quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O Projecto Swivel tinha desenvolvido – em especial para os
astronautas da fascinante Operação Marco Polo – dispositivos que
fariam empalidecer de inveja os técnicos da NASA. Eis alguns dos mais
sugestivos: os olhos e a boca dos exploradores em outros padrões
tridimensionais da nossa galáxia podem ser protegidos com um sistema
absolutamente revolucionário. Os primeiros, por exemplo, são equipados
com um sistema óptico – formado por lentes de gás – que, perfeitamente
controladas por um computador, permitem a adaptação da visão tanto a
meio atmosférico adverso como ao vazio dos espaços siderais. Os
ouvidos dos astronautas, por outro lado, podem levar incorporados
estreitas cápsulas acústicas miniaturizadas, activadas por um
equipamento receptor de ondas gravitacionais.
Estes dispositivos servem para transmitir breves mensagens entre
os componentes de um grupo ou, como no nosso caso, para manter uma
permanente comunicação durante os onze dias que a aventura ia durar.
Graças a estas cabeças de fósforos – facilmente escondidas no interior
do ouvido – tanto Eliseu como eu podíamos saber um do outro, sem
necessidade de transportar incómodos aparelhos de rádio, que, por
outro lado, destruiriam a rigorosa pureza da exploração.
Quanto à alimentação, no caso de viagens de longa duração, os
astronautas são dotados de um tubo que conduz, por uma extremidade, a
um dispositivo especial colocado na região lombar e, pela outra, a um
mecanismo extremamente frágil e preso ao lábio inferior. O tubo está
preparado por dentro com uma rede de clios mecânicos que impelem
lentamente cápsulas que encerram diversos alimentos concentrados.
Estas são de secção elíptica e são protegidas por uma delgadíssima
película gelatinosa muito solúvel na saliva. A pálpebra do astronauta,
aberta e fechada uma série de vezes, envia um sinal codificado ao
equipamento da zona lombar e as cápsulas são impelidas para a boca.
A outra conduta transporta um soro nutritivo, com diferentes
concentrações reguladas. Finalmente cápsulas alojadas nas fossas nasais
geram oxigénio e nitrogénio, partindo da transmutação do carbono puro.
Além disso, o COZ é captado pelo mesmo dispositivo e dissociado nos
seus elementos básicos: carbono e oxigénio e convertidos, o primeiro
com libertação energética, que é utilizada no aquecimento da epiderme.
Ainda que o nosso módulo esti vesse preparado com estes
equipamentos, na realidade quase não foram usados, com excepção da
pele de serpente e do sistema de transmissão auditiva. O berço foi
dotado com uma reserva especial de água e de alimentos, suficiente para
ambos os expedicionários durante um período de tempo um pouco
superior a catorze dias. Pelo que me dizia respeito, o problema do regime
alimentar não envolvia excessivas complicações. No meu intenso treino
durante os dois anos anteriores, aprendera os esquemas do regime
alimentar dos judeus, bem como o dos gentios, que naqueles tempos
conviviam com os povoadores da Judeia. Como estrangeiro – o meu
aspecto e costumes tinham sido estabelecidos por Cavalo de Tróia como
os de um comerciante grego de vinhos e de madeiras – sabia
perfeitamente quais eram as minhas limitações neste sentido.
No entanto, numa eventual emergência, existia sempre o recurso de
um regresso ao módulo.
Naquela inesquecível terça-feira, a minha única saída fora do hangar
foi pelo entardecer. Sem saber a razão evitei o andaime dos arqueólogos
que continuavam a trabalhar na restauração da mesquita e entrei no
octógono.
Era estranho. Ali, sozinho diante das três pequenas velas que
iluminavam a pedra na qual – segundo a piedosa imaginação dos
peregrinos católicos – ainda se vê a marca de um pé que se ergue,
perguntei-me por que motivo Cavalo de Tróia escolhera precisamente a
mesquita da Ascensão de Cristo aos céus como nosso ponto de partida
para aquela outra ascensão...
Em silêncio, Eliseu e eu abraçámos Curtiss e os outros
companheiros. Não houve muitas palavras naquela despedida.
Todos estávamos conscientes do momento histórico de que éramos
protagonistas e dos obscuros perigos que nos podiam esperar do outro
lado.
- Até doze de Fevereiro... - murmurou o general, com alguma emoção
nas suas palavras.
- Sorte! - acrescentaram os homens do Cavalo de Tróia.
E pelas vinte e três horas (T.M.G., hora de Greenwich), o berço
começou a elevar-se para um firmamento iluminado pelas estrelas.
Em trinta segundos atingimos o nível de oitocentos pés levando a
cabo o estacionário do módulo. Todos os sistemas funcionavam segundo o
plano previsto.
Embora a nossa nave não fosse viajar no espaço – tal como
aconteceria meses depois com os expedicionários do Projecto Marco
PoloEliseu e eu, seguindo as recomendações do chefe da Operação
Swivel, tínhamos a missão de experimentar um dos fatos espaciais,
especialmente desenhados para os processos de inversão de eixos dos
swivels e para uma melhor resistência nas fortíssimas acelerações.
A grande viagem ao ano 30 da nossa Era – como oportunamente
referi – não pressupunha uma transferência física pelo espaço ou por
outros padrões tridimensionais, tal como nós, humanos, concebemos
habitualmente as viagens. No entanto, em expedições imediatamente
posteriores à nossa – como foi o caso de Marco Polo os astronautas
viram-se submetidos à dinâmica destas fortíssimas acelerações
chegando a alcançar, nálguns momentos, 254 metros por segundo, em
cada segundo. E ainda que estes picos de gradientes, em função da
velocidade durassem fracções de segundo, tanto a nave como o grupo de
pilotos tiveram de ser devidamente protegidos. Não vou entrar agora
nos pormenores da referida aventura, porém, resumirei, sim, a título
puramente descritivo, algumas das extraordinárias características dos
fatos espaciais, experimentados pelo meu companheiro e por mim, que
tinham sido desenhados e aperfeiçoados – em parte – pela Hamilton
Standard Division da United Aircraft, em Windson Locks (Connecticut).
Este fato consta de uma membrana extremamente complexa que
rodeia perifericamente o corpo do astronauta, sem estabelecer contacto
mecânico algum com a pele do piloto. O espaço que medeia entre a
superfície interna do fato espacial e a epiderme
humana está rigorosamente controlado em função do grau de
vasodilatação capilar da pele, assim como da sua transpiração. Deste
modo, a temperatura corporal mantém o seu valor normal, permitindo ao
viajante desenvolver a sua actividade física. Os comPelas vinte e três
horas e três minutos, o computador central accionava electronicamente
o sistema de inversão axial das partículas subatómicas da totalidade do
berço, bem como da camada limite da membrana exterior, empurrando os
eixos do tempo dos swivels para ângulos equivalentes ao recuo desejado:
709137 dias. Por outras palavras, para 30 de Março do ano 30.
Décimos de segundo depois da substituição do nosso antigo sistema
referencial de três dimensões pelo novo tempo, e segundo nos
explicaram os homens do Cavalo de Tróia, quando do nosso regresso, uma
violentíssima explosão se ouviu no cimo do Monte das Oliveiras, com a
consequente alegria dos nossos camaradas e o assombro dos israelitas.
Ponentes do meio interno são regulados em função da informação
dada por detectores da actividade fisiológica dos aparelhos respiratório
e circulatório, bem como da epiderme. Os equipamentos de controlo
fisiológico foram dotados de sondas que verificam quase todas as
funções orgânicas, sem necessidade de introduzir dispositivos
acessórios no interior dos tecidos orgânicos. Desde a actividade
muscular e da avaliação dos níveis de glucose e ácido láctico até ao
controlo da actividade neurocortical, que fornece dados precisos sobre o
estado psíquico do indivíduo, bem como toda a gama de dinamismos
biológicos, tudo é registado e canalizado através de 2,16 106 túneis, ou
redes, informativos. Um computador central compara-as com padrões
standard, ditando as respostas motoras correspondentes. Este fato
está munido, no rosto do astronauta, de uma ampliação – em forma
tronco-cónica - que permite uma visão natural ou artificial. A base do
referido tronco, abarcável pelos olhos, segundo um ângulo de cento e
trinta graus sexagesimais, encontra-se a uma distância de vinte e três
centímetros. Trata-se, na realidade, de um écran que permite a visão
artificial, em casos concretos da viagem. Está munida, em toda a
superfície, de cerca de 16.10 centros excitáveis, capazes de irradiar
individualmente, e com diferentes níveis de intensidade, todo o espectro
magnético, entre 3,9. 10” ciclos por segundo. A visão binocular conseguese
graças à dsposição prismática de cada núcleo emissor. A excitação de
faces opostas, de modo que qualquer dos olhos não tenha acesso à
imagem ou mosaico do outro é conseguida por um método muito
complexo. Uma sonda regista os campos eléctricos gerados pelos
músculos oculares de ambos os olhos (autênticos electromiogramas) e o
computador central do módulo conhece, assim, em cada instante, a
orientação do eixo pupilar. Por outro lado, os prismas excitáveis que
constituem o écran – de dimensões microscópicas – estão situados na
superfície de uma camada de emulsão viscosa, que Ihes permite o livre
movimento. Estes prismas estão controlados mecanicamente por meio de
um campo magnético duplo, de modo que metade obedece a um
componente horizontal do campo e os restantes à transversal. Assim, um
e outro grupos orientam as suas faces independentemente, tal como
duas persianas orientam as suas lâminas quando se puxa pelos cordéis
que regulam o ângulo de entrada de luz. (Neste caso, os cordéis” seriam
ambos os campos magnéticos e o factor motor a resposta do computador
central aos micromovimentos musculares do globo ocular.) A percepção
binocular oferece imagens de relevo normal, de modo que o astronauta
crê viver um mundo real longe do envoltório e da massa gelatinosa que o
envolve em certos momentos da viagem. Em determinadas faces do voo,
e que a nave se vê obrigada a experimentar grandes variações em função
da velocidade, o interior do módulo enche-se, previamente, de uma massa
viscosa em estado de gel. Trata-se de um composto de baixo ponto de
gelificação, em suspensão hidrossol. A sua coagulação nuns casos e
regressão ulterior ao estado sol, coloidal efectua-se graças às
características do dissolvente empregue, dado que, para uma
temperatura limiar de 24,611 graus centígrados, passa a converter-se
num electrólito de elevada condutibilidade. As suas propriedades
tixotrópicas são nulas, de forma que qualquer efeito dinâmico no seu seio
– agitação, por exemplo – não provoca a sua transformação em sol,. Entre
outras funções, esta geleia viscosa actua como protector ou
amortecedor perante os elevados picos de aceleração que o módulo
experimenta em determinadas ocasiões.
Uma vez
30 DE MARÇO, QUINTA-FEIRA
Foi talvez o instante de maior tensão. Eliseu e eu, metidos nos
nossos fatos espaciais, sentimos como os nossos corações aceleravam o
seu ritmo até ao limiar das cento e cinquenta pulsações. No computador
eram vinte e três horas, três minutos e vinte e dois segundos de quintafeira,
30 de Março
Tínhamos recuado um total de 17 019 289 horas.
Pouco a pouco, recuperámos o controlo da frequência cardíaca,
concentrando-nos na operação de manutenção do estacionário e na
verificação geral dos sistemas. Nada parecia ter mudado. A fonte
externa da luz infravermelha continuava a esconder-nos e os altímetros
marcavam os primitivos valores: cota de oitocentos pés sobre o terreno
e oscilação nula no módulo. Durante o processo infinitesimal de inversão
de massa, a pilha nuclear SNAP-IOA continuara a alimentar o motor
principal da turbina a jacto CF200-2V. Portanto, a nossa posição no
espaço não variara.
Uma vez verificados os circuitos principais Eliseu e eu efectuámos
um primeiro contacto visual da zona. A oeste da nossa posição e a pouco
mais de mil pés, avistámos um extenso núcleo luminoso. Apesar das
muitas horas de treino, a emoção deixou-nos sem voz. Os radares
confirmavam o perfil de uma povoação humana, com uma infinidade de
construções de fraca estrutura e duas edificações de superior
envergadura: uma, localizada no lado leste da cidade – muito mais
volumosa -, e outra, a noroeste. Logo soubemos que se tratava do grande
bloco do templo e da Torre Antónia e do palácio de Herodes,
respectivamente. As nossas suposições – apesar da densa escuridão –
estavam correctas: aquelas luzes amarelas e pestanejantes
correspondiam à Cidade Santa de Jerusalém. A totalidade do núcleo
urbano surgia encerrado na muralha. Um segundo muro de
características muito semelhantes ao que constituía o perímetro da
população dividia Jerusalém pelo seu terço norte, justamente desde a
fachada oeste do templo à fachada norte do palácio de Herodes. A éssueste
do nosso módulo, igualmente se avistavam mais dois grupos de
luzes mortiças, infinitamente mais pequenos que o primeiro e situados,
praticamente, na encosta do monte sobre o qual nos encontrávamos
estacionados, e que pensávamos ser o das Oliveiras. Os equipamentos de
ondas de setecentos e quarenta milímetros de comprimento voltaram a
emitir umas primeiras e confusas imagens destes núcleos humanos, não
sendo possível confirmar – como suspeitávamosse se tratava das aldeias
de Betânia e Betfagé.
Depois daquele primeiro rastreio dos nossos arredores imediatos, o
meu irmão de exploração e eu executámos a segunda fase do plano: uma
nova inversão de massa, com o fim de polarizar os eixos dos swivels
desaparecidas estas circunstâncias, a massa gelificada é conduzida,
mediante um duplo efeito de modificação térmica e ionização controlada,
ao estado de hidrossol. Sendo bombeada pelo exterior da cabina de
comando. (Nota do Major.) até à hora limite, que nos serviria de
autêntico ponto de partida para uma posterior aterragem no cume do
monte das Oliveiras. Pelas vinte e três horas e trinta e três minutos, o
módulo recuou no tempo, aparecendo quinze horas antes. Ainda que a
corrente do gerador atómico nos tivesse permitido a conservação da
nave no estacionário até ao amanhecer do dia seguinte, 31 de Março, os
objectivos da expedição recomendavam esta segunda inclinação dos
eixos do tempo dos swivels até alcançar as oito horas e trinta e três
minutos de 30 de Março do ano 30. Embora não deseje antecipar-me aos
acontecimentos, as nossas fontes informativas prévias indicavam a
sexta-feira, 31 de Março, como a data em que o Mestre da Galileia
entrou em Betânia, vindo da vizinha cidade de Jericó, situada a cerca de
trinta e quatro quilómetros da citada povoação de Betânia, onde residia
a família de Lázaro. Se tudo decorresse com normalidade, eu deveria
estar ali com uma antecipação aproximada de vinte e quatro horas.
Como poderei descrever aquele amanhecer de 30 de Março sobre a
vertical do monte das Oliveiras?
O sol nascente apagara os archotes de Jerusalém, oferecendo aos
nossos olhos atónitos um imenso cacho de casitas brancas e ocres,
apertadas umas contra as outras e dirigidas em mil direcções por
sinuosas vielas. E, destacando-se daquele mosaico, uma formidável
fortaleza rectangular, levantada no lado oriental da cidade. Era o templo
erigido por Herodes, o Grande, com imensas colunatas limitando
espaçosos pátios e átrios. Tal como descrevera o historiador Flávio
Josefo, uma brilhante cúpula – correspondente ao santuário –
resplandecia, qual montanha coberta de neve.
De norte a sul, junto da muralha oriental de Jerusalém avistámos o
leito seco e estreito de um rio que identificámos como o Cédron. Para
és-sueste, ligeiramente esfumado pela neblina, perdia-se no horizonte a
depressão do mar Morto. A sua superfície azul espelhava-se
timidamente, sobressaindo como um milagre nas ressequidas e cinzentas
ondulações do deserto de Judá. Muito mais ao fundo, perdidos num
verde-azul inverosímil, os contrafortes do Moab. Em alvoroço, Eliseu e
eu descobrimos, junto do vértice sul das muralhas da Cidade Santa, o
diminuto rectângulo de águas castanhas que, segundo os nossos mapas,
tinha de corresponder à piscina de Siloé.
Naquela mesma direcção, e a escassa distância dos muros, um
declive morria no leito do Cédron. Naquelas paragens – conhecidas por
terras estéreis de Hakeldama – iria dar-se o trágico final de Judas
Iscariotes. E, por baixo do módulo, um promontório, que se alongava em
paralelo com a grande muralha leste de Jerusalém. Tratava-se,
efectivamente do monte das Oliveiras, coberto por olivais.
As primeiras inspecções, mediante sistema de eco-sonda,
confirmaram a abundância de terreno calcário num amplo raio em volta
de Jerusalém. Os aparelhos de análise de vida vegetal – baseados num
processo estereográfico muito semelhante aos raios X – ratificaram a
presença de vegetação num cinturão aproximado de 16,650 quilómetros.
Toda a franja norte e noroeste da cidade apresentava uma
extraordinária abundância de hortos e plantações de árvores de fruto. A
sul e sueste – especialmente no monte das Oliveiras – eram muito mais
frequentes os olivais, destacando-se, aqui e além, renques de vinhedos.
Estes cresciam, principalmente, na colina ocidental do vale do
Cédron e, mais exactamente, ao sul do terreiro do templo.
Como pormenor curioso, direi que os nossos dispositivos
detectaram, a sudoeste da cidade, um pequeno núcleo humano (soubemos
logo que se tratava da aldeia de Erebinthon), à volta do qual cresciam
amplas plantações de grão-de-bico.
Um caminho poeirento rodeava o lado oriental do monte das
Oliveiras, unindo as povoações de Betfagé e Betânia com Jerusalém. Os
arredores destas aldeias viam-se igualmente cobertos por palmeiras,
figueiras e sicómoros. Em metade daquele esplêndido vergel chamou-nos
a atenção o leito seco do Cédron e, concretamente, um débil fio de água
vermelha que brotava ao fundo da escarpa que começava logo abaixo das
muralhas e a escassa distância do não menos célebre pináculo do templo.
(Numa das minhas incursões pela Cidade Santa teria ocasião de
descobrir o mistério daquele fio de água vermelha.) Antes de proceder à
descida definitiva no cimo do monte das Oliveiras, o meu companheiro e
eu terminámos as medições topográficas. Alguns destes cálculos,
sinceramente, ultrapassaram a nossa capacidade de assombro.
As medidas do templo, por exemplo, eram portentosas.
Aquele rectângulo – que ocupava mais da quinta parte da superfície
da cidade – surgia encerrado em robustas muralhas de cento e cinquenta
pés de altura. A sua fachada norte, conhecida como o Átrio dos Gentios,
e em cuja extremidade mais ocidental se encontrava apoiada a Torre
Antónia, media novecentos pés de comprimento. Em frente do monte das
Oliveiras, a fachada leste do templo – toda de mármore branco - atinge
os 1285,5 pés. A muralha ocidental era praticamente das mesmas
dimensões que a anterior e, por último, o lado sul, que encerrava o
recinto sagrado, e onde se disttnguia do módulo duas amplas portas,
chegava aos oitocentos pés de comprimento.
Quanto ao templo de Herodes, propriamente dito – que se erguia no
centro daquele grande rectângulo – os equipamentos deram-nos 578,4
pés de comprimento por 417,6 pés de largura.
A fortaleza ou Torre Antónia, residência do representante de
César durante as festas mais importantes dos judeus, elevava-se numa
cota de 2200 pés acima do nível do mar. Era outra soberba construção
de 450 por 384 pés, ladeada nas suas quatro esquinas por outros tantos
poderosos torreões de 105 pés de altura.
A Oeste da cidade, na cota mais alta de Jerusalém (2280 pés), a
família Herodes construíra a sua residência-fortaleza.
O palácio e os jardins reais ocupavam uma faixa de terreno, junto à
mencionada muralha mais ocidental da Cidade Santa, de novecentos por
trezentos pés. A edificação sobressaía pelas suas altas torres, de cento
e vinte, noventa e setenta e cinco pés respectivamente.
A partir da ala norte do palácio de Herodes – tal como os nossos
Porta Dupla e Porta Tripla. (N. Do M.)
* Herodes chamou a estas torres: Hépica, Fasael e Mariamme,
respectivamente. (N. Do M.)
radares tinham detectado na noite anterior – estendia-se outra
muralha até metade, pouco mais ou menos, da fachada Oeste do templo,
dividindo a cidade em dois sectores.
Em definitivo, as dimensões de Jerusalém eram as seguintes:
comprimento máximo (da Torre Antónia ao vértice sul), 3696 pés. Neste
canto sul da cidade – junto à piscina de Siloé – detectámos a cota mais
baixa do terreno: 1980 pés.
A largura da Cidade Santa, contando a partir do muro exterior
ocidental (correspondente ao palácio de Herodes) até ao pináculo do
templo: 2667,6 pés. A inexpugnável muralha que defendia Jerusalém
erguia-se a 225 pés sobre a superfície do vale. (O curso do Cédron
oscilava entre os 1860 pés, na sua cota mais baixa, em frente de
Hakeldama e do esporão formado pelas muralhas ao sul da povoação, e os
2040 pés, na sua passagem em frente do horto de Getsémani, na falda
ocidental do monte das Oliveiras. )
O computador calculou o comprimento total da muralha exterior da
cidade, registando no écran 11378,1 pés. Por seu lado o muro que
atravessa por entre as residências, dividindo Jerusalém em duas cidades
perfeitamente diferenciadas – como teria oportunidade de comprovar
pessoalmente -, tinha o comprimento aproximado de 1446,6 pés. Na
nossa vertical, o monte das Oliveiras oferecia duas cotas máximas: 2220
pés em frente da piscina de Siloé; quer dizer, ao sul da cidade, e 2454
pés (elevação máxima) diante do templo. O horto de Getsémani –
localizado numa cota inferior a estas – encontrava-se a uma distância de
739,2 pés (em linha recta a partir do declive ao muro oriental do
templo).
Aquela cota máxima do monte das Oliveiras (2454 pés acima do
nível do mar), situava-se cerca de cento e oitenta pés acima do templo.
Isto, unido à localização pelos nossos equipamentos de uma pequena
formação rochosa que despontava no referido cume, entre um mar de
oliveiras, decidiu-nos a estabelecer o nosso ponto de contacto sobre a
reduzida clareira de dura pedra calcária.
Pelas dez horas e quinze minutos, o módulo pousou – por fim
- no cimo do monte das Oliveiras. Num primeiro apalpar, os quatro
pés extensíveis do berço enterraram-se ligeiramente entre as pedras
rochosas. Finalmente, a nave ficou estabilizada e procedemos à
desactivação do motor principal.
Embora a descida não pudesse ser vista pelos habitantes de
Jerusalém, ou dos seus arredores, um observador relativamente próximo
do nosso ponto de contacto teria podido descobrir um súbito remoinho
de pó e de terra, provocado pelo choque dos gases contra o solo, na
operação final de travagem do módulo.
Felizmente, aquela poeirada desapareceu em pouco mais de sessenta
segundos, bem como o agudo silvo do reactor.
Apesar de tudo, Eliseu e eu continuámos alerta durante quase meia
hora, atentos a qualquer inesperada emissão de radiações
infravermelhas, provenientes de seres humanos, que pudessem irromper
no campo de segurança do nosso veículo, fixado para um raio de cento e
cinqüenta pés. Qualquer indivíduo ou animal que penetrasse nessa faixa
de terreno seria automaticamente assinalado nos painéis do módulo. No
caso de um eventual ataque, o tripulante que permanecia no interior do
berço estava autorizado a desencadear um dispositivo especial de
defesa – localizado na membrana exterior da fuselagem – que projectava
a trinta pés da nave uma parede de ondas gravitacionais em forma de
cúpula.
Embora esta semiesfera protectora não pudesse ser vista, o intruso
ou intrusos que tentassem atravessá-la teriam a sensação de avançar
contra um vento de furação. (Como já referi, na altura devida, nenhum
dos expedicionários podia provocar qualquer dano, e muito menos matar,
os elementos que constituíam a rede social a observar.)
Pelas onze horas, depois de verificar a temperatura à superfície
(11,6 graus centígrados), a humidade relativa (57 por cento), a direcção
e intensidade do vento (ligeira brisa de noroeste) e outros valores mais
complexos – de carácter biológico -, iniciei os últimos preparativos da
minha definitiva saída para o exterior.
Enquanto Eliseu continuava vigilante à nossa roda despi-me,
procedendo a uma minuciosa revisão do meu corpo. Tinha de me
desembaraçar de qualquer objecto impróprio naquela época: relógio de
pulso uma corrente com chapa de identidade, obrigatória nas Forças
Armadas, e uma pequena aliança de ouro, que sempre usara no dedo
mínimo esquerdo.
A seguir, submeti-me à pulverização – mediante aspersão – do
tronco, ventre, órgãos genitais, costas e base do pescoço e nuca,
envolvendo-me, assim, na defesa obrigatória a que chamávamos pele de
serpente. Como já antes referi, esta segunda epiderme era uma fina
película, cuja substância base era constituída por um composto de silício
em dissolução coloidal num produto volátil. Este líquido, ao ser
pulverizado sobre a pele, evapora rapidamente o diluente, ficando aquela
coberta por uma delgada camada ou película opaca porosa, de caráter
antielectrostático. A sua cor pode variar, segundo a missão, podendo ser
utilizada, inclusivamente, como um código, quando se trabalha em grupo.
No entanto, e com o fim de evitar possíveis e desagradáveis surpresas,
preferi adaptar-me a uma epiderme absolutamente transparente...
Cavalo de Tróia tinha estudado com idêntico escrúpulo o papel que eu
deveria desempenhar durante aqueles onze dias. Dado ter de passar por
um honrado comerciante estrangeiro – grego, por sinal -, os peritos
tinham preparado um duplo jogo de vestuário: uma saia escura ou
fraldelim (castanho-escuro); uma túnica simples cor de osso; um cingulo,
ou cinto trançado com cordas egípcias, que prendia a túnica, e um
incómodo manto, ou roupão, susceptível de ser enrolado em volta do
corpo ou suspenso dos ombros. A embaraçosa chlamys, que estive quase
para perder em vários momentos da minha exploração, fora
confeccionado à mão, tal como a túnica, com lã das montanhas da Judeia,
e tingida com glasto até lhe dar uma discreta cor azul-celeste. Para a
confecção das duas túnicas, os peritos tinham contratado os serviços de
hábeis tecelões da Síria, herdeiros do antigo núcleo comercial de
Palmira, que ainda manipulavam o linho de sequeiro.
Na previsão de uma eventual avaria no dispositivo de transmissão
auditiva – que levava no ouvido direitot -, Curtiss ordenara que a chlamys
dispusesse de uma fivela de cinco centímetros, com que pudesse prender
o pallium ou manto no meu ombro esquerdo. Esta fivela de bronze
encerrava um microtransmissor, capaz de emitir mensagens de curta
duração, mediante impulsos electromagnéticos de 0,0001385 segundo
cada um. Desta forma, estava garantida uma eficaz e permanente ligação
com a base.
Quanto ao calçado, tinham sido desenhados dois pares de sandálias,
com sola de esparto, entrançado nas montanhas turcas de Ancara. Cada
exemplar foi perfurado manualmente, incrustando nos rebordos das
solas pares de finas tiras de couro de vaca, devidamente curtidas. Cada
cordão – de cinquenta centímetros – permitia segurar o rústico calçado,
com folga suficiente para o poder enrolar em quatro voltas na perna.
Um mês antes do lançamento – com o fim de simplificar a minha
limpeza diária durante a grande viagem – deixei crescer a barba de
forma desordenada.
Aquela roupagem e a minha barba crescida desencadearam o bom
humor de Eliseu, vendo-me submetido durante aqueles .zltimos minutos
no módulo a todo o tipo de brincadeiras e graças.
Aqueles momentos de diversão foram altamente relaxantes,
fazendo-nos esquecer momentaneamente onde estávamos e o que o
destino me reservava. Seguindo um dos costumes populares na Palestina
daqueles tempos, impregnei o cabelo com umas gotas de azeite vulgar.
Desta forma, ficaram mais suaves e sedosos.
Por fim, suspendi do cinto uma pequena bolsa de borracha
impermeável em que Cavalo de Tróia depositara uma libra romana em
pepitas de ouro. A evidente dificuldade para conseguir moedas de curso
legal, das aceites em Jerusalém no ano 30, fora superada por aqueles
gramas de ouro, extraídos especialmente dos antiquíssimos filões de
Tharsis, nos contrafortes da serra ibérica de Las Camorras. Segundo os
nossos dados, não teria dificuldade em trocá-las por denários de prata e
moedas mais baixas como o asse, o óbolo ou sestérciosz.
Eliseu verificou mais uma vez os sistemas de transmissão, ampliando
a banda inicial de recepção dos 10 500 a 15 000 pés.
Antes da aterragem,
Embora pudesse ouvir Eliseu directamente – sempre que ele achasse
oportunoquando eu desejasse estabelecer a minha comunicação auditiva
com o módulo era imprescindível que pressionasse com os dedos a parte
externa do ouvido direito.
Com o fim de evitar desconfianças ou possíveis más interpretações
por parte dos habitantes de Jerusalém, Cavalo de Tróia tinha pensado
que eu fingisse uma leve surdez no referido
ouvido. Desta forma, e ainda que a comunicação com Eliseu tivesse
de ser levada a efeito longe de testemunhas, o gesto de abertura do
canal de transmissão sempre podia ser justificado. (N. Do M.)
Segundo os nossos estudos. Naquela época. O estáter ático ou padrãoouro
greo (de 8,60 gramas) podia conservar uma relação ou equivalência
de 1 a 30 com o denário de prata de uso legal em Jerusalém. Aquela
pequena quantidade de ouro pressupunha cerca de 758 denários,
dinheiro mais que suficiente para as minhas necessidades durante os
onze dias de permanência na zona. Se tivermos em conta, por exemplo,
que o preço de um bom terreno andava à volta dos cento e vinte
denários. (Cada denário de prata tinha vinte e quatro asses. Com um asse
era possível comprar dois pássaros.)
(N. do M.)
Os aparelhos electrónicos tinham medido a distância existente
entre Betânia e a Cidade Santa – seguindo o percurso do caminho que
rodeia o lado oriental do monte das Oliveiras – obtendo o resultado de
8325 pés. O palco onde tinha de actuar naqueles dias fora limitado
justamente entre as duas povoações – Betânia e Jerusalém, com o
pequeno povoado de Betfagé a curta distância da aldeia de Lázaro -, pelo
que, provavelmente, a minha distância máxima em relação ao berço (que
se encontrava num enclave equidistante de ambos os agregados urbanos)
nunca deveria ser superior a mil pés. A margem estabelecida para a
transmissão e recepção auditiva entre mim e Eliseu era, portanto, mais
que suficiente.
Pelas doze horas, depois de um comovido abraço, o meu companheiro
accionou a pequena escada de descida e saltei em terra.
A minha primeira preocupação ao caminhar naquela terra
esbranquiçada pelo sol do meio-dia foi comprovar a minha posição no
monte das Oliveiras. Ao dar uns passos em direcção ao bosquezinho de
oliveiras que se alongava para sul, apercebi-me daquele grande silêncio,
apenas quebrado pelo zumbir das libélulas. Parei, e, depois de me
orientar, estabeleci comunicação auditiva com Eliseu. A julgar pelo
trajecto que percorrera desde aquele grupo de rochas amareladas nas
quais pousara o módulo, devia encontrar-me a pouco mais de noventa pés
de Eliseu. As palavras do irmão soaram claras e fortes aos meus ouvidos:
- É muito possível que a razão desse silêncio – argumentou Eliseu –
se deva à presença do berço... Apesar do painel de ocultação, alguns
animais puderam detectar as emissões de ondas...
Um pouco mais tranquilo, continuei na minha pormenorizada
localização de pontos de referência, vitais para um possível e precipitado
regresso à nave. Ainda que o microtransmissor da fivela actuasse ao
mesmo tempo como rádio-farol omnidireccional (com sinais VHF de
altíssima-frequência), tornando possível, desta forma, que um dos
radares de bordo pudesse receber o meu eco ininterruptamente e num
raio aproximado de cinquenta milhas, eu não estava autorizado a levar
um sistema de localização do invisível módulo. A natureza da missão tinha
desaconselhado aos responsáveis do Cavalo de Tróia a inclusão no meu
escasso equipamento de uma das balizas – de tipo manual -, que
funcionam na frequência de setenta e cinco megaciclos e que se tornaria
utilíssima para o meu reencontro com o berço. Teria de me valer, em
suma, do meu sentido de orientação, pelo menos até ao limite da zona de
segurança da nave, a cento e cinquenta pés da mesma. Uma vez dentro
daquele círculo, Eliseu podia guiar-me, mediante o transmissor que eu
tinha no ouvido.
Graças a Deus, o ponto de contacto encontrava-se numa das cotas
máximas do monte das Oliveiras. Esta circunstância, unida à
presença da reduzida clareira pedregosa, tornava relativamente cómoda
a localização da base do nosso veículo, quer se subisse pela encosta
oriental (que finda em Betânia) quer pela ocidental, que desemboca no
despenhadeiro de Cédron.
Fiz uma rápida revisão ao meu aspecto e com passos cautelosos
meti-me pelo olival. À minha direita, entre as ramadas de velhas
oliveiras, avistava-se a cúpula dourada do templo e boa parte das
muralhas de Jerusalém. Porém, apesar dos meus intensos desejos de me
aproximar da encosta ocidental da montanha das azeitonas (como os
Israelitas também chamavam ao monte das Oliveiras) e gozar aquele
espectáculo inigualável que era a Cidade Santa, cingi-me ao plano
previsto e iniciei a descida pela vertente sul, em busca do caminho que
tínhamos avistado do ar e que me levaria até Betânia.
De repente, ao inclinar-me para me esquivar de uma das frondosas
ramadas, reparei, com algum sobressalto, como o meu calçado atraía
a atenção, pois, tão novo e limpo, não podia ser o de um andarilho e
inquieto comerciante estrangeiro. Sem ter qualquer dúvida, sentei-me
numa das raízes de uma vetusta oliveira e, depois de lançar uma olhadela
à minha volta, agarrei em várias mancheias daquela terra ocre e
esponjosa, com ela esfregando o esparto e os atilhos.
A inesperada paragem no caminho foi registada no módulo e Eliseu
interessou-se pela minha segurança.
- Algum problema, Jasão?
A partir da minha saída do berço, ia ser aquele o meu nome de
guerra. O nome Jasão vinha do herói dos Tessálios e Beócios,
comandante da famosa expedição dos Argonautas, cantada pelo poeta
grego Apolónio de Rodes e pelo vate épico Valério Flaco. Eu aceitara tal
nome, ainda que estivesse consciente de que nunca teria estofo de herói
e que a minha missão no Cavalo de Tróia não era precisamente a procura
do velo de ouro, a que tanto esforço dedicara o bom Jasão.
Depois de explicar a Eliseu aquela momentânea contrariedade,
recomecei a marcha, sempre atento ao meu possível primeiro encontro
com os habitantes da zona.
Quando caminhara já um pouco mais de trezentos passos deixei
para trás o olival. Na minha frente abria-se um prado, a que dois
corpulentos cedros de quase quarenta metros de altura davam sombra.
O coração bateu-me mais depressa no peito. Por baixo daquelas
árvores tinham sido armadas quatro grandes tendas.
Durante uns segundos, não soube como reagir. Fiquei quieto.
Indeciso. Debaixo das lonas escuras das tendas agitavam-se
numerosos indivíduos.
Pressionei no ouvido direito e Eliseu apareceu imediatamente:
- Que há? - perguntou o meu companheiro.
- Primeiro contacto humano à vista... Pelo que me parece, trata-se
de mercadores... Vejo alguns rebanhos de ovelhas junto de várias tendas.
Eliseu consultou a memória histórico-documental do computador
central instalado no berço e transmitiu-me a informação que se lia no
écran:
- Pai Natal afirmativo. Segundo o Livro das Lamentações (R.2,5
envelope 2,2 (44.a 2) e o escrito rabinico Ta anit N, 8,69.Q 36
(IV/1,191)J,
nesse extremo da encosta do monte das Oliveiras, onde agora te
encontras, instalava-se, tradicionalmente, um grupo de tendas, em que se
vendia Assim chamávamos familiarmente ao computador central do
módulo. (N. Do M.)
Segundo estes dados, debaixo de um desses cedros deverás
encontrar também um mercado de pombinhos para os sacrificios. Volume
aproximado: 40 se) ah... Quer dizer, umas quarenta arrobas ou
seiscentos quilos de borrachos, se preferes... O Pai Natal também
menciona um texto de Josefo (Guerras dos Judeus, V 12,2/505), no qual
se descreve uma muralha edificada por Tito, quando cercou Jesuralém.
Esta muralha conduzia ao monte das Oliveiras e encerrava a colina até à
rocha chamada do pombal. É muito provável que nas proximidades
encontres pombais escavados na rocha...
- Recebido. Obrigado... Vou ter com eles.
- Um momento, Jasão – interveio novamente Eliseu. - Estas
informações podem ser-te úteis... Pai Natal acrescenta que segundo o
escrito rabinico Menahot (87.o), estes carneiros vinham do Moab os
cordeiros, do Hébron, os vitelos de Saron e as pombas da Montanha Real
ou Judeia. O gado vacum vem da planicie costeira compreendida entre
Jaffa e Lydda. Parte do gado para abate chega da Transjordânia
(possivelmente, os carneiros). Idiomas dominantes entre estes
mercadores: aramaico, sirio e talvez alguma coisa de grego...
- O.K.
- Sorte!
Conforme me fui aproximando das tendas, assim a minha excitação
aumentava. Aquela podia ser a minha primeira oportunidade, não só de
estabelecer contacto com os israelitas, como ainda de praticar o meu
arameu galilaico ou grego.
Ao passar entre as tendas, uma baforada indescritível – mistura de
gado lanígero, fumo e azeite cozinhado – levou-me ao ponto de pensar
ter seguido por mau caminho. Três das tendas tinham sido adaptadas a
apriscos. Por baixo das barracas de lona enegrecida cheia de remendos,
apinhavam-se uns cento e cinquenta carneiros e borregos. Na quarta
tenda alinhavam-se grandes talhas com azeite e farinha.
Abrigados por ela, um grupo de homens, com amplas túnicas
vermelhas, azuis e brancas faziam roda, sentados em cima dos seus
mantos. A curta distância, fora da sombra da lona, várias mulheres –
quase todas com grandes túnicas verdes – afadigavam-se em volta de
uma fogueira. Junto delas, algumas crianças seminuas e de cabeça
rapada ajudavam naquilo que pensei tratar-se do almoço comum.
Uma panela de grandes dimensões fervia ao lume, presa por uma
argola e assente em três pés de ferro, com tanta fuligem quanto a
barriga da marmita. Algumas rapariguinhas, com o rosto coberto por um
véu branco e diademas na testa, permaneciam ajoelhadas junto de umas
pedras rectangulares.
Mecamcamente, cada rapariga tirava uma mancheia de trigo de um
saco junto do grupo e colocava-a sobre a superfície de pedra,
ligeiramente côncava.
Depois, agarravam com ambas as mãos uma outra pedra estreita e
punham-se a triturar o punhado de trigo. Uma das mulheres fazia passar
a farinha por uma peneira com aro de madeira, depositando o resultado
da moenda numa espécie de alguidar de barro.
Permaneci uns minutos absorto naquele espectáculo. O grupo tinha
reparado já em mim e, depois de trocarem algumas palavras que não
cheguei a entender, um deles pôs-se de pé, encaminhando-se na minha
direcção.
O mercador – possivelmente um dos mais velhos – apontou para os
rebanhos e perguntou-me se desejava comprar algum cordeiro para a
próxima Páscoa. Ao falar, o homem mostrou-me uma dentadura dizimada
pela cárie.
Sorri, e no mesmo aramaico popular em que me tinha interrogado
expliquei-lhe que não, que era estrangeiro e que ia apenas de passagem
para Betânia. Ao notar, tanto pela minha pronúncia como pelo meu
vestuário, que, efectivamente, era um gentio, o hebreu lamentou-se por
se ter levantado e, com uma careta de repugnância pela presença
daquele impuro, deu meia volta e voltou para junto dos outros
vendedores.
Um elementar sentido de prudência fez-me afastar dali, encosta
abaixo, em busca do desejado caminho. Ao passar em frente do segundo
cedro – aquele em que, tal como já tinha vaticinado o computador, fora
montada uma quinta tenda, por baixo da qual se amontoavam numerosas
gaiolas com pombas – nem abrandei o passo. Embora tivesse recuperado
a confiança em mim ao verificar que não tivera grande dificuldade para
entender e ser entendido por aquele israelita, também não desejava
desafiar a sorte.
O sol continuava a descer para poente, diminuindo perigosamente o
meu tempo naquela quinta-feira, 30 de Março. Tinha de me apressar, se
queria chegar a tempo a Betânia. Pelas dezoito horas e vinte e dois
minutos, o ocaso poria termo ao dia judaico. Nessa altura, já eu deveria
ter entrado em contacto com a família de Lázaro.
Apressei o passo e depressa me vi na comija de um pequeno
terrapleno. Ali terminava a encosta do monte das Oliveiras. A meus pés,
a cerca de cinco ou seis metros, apareceu o caminho que unia Jerusalém
a Jericó, passando por Betânia. Da minha improvisada atalaia avistavamse
grupos de caminhantes que iam e vinham num e noutro sentidos.
Eram, na sua maioria, peregrinos que acorriam à Cidade Santa ou
que saíam do recinto muralhado, a caminho dos seus acampamentos. De
ambos os lados da calçada poeirenta – perdendo-se no horizonte –
estendia-se uma massa pintalgada de tendas e barracas improvisadas.
Desci até ao caminho e comuniquei ao módulo a minha intenção de
iniciar a marcha na direcção leste; quer dizer, no sentido oposto a
Jerusalém.
Depressa verifiquei que aquelas gentes eram, na sua quase
totalidade, galileus chegados em sucessivas caravanas e que, de acordo
com um ancestral costume, costumavam acampar deste lado da cidade.
A festa da Páscoa, uma das mais solenes do ano, reunia em
Jerusalém centenas de milhares de israelitas, provenientes das
diferentes províncias e do estrangeiro. Naquele ano, além disso a
solenidade era duplamente importante, por coincidir com um sábado.
Os gentios não podem celebrar a tradicional oferenda da Páscoa
judaica.
(N. do M.)
Segundo as Icis hebraicas, todo o Israelita era obrigado ,a
comparecer perante Deus. No Templo, a não ser que seja surdo, idiota,
menor, homem de órgãos tapados (sexo duvidoso). andrógino, mulher,
escravo não alforriado, cego, entrevado, doente,
Em Jerusalém o alojamento devia ser muito difícil e os peregrinos
acabavam por se acomodar nos arredores.
Entre as tendas distingui dezenas de mulheres e de crianças,
ocupadas em animadas conversas ou no arranjo dos seus frágeis
pavilhões de peles e panos multicores. Apesar de não serem obrigadas a
participar na festa, era evidente que as famílias judaicas acorriam na
sua totalidade à Cidade Santa, e ali permaneciam durante os dias e
noites anteriores aos sagrados ritos da oferenda e da ceia pascal.
Enquanto caminhava entre aquela multidão alegre, variegada e
tagarela comecei a pensar como podia – como ia ser – a entrada triunfal
de Jesus de Nazaré às primeiras horas da tarde de domingo, em
Jerusalém...
Com grande contentamento da minha parte, nenhum dos acampados
que se cruzavam comigo mostravam o menor assombro ao ver-me.
No entanto, a minha inquietação aumentou quando avistei ao fundo
do caminho um grupo de cavaleiros, pertencentes à guarnição romana em
Jerusalém, que certamente regressavam aos seus aquartelamentos na
Fortaleza Antónia. Como medida de precaução, sentei-me à beira da
vereda, junto de uma das tendas. Instintivamente, levei a mão ao ouvido
e, baixando o tom de voz, comuniquei a Eliseu a proximidade da patrulha.
O meu irmão, depois de prévia consulta ao computador,
proporcionou-me alguns dados sobre os soldados: .. Pode tratar-se de
uma pequena unidade – uma turmae – formada por uns trinta e três
cavaleiros. A legião com base em Cesareia dispõe de 5600 homens, dos
quais cento e vinte pertencem à cavalaria.
A presença de uma das quatro turmae em Jerusalém pode significar
que Pôncio Pilatos se mudou já para a sua residência na Torre Antónia, a
fim de administrar a justiça na Páscoa... Atenção! - acrescentou Eliseu. -
O Pai Natal especifica que estes cavaleiros podem ser originários
de terras germânicas. A sua origem social é muito baixa e o seu
comportamento particularmente agressivo para com os Judeus. Cada uma
destas unidades é comandada por três oficiais - decuriões – cabeças-defila.
A advertência do Pai Natal era acertada. Os cavaleiros avançaram a
passo, afastando os descuidados com as afiadas bases de ferro dos seus
pilum ou lanças. Contei no total trinta e três soldados, perfeitamente
fardados com escuras cotas de malha, capacetes dourados e reluzentes,
grevas, longas espadas no cinturão e escudos hexagonais, orlados com
uma faixa metálica. Todos os cavaleiros traziam calças avermelhadas,
muito justas e até meio da perna.
Marchavam em três fileiras, ocupando praticamente todo o caminho.
Ao passarem por mim, vi, com surpresa, que, com excepção dos
chefes ou decuriões, eram todos muito novos; talvez entre os dezoito e
os trinta anos. Naturalmente, também não podia conceder demasiado
crédito àquela impressão. No ano 30, a média de vida devia andar pelos
quarenta anos... velho ou não pudesse subir a pé até à montanha do
Templo”. A escola de Shammay definia o menor como aquele que não
pode (ainda) cavalgar os ombros de seu pai para subir a Jerusalém à
montanha do Templo”. (N. Do M.)
Fechava o grupo armado um trio de soldados montados em cavalos
tordilhos, em cujas garupas tinham sido amarrados feixes de azagaias,
um pouco mais curtas que os pilum que levavam à dìreita e que,
possivelmente, iriam além dos dois metros de comprimento.
Apesar de ver com os meus próprios olhos, quanto me foi difícil,
naquelas primeiras horas, habituar-me à ideia de que recuara no tempo e
que, à minha volta, estava, de facto, a Palestina do imperador Tibério!
Quando me preparava para me levantar e recomeçar a caminhada,
senti a leve pressão de uma mão no ombro. Ao voltar a cara deparei com
um menino moreno e profundos olhos pretos. Trazia vestida uma curta
túnica de amplas mangas e cor indefinida. Na mão esquerda trazia uma
escudela de madeira com água. Sem pronunciar uma só palavra, esboçou
um sorriso e ofereceu-me o escuro recipiente. Molhei os lábios na água e
devolvi-lhe o vaso, agradecendo-lhe o gesto.
- De onde vens? - perguntei-lhe, acariciando-lhe o crânio rapado.
O pequeno voltou-se para um pequeno grupo de homens e mulheres
que repousavam dentro de uma tenda. Uma das mulheres –
provavelmente a mãe – animou-o com um aceno de mão a que
respondesse.
- Somos de Magdala.
- Isso é perto do lago, não é?
O menino disse-me que sim com a cabeça.
- Ouviste falar de Jesus, o Nazareno?
Antes que o meu jovem amigo chegasse a responder, um dos homens
encaminhou-se para mim. Aparentava uns trinta e cinco ou quarenta anos
e tinha uma abundante barba preta. Agarrou a criança pelos braços e
perguntou-me:
- Será que és adepto do tekton?
Aquela palavra deixou-me confuso.
- Perdoe-me – respondi-lhe. - Sou estrangeiro e não sei o significado
dessa palavra.
; O homem soltou a criança e, cruzando os braços entre as pregas
do manto, acrescentou:
- Nós conhecemos seu pai como José, o carpinteiro e ferreiro. E
assim chamamos também ao filho.
Estive tentado a juntar-me àquela família de galileus e a atrasar a
minha entrada em Betânia. Mas pensei duas vezes e compreendi que
ninguém melhor que Lázaro e suas irmãs me podia falar do Mestre...
Enquanto prosseguia o meu caminho, perguntei a Eliseu se podia
obter informação sobre aquela nova definição de Jesus.
O Pai Natal foi muito conciso: O Galileu, efectivamente, recebia a
designação de tekton – como carpinteiro, construtor ou ferreiro -, de
acordo com a versão que sobre o referido termo fazia o escrito rabínico
Shabbat, 31.á Também São Marcos alude a tekton em 6.3.
É possível que tivesse andado um pouco mais de metade do caminho
entre Jerusalém e Betânia quando deixei para trás o denso acampamento
dos peregrinos israelitas. A partir dali, as tendas eram muito mais raras.
Talvez estivesse enganado, mas quase seria capaz de jurar que no acesso
à Cidade Santa se tinham instalado mais de um milhar de improvisados
albergues. Isto podia significar – a uma média de seis ou sete pessoas
por tenda – uns seis ou sete mil peregrinos.
Naquele último quilómetro não observei, no entanto uma diminuição
da intensa circulação de gente e de animais de carga. Grupos de judeus,
com asnos e alguns camelos, continuavam a fluir num e noutro sentido,
transportando molhos de lenha, pesados e pontiagudos cântaros ou
tocando rebanhos de cabras.
A vegetação, de ambos os lados do caminho, tornara-se mais
florescente. À minha esquerda, a encosta oriental do monte das
Oliveiras surgia fechada pelos olivais, cedros e alguns sicómoros. À
minha direita, junto às palmeiras e figueiras, chamou-me a atenção uma
série de cinamonos, com os seus incipientes cachos de flores violetas,
extraordinariamente aromáticas.
O facto de não poder levar relógio preocupava-me. Não se tornava
fácil para mim averiguar em que momento do dia me encontrava. O sol
lançara-se já para ocidente porém ignorava quanto tempo decorrera
desde que abandonara o berço. Por outro lado, desejava acostumar-me o
mais cedo possível à minha nova situação, e isso obrigava-me a
prescindir, quanto pudesse, da conexão auditiva com Eliseu.
A ajuizar pelo caminho percorrido e pelas paragens, devia ser uma e
meia da tarde quando, ao sair da única curva da vereda, avistei à
esquerda um minúsculo grupo de casas. Ao fundo, e à direita, descobri
também outra aldeia, maior do que a primeira, segundo me pareceu.
Entusiasmado, acelerei o passo. Aquelas povoações tinham de ser
Betfagé e Betânia, respectivamente.
Conforme me ia aproximando da primeira povoação, assim o meu
desencanto aumentava. Betfagé não era mais que um mísero amontoado
de pequenas casas de um só piso. As paredes tinham sido levantadas com
pedras – provavelmente basálticas – e os interstícios mal tapados com
outras pedras e barro. A maioria dos telhados daquela meia-dúzia de
moradas – à excepção de um ou dois terraços – tinham sido cobertos com
ramadas de árvores, reforçadas com várias camadas de juncos e palha.
Os arredores estavam cheios de figueiras e pequenos hortos, por
onde carcarejavam galinhas em número incontável. As últimas e fortes
chuvadas de Janeiro e Fevereiro tinham convertido as ruas num lamaçal.
Desiludido, saí novamente do caminho, informando Eliseu da minha
passagem pela mísera Betfagé e da minha iminente chegada a Betânia.
A distância entre as duas aldeias não era superior a setecentos ou
oitocentos metros.
Em compensação, o local da residência de Lázaro e da sua família
apresentava um aspecto muito mais sólido e esmerado. As casas, ainda
que modestas, dispunham de terraços e as suas paredes – quase todas
caiadas – tinham sido construídas com pedra lavrada.
Ao entrar na aldeia, surpreendeu-me ver algumas das ruas cobertas
por um pavimento feito à base de calhaus. Outras, no entanto, conti
nuavam a ser estreitas veredas, agora poeirentas e malcheirosas.
O núcleo principal de Betânia estendia-se à direita do caminho que
vai de Jerusalém a Jericó. Do outro lado do caminho, um grupo mais re
duzido de casas apoiava-se na encosta do monte das Oliveiras. Algumas
destas moradas encontravam-se praticamente encravadas na encosta da
montanha. A animação na aldeia era considerável. Nas ruas, numerosos
grupos de judeus andavam de cá para lá, formando tertúlias às portas
das casas ou à sombra dos alpendres de canas e ramadas, por onde
trepava a hera ou que nuas e intermináveis parreiras cobriam.
Não tardei em averiguar que aquela agitação se tornara habitual em
Betânia desde que o Mestre de Galileia realizara o prodígio de
ressuscitar de entre os mortos o seu amigo Lázaro. A notícia correra
como rastilho de pólvora por todo o reino, chegando, mesmo, à vizinha
Síria e às costas da Fenícia. Desde então, uma corrente interminável de
simpatizantes, adeptos de Jesus ou amigos de Lázaro acorriam à casa do
ressuscitado, apenas na ânsia de satisfazerem a sua curiosidade. Esta
torrente de curiosos vira-se seriamente aumentada naqueles dias, devido
à próxima celebração da Páscoa. O caminho entre Jerusalém e Betânia
podia percorrer-se, com bom passo, em pouco mais de uma hora, e isso
justificava aquela esgotante azáfama pelas ruas da localidade, até então
tranquila.
Não foi muito difícil chegar a casa de Lázaro. Bastou juntar-me a
um dos grupos de judeus que acabava de entrar em Betânia. Poucos
minutos depois encontrava-me diante de uma herdade situada nos
arrabaldes do aglomerado principal da povoação. Na fachada muito bem
caiada, abria-se uma porta com os lintéis e ombreiras trabalhados com
pedras lavradas. Em frente da casa havia um pequeno jardim de cinco ou
seis metros de comprimento por seis ou sete de largura. Nele, num
banco de pedra e à sombra de uma frondosa figueira, estava sentado um
homem.
Vestia uma túnica com franjas verticais vermelhas e azuis e amplas
mangas. Uns trinta homens o rodeavam. Alguns tinham-se sentado até a
seus pés. Absortos, aqueles judeus escutavam e contemplavam o
homem de corpo magro e cara picada pelas bexigas. Era Lázaro! Um
estremecimento percorreu-me o corpo dos pés à cabeça.
Tentei passar, mas era inútil. Ninguém estava disposto a ceder
lugar. Lázaro convertera-se na máxima atracção daqueles dias.
Com voz cansada – como se repetisse o acontecimento pela milésima
vez -, foi desfiando a sua aventura e respondendo a quantas perguntas
lhe faziam.
Olhando por cima das cabeças dos curiosos vi que se tratava de um
homem relativamente jovem (possivelmente não tinha completado os
quarenta anos), ainda que a palidez do rosto e umas acentuadas olheiras
o envelhecessem consideravelmente.
Poucos minutos depois, para meu desespero, Lázaro levantou-se,
despedindo-se dos que ali estavam reunidos.
Vi-o desaparecer na penumbra da casa, enquanto os hebreus se
dispersavam, gesticulando e comentando quanto tinham visto e ouvido.
E ali fiquei eu, pensativo e solitário, diante da pequena cerca de
madeira que rodeava o jardim. Que devia fazer? Entrava na casa?
Esperava? Mas o quê e para quê? Deixei-me cair na poeirenta praceta
que se abria diante da morada do amigo de Jesus e procurei tapar-me
com o manto. Começava a sentir o fresco do entardecer. Dei-me então
conta de que nada tinha comido e que, a julgar pela posição do sol,
devíamos estar naquilo a que os Israelitas chamavam a hora nona, quer
dizer, as três da tarde.
Nesse momento compreendi a razão por que Lázaro dera por
terminada aquela animada tertúlia. Era o momento da refeição prinncipal:
aquela a que chamamos o jantar.
Mas não me deixei arrastar pelo abatimento. Cavalo de Tróia tinha
previsto que eu tentasse uma entrevista com Lázaro naquela quintafeira
e assim devia ser. Esperaria.
Pensei em aproveitar aqueles minutos – enquanto a familia
restaurava forças – para comprar algumas provisões, mas logo desisti.
Na minha precipitação para chegar a Betânia não tomara a precaução de
entrar em Jerusalém e procurar trocar algumas das pepitas de ouro por
moedas. Por outro lado, isso ter-me-ia atrasado consideravelmente. Para
dizer a verdade, não era a fome o que me preocupava naqueles instantes.
Os meus olhos, fitos na porta, estavam atentos ao possível aparecimento
de algum membro da família de Lázaro.
A intuição não me traiu. Não passara ainda meia hora quando, vindo
da parte posterior da casa entrou no jardim uma mulher com o rosto
coberto pelo véu tradicional. Era acompanhada por dois adolescentes.
Sobre a cabeça da volumosa matrona balançava levemente um cântaro
avermelhado. Ao ver-me deve ter ficado surpreendida. Eu sabia que as
boas maneiras nas relações sociais judaicas não permitiam que um homem
estivesse a sós com uma mulher, nem que estas sorrissem ou falassem
com desconhecidos. Assim, vencendo a minha natural inclinação
para a saudar ou pôr-me de pé, continuei em silêncio, deixando que
passasse pela minha frente. A boa mulher desviou o olhar e apressou o
passo perdendo-se num dos caminhos que desembocavam na praceta.
Suponho que deve ter notado qualquer coisa estranha na minha
presença porque, minutos depois, um dos rapazes voltava em corrida,
entrando em casa como um meteoro. Imediatamente, apareceram à
entrada do jardim dois homens e o rapazinho, que, sem dúvida, os
alertara quanto àquele estrangeiro que continuava sentado junto das
brancas estacas da cerca.
Pus-me de pé e esperei. Os homens, envoltos em grossos mantos cor
de canela, aproximaram-se de mim.
- Que procuras, irmão? - perguntou-me o que parecia ser o mais
velho.
O tom da voz dele tranquilizou-me. Havia uma grande suavidade no
seu semblante.
- Chamo-me Jasão e sou da Tessalónica. Estou aqui porque procuro o
rabi da Galileia...
- Não está aqui.
Fingi grande contrariedade e, olhando bem nos olhos do meu
interlocutor, perguntei com veemência:
- Onde posso encontrá-lo?
- Para que o queres?
- Sou estrangeiro, mas ouvi falar dele de Antioquia a Corfu.
Percorri muitas léguas porque sou homem a quem não satisfazem os
deuses romanos nem gregos e porque desejaria conhecer a nova doutrina
do rabi a que chamam Jesus.
- Porque o procuras aqui em frente da casa de Lázaro?
- Desde a minha chegada às costas de Tiro que não ouvi falar de
outra coisa que não fosse o último prodígio do rabi: dizem que devolveu à
vida o seu amigo Lázaro, morto cinco dias antes...
- Eram três dias aqueles que o meu senhor tinha de sepultado, -
corrigiu-me o servo.
- Logo, é verdade – acrescentei, mostrando grande alegria.
Antes que pudesse intervir de novo, supliquei-lhe para ser recebido
por Lázaro.
- Talvez ele saiba onde posso encontrar o Mestre...
Os homens trocaram entre si um rápido olhar.
- Espera aqui – concluíram. - O amo ainda não está recomposto de
todo...
Concordei, enquanto os servos desapareciam no interior da herdade.
Ante a possibilidade iminente de uma primeira entrevista com
Lázaro, aproveitei aqueles segundos em que estive sozinho para informar
o módulo de quanto se passava.
Devia ter causado boa impressão aos criados de Lázaro.
Poucos minutos depois era convidado a entrar em casa.
Atravessei o limiar com uma mistura de timidez e emoção. O que eu
imaginara como a fachada da casa era, na realidade, a parede de um
átrio ou pequeno pátio interior. A casa, pelo que pude observar, era
muito mais extensa do que eu tinha imaginado. No centro deste átrio
rectangular, e a céu aberto, abria-se um tanque com cerca de três
metros de lado. O piso, coberto de ladrilhos vermelhos, parecia ser
ligeiramente inclinado e com estrias, de forma a que as águas pluviais
pudessem cair dos beirais dos edifícios situados à esquerda e à direita
até ao recinto central. Ambas as construções tinham a mesma altura da
parede da fachada: uns quatro metros, aproximadamente. Logo soube
que a direita era, na realidade uma cavalariça e que a da esquerda estava
destinada a armazém de alfaias agrícolas, arreios e relhas de arado.
Ao fundo do pátio, a uns sete metros do portão por onde eu tinha
entrado abria-se outra porta, quase em frente da principal. Ali me
esperava o homem que tinha visto uma hora antes junto da figueira.
Perto dele, três judeus todos eles envoltos até aos pés numa
indumentária de cores vivas. Tal como observara em muitos peregrinos
galileus, usavam uma faixa de pano enrolada em volta da cabeça,
deixando cair uma das pontas sobre a orelha esquerda. Tinham todos
uma barba cerrada, mas o bigode perfeitamente rapado. Lázaro, em
contrapartida, mantinha a cabeça descoberta, com um cabelo liso, curto
e prematuramente encanecido.
Os servos convidaram-me a que me aproximasse do seu senhor.
Ao chegar a esse ponto, pouco me faltou para lhes estender a mão.
Lázaro e os que o acompanhavam permaneceram imóveis, examinando-me
dos pés à cabeça. Foi um momento difícil. Mais tarde compreenderia que
aquela frieza era justificada. Desde a sua ressurreição, os inimigos de
Jesus – em especial os fariseus e outros membros destacados do Grande
Sinédrio – vinham demonstrando uma preocupante hostilidade contra o
vizinho de Betânia. Se o Nazareno, só por si, já representava uma
ameaça para os sacerdotes de Jerusalém, Lázaro – com o seu regresso à
vida – agitara os ânimos, erigindo-se como prova de excepção do poder
do Mestre. Era lógico, portanto, que a família desconfiasse de tudo e de
todos.
Aquela tensa situação ver-se-ia aliviada – felizmente para mim
quando os meus anfitriões notaram a dureza da minha pronúncia, que
me denunciava como estrangeiro.
- Procuravas-me? - interveio Lázaro, com gesto grave.
- Venho de terras estranhas, em busca do rabi de Nazaré, de quem
contam que é homem sábio e justo. Ao desembarcar soube que és
seu amigo. Por isso estou aqui em busca da tua compreensão...
I Lázaro não respondeu. Com um gesto convidou-me a acompanhá-lo.
E ao transpor aquela segunda porta encontrei-me num espaçoso pátio
com colunas, igualmente aberto, mas quadrangular. Aquela, sem dúvida,
era a parte principal da casa. Um total de catorze colunas de pedra de
pouco mais de dois metros de altura sustentavam um segundo piso, todo
ele construído de tijolo. A fachada inferior da casa (situada por baixo do
pórtico) fora erguida com grandes pedras rectangulares. Contei sete
portas, todas elas de sólida madeira cor de cinza. No centro do pátio
fora escavada uma segunda cisterna. Dos seus quatro vértices partiam
outros tantos regos de pedra, por onde eram recolhidas as águas da
chuva. A piscina estava praticamente cheia, com uma água de cor
duvidosa. Quase metade do pátio se encontrava tapado com uma
cobertura de canas entrelaçadas, onde se apoiavam os rebentos de duas
parreiras trazidas pelo pai de Lázaro da distante Corinto, nas costas da
Grécia.
O fruto desta videira – de uma casta muito apreciada – tinha a
particularidade de dar uvas sem grainