
espiritual com o serviço social. A consciência de serem filhos de Deus
deve acelerar toda a vida de serviço aus vossos semelhantes.
Não deveis ser místicos passivos ou esvaídos ascetas. Não deveis
tornar-vos sonhadores ou cataventos, caindo no cómodo letargo de
acreditar que uma fictícia providência vos vai abastecer até do
necessário para viver.
Na verdade, deveis ser suaves nos vossos contactos com os mortais
que se enganam. E pacientes nas vossas conversas com os homens
ignorantes. E de sangue-frio ante a provocação...
Mas também deveis ser valentes na hora de defender a honradez e
fortes na promulgação da verdade e até audazes para pregar este
evangelho do reino. E devereis chegar até aos confins do mundo...
Este evangelho é uma verdade viva. Disse-vos que é como a levedura
do pão e como o grão de mostarda. E agora vos declaro que é como a
semente do ser vivo que, de geração em geração embora continue a ser a
mesma semente viva, se desenvolve indefectivelmente em novas
manifestações e cresce de forma aceitável, adaptando-se às
necessidades peculiares e condições de cada geração. A revelação que
vos fiz é uma revelação viva... O Galileu salientou estas duas últimas
palavras com uma força indescritível.
- Uma revelação viva – disse -, e é Meu desejo que dê frutos
apropriados a cada indivíduo e a cada geração, de acordo com as leis do
crescimento espiritual. É Meu desejo que se incremente e tenha
desenvolvimento. De geração em geração este evangelho deve mostrar
vitalidade crescente e maior profundidade de poder espiritual.
Não se deve permitir que chegue a ser uma simples recordação
sagrada, uma mera tradição sobre Mim ou sobre os tempos em que agora
vivemos... Aquele olhar profundo e afiado como um punhal percorreu, um
a um, todos os ouvintes. E, ao chegar a mim, Jesus repetiu: ..Não se deve
permitir que chegue a ser uma simples recordação sagrada, uma mera
tradição sobre mim ou sobre os tempos em que agora vivemos.
Depois, descendo a um tom mais calmo, prosseguiu:
- E não esqueceis que não dirigimos um ataque pessoal aos indivíduos
nem à autoridade dos que se sentam na cadeira de Moisés. Apenas lhes
oferecemos a nova luz, que eles repudiaram com tanto vigor. Se nos
lançámos contra eles foi apenas pela sua deslealdade espiritual para com
aquelas mesmas verdades que afirmam ensinar e salvaguardar.
Chocámos com estes dirigentes estabelecidos e chefes
reconhecidos apenas quando se opuseram directamente à pregação do
evangelho. E mesmo agora não somos nós que lutamos contra eles, mas
sim eles que procuram a nossa destruição. Não estais aqui para atacar as
antigas formas. Deveis pôr habilmente a levedura da nova Verdade no
meio das velhas crenças.
E deixai que o Espírito faça o Seu próprio trabalho. Deixai que
venha a controvérsia, só quando aqueles que vos desprezam a ela vos
forcem. Mas, quando os não crentes vos ataquem intencionalmente, não
hesiteis em vos manterdes numa vigorosa defesa da Verdade, que vos
salvou e santificou.
Recordai sempre: amai-vos uns aos outros. Não luteis com os
homens, nem sequer com os não crentes. Mostrai misericórdia, mesmo
com os que, desdenhosamente, abusem de vós. Mostrai-vos cidadãos
leais, honrados artesãos, vizinhos merecedores de louvor, parentes
devotos, pais compreensivos e sinceros na fraternidade do reino do
Espírito.
E eu vos asseguro que o Meu Espírito estará convosco agora e
sempre até ao final do mundo...
Entre as horas sexta e nona (no nosso sistema horário actual
poderiam ser as treze horas), Jesus deu por terminada a pregação. E
foram os gregos que assistiam à reunião os que mais perguntas
formularam. Do meu ponto de vista, aqueles gentios tinham assimilado
melhor que os próprios apóstolos as intenções e ensinamentos do
Mestre.
Os onze quase não abriram a boca. E se tenho de ajuizar pelos seus
comentários, enquanto descíamos para o acampamento, não conseguiam
entender que relação podia existir entre os seus martírios, perseguições
e morte – anunciadas pelo Rabi – e a inevitável propagação do evangelho
por todo o mundo. Persuadidos como estavam, com excepção do jovem
João, de que aquele reino de que falava Jesus tinha muito a ver com um
sistema político que libertasse Israel do domínio estrangeiro, também
não conseguiam compreender que a difusão da verdade como o Mestre
tinha pedido pudesse ser levada a efeito sem a promulgação de leis
seculares.
As suas mentes, uma vez mais, tinham naufragado numa infinidade
de especulações e de dúvidas. Para a maioria, as últimas frases do Rabi,
sobre a destruição que os dirigentes judeus procuravam, foram
interpretadas como uma grande tragédia que estava prestes a assolar o
mundo. E, embora conhecessem a ordem concretíssima do Sinédrio de
dar caça a Jesus, a sua fé nos poderes do Galileu era tal que resistiam a
admitir que os sacerdotes pudessem tocar-lhe sequer.
Noutras alturas, diziam uns aos outros no simples desejo de se
tranquilizarem o Mestre enganou-os. Porque não o faria agora...? É quase
certo que aquela destruição a que Jesus se refere tem a ver com um
cataclismo ou com o fim do mundo...
Estas impressões dos discípulos viram-se alimentadas pela atitude
pessoal de Jesus naquela manhã. Salvo na breve conversa com José de
Arimateia, o Nazareno demonstrara um humor excelente... Se o Mestre
temesse pela sua segurança, argumentavam com boa lógica, não assumiria
uma atitude tão alegre e inconsciente...
(Nesta altura da minha narrativa, quero realçar uma circunstância a
que já aludi mas que, dada a sua importância, acho que deve ser
considerada novamente. O discurso de Jesus de Nazaré tivera a duração
aproximada de pouco mais de duas horas. Referi unicamente as
passagens que considerei mais interessantes.
Pois bem, tal como se reflecte no Novo Testamento, nenhum dos
evangelistas conseguiu recolhê-lo com um mínimo de rigor e de
amplitude. No máximo, nos textos evangélicos aparecem algumas frases
ou sentenças, perdidas aqui e além e desvinculadas do que era na
realidade um texto uniforme e perfeitamente estruturado.
Para mim, estas graves deficiências – repetidas, como disse, noutros
capítulos – não são consequência de uma acção negligente dos escritores
sagrados. A única razão por que os Evangelhos Canónicos não foram eco
destes ensinamentos é, na realidade, muito mais simples mas, nem por
isso, menos lamentável: do meu ponto de vista pessoal, quando os
evangelistas tentaram escrever a vida, obra e pensamento de Jesus
passara já o tempo suficiente para que a maioria dos seus ensinamentos
não pudesse ser recordada textualmente. Se não fosse o meu sistema de
filmagem-gravação, também eu não teria sido capaz de memorizar
quanto tinha ouvido. E tenho de insistir em algo que não consigo
compreender: por que motivo nenhum daqueles discípulos se preocupou
em ir tomando notas de quanto via e escutava? Desta forma tão
elementar, disporíamos hoje de uma visão muito mais ampla e certa do
que disse e fez o Mestre da Galileia.)
Para mim, a nível pessoal, algumas das afirmações de Jesus naquela
inesquecível manhã no cume do monte das Oliveiras revestiram-se de
grande importância. Por exemplo, nunca pude esquecer as suas alusões à
esperança: ...A persistente pregação deste evangelho tinha prometido,
conduzirá um dia as nações a uma nova e inacreditável libertação...
Quanto eu ansiei por ver cumprida tal afirmação! No entanto, ainda
hoje, essa maravilhosa realidade parece muito distante... Se Jesus foi
capaz de vaticinar – quarenta anos antes! - a total destruição de
Jerusalém pelas legiões de Tito, porque iria enganar-se naquela outra
profecia? Também me desconcertou a recomendação sobre a forma
como devia ser promulgada a Verdade. Não deveis procurar assegurou, a
propagação desta Verdade por meio de leis seculares. E uma pungente
dúvida me ficou no coração: teria aprovado o Filho do Homem o
intrincado emaranhado de leis, normas e códigos que regeram e
continuam a reger os destinos das igrejas e que, no fundo, não são mais
que uma asfixiante burocracia secular, dissimulada em pretextos
espirituais e sagrados, mais ou menos claros? Mas a minha missão não
era fazer juízos, mas sim observar e prestar testemunho. A quem possa
ler este diário, peço que me desculpe...
Quando entrámos no acampamento, David Zebedeu tinha a comida
pronta. Notei que estava nervoso e mal-humorado. Num primeiro
momento, atribuí-o ao nosso atraso. Normalmente, aquele almoço – a
meio do dia – costumava ser por volta das doze. O aborrecimento de
Zebedeu, pensei, está mais que justificado.... Mas, era devido à demora
do grupo...
Fomo-nos acomodando em redor do fogo e as mulheres começaram a
servir: guisado à base de lentilhas aromatizado com pedacinhos de
cominho negro e coentros (1), espigas frescas passadas levemente pelo
lume ou grão tostado (proporcionado por João Marcos) e uma dose de
requeijão, feito pelas mulheres com leite de cabra. E, como
complemento, além do vinho, tortas de farinha, amassadas naquela
mesma manhã, à base de água e sal. O processo utilizado pelas mulheres
do acampamento na cozedura daquelas tortas, de uns doze centímetros
de diâmetro, era muito singular. Pelo menos para mim. Empregavam um
forno – se é que lhe podemos chamar assim -, que consistta num grande
jarro, perfeitamente coberto de barro por fora. Era firmado no solo e
dentro acendia-se o lume. Quando a chama aquecera devidamente as
paredes do jarro, as mulheres apagavam o fogo, pegando então as tortas
à superfície interior do forno. Em geral comiam-se quentes. Mas quando
Jesus e os discípulos chegaram ao horto, as tortas havia muito que
tinham arrefecido. Alguns dos comensais, no entanto, remediaram aquele
contratempo salpicando-as de mel.
* Os coentros ou Coriandrum sativum das umbelíferas, são o fruto
mais conhecido no Ocidente por coriandro, por causa do forte cheiro a
percevejos que larga quando colhido recentemente. Uma vez seco, tornase
muito aromático. O utilizado pelos Israelitas era amarelado e do
tamanho do grão da pimenta. É menos excitante e afrodisíaco que o
cominho. Segundo pude comprovar, muitos hebreus misturavam este
último com mel e pimenta, tomando-o duas vezes ao dia.
Isto, segundo me disseram, excitava-os sexualmente. (N. Do M.)
Jesus mal provou o guisado de lentilhas, dedicando a sua atenção ao
requeijão e à sua preferida ração de passas sem grainha...
A meio do almoço, Judas apareceu no acampamento. Ninguém se
surpreendeu. Apenas Jesus, David Zebedeu e eu o seguimos com o olhar.
O Iscariotes, de olhos baixos, pegou numa das escudelas de madeira,
servindo-se de uma generosa ração de lentilhas.
E no mesmo silêncio com que entrara no horto assim se retirou e
isolou, sentando-se entre as raízes de uma das oliveiras mais próximas.
Durante um bom pedaço, o traidor concentrou a sua atenção na comida.
Uma vez terminada, e enquanto procedia ao palitar dos dentes com uma
palha, levantou os olhos para o céu, na direcção do sol. (Suponho que
procurando averiguar o que restava da luz.) E ali continuou, atento a
todos e a cada um dos movimentos do Galileu e dos Seus mais chegados.
Devia faltar uma hora para as três da tarde, quando David Zebedeu
– cada vez mais inquieto – se levantou e praticamente puxou por Jesus,
caminhando com Ele na direcção das tendas.
Falaram uns minutos e observei como o Mestre lhe respondia, ao
mesmo tempo que levantava a mão esquerda, como que procurando
tranquilizá-lo. Judas, impassível, seguia a cena, sem se mover do seu
lugar.
Quando David voltou para o grupo, procurei interrogá-lo:
- Que tens? - perguntei-lhe, baixando o tom de voz, de modo a não
ser ouvido pelos outros.
- Os meus homens em Jerusalém – explicou-me, com
desesperotrouxeram-me más notícias... Começava a compreender do que
se tratava e qual era, na
verdade, o motivo da progressiva agitação do discípulo.
. Seguiram Judas e, tal como me haveis avisado, os planos para
prender o Mestre estão quase preparados. Será hoje. É provável que
depois do pôr do Sol. O capitão da guarda do Templo está furioso com a
fuga de Lázaro e incitou o Iscariotes para que a prisão seja consumada. -
Sabeis onde terá lugar?
- Não. Tudo o que sei é que não podemos perder de vista aquele
bastardo... - resmungou David, cravando o olhar em Judas.
- E que disse Jesus?
Zebedeu encolheu os ombros, e dando ainda provas da evidente
surpresa que lhe causara a resposta do Galileu, comentou: Pediu-me que
não falasse disto a ninguém, mas a ti sim posso dizer-to, uma vez que já
sabes... Sim, David, respondeu-me sei tudo. E sei que tu sabes, mas cuida
de nada dizeres a ninguém. E, quando tentava persuadi-lo a que fugisse,
declarou: Não duvides de que a vontade de Deus prevalecerá no final.
Juro-te, Jasão, que não consigo compreendê-Lo. Se Ele quisesse, agora
mesmo poríamos ao Seu serviço mais de uma centena de homens armados
que O escoltariam e defenderiam até chegar a Pereia...
Coloquei as mãos nos seus ombros, tal como vira Jesus fazer, e
tentei animá-lo com o olhar. Porém, a tristeza daquele homem era muito
mais profunda do que eu podia supor.
A súbita chegada de um dos correios arrancou David aos seus
sombrios pensamentos. Acompanhei-o até à tenda dos homens e ali, na
presença de Zebedeu, o emissário – que vinha de Filadelfia – leu uma
mensagem de Abner. Até àquela remota cidade oriental tinham chegado
também os insistentes rumores sobre uma conjura para matar o Mestre
e ele pedia instruções. Devia mobilizar-se com toda a sua gente e dirigirse
a Jerusalém? O Zebedeu leu a missiva e imediatamente procurou o
Galileu.
Este, uma vez conhecida a notícia do homem que dava protecção a
Lázaro, transmitiu a David: Diz a Abner que continue com o seu trabalho.
Se me despeço de vós em carne é porque posso voltar em espírito. Não
vos abandonarei. Estarei convosco até ao final.
Outro mensageiro partiu a correr para Filadelfia e eu aproveitei a
oportunidade para perguntar ao Zebedeu pela mãe de Jesus. Era quase a
hora nona (as três) e Maria e os seus familiares ainda não tinham dado
sinais de vida. Como disse, a possibilidade de me encontrar frente a
frente com a mãe do Galileu fora excitando o meu espírito, enchendo-me
de curiosidade. Como era realmente aquela mulher? Teria o aspecto que
nos dá a tradição pictórica universal? Que havia ao certo sobre todas
aquelas virtudes e qualidades que tinham sido constantemente louvadas
pelos investigadores e estudiosos mariológicos?
David não pôde satisfazer a minha dúvida. O caminho desde
Betsaida, na Galileia, a cerca de seiscentos estádios (perto de cento e
dez quilómetros), representava um esforço considerável, principalmente
para um grupo em que viajavam várias mulheresl. Tinha de se esperar.
Assim que David se retirou da presença de Jesus, logo Filipe, o
chefe da intendência, se aproximou do Mestre para Lhe perguntar:
- Uma vez que se aproxima a hora da Páscoa, onde queres que
preparemos a ceia?
O Galileu respondeu-lhe:
- Vai procurar Pedro e João e eu vos darei as instruções para a ceia
que comeremos juntos esta noite. Quanto à Páscoa, dela vos falarei
depois da ceia...
Este assunto tinha muito interesse para Judas. E, levantando-se,
começou a caminhar na direcção de Jesus com o propósito – suponho de
averiguar onde e a que hora ia celebrar-se a ceia daquela quinta-feira.
Mas o Zebedeu – que não o perdera de vista – compreendeu as
tenebrosas intenções do Iscariotes e, com um admirável reflexo,
interpôs-se no caminho do traidor entretendo-o.
Judas, nervoso, viu como Filipe, Pedro João e o Mestre se
separavam do grupo, entrando numa das tendas isoladas. Poucos minutos
depois, os três apóstolos saíram do abrigo e sem fazerem o menor
comentário, abandonaram o horto, seguindo ladeira abaixo.
Por um momento hesitei. Que devia fazer? Juntava-me ao grupo dos
apóstolos que acabava de sair do acampamento ou continuava junto do
* A rota utilizada habitualmente naquela época, a partir da
localidade de Betsaida (Bethsaide Julias) até Jerusalém forçava a
passar pelas povoações de Kursi e Hippos, na margem oriental do lago de
Genesaré Gádaros e PéLa e, dali, seguindo a margem do rio Jordão,
chegava-se a Bethabara, na região de Pereia e por último, Jericó,
Betânia e Jerusalém. A outra rota – a que atravessava pelo centro da
Samaria – não era muito recomendável, dados os contínuos conflitos
entre os habitantes da Judeia e Galileia e os Samaritanos. (N. Do M.)
Mestre? David ia entretendo o Iscariotes que, com o rosto desolado mas
sem perder o sangue-frio, parecia resignado à sua sorte.
Deixei-me guiar pelo instinto e, dissimuladamente, fui atrás de
Filipe e dos seus companheiros. Alcancei-os quando atravessavam para o
outro lado do Cédron, ladeando a muralha sul-oriental da Cidade Santa,
em direcção à Porta dos Essénios. Ao verem-me, os discípulos
mostraram-se um tanto surpreendidos. Mas tentei dissipar os receios,
comentando-lhes que – uma vez que se aproximava a festa pascal tinha
in- tenção de agradecer a hospitalidade do Mestre, entregando-lhe uma
oferta (1).
- Vi-os seguir para Jerusalém – disse-lhes – e pensei que esta era
uma boa ocasião para lhes pedir um conselho...
Só João – melhor observador e mais sensível que os seus amigos se
comoveu com aquele meu gesto. E, agarrando-me pelo braço, perguntoume:
- E que pensaste oferecer-lhe?
- Talvez uma nova túnica – improvisei.
- Não é má ideia – meditou em voz alta -, mas, talvez fosse mais
prático que comprasses um manto... Ele gosta muito da sua túnica. Já
pensaste que foi confeccionada à mão e sem costuras...
Disse-lhe que me parecia uma excelente ideia e que, se dispusessem
de uns minutos, me acompanhassem e recomendassem um bom mercador
de panos.
Pedro interveio e num tom brusco – como se estivesse de mau humor
– revelou o que, precisamente, eu desejava saber:
- Espera, Jasão. Agora não pode ser. O Mestre incumbiu-nos de um
assunto um tanto estranho...
Na sua voz adivinhei aquela quase genética incapacidade para
compreender muitas das acções de Jesus.
Temos de ir até às portas da cidade e procurar um homem exclamou
com ironia – com um cântaro de água... Imaginem! Com milhares de
peregrinos em Jerusalém...
João censurou-lhe a pouca fé.
- Se o Mestre nos disse que ao passar as portas encontraremos
esse homem com o cântaro, nada mais há a dizer.
Mas tens de concordar – tentou conciliar Filipe – que o Pedro tem
razão. Não teria sido mais fácil e prático que Jesus nos tivesse dado a
direcção da casa onde deseja cear esta noite ou o nome do seu
proprietário? Porquê tanto mistério? Que necessidade há de tanto
enigma? Sorri só para mim, recordando o texto evangélico onde se narra
este episódio.
Teria sido interessante que os escritores sagrados mencionassem
aquele diálogo entre os discípulos e que retratava maravilhosamente a fé
cega de uns e as dúvidas lógicas de outros. (Tem de se considerar a
possibilidade de, com o passar dos anos, nem Pedro nem Filipe
* O costume judeu daquela época estabelecia que, para se cumprir o
preceito de se estar alegre pela Páscoa, era aconselhável fazer ofertas,
tanto aos amigos como aos familiares e, principalmente, às mulheres. E
ainda que não fosse este o meu caso, dada a minha condição de gentio,
considerei aquele pretexto muito adequado aos meus fins. (N. do M.)
desejassem que a incipiente comunidade cristã viesse a saber da sua
fraqueza de espírito. O que é muito humano e compreensível.)
Os três homens continuaram entregues àquela discussão, até
chegarem ao umbral da grande Porta dos Essénios, de frente para o vale
do Hinnon. Àquela hora da tarde as gentes que entravam e saíam de
Jerusalém eram suficientemente numerosas para desalentar quem
tentasse localizar um homem com um cântaro de água.
De repente, naquele confuso movimento de gente, João chamou-nos
a atenção para um grupo de mulheres que saíam da cidade. Duas levavam
cântaros à cabeça. As outras possivelmente lavadeiras – com grande
destreza, equilibravam à cabeça cestos de vime cheios de roupa. Mas
Pedro, cada vez mais desalentado, observou ao jovem discípulo que se
tratava de mulheres e que, além disso, iam na direcção oposta que lhes
indicara o Rabi.
Ao passarem o arco de pedra da gigantesca porta os três apóstolos
pararam diante das primeiras casas do Bairro Batxo.
E, durante uns minutos, entregaram-se a inspeccionar quantos
passavam por ali. Não precisaram de muito tempo para descobrir, à
direita da Porta dos Essénios, um homem que estava sentado e com as
costas apoiadas à muralha. A seu lado havia um cântaro de quase meio
metro de altura dos que eram usados habitualmente para ir buscar água
às fontes situadas perto de Jerusalém.
Os discípulos olharam-se em silêncio e João, sorridente e resoluto,
avançou até ficar a dois metros do homem. Filipe seguiu-o e Pedro, ainda
hesitante, acabou por se juntar aos seus amigos, negando
sistematicamente com a cabeça.
Nem João nem os outros chegaram a abrir a boca. Quando o homem
que parecia estar farto de esperar os viu, imóveis e com os olhos nele,
esboçou um sorriso e, sem mais palavras, levantou-se, agarrando no
pesado cântaro. Em seguida, e com o recipiente bem apoiado na anca
esquerda, pôs-se a andar, apressadamente. Pedro, em silêncio e de olhos
baixos, tinha corado de vergonha.
Em questão de minutos, a misteriosa personagem levou-nos pelas
ingremes e apertadas vielas da zona meridional de Jerusalém até uma
casa de dois pisos, situada muito perto da residência de Anás, o ex-sumo
sacerdote e sogro de Caifás.
À porta daquela mansão, quase tão luxuosa como a de José de
Arimateia, esperava alguém que era conhecido de todos: o pequeno João
Marcos!
Pelo que parecia, não fui o único a ficar surpreendido. Os três
discípulos, ao verem o adolescente, entreolharam-se, adivinhando então
as intenções de Jesus. Pela minha parte, o aparecimento, considerado
milagroso, do encontro com o homem do cântaro, começava a ter uma
explicação mais racional.
Embora naqueles instantes não dispusesse de provas suficientes, um
pressentimento começou a insinuar-se em mim.
Não teria o Mestre dado instruções a João Marcos, durante o longo
passeio de quarta-feira, para que um membro da sua família – talvez um
servo – fosse a uma determinada hora às portas de Jerusalém levando
um cântaro de água? Se não fosse assim, como explicar a presença do
rapaz, justamente no degrau da porta onde se deveria celebrar o que ia
ser conhecido pela última ceia? Aquela hipótese foi ganhando terreno no
meu subconsciente. No fundo, tudo batia certo. O férreo mutismo do
jovem às perguntas dos discípulos e a extrema prudência do Mestre no
momento de indicar o lugar onde desejava encontrar-se com os mais
íntimos. .
Jesus de Nazaré estava a par da conspiração que Judas
protagonizava, bem como das suas manobras para facilitar a captura. Era
lógico que, se o Galileu não desejava ser incomodado no decorrer da ceia,
tomasse as necessárias medidas de precaução. E aquela manobra,
evidentemente, fazia parte do plano.
O jovem Marcos levou-nos ao interior da casa, apresentando-nos a
seus pais, Elias e Maria. A família – pelo que pude averiguar – era
aparentada com a de Jesus, comungando plenamente nos seus
ensinamentos.
Filipe, como responsável pela preparação da ceia, pediu a Elias
Marcos que lhe mostrasse o local escolhido e que o pusesse ao corrente
da ementa e dos restantes preparativos.
Prudentemente, e uma vez que o rapaz se encontrava ali, abstive-me
de formular perguntas aos donos da casa. No entanto, depois de
verificar que a ceia teria por palco o andar de baixo da mansão dos
Marcos, as minhas dúvidas quanto ao acordo secreto entre Jesus e o
filho deles ficaram praticamente dissipadas. Só restava que o rapaz ou
os seus pais mo confirmassem. Porém, isso aconteceria umas horas
depois...
Já me preparava para seguir Filipe e Pedro até ao primeiro andar,
iniciando assim outra das minhas delicadas missões, confiadas pelo
Cavalo de Tróia, quando, inesperadamente, João, o Evangelista, me
propôs aproveitar aqueles minutos para visitar o bairro próximo dos
tintureiros, satisfazendo assim o meu desejo de comprar o manto para o
Mestre. Vi-me apanhado na minha própria armadilha e não tive outro
remédio senão aceitar, simulando – ainda por cima – grande
contentamento por aquela gentileza do discípulo.
O grémio dos tintureiros, tal como João me anunciara ao sair de
casa, ficava muito perto. Descemos por uma viela estreita, tão mal
calcetada quanto pestilenta, até desembocarmos num largo de pequenas
casas de um piso, situado à sombra da muralha exterior e no extremo
sul-oriental da cidade. As trinta casas eram, na realidade, tinturarias.
João levou-me até uma delas, onde entrámos, e que era propriedade de
um velho amigo; um tal Malkiyas, hábil artesão e digno sucessor de uma
antiga família de tintureiros.
E, sem que tivesse essa intenção, vi-me dentro de um piso térreo de
seis por três metros, quase em completa escuridão, e num dos extremos
vi duas grandes cubas de quase um metro de diâmetro por oito de altura.
A seu lado tinham posto várias tinas pouco fundas e um banco de
alvenaria. Nas cubas fora introduzida potassa e cal apagada, bem como
uma pequena quantidade de indigo numa e bastante mais na outra. Cada
cuba, tapada com uma tampa de pedra, que apresentava um pequeno
(1)
A ajuizar pela cor azul e pela sua forma, em blocos quadrados de 125
gramas de peso cada, aquela pasta tintureira devia ser uma das espécies
de indigo da Índia, muito apreciada na arte de tinturaria. (N. Do M.)
orifício ou boca (com cerca de quinze centímetros) ao centro.
Por ali o amigo Malkiyas ia introduzindo os fios dos diferentes
tecidos, tingindo-os. Numa das tinas, vários operários manipulavam
grandes peças de pano mergulhando-as em banhos de púrpura e de
escarlate.
João expôs-lhes o meu desejo de fazer uma oferta a um amigo,
pedindo-lhe que nos mostrasse alguns dos mantos mais bem acabados e
prontos já para passarem ao grémio dos vendedores de panos. O chefe
da tinturaria aceitou com gosto, mostrando-nos uma grande variedade de
roupões e de túnicas de lã e algodão, mantos para mulheres (muitos
parecidos com o actual xale) e finas indumentárias de fio do Egipto,
todos eles tingidos nas mais variadas e sugestivas cores.
E, de repente, ao ver todas aquelas prendas, tive uma ideia.
Procurei entre os tecidos mais delicados e apontando a João um
manto de linho branco disse-lhe:
- Este... Gostaria de levar este...
O discípulo olhou-me com assombro e comentou:
- Mas, Jasão, este é um manto de mulher...
- Eu sei – respondi -, mas acabo de ter uma ideia melhor.
João respeitou o meu silêncio, e sem me fazer pergunta alguma
sobre aquela mudança repentina, discutiu com o mestre artesão o preço
do rico manto. Embora aquele tipo de operações comerciais estivesse
proibido – uma vez que os tintureiros não podiam vender os seus
produtos directamente ao público – a amizade entre João e Malkiyas
serviu para dar solução ao problema.
E cerca das quatro horas da tarde depois de irmos ao encontro de
Filipe e de Pedro, e na companhia do jovem João Marcos, que se quis
juntar a nós, retomámos o caminho de regresso ao acampamento de
Getsémani. Na casa da família Marcos, tudo estava pronto para a ceia.
As circunstâncias tinham-me impedido o acesso ao andar de cima e isso
começava a preocupar-me. Era vital para o completo desenvolvimento da
missão que eu pudesse entrar na referida sala, antes de ser ocupada por
Jesus e pelos doze...
Ao ver-nos chegar, David Zebedeu apressou-se a interrogar-me,
enquanto Pedro, Filipe e João comunicavam a Jesus que tudo estava
preparado para a ceia.
O astuto David explicou-me que, dadas as circunstâncias, tinha
sugerido a Judas que lhe entregasse algum dinheiro, com a finalidade de
ir satisfazendo as necessidades do grupo.
Para surpresa minha – acrescentou – aquele maldito não só não
ofereceu resistência como, entregando-me a totalidade dos fundos
líquidos e os recibos do dinheiro em depósito, me anunciou sem gaguejar:
Tens razão. Creio que és o mais indicado... Está a tramar-se qualquer
coisa contra o Mestre e, no caso de me acontecer alguma coisa não
serias incomodado por ninguém. , Vês isto Jasão? - comentou com
desalento.
Este cínico acaba de me confessar que teme pela vida de Jesus...
Aquele gesto de Judas – livrando-se de todo o dinheiro do
movimento – mais ainda apoiou a minha suspeita de que o traidor não
actuava por avareza.
Pelas cinco da tarde, quando só faltava uma hora para o ocaso, notei
um movimento que não era habitual no acampamento. Filipe informou-me
de que o Mestre tinha pressa de seguir para Jerusalém. Os apóstolos
não conseguiam entender a razão por que o Mestre organizara aquela
reduzida e insólita ceia, a que só podiam assistir os seus doze homens de
confiança.
Os comentários eram variados. O costume judaico estabelecia com
grande rigor que o almoço pascal devia celebrar-se – uma vez sacrificado
o obrigatório borrego ou cabrito no Templo – na véspera da Páscoa
propriamente dita (1).
Nesta ocasião a festa pascal caía ao sábado, pelo que era
duplamente solene, como julgo ter já comentado. Se a tradicional ceia
religiosa tinha de se efectuar no dia seguinte, sexta-feira, 7 de Abril, e
uma vez ter anoitecido, era lógico que os discípulos se interrogassem
sobre o misterioso banquete organizado para aquela noite de quintafeira.
Só alguns – João Judas Iscariotes, naturalmente e David Zebedeu
– tinham a intuição de que aquela ceia ia ser um acto muito especial,
anterior à imediata e fulminante captura do Mestre.
Para mim, aquela pressa de Jesus em abandonar o horto foi o sinal
que me levou a retirar-me, antecipando-me ao grupo.
Dadas as especialíssimas características da última ceia à qual,
insisto, só podiam assistir Jesus e os seus doze apóstolos – Cavalo de
Tróia considerara que a minha presença poderia quebrar o
carácter íntimo que o Mestre pretendia. Era pouco ético, portanto,
que eu me sentasse junto dos treze. Mas a missão não podia passar por
alto um facto tão transcendente e significativo como aquele.
Eu deveria recolher um máximo de informação sobre o que
verdadeiramente ocorrera no andar superior da casa dos Marcos. E, para
isso, o general Curtiss preparara uma solução intermédia: além das
minhas indagações acerca dos protagonistas, a totalidade das palavras
de Jesus e dos doze seriam recolhidas mediante um sensível e diminuto
microfone, que eu deveria ocultar num lugar estratégico do cenáculo.
(Dificilmente podia então supor que aquela minúscula maravilha da
electrónica – construída com grande apuro pelos especialistas da ATT
(American Telephone and Telegraph), empresa norte-americana de
exploração telefónica, para o nosso projecto – ia constituir uma das
razões que aconselharam a Cavalo de Tróia uma segunda grande viagem,
à época de Cristo...)
Depois de deixar nas mãos de Zebedeu o manto que tinha comprado
na tinturaria de Malkyias, fui colher ramos de alfazema e lírios cor de
amora e brancos que cresciam nas proximidades do olival. E a correr,
meti pela vereda mais curta para Jerusalém, avisando o módulo de que
me preparava para colocar o microfone e a vara de Moisés na casa de
Elias Marcos.
* A festa da Páscoa judaica – também chamada hag ha-massot ou
festa dos ázimos” - era celebrada anualmente a 15 de Nisan, coincidindo
com a lua cheia da Primavera. Naquele ano 30 esta data -15 de Nisan –
calhou a um sábado, 8 de Abril. O cordeiro pascal era sacrificado na
véspera (14 de Nisan) e era comido em família, logo que anoitecesse;
quer dizer nesta sexta-feira, 7 de Abril. O Galileu celebrou, portanto, a
última ceia” a 13 de Nisan ou quinta-feira, 6 de Abril. O mês de Nisan
era o primeiro do ano judaico, correspondendo ao nosso Março ou Abril.
(N. Do M.)
O gentil e sereno chefe de família não se surpreendeu quando lhe
anunciei que Jesus e os doze não tardariam a chegar e que, como prova
da minha amizade e afecto pelo Mestre, desejava contribuir, adornando
a mesa com aquele humilde mas aromático presente. O meu plano surtiu
efeito e um dos servos – por indicação de Elias – acompanhou-me ao
andar de cima.
Subimos por uma estreita escada de pedra e, ao abrir uma porta de
duplo batente, o improvisado guia convidou-me a que o precedesse. Assim
fiz, penetrando numa espaçosa sala rectangular com pouco mais de vinte
metros de comprimento por seis ou sete de largura. No centro fora
colocada uma mesa baixa, em forma de U e de características muito
parecidas com as que vira em casa de Simão, o Leproso. À volta
encontravam-se treze divãs, orientados quase perpendicularmente à
mesa.
O que ocupava o centro, ou base do U, era um pouco mais alto que os
outros. Deduzi imediatamente que aquele era o lugar destinado ao
convidado de honra: quer dizer, a Jesus. Um dos divãs – muito
semelhante a bancos de quatro
pernas, mas sem braços nem encosto algum – era mais baixo que os
restantes. Encontrava-se situado num dos extremos da mesa e, ao vê-lo,
deduzi que o anfitrião tivera problemas para conseguir tantos divãs.
À esquerda da casa de jantar (tomando sempre como referência a
única porta de entrada), e unidos praticamente à parede de tijolo –
cuidadosamente reforçado à base de caliça – contei três lavatórios de
bronze, erguidos sobre o soalho em pés de madeira. Todos eles,
curiosamente, munidos de rodas. Desta forma, aqueles recipientes – de
quarenta centímetros de diâmetro e profundidade escassa – podiam ser
deslocados comodamente para qualquer lado do aposento. Junto dos
lavatórios, o dono da casa preparara várias jarras com água, bem como
algumas bacias e panos para enxugar.
A luz fraca que entrava pelas janelas estreitas – quase frestas –
que se distribuíam ao longo das paredes, obrigara já os servos a acender
as candeias de azeite. Numa rápida exploração observei que as seis ou
sete lamparinas encostadas às paredes, e a cerca de metro e meio do
solo, não davam uma chama suficientemente grande para iluminar a sala
com amplitude.
O problema fora resolvido com um lampião quadrado, em cujo
interior ardia mais azeite com uma mecha tripla de cânhamo. Este
reforço, colocado na parte interior do U, e apoiado a pouco mais de um
metro do chão por um pé de ferro forjado, belamente trabalhado,
proporcionava à mesa e às suas imediações uma claridade generosa.
Através das paredes de vidro – subtilmente tingidas de ouro -, a luz do
lampião inundava e banhava de amarelo os divãs avermelhados e a branca
e imaculada toalha.
Num dos extremos da mesa (o mais distante do lugar onde se
encontravam os lavatórios rolantes), a criadagem colocara o pão, o vinho,
a água e vários pratos com legumes.
E, em cima, no lugar de cada convidado, treze pratos de fina
cerâmica, decorados com estreitas bandas vermelhas e brancas,
possivelmente traçadas a pincel pelo artesão. Junto da baixela, e para
cada convidado, quatro taças de cristal de Sídon. A presença de tantos
cristais fez-me pensar que Jesus pensava celebrar aquela ceia segundo o
rito pascal.
Como única decoração, embelezavam a sala alguns tapetes
vermelhos, pendurados estrategicamente nas paredes. À direita da
porta, no canto do cenáculo a mãe do jovem Marcos pusera um discreto
ornamento, à base de brilhantes ramos de oliveira e folhas de palma,
firmemente espetadas num vaso com terra.
Depois daquela vertiginosa olhadela à casa, compreendi que o lugar
ideal para esconder o microfone multidireccional era a base do lampião.
Daquele ponto, equidistante de quase todos os discípulos, as vozes
podiam chegar com nitidez até ao sensível receptor. Mas, ao voltar-me
para a porta, a presença do criado que me acompanhava fez-me desistir
dos meus propósitos. Tinha de ficar sozinho, ainda que fosse unicamente
por dois minutos...
De repente, notei que ainda tinha as flores na mão esquerda e,
entregando-as ao servo, pedi-lhe que as metesse numa jarra. O bom
homem não entendia bem o grego e tive de me exprimir por sinais. Por
fim, pareceu entender-me e afastou-se, escadas abaixo, com o fim de
satisfazer o meu pedido.
Sem perder um segundo tratei do microfone, ajoelhando-me junto
do lampião. Felizmente, a base era igualmente de ferro e o dispositivo
magnético agarrou-se de imediato. As franjas que pendiam da lanterna
formaram uma camuflagem excelente. Recuei, saindo do centro da mesa
e, dirigindo-me rapidamente ao divã que, provavelmente, seria ocupado
pelo Galileu, recostei-me nele, estabelecendo contacto com a nave. Eliseu
respondeu imediatamente. Durante uns segundos dirigi a minha voz – em
diferentes níveis de intensidade para o lampião, situado a pouco mais de
três metros da curvatura do U. Repeti depois as provas de som dos dois
extremos da mesa.
Eliseu verificou as recepções, anunciando-me que o som chegava
cinco por cinco (1).
Um pouco mais seguro, coloquei-me então no canto onde Maria
Marcos dispusera o adorno floral. Em minha opinião, aquele era o único
canto de onde seria possível uma completa filmagem da ceia. Mas, ao
examinar a posição da única lente capaz – neste caso – de registar os
acontecimentos, verifiquei que existiam dois obstáculos que dificultavam
a filmagem: de um lado, as folhas de palma ocupavam a maior parte do
campo visual. Do outro, embora não houvesse aquele inconveniente, o
lugar que o Mestre tinha de ocupar ficava parcialmente oculto pelo
lampião central.
Tratei de me acalmar e, tomando de novo a vara, esquadrinhei toda
a sala. Logo desisti. Não tinha uma só zona onde apoiar o cajado com
garantias de uma filmagem correcta sem que levantasse suspeitas.
Desalentado, dirigi-me então para o ponto que escolhera em princípio,
com o fim de colocar a vara de Moisés atrás dos ramos e palmas. Pelo
menos, disse para comigo, será filmado o local e algumas das
personagens.. A minha missão, neste caso, era simples: bastava que
carregasse no prego que activava o mecanismo.
Uma vez terminada a
* Esta expressão é frequentemente utilizada na terminologia
aeronáutica para comunicar que se recebe o som de forma clara. (N. Do
M.)
ceia, e se não surgisse algum impedimento, era tudo questão de
subir novamente e de a levar.
Mas, quando me faltavam só uns passos para chegar ao canto, o
servo apareceu na sala, anulando as minhas intenções. Trazia na mão um
pequeno jarro de barro, e lá dentro, as minhas flores. Tive de forçar um
sorriso. Depois, quase como um autómato coloquei-o em cima da mesa, em
frente do prato e das taças dedicadas ao Nazareno.
Profundamente contrariado, abandonei aquele histórico lugar.
Já me preparava para me despedir da família Marcos quando o rude
e áspero som dos comos do carneiro do Templo anunciaram o final do dia.
A minha intenção era esconder-me nas proximidades da casa e esperar a
chegada de Jesus e dos discípulos. Deste modo poderia controlá-los e,
principalmente, manter-me a par dos movimentos de Judas. Mas a
hospitaleira familia não me deixou partir. Elias pediu-me que aceitasse
um copo de vinho e que, se não alterava assim os meus planos,
continuasse na sua companhia até ao regresso do grupo a Getsémani.
O pai de Marcos conhecia a decisão do Rabi sobre a ceia: ninguém –
com excepção dos treze – deveria participar na refeição pascal. Nem
sequer haveria servos. E ainda que eu me apressasse a recordar-lhe
aquele desejo do Mestre, o bom homem insistiu em que não era preciso
que eu estivesse presente no andar de cima. Podia satisfazer o meu
apetite e, de passagem, abrigar-me no andar de baixo ou no pequeno
jardim contíguo à casa.
Reflecti e aceitei. Talvez fosse aquela a localização ideal para a
minha missão. Apesar de tudo, do andar inferior e, mesmo do pátio era
possível seguir os movimentos de quantos subissem ou descessem do
cenáculo. Aquele amável convite permitiu-me, além disso, descobrir outro
dado curioso: a ementa da última ceia. De acordo com os costumes
judaicos, a refeição pascal era constituída por um prato único – o
cordeiro ou cabrito – guarnecido e acompanhado por uma série de
verduras, igualmente obrigatórias. Maria Marcos preparara vários pratos
com alface, cerefólios aromáticos (com um suave perfume parecido com
o anis), um cardo chamado eringe ou eríngio e as imprescindíveis ervas
amargas, tudo isto, sem ferver nem cozer, tal como prescrevia a lei.
Quando lhe perguntei como se preparava o cordeiro, a matrona
levou-me ao jardim, mostrando-me brasas de madeira de pinho, dentro
de uma fogueira delimitada por grandes pedras de rio.
Um dos criados velava para que o fogo não se apagasse, enquanto
dois outros amanhavam o cordeiro que não pesaria mais do que oito ou
dez quilos. Com uma destreza admirável, os criados cortaram-lhe as
pernas e extraíram a totalidade das vísceras. Depois, meteram tudo
aquilo – perfeitamente esfolado e purificado com água – no bucho do
cordeiro. Um dos homens pegou em rebentos de alforva, louro e pimenta,
acabando de encher o animal sacrificado. Depois, fecharam o ventre do
cordeiro com ramos de alecrim, dispostos em volta da peça.
O segundo servo introduziu então um comprido e sólido pau da
romanzeira pela boca do cordeiro, atravessando todo o corpo e fazendoo
sair pelo ânus.
Uma vez preparado deste modo, as pontas da vara de romanzeira
foram colocadas em forquilhas de ferro, firmemente cravadas na terra.
E deu-se começo a um lento e meticuloso assado. Seguindo um antigo
ritual, antes de os criados colocarem o cordeiro sobre as brasas, o pai
de família dirigiu o seu olhar para o céu, verificando que nos
encontrávamos entre duas luzes, tal como se determina no Êxodo (12,6).
O banquete fora completado com alhos porros, ervilhas, pão ázimo e,
como sobremesa, nozes, amêndoas torradas e uma torta sem levedura, à
base de figos secos.
Com o fim de aliviar o sabor das obrigatórias ervas amargas, a mãe
do pequeno João Marcos tinha uma deliciosa compota ou marmelada –
chamada jaroset – preparada à base de vinho, vinagre e frutas moídas. O
vinho (os convidados deviam beber, no mínimo, quatro taças, previamente
misturadas com água) era proveniente do Monte de Simeão, de grande
prestígio em Israel.
Pelas seis e meia, o benjamim dos Marcos entrou dentro de casa em
grande correria. Ofegante e suado, comunicou ao pai que o Mestre
estava já perto da mansão...
A alegria da família ao receber o Galileu e os apóstolos não teve
limites. E, durante largos minutos, a confusão foi completa. Maria
Marcos subia e descia constantemente, enquanto a criadagem tratava
dos últimos pormenores da ceia.
Os discípulos – por conselho de Jesus – foram subindo as escadas, a
caminho do andar de cima. Conforme pude apreciar, não faltava nenhum.
Judas num mutismo completo, seguiu os seus companheiros, enquanto o
Rabi conversava com a família. A ajuizar pelos Seus alegres comentários
sobre o carneiro, continuava de excelente humor. Nada parecia
perturbá-lo. No entanto, e a partir daquele momento, eu devia manterme
em alerta total.
O Iscariotes, por fim, soubera do local onde ia celebrar-se a
misteriosa ceia e os seus pensamentos só podiam estar entregues àquilo
que para ele era imperioso: sair de casa de Marcos e correr ao Templo
para pôr em andamento a operação de prisão do Nazareno. Às sete,
Jesus retirou-se, dirigindo-se ao cenáculo. O seu semblante continuava a
reflectir grande jovialidade.
A partir daquele instante, coloquei-me no vão da porta que dava
para o jardim, montando guarda a poucos metros da escada que subia
para o primeiro andar.
Dali a pouco, o prestável João Marcos – por indicação de seu
paitrouxe-me um pequeno tamborete. Sentei-me e ele fez o mesmo,
observando-me em silêncio. Comi lentamente o prato de peixe cozido que
me servira a dona da casa e, sem muitas esperanças de êxito, comecei a
interrogar o rapaz. Mas João, apesar de muito novo, possuía um profundo
sentido da lealdade e, acima de todas as coisas deste mundo, amava
Jesus. Assim as minhas perguntas falharam, uma atrás da outra, ante o
obstinado silêncio do rapazinho. Quando, por fim, me atrevi a expor-lhe
a minha teoria sobre a sua combinação secreta com o Rabi, em relação ao
homem do cântaro de água e aos outros planos sobre a ceia, João Marcos
empalideceu. E num impulso, levantou-se, fugindo para o fundo do jardim.
Sem querer, a sua atitude denunciara-o. Mas não quis forçar a
situação. Mais ou menos na altura em que se iniciava a ceia, Tiago e
Judas de Alfeu – os gémeos – apareceram na escada. Pus-me de pé. Mas,
ao vê-los entrar no pátio e pegar na bandeja de madeira onde estava o
cordeiro – previamente trinchado – tranquilizou-me. Tinham o olhar
grave. E a curiosidade voltou a assaltar-me. Que estava a acontecer lá
em cima? A que era devida aquela sombra de angústia nos rostos dos
irmãos, habitualmente risonhos? A constante presença da família
Marcos impediu-me de consultar o módulo, e optei por me acalmar. Teria
tempo para desvendar aquele mistério. João Marcos, um pouco mais
calmo e sorridente, levou-me o prato.
Procurei mostrar-me amistoso, trocando o meu anterior tema de
conversa por outro mais caloroso. Desta forma – fazendo de Jesus o
centro das minhas palavras – o rapaz esqueceu os seus receios,
demonstrando-me o que eu já sabia: que a sua paixão pelo Mestre não
tinha limites e que, se fosse preciso, ele seria o primeiro a oferecer a
sua vida pelo Rabi, segundo disse.
Conforme ia avançando a noite, sem o poder remediar também o meu
nervosismo ia aumentando. Até que, finalmente, pelas nove vi descer
Judas. Evidentemente, ia com pressa. E, sem sequer nos olhar, abriu o
portão da entrada, saindo de casa.
De um salto, corri à porta e observei como se afastava
precipitadamente. João Marcos, alarmado com a minha súbita atitude,
perguntou se acontecera alguma coisa. Se as minhas suspeitas eram
correctas, o Iscariotes encaminhava-se para o Templo. Aquilo significava
que eu perderia a sua pista de imediato. Era preciso actuar com rapidez
e inteligência. E, de repente, encarando o rapaz, ocorreu-me uma
solução. - Conheces a casa de José, o de Arimateia? - perguntei-lhe,
tentando não o alarmar. João Marcos assentiu.
- Pois bem, corre até lá e diz a José que vá imediatamente ao
Templo. É importante que ele ou Ismael encontrem Judas...
Sem perguntar nem fazer o menor comentário, o rapaz – que
percebera a minha preocupação – correu rua abaixo, na direcção da
piscina de Siloé.
Por meu lado, fazendo de maneira a que o Iscariotes não se
apercebesse de mim, iniciei uma tenaz perseguição ao traidor.
Àquelas horas da noite, o número de transeuntes diminuíra
sensivelmente. Com muita dificuldade, ajudado mais pelo luar que pelas
míseras e mortiças candeias de azeite das ruas, pude seguir os passos
apressados do judeu até um casebre, quase nos limites do Bairro Baixo
com a Cidade Alta. Ali, Judas entrou na casa, saindo poucos minutos
depois na companhia de outro indivíduo. E ambos se dirigiram então para
a muralha ocidental do Templo.
Quando cheguei ao Átrio dos Gentios vi como o Iscariotes e aquele
que o acompanhava se afastavam pelo solitário terreiro, a caminho das
escadarias que rodeavam o Santuário. Alguns dos vinte e um guardas que
montavam o habitual serviço de vigilância em volta do Templo vieram
cortar-lhes o caminho.
Dialogaram uns segundos e, de imediato, dois dos levitas os
acompanharam ao interior do Templo.
Obviamente, terminou ali o meu trabalho. E, confiando que tanto o
de Arimateia como Ismael, o Saduceu, soubessem interpretar a minha
mensagem, acudindo o mais cedo possível ao Templo para poderem espiar
os movimentos de Judas, dei meia volta, tentando orientar-me para
voltar a casa dos Marcos.
Preocupado com o Iscariotes não reparei que entrava numa viela
solitária sem iluminação. De repente, da minha esquerda, apareceu um
vulto que me barrou o caminho. Fiquei paralisado pelo susto. A Lua
iluminou então um indivíduo de baixa estatura e cerrada barba, que
avançou lentamente para mim. Um reflexo azulado numa das mãos geloume
o sangue. O ladrão lançou-se contra mim e, sem troca de palavras,
vibrou-me duro golpe no ventre. Porém, a adaga partiu-se pela base,
caindo nas pedras da rua com um eco metálico. A pele de serpente
livrara-me de sério percalço. O homem, desconcertado, olhou a lâmina
partida e, largando o punho da arma, recuou aos tropeções, sem poder
acreditar no que estava a acontecer.
Segundos depois, desapareceu pela viela estreita, gritando como um
louco.
Felizmente, o rasgão na túnica não era muito grande e, de imediato,
abandonei o local.
Poucos minutos depois das dez batia à porta dos Marcos. A
possibilidade de que Judas e os onze tivessem já saído do cenáculo
preocupava-me. Não quis alarmar Eliseu, dando-lhe conta do triste
incidente com o ladrão. Apesar de tudo, encontrava-me bem. Se o
assaltante, em vez de atacar, me tivesse exigido, por exemplo, a bolsa
com o dinheiro, talvez a situação tivesse sido radicalmente diferente. As
minhas possibilidades de defesa eram quase nulas e o mais provável era
aquele inoportuno bandoleiro ficar com o dinheiro do Cavalo de Tróia e, o
que teria sido muito mais lamentável, com o pequeno estojo que continha
as lentes de visão infravermelha. Ao ver-me, João Marcos correu ao meu
encontro. O Mestre e os discípulos continuavam ainda no primeiro andar.
Respirei, aliviado. José, o de Arimateia, tinha recebido o meu recado e –
segundo me explicou o rapaz – saiu imediatamente para ir ao Templo.
Agradeci-lhe e, um tanto contrariado, obedeceu à mãe, retirando-se
para repousar.
Porém, o seu sono não ia ser muito prolongado...
Pelas dez e meia, pouco mais ou menos, ouvi um hino. Elias ofereceume
um copo de vinho com mel e, apontando para o local de onde vinha
aquele cântico, avisou-me que Jesus e os discípulos não tardariam. A
verdade é que nunca eu precisara tanto de um copo de vinho como
naqueles momentos. Bebi-o de um trago e, efectivamente, dali a poucos
segundos – uma vez acabado o hino religioso -, os apóstolos começaram a
descer.
Jesus foi o último. Os onze, pelo menos naqueles instantes, estavam
muito menos tensos que durante a manhã. Despediram-se da família e eu
acompanhei-os no caminho de regresso ao acampamento.
Enquanto atravessávamos as ruas solitárias do Bairro Baixo, em
direcção à Porta da Fonte, no extremo sul de Jerùsalém, consegui que
André se separasse do grupo. E, um pouco para trás, interessei-me pela
forma como correra a ceia. O chefe dos apóstolos começou a dizer-me
que, tanto ele como os seus companheiros, estavam intrigados com o
repentino desaparecimento de Judas e, muito especialmente, pelo facto
de não ter voltado ao cenáculo. De começo, quando o vimos sair, todos
pensámos que vinha ao andar de baixo, talvez à procura de algum dos
víveres para a ceia.
Outros acreditaram que o Mestre lhe confiara algum encargo...
Os pensamentos dos discípulos eram correctos, já que ninguém
dispunha de verdadeira informação sobre a conjura. Por outro lado, com
excepção de David Zebedeu – que não participara no convite pascalnem
André nem os restantes sabiam ainda que o Iscariotes deixara de ser
administrador e que o dinheiro comum estava desde essa tarde em poder
do chefe dos emissários.
E André continuou com a sua narrativa, destacando um facto que se
dera logo à entrada no andar de cima da casa dos Marcos, e que – do meu
ponto de vista – esclarecia perfeitamente a razão por que o Nazareno se
decidiu a lavar os pés dos discípulos. Os evangelistas tinham dado uma
versão correcta: Jesus levou a cabo aquele gesto, manifestando a muita
honrosa virtude da paciência.
No entanto, qual fora a chispa ou a causa final que obrigou o Mestre
a proceder à lavagem dos pés? Será que tudo aquilo era devido a uma
pura e simples iniciativa de Jesus? Talvez sim e talvez não... Ao visitar a
sala onde ia celebrar-se a ceia pascal, eu tinha reparado nos lavatórios,
jarros e toalhas, colocados para as abluções obrigatórias de pés e de
mãos.
O costume judaico exigia que, antes de se sentar à mesa, o
convidado devia ser lavado pelos servos ou pelos próprios anfitriões.
Aquela, repito, era a tradição. No entanto, as ordens do Mestre tinham
sido terminantes: não haveria criadagem no andar de cima. E a prova é
que – segundo pude verificar – os gémeos desceram a dada altura para
virem buscar o cordeiro assado. Pois bem, aí surgiu a discussão entre os
doze...
- Quando entrámos no cenáculo – continuou André -, todos
reparámos que estavam ali os jarros e a água para a lavagem dos pés e
das mãos. Mas, se o Rabi ordenara que não haveria criadagem na sala,
quem se encarregaria da lavagem obrigatória? Tenho de te confessar
humildemente que, tanto eu como os restantes, tivemos os mesmos
pensamentos. Para já, eu não cairia tão baixo que me prestasse a lavar os
pés dos outros. Essa era uma missão da criadagem...
E, todos em silêncio, dissimulámos, evitando qualquer comentário
sobre a questão da lavagem. O ambiente começou a ficar perigosamente
pesado e, para cúmulo, o aborrecido assunto da limpeza pessoal viu-se
envenenado por outro facto que nos fez irritar, originando uma azeda
discussão. O Mestre tardava em subir e, entretanto, cada um de nós
dedicou-se a examinar os divãs. Saltava à vista que o lugar de honra
correspondia ao divã mais alto – o colocado ao centro – e novamente
caímos na tentação. Quem ocuparia os lugares próximos de Jesus?
Suponho que quase todos voltámos a pensar o mesmo: Será o Mestre a
escolher os discípulos predilectos. E nestes pensamentos estávamos
quando, inesperadamente, Judas se dirigiu para o assento colocado à
esquerda do que fora reservado para o
Rabi, manifestando a sua intenção de nele se sentar como convidado
preferido. Esta atitude do Iscariotes revoltou-nos a todos, originandose
uma desagradável discussão. Mas Judas instalara-se já no divã e
João, num dos seus impulsos, fez o mesmo, apoderando-se do lugar da
direita.
Como poderás imaginar, a irritação foi geral. Porém, as ameaças e
protestos de nada serviram. Judas e João não estavam dispostos a
ceder. Talvez o mais aborrecido fosse meu irmão Simão. Sentia-se
ferido e prejudicado pelo que chamou orgulho indecente dos seus
companheiros. E, visivelmente zangado, deu uma volta à mesa, escolhendo
então o último lugar, justamente no divã mais baixo. Sabes que Pedro é
bom e ama intensamente o Mestre mas, naquela altura, a sua fraqueza
foi grande. Conheço meu irmão e sei porque fez aquilo...
- Porquê? - animei-o a que fosse sincero comigo.
André precisava de o contar a alguém e desabafou!
- Aturdido pelos ciúmes e pela impertinente iniciativa de Judas e de
João, Simão não hesitou em se sentar no último lugar da mesa com uma
secreta esperança: que, quando entrasse o-Mestre, lhe pedisse
publicamente que deixasse aquele divã, afastando assim Judas ou,
mesmo, o jovem João.
Desta forma, ocupando um lugar de honra, seria honrado e deixaria
mal os seus orgulhosos companheiros.
Quando o Rabi apareceu na abertura da porta, ainda nos
encontrávamos em plena batalha dialéctica, recriminando-nos
mutuamente pelo sucedido. Vimo-Lo e, bruscamente, fez-se silêncio.
Jesus permaneceu uns instantes no umbral. O seu rosto fora ficando
paulatinamente sério. Evidentemente, tinha compreendido a situação.
Mas, sem fazer comentário algum, dirigiu-se para o seu lugar, ante o
olhar desolado de meu irmão Pedro.
Foram minutos difíceis. No entanto, Jesus foi recuperando a
habitual e característica doçura e todos nos sentimos um pouco mais
calmos. As conversas voltaram a surgir, ainda que alguns dos meus
companheiros continuassem empenhados em se atacar por causa do
incidente da escolha dos divãs, bem como da aparente falta de
consideração da família Marcos, ao não ter previsto um ou vários servos
para a lavagem dos pés.
Jesus desviou então o Seu olhar para os lavatórios, verificando que,
efectivamente, não tinham sido utilizados.
Mas também nada disse. Tadeu começou a servir a primeira taça de
vinho, enquanto o Rabi escutava e observava em silêncio. Como sabes,
uma vez bebida esta primeira taça, a tradição estabelece que os
hóspedes devem levantar-se e lavar as mãos.
Nós sabíamos que o Mestre não apreciava muito estes formalismos
e aguardámos em expectativa. Ante a surpresa geral, o Rabi levantou-se,
caminhando silenciosamente para os jarros de água. Encarámo-nos
surpreendidos e, sem uma palavra, despiu a túnica, cingindo um dos panos
em volta da cintura. Depois, pegando num alguidar e na água, deu a volta
completa à mesa, chegando até ao lugar menos honroso: o que meu irmão
ocupava.
Ajoelhando-se, com grande humildade e submissão, dispôs-se a lavar
os pés de Pedro. Ao vê-lo, os doze nos levantámos como um só homem. Do
espanto, passámos à vergonha. Jesus tomara a Si o trabalho de um
qualquer criado, recriminando-nos assim pela nossa falta de consideração
e de caridade. Judas e João baixaram os olhos, aparentemente mais
feridos que os restantes... - Judas também? - interrompi-o, com alguma
incredulidade. - Sim...
André deteve os seus passos e, olhando-me fixamente, perguntou
por sua vez:
- Jasão, tu sabes alguma coisa... Que se passa com Judas? Encolhi
os ombros, procurando esquivar-me. Mas o chefe dos apóstolos insistiu e
– dada a iminência da prisão – expus-lhe que, efectivamente, também eu
duvidava da lealdade do Iscariotes. Prosseguimos, e ao atravessarmos o
Cédron, o meu companheiro saiu do seu mutismo. Supliquei-lhe que
continuasse a sua narrativa e André acabou por aceitar.
- Quando Simão viu Jesus ajoelhado na sua frente, o seu coração
inflamou-se de novo e protestou energicamente. Como te disse, meu
irmão ama o Mestre acima de tudo e de todos.
Suponho que ao vê-lo assim, como um criado insignificante e
disposto a fazer o que nem ele nem nós tínhamos aceitado, compreendeu
o seu erro e quis dissuadir o Mestre. Porém, a decisão do Rabi era
irrevogável e Pedro consentiu. Um a um, como te dizia, Jesus foi-nos
lavando os pés. Depois das palavras de Pedro, nenhum se atreveu a
protestar. Num silêncio dramático, o Mestre foi rodeando a mesa até
chegar ao último dos convidados. Depois vestiu a túnica e voltou ao Seu
lugar.
- João e Judas continuavam à direita e à esquerda do Mestre,
respectivamente? - Sim, ninguém saiu dos seus lugares, com excepção de
Judas, que saiu da sala pouco antes de ter sido servida a terceira taça: a
das bênçãos...
A proximidade do acampamento obrigou-me a suspender aquela
esclarecedora narrativa. No entanto, na minha mente ainda se
acumulavam muitas interrogações. Como fora a revelação de Jesus a
João sobre a identidade do traidor? Como era possível que os outros
apóstolos não o tivessem ouvido? Não havia dúvidas de que assim era, já
que nenhum estava a par dos actos do Iscariotes. Só havia suspeitas...
Tornava-se imperioso que, nas horas seguintes, arranjasse uma
oportunidade para interrogar João. Naquele momento, pouco me
preocupava não conhecer os longos ensinamentos do Mestre durante a
ceia.
Eliseu informara-me já que a transmissão e a gravação tinham
decorrido sem problemas. No meu regresso ao módulo na manhã de
domingo, ia ter a possibilidade de as escutar na sua totalidade. E devo
repetir que a transcrição das palavras dos evangelistas é apenas um
pobre reflexo do que se falou naquela noite da chamada quinta-feira
santa. Quando uma pessoa conhece esses sentimentos e mensagens na
sua totalidade, fica a saber que as igrejas com a passagem dos séculos,
quase reduziram o imenso caudal espiritual daquela reunião com Jesus a
uma fórmula matemática.
* O interessante conteúdo das pregações e ensinamentos de Jesus
de Nazaré durante a última ceia aparecerão num volume seguinte, em
que são narradas as vivências do major norte-americano durante a sua
segunda grande viagem, ao ano 30
(N. Do A.)
Pelas onze da noite, quando entrávamos no horto, André respondeu
a uma última pergunta que, embora para ele não apresentasse interesse,
era, para mim, de extrema importância.
À minha pergunta se Jesus tinha ceado abundantemente, o
discípulo, visivelmente surpreendido, respondeu que muito pouco. E
acrescentou que, tal como tinha por hábito, o Mestre não provou o
delicioso assado de carneiro.
Assim, o Galileu apenas teria comido algumas das verduras e
legumes – incluindo as ervas amargas – bem como um pouco de pão ázimo,
vinho com água e, provavelmente, um pouco da sobremesa. Este dado era
de indubitável valor, principalmente dadas as possíveis reacções do
organismo do Nazareno nas terríveis e prolongadas horas que tinha pela
frente. Às torturas, perda de sangue, esgotamento e dor dilacerante,
haveria que juntar também uma notável falta de recursos energéticos,
em consequência de uma ceia escassa e de um jejum total, a partir das
dez da noite daquela quinta-feira.
Na primeira oportunidade, transmiti ao módulo as características e
volume aproximado dos alimentos que Jesus teria ingerido na ceia, bem
como os tempos do começo e do fim.
(Segundo os meus cálculos, a refeição pascal, propriamente dita,
pôde iniciar-se por volta das oito ou oito e meia da noite, terminando,
aproximadamente, hora e meia depois.) O computador central do berço
proporcionou-nos a seguinte tabela de calorias – sempre de uma forma
estimativa -, com base nos alimentos mencionados e que constituíram a
dieta de Jesus naquela noite: tendo em conta que cada uma das quatro
taças de vinho fora misturada com água, isso somava um total
aproximado de trezentas calorias.
Quanto às mancheias de nozes e amêndoas – alimentos de máximo
poder energético de quantos o Mestre ingerira – o computador calculou o
número de calorias entre quinhentas e seiscentas. Considerando, por
último, que cada grama de gordura proporcionava nove calorias, a
chamada última ceia de Jesus de Nazaré resultou num total aproximado
de setecentas e cinquenta calorias. Um aporte energético muito baixo
tendo em conta as características físicas do Gigante.
(O metabolismo basal de Jesus – quer dizer, o que o seu corpo
necessitava diariamente para se manter com vida, sem fazer exercício –
foi igualmente calculado pelo Pai Natal em 1728 calorias2. No caso de o
Mestre desenvolver um mínimo de actividade física – andar, etc., - o
número já se elevava a três mil ou três mil e quinhentas calorias, como
consumo médio diário.)
As mulheres e os quarenta ou cinquenta discípulos que aguardavam
no acampamento receberam o Mestre e os apóstolos com grande
* O volume da taça foi calculado em duzentos centímetros cúbicos,
dos quais cem correspondiam a água (um litro de vinho representa um
aporte energético de setecentas calorias, aproximadamente). (N. Do M.)
2 O Metabolismo basal, de Jesus: 40x1,8 metros quadrados de
superfície total x24 horas = 1728 calorias (quando me refiro a calorias,
entenda-se quilocalorias,). (N. Do M.)
alegria. Porém, aquele entusiasmo não tardaria em decair. A causa,
uma vez mais, foi Judas.
Ao certificarem-se de que o Iscariotes também estivera presente
em Getsémani, alguns dos homens do Nazareno começaram a suspeitar
de que a alusão do Mestre durante a ceia sobre uma iminente traição,
tinha muito a ver com o desaparecido administrador. David Zebedeu, ao
escutar o que se dizia, esqueceu momentaneamente os seus mensageiros,
aproximando-se dos grupos. Porém, a sua atitude continuou a ser
prudente.
Escutou uns e outros sem revelar o que sabia.
Simão, o Zelota, mais nervoso que os outros, encabeçou um grupo e,
aproximando-se de André, começou a fazer-lhe perguntas. O
responsável pelo grupo, que na realidade carecia de informação, limitouse
a responder: - Não sei onde está Judas... Mas temo que nos tenha
abandonado. O desalento espalhou-se rapidamente. E Pedro, o Zelota,
Tomás e Tiago, entre outros, reuniram-se na tenda, com a intenção de
examinarem a situação e adoptarem as medidas de segurança que
julgassem oportunas.
Nisto, o jovem João Marcos apareceu no recinto. Cobria-se com um
lençol branco e, ao ver-me, correu ao meu encontro, rogando-me que não
o denunciasse.
Quando lhe perguntei por que motivo, confessou-me, que fugira de
casa. Ao ouvir como Jesus e os onze abandonavam a mansão, levantou-se
da cama, cobrindo-se a toda a pressa com o que primeiro encontrou: o
lençol de linho. E assim chegara ao acampamento. A fidelidade daquele
rapaz pelo Galileu encheu-me de admiração. É muito possível que o
Mestre notasse imediatamente o ambiente tenso que reinava entre os
discípulos, porque os chamou, dizendo-lhes: - Amigos e irmãos, não me
resta muito tempo para estar entre vós.
Desejaria que nos isolássemos com o fim de pedir a Nosso Pai
Celestial a força necessária nesta hora e seguir assim a obra que, em
Seu nome, devemos realizar.
Os discípulos e os gregos acompanharam-no então encosta acima até
uma plataforma rochosa, em pleno cume do monte das Oliveiras. Uma vez
ali, pediu que nos ajoelhássemos à sua volta. Eu continuei de pé, ao
mesmo tempo que filmava aquela cena impressionante.
O Gigante, banhado pelo luar, levantou os olhos para as estrelas e
com voz poderosa exclamou: -Pai, chegou a minha hora!... Glorifica o Teu
filho para que o Filho possa glorificar-Te. Sei que Me deste plena
autoridade sobre todas as criaturas do Meu reino e darei a vida eterna a
todos aqueles que, pela fé, sejam filhos de Deus. A vida eterna está em
que as minhas criaturas te reconheçam como o único e verdadeiro Deus e
Pai de todos. Que acreditem Naquele que enviaste ao mundo. Pai,
exaltei-te nesta terra e cumpri a ordem que Me deste. Quase terminei a
minha efusão nos filhos da nossa própria criação. Só Me resta sacrificar
a Minha vida carnal.
Agora, Pai, glorifica-me com a glória que tinha antes de este mundo
existir e recebe-Me uma vez mais à Tua direita.
Jesus fez uma breve pausa, enquanto os seus cabelos começavam a
agitar-se por uma brisa sempre mais forte.
- Tenho-Te revelado ante os homens que escolheste no mundo e me
deste – prosseguiu. - São Teus, como toda a vida entre as Tuas mãos.
Vivi com eles, ensinando-lhes as normas da vida e eles acreditaram.
Estes homens sabem que tudo o que tenho vem de Ti e que a encarnação
da Minha vida está destinada a dar a conhecer Meu Pai no mundo.
Revelei-lhes a Verdade que me deste e eles – meus amigos e meus
embaixadores – quiseram sinceramente receber a Tua palavra. Disselhes
que sou Teu descendente, que Me enviaste a esta terra e que Me
dispondo a voltar para ti... Pai, rogo por todos estes homens escolhidos.
Rogo por eles, não como o faria por toda a gente, mas como homens
que escolhi para Me representarem depois de ter voltado para ti. Estes
homens são Meus. Tu mos deste.
Não posso permanecer mais tempo neste mundo. Vou voltar à obra
de que Me encarregaste. É preciso deixar estes companheiros depois de
Mim, para que Nos representem e representem o Nosso Reino entre os
homens. Pai, preserva a sua fidelidade enquanto Me preparo para
abandonar esta vida carnal. Ajuda-os a estar unidos em espírito como Tu
e Eu estamos. São meus amigos.
Durante a minha estada entre eles podia velar e guiá-los, mas agora
vou partir. Pai, permanece junto deles até que possamos enviar um novo
instrutor que os console e reconforte.
Deste-me doze homens e eu conservei todos menos um, que não quis
manter a sua comunhão connosco. Estes homens são débeis e fracos, mas
sei que posso contar com eles. Submeti-os a provas e sei que Me querem.
Embora tenham de padecer muito por Minha culpa, desejo que estejam
convictos.
O mundo pode odiá-los como Me odiou. Mas não peço que os retires
do mundo; somente que os livres do mal que existe neste mundo.
Santifica-os na Verdade.
A Tua palavra é a Verdade. Tal como Me enviaste ao mundo, assim
Eu os vou enviar pelo mundo. Por eles vivi entre os homens e consagrei a
Minha vida ao teu serviço, com o fim de os inspirar para que purifiquem
na Verdade e no Amor que lhes mostrei. Bem sei, Meu Pai que não
preciso de Te rogar que olhes por eles depois da Minha partida. E
também sei que os amas tanto quanto Eu. Faço isto para que
compreendam melhor que o Pai ama os mortais tal como o Filho.
Desejo demonstrar fervorosamente aos Meus irmãos terrestres a
glória que gozava a Teu lado antes da criação deste mundo que se
conhece tão pouco...
Oh!, Pai justo, porém, eu Te conheço e Te dei a conhecer a estes
crentes, que divulgarão o teu nome a outras gerações.
Prometo-lhes que estarás perto deles no mundo, da mesma maneira
que estiveste comigo.
Levantando os longos braços para o céu, Jesus concluiu:
- Eu sou o pão da vida... Eu sou a água viva... Eu sou a luz do mundo...
Eu sou o desejo de todas as idades... Eu sou a porta aberta à salvação
eterna... Eu sou a realidade da vida sem fim... Eu sou o bom pastor... Eu
sou a vereda da perfeição infinita... Eu sou a ressurreição e a vida... Eu
sou o segredo da vida eterna... Eu sou o caminho, a verdade e a vida... Eu
sou o Pai infinito dos meus filhos limitados... Eu sou a cepa verdadeira e
vós os sarmentos... Eu sou a esperança de todos aqueles que conhecem a
verdade vivente.... Eu sou a ponte viva que une um mundo ao outro... Eu
sou a união viva entre o tempo e a eternidade... Depois de uns minutos de
silêncio, o Galileu pediu aos Seus homens que se levantassem e – um a um
– abraçou-os. Quando chegou a mim, os Seus olhos estavam marejados
de lágrimas.
Pouco depois, o grupo regressou ao acampamento.
David Zebedeu e João Marcos aproximaram-se de Jesus e tentaram
inutilmente convencê-lo a que se afastasse de Jerusalém. A partir
daqueles instantes – quase meia-noite – o habitual bom humor do Rabi
desapareceu. Com palavras entrecortadas de profunda emoção, o Mestre
rogou aos discípulos que fossem dormir. Contrariados, os apóstolos
foram-se acomodando na tenda e nos seus lugares habituais de repouso.
Mas, enquanto o Nazareno pedia a João, a Tiago e a Pedro que
permanecesse um pouco mais com Ele, Simão, o Zelota, dirigiu-se com
grandes cautelas a um dos lados da tenda dos homens, e abriu um grande
fardo. Eram espadas! Os oito apóstolos restantes acudiram ao
chamamento do Zelota e guardaram as armas. Todos menos um:
Bartolomeu. Este, repudiando o equipamento de combate, exclamou:
- Irmãos meus, o Mestre disse-nos muitas vezes que o Seu reino não
é deste mundo e que os Seus discípulos não devem combater com a
espada para o estabelecer. Em minha opinião, acredito e penso que o
Mestre não precisa que empreguemos armas para O defender. Todos
fomos testemunhas do Seu poder e sabemos que pode defender-se dos
Seus inimigos se o desejar.
Se não quiser resistir é porque esta linha de conduta representa o
Seu intento para cumprir a vontade do Pai. Pela minha parte rezarei, mas
não empunharei a espada.
Ao ouvir Bartolomeu, André devolveu a sua arma. Se não me
enganava, naquele momento eram nove os apóstolos que cingiam uma
espada. Todos menos Bartolomeu, André e João (ainda que deste último
não estivesse muito certo).
Por fim, francamente esgotados, os apóstolos e discípulos
retiraram-se, estabelecendo um rigoroso sistema de vigilância, com
turnos de dois homens armados às portas do acampamento.
Pelo que pude deduzir o grupo estava persuadido de que a detenção
do Mestre pelos chefes dos sacerdotes não seria levada a cabo antes da
manhã seguinte. E adormeceram com a intenção de se levantarem muito
cedo, preparados para o pior.
João, Pedro e Tiago tinham-se sentado em volta da fogueira e
esperavam Jesus. Este chamara David Zebedeu, pedindo-lhe o
mensageiro mais veloz. Regressou dali a pouco com um tal Jacobo, que
desempenhara as funções de correio nocturno entre Jerusalém e
Betsaida. E o Nazareno disse-lhe:
- Vai imediatamente a casa de Abner, em Filadelfia, e diz-lhe o
seguinte: o Mestre envia-te os Seus desejos de paz.
Diz-lhe também que chegou a hora em que serei entregue aos meus
inimigos e morto...
O emissário empalideceu, mas Jesus continuou sem se alterar: ..
Diz-lhe igualmente que ressuscitarei de entre os mortos e que lhe
aparecerei antes de regressar para junto de Meu Pai.
Então lhe darei instruções sobre o momento em que o novo instrutor
virá morar nos vossos corações.
David e eu entreolhámo-nos. Jesus rogou então a Jacobo que
repetisse a mensagem e, uma vez satisfeito, despediu-o com estas
palavras: - Não temas. Esta noite, um mensageiro invisível correrá a teu
lado. Enquanto o Zebedeu preparava a partida do correio, Jesus dirigiuse
aos gregos que acampavam junto da cuba de pedra do lagar e
despediu-se deles. Eu permaneci sentado muito perto de Pedro, João e
Tiago. Os apóstolos, apesar dos seus esforços para se manterem
acordados, começaram a baixar as pálpebras e a cabecear. O mestre
regressou para junto da fogueira e, quando se dispunha a afastar-se com
os seus íntimos para o interior do olival, David reteve-o uns instantes.
Com voz trémula e os olhos a chorar conseguiu por fim dizer-lhe:
- Mestre, tive uma grande satisfação em trabalhar para ti.
Meus irmãos são Teus apóstolos, porém, alegro-me por Te ter
servido nas coisas mais pequenas. Lamentarei com todo o meu coração a
Tua partida... As lágrimas acabaram por rolar-lhe pela cara curtida. E o
Galileu, sem poder conter o seu amor por aquele homem prudente e
eficaz, agarrou-o pelos ombros, dizendo-lhe:
- David, Meu filho, os outros fizeram o que lhes ordenei.
Mas, no teu caso, foi o teu próprio coração que respondeu e serviu
com devoção. Tu também virás um dia servir a Meu lado no reino eterno.
E antes de se separar definitivamente do Mestre, David confessoulhe
que dera ordens para que a Sua mãe e a Sua família se dirigissem a
Jerusalém. Jesus não pareceu muito surpreendido. - Um mensageiro
comunicou-me – concluiu – que, esta mesma noite, chegaram a Jericó, e
que amanhã cedo estarão aqui.
O Nazareno olhou-o e respondeu:
- David, que assim seja.
E, unindo-se aos três apóstolos, que esperavam junto do olival,
perdeu-se na escuridão da noite. A grande tragédia estava prestes a
começar...
7 DE ABRIL, SEXTA-FEIRA
Um silêncio estranho caíra sobre o acampamento. Eu sabia que
aquela não ia ser uma noite como as anteriores, mas, apesar disso, notei
no ambiente uma espécie de turbulência. Como se milhares de fantasmas
– talvez esses mensageiros invisíveis a que Jesus se referira – pairassem
sobre as copas das oliveiras, agitando fracas línguas de fogo, diante das
quais eu permanecia. E um calafrio correu-me pelas costas. O
acampamento dormia quando, à meia-noite, e uma vez que Jesus e os
seus três discípulos tinham desaparecido entre as oliveiras, me levantei,
avisando Eliseu de que me dirigia para o extremo norte do horto. Com um
relancear de olhos percorri as tendas, o lagar, os corpos adormecidos
dos gregos e, uma vez certo de que tudo estava calmo, encaminhei os
meus passos para o muro que limitava o horto pelo lado oriental e que eu
já explorara na minha primeira visita à herdade de Getsémani.
Antes de desaparecer na subida do monte, David Zebedeu
anunciara-me que de mútuo acordo com João Marcos, levariam a cabo um
turno adicional de vigilância. Ele nas proximidades do cume do monte das
Oliveiras – cobrindo assim o flanco oriental do acampamento – e o rapaz
na vereda que serpenteava junto à porta de entrada do horto, para ir
terminar na ponte sobre o barranco do Cédron.
Desta forma, se a guarda do Templo tentasse assaltar o refúgio do
Nazareno – pelo caminho mais curto, o de Cédron, ou pelo cimo do monte
das OliveirasJoão, Marcos ou o Zebedeu poderiam dar alerta. Mas os
acontecimentos iam desenrolar-se de outra forma... Lentamente,
procurando ocultar-me entre o arvoredo, fui avançando para a gruta,
sem perder contacto, em momento algum, com o parapeito de pedra.
De acordo com os objectivos de Cavalo de Tróia, a minha observação
daquilo a que os cristãos chamavam a oração do horto devia efectuar-se
sem que os seus protagonistas tivessem conhecimento ou suspeitassem
da minha presença. Para isso, tinha de saber com precisão em que lugar
permaneceriam os três apóstolos e onde pensava orar o Mestre. Se como
supunha, Jesus, elegia as proximidades da gruta, o meu esconderijo seria
precisamente aquela parede que cercava a propriedade de Simão, o
Leproso. Eliseu tinha razão.
Tal como me avisara horas antes, a forte perturbação nas altas
camadas da atmosfera – a leste da Palestina – começava a notar-se
sobre Jerusalém. Um vento cada vez mais insistente e tempestuoso
agitava as árvores, assobiando como um lúgubre presságio por entre as
ramadas retorcidas e as raízes das oliveiras.
A canafístula que crescia junto da caverna castanholava cada vez
com mais força, ajudando-me a orientar-me. Ao alcançar o fundo do
horto descobri imediatamente a figura do Galileu, de pé e de cabeça
baixa, quase apoiada no peito.
Encontrava-se, efectivamente, a quatro ou cinco metros da entrada
da gruta, a meio da reduzida clareira entre o olival e o rochedo. Aos pés
do Mestre uma daquelas camadas de calcário que a lua cheia iluminava.
Sem perder um minuto, saltei para o outro lado do muro e, arrastandome
sobre as ervas, rodeei a caverna, postando-me atrás da enorme
canafístula.
Dali – perfeitamente oculto – pude acompanhar, passo a passo, todos
os movimentos e palavras de Jesus de Nazaré.
A claridade da Lua permitia-me ver a figura do Mestre facilmente.
No entanto, precisei de habituar os olhos à escuridão que dominava a
massa das oliveiras para descobrir, por fim, as silhuetas de Pedro, João
e Tiago.
Os discípulos tinham-se sentado na terra, acomodando-se com os
seus mantos entre as últimas árvores, a pouco mais de uma trintena de
passos do ponto onde o Nazareno permanecia. Daquela distância, e
apesar dos meus esforços, não pude confirmar se se encontravam
adormecidos ou não.
Passados quinze ou trinta minutos, deduzi que pelo menos dois deles
deviam ter mergulhado num profundo sono, a julgar pelas suas posições –
totalmente deitados no solo – e pelos inconfundíveis roncos de Pedro.
Um terceiro, no entanto, estava encostado ao tronco de uma das
oliveiras e eu não podia jurar que estivesse a dormir.
De repente, quando me encontrava atarefado a preparar a vara de
Moisés, um rangido de ramos sobressaltou-me. Voltei-me e, a uns dez ou
quinze metros, os meus olhos ficaram presos a um vulto branco que
deslizava por entre os arbustos, aproximando-se. Peguei no cajado
em atitude defensiva e, com os joelhos por terra, dispus-me a repelir o
ataque daquilo que, num primeiro instante, identifiquei como um estranho
animal. Mas, quando aquela coisa estava quase ao alcance da minha vara,
parou. Era o jovem João Marcos!
Respirei fundo, fazendo-lhe um sinal para que continuasse agachado.
O rapaz chegou junto de mim, explicando-me ao ouvido que tinha
abandonado a sua guarda por querer estar perto do Mestre.
Não me atrevi a sugerir-lhe que regressasse ao caminho mas, dadas
as circunstâncias, pedi-lhe que ficasse comigo e no mais absoluto
silêncio. Ao ver Jesus em atitude de oração, Marcos entendeu e fez-me
um gesto de aprovação.
A partir daqueles momentos, e embora procurasse não perder de
vista o impetuoso adolescente, a minha atenção concentrou-se no
Gigante da Galileia.
E nisto estava quando, subitamente, Eliseu – com grande
excitaçãoabriu a ligação auditiva, informando-me de algo que me deixou
atónito. O radar do módulo estava a receber informação de um objecto
que voava sobre a zona!
- Mas, não é possível! - respondi-lhe, metendo praticamente a cabeça entre os joelhos, de
modo a que o rapaz não pudesse ouvir-me. Jasão, juro-te que manobrei a antena e o visor de
aproximação do radar (1) está a codificar um eco metálico. Aí por cima, a uns seis mil pés, está
qualquer coisa a mover-se... Sim, agora vejo melhor... Encontra-se em trezentos e sessentatrinta
milhasz.
Santo Deus! Parou... Levantei os olhos para o firmamento e na
direcção que Eliseu transmitira, mas nada observei de anormal. A forte
luminosidade da Lua, sempre mais alta, dificultava a visão das estrelas.
O meu companheiro no berço, tão confuso e perplexo como eu,
permaneceu com os cinco sentidos atentos àquele insólito visitante, mas
o objecto imobilizara-se e assim permaneceria durante largos instantes.
Ainda não me recompusera da surpresa provocada pela aproximação
daquele misterioso objecto voador quando vi como Jesus desfalecia,
cravando os joelhos na terra. A pancada seca contra o solo fez
estremecer João Marcos. Nem eu nem o rapaz alguma vez tínhamos visto
o Galileu com um semblante tão pálido e abatido.
Durante alguns minutos, permaneceu com o queixo entre as pregas
do manto que lhe cobria os ombros e o peito. Aquela profunda inclinação
da cabeça não me deixava ver com clareza o rosto, embora quase tivesse
a certeza de que estava com os olhos fechados. Os seus braços, imóveis
e prostrados ao longo do corpo, acentuavam mais ainda o repentino
abatimento.
* Nos finais de 1972 e graças a um esplêndido serviço de
espionagem norte-americana, Cavalo de Tróia obtivera os planos do radar
Oun Dish, que seria utilizado meses depois pelos Egípcios na Guerra do
Yom Kippur (Outubro de 1973), e cuja frequência era de dezassess Ghz.
Quer dizer, dezasseis mil Mc/s. Este complexo radar tinha sido colocado
a bordo do módulo.
2 A localização do objecto era de trezentos e sessenta graus (a
norte) e trinta milhas de distância do ponto onde se encontrava pousado
o módulo. (N. Do M.)
Depois, muito lentamente, foi elevando a cabeça, até deixar os olhos
fitos no céu. O vento começara a emaranhar-lhe os cabelos. Levantando
os braços ao alto, exclamou em voz apagada e suplicante:
-Abbá!... Abbá!...
Fiquei desorientado. Aquela palavra aramaica – que eu ouvira mais de
uma vez, quando as crianças se dirigiam aos pais – queria significar papá.
Era o familiar e conhecido chamamento carinhoso que por certo, os
Judeus nunca empregavam quando se dirigiam a Deus. Porque o utilizava
Jesus?
Os Seus olhos igualmente me impressionaram: o brilho habitual
embaciara-se. Pareciam agora afundados e ensombrados por uma
tristeza que, se não tivesse conhecido e experimentado a têmpera
daquele Homem, juraria que se encontrava muito perto do medo. - Abbá!
- murmurou de novo. - Vim a este mundo para cumprir a Tua vontade e
assim fiz... Sei que chegou a hora de sacrificar a Minha vida carnal... Não
recuso, mas gostaria de saber se é Tua vontade que Tu bebas este
cálice...
Aquelas palavras ecoaram no horto como um timbale fúnebre.
Não podia acreditar nos meus ouvidos. Jesus estava atemorizado? ..
Dá-Me a certeza – prosseguiu – de que com a Minha morte Te satisfaço,
como o fiz em vida.
As Suas mãos, abertas, tensas e implorantes, foram baixando pouco
a pouco. Mas o rosto – fracamente iluminado pelo luar – não se moveu.
Sem saber porquê, também eu olhei para a legião de estrelas e astros,
esperando que chegasse algum sinal.
Nesse instante, e como se tivesse lido os meus pensamentos, o
módulo restabeleceu a ligação e Eliseu gritou: - Jasão, Jasão... Está a
mover-se outra vez. Esse objecto está a deslocar-se... Não posso
acreditar!... Mudou de rumo; está a seguir agora a radial duzentos e
quarenta... Jasão, vem para aqui! Estás a ouvir-me, Jasão?
- Ouço-te cinco por cinco – respondi eu como pude. - Mas não será
algum meteoro? Eliseu quase me mandou para o inferno com aquela
pergunta, evidentemente estúpida. - Essa coisa, Jasão manteve-se
estacionária durante mais de vinte minutos... Agora move-se devagar.
Se aquele inexplicável objecto se encontrava ainda a umas trinta
milhas da nossa posição, era ridículo que eu continuasse a sondar o
espaço. Procurei, pois, serenar o meu irmão no módulo, pedindo-lhe que
me mantivesse devidamente informado das evoluções do eco no radar.
Entretanto, o Mestre tinha-se levantado e, dando meia volta, caminhou
para os discípulos. Dada a distância, não pude registar as Suas palavras,
mas observei, sim, como se inclinava para os ombros deles, tocando-lhes
com a mão esquerda. Os dois que estavam deitados despertaram e vi
como se levantavam parcialmente.
* O objecto, que tinha seguido uma trajectória norte, começava a
deslocar-se na direcção oés-sudoeste. Justamente para a zona de
Jerusalém. (N. Do M.) Quer dizer, tinha permanecido estático ou imóvel.
(N. Do I.)
Dali a pouco, Jesus voltou para a clareira. Os três apóstolos
observaram durante breves minutos, acabando por se deitarem
novamente. À medida que se aproximava, apercebi-me de algo estranho.
O Gigante cambaleava. Os seus passos eram vacilantes, como se
estivesse prestes a cair...
E, mal chegou junto da laje de pedra, caiu de bruços. Por um
instante, pensei que tinha desmaiado. Parte do seu corpo ficara sobre a
superfície rochosa, de cara contra o chão, imóvel. João Marcos levantouse,
disposto a socorrê-lo. Mas, segurando-o pelo braço, fiz-lhe ver que
não era conveniente incomodá-lo. Calculo que se o Galileu não se mexesse
o fogoso João Marcos não teria seguido os meus conselhos e correria em
auxilio do Mestre. Mas Jesus estava plenamente consciente e o jovem
tranquilizou-se.
Como se uma força invisível tivesse deixado cair sobre ele um fardo
de cem quilos, assim o Mestre se foi levantando.
Muito lentamente, sempre com a cabeça descaída, o Galileu acabou
por se sentar nos calcanhares. E assim ficou algum tempo, de joelhos,
num silêncio angustiado, e sem levantar o rosto.
Inconscientemente, João Marcos e eu entreolhámo-nos.
Que se estava a passar? A que era devido aquele súbito
abatimento?
Jesus ergueu o rosto para as estrelas e, gemendo, chamou
novamente por Seu Pai. Os pómulos e o nariz pareciam emagrecidos. A
expressão do rosto impressionou-me. Havia uma mistura de angústia e
pavor.
Os lábios entreabertos começaram a tremer e, quase
imediatamente, todo o seu corpo foi agitado por espasmos. Eram
convulsões breves, muito rápidas e quase imperceptíveis. Como se um
vento gelado lhe açoitasse cada célula. O Nazareno cruzou os braços
sobre o tórax, fazendo força com as mãos nas costelas, como tentando
dominar aquelas convulsões. E, de repente, a testa, pescoço e fontes
humedeceram-se com um suor frio. Os tremores tornaram-se então mais
intensos e prolongados e Jesus vergou pela cintura, tocando a superfície
da pedra com a testa. - Abbá!...
Abbá!...
Foi aquela a única palavra que conseguiu pronunciar.
Contudo, mais que um chamamento, era um grito de angústia e de
terror.
Agora tenho a certeza que, naqueles momentos duros e cruciais, o
Galileu deve ter experimentado um pungente e indescritível sentimento
de solidão, de horror e, quem sabe, de medo perante o que o
desconhecido lhe reservava.
Continuou a tiritar e, de repente, num arranque, lançou-se para trás,
levando as mãos ao rosto.
Ao vê-lo, fiquei petrificado...
O rosto, testa e pescoço, bem como as palmas das mãos, estavam
cobertos de vermelho. A fina película inicial de suor convertera-se em
sangue. .
João Marcos ocultou o rosto nas mãos.
Do couro cabeludo, grandes gotas ensanguentadas foram resvalando
sobre aquele extravasamento, deslizando pelos cantos internos dos olhos
e rodando depois pelas faces até se perderem no bigode e na barba.
Algumas grandes gotas permaneciam por segundos nas comissuras da
boca, convertendo-as em fios de sangue que escorriam depois pelos
músculos do pescoço. Num daqueles tremores, Jesus inclinou um pouco a
cabeça e os reflexos da Lua mostraram o Seu cabelo empapado de
sangue.
Meio hipnotizado por aquela súbita reacção do organismo de Jesus
quase me esqueci de utilizar a vara de Moisés.
Precipitadamente, coloquei-a de modo a que pudesse filmar a cena e,
ao mesmo tempo, iniciar uma exploração da pele e de alguns órgãos
internos de Jesus, mediante o rastreio ultra-sónico. (Como já referi, o
cajado, encerrava, entre outros dispositivos, um equipamento
miniaturizado, capaz de emitir este tipo de ondas mecânicas ou ultrasons.
A cabeça emissora, disposta na parte superior da vara – a um
metro e setenta da base – fora condicionada para captar as ondas
reflectidas, ampliando-as proporcionalmente e acumulando a informação
na memória de titânio do computador nuclear. Uma vez no módulo, os
ultra-sons - previamente codificados – podiam ser convertidos em
imagens, procedendo-se à análise dos órgãos e das reacções fisiológicas
do Mestre, tentando assim encontrar explicações.)1
* Dado não podermos tocar em Jesus, Cavalo de Tróia colocou
dentro da vara de Moisés, um complexo conjunto de equipamentos
miniaturizados, com o fim de explorar o corpo do Mestre, tanto no
simples fenómeno do suor sanguinolento do horto de Getsémani como na
flagelação e nas longas horas da crucifixão.
Estes sistemas – que irei descrevendo – consistiam,
fundamentalmente num equipamento de teletermografia e nos já
referidos ultra-sons. Este último foi seleccionado pelos peritos de
Cavalo de Tróia pela sua natureza inofensiva e pelas suas
características, que o indicavam para a exploração, e posterior
conversão em imagens, de órgãos internos tão importantes como o
pâncreas, a bexiga o fígado e o abdómen, bem como o controlo da
corrente sanguínea através das grandes artérias e vasos intermédios,
coração, olhos e tecidos moles em geral. Cavalo de Tróia, baseando-se no
chamado efeito piezoeléctrico”, descrito já pelos Curie e segundo o qual
a compressão da superfície de um cristal de quartzo cria nele uma
corrente (ultra-sons), dispôs, na cabeça emissora, de uma placa de
cristal piezoelétrico, formado por titanato de bário.
Um gerador de alta frequência alimentava a referida placa,
produzindo assim as ondas ultra-sónicas (numa frequência que oscilava
entre os dezasseis mil e os 10o Hertz). Estes ultra-sons – com uma
velocidade de propagação no corpo humano de mil a mil e seiscentos
metros por segundo, à excepção dos ossos – permitem, como disse, uma
excelente exploração e posterior visualização dos órgãos desejados,
conseguindo-se mesmo, captar o som cardíaco e o fluxo sanguíneo,
através de um sistema de adaptação denominado efeito Doppler.
Com intensidades que oscilam entre os 2,5 e os 2,8 miliwatts por
centímetro quadrado e com frequências aproximadas dos 2,25
megaciclos, o dispositivo de ultra-sons transforma as ondas iniciais
noutras audíveis, mediante uma complexa rede de amplificadores,
controladores de sensibilidade, moduladores e filtros de bandas.
Com a finalidade de solucionar o difícil problema do ar – inimigo vital
dos ultra-sons -, e já que as medições e rastreios só podiam efectuar-se
a uma certa distância de Jesus, os especialistas do Projecto conceberam
um sistema revolucionário, capaz de encarcerar e guiar os ultra-sons
através de um finíssimo cilindro, de luz laser de baixa energia, cujo
fluxo de electrões livres ficava congelado” no instante da sua emissão.
O processo para congelar, o laser, dando lugar ao que poderíamos
qualificar como luz sólida, - cujas aplicações, no futuro, são
inimagimáveis – não o posso revelar, por agora. Naturalmente, ao
conservar um comprimento de onda superior a oito mil armstrong (0,8
micras) o tubo laser continuava a desfrutar da propriedade essencial do
infravermelho, que só podia ser visto mediante as lentes especiais de
contacto

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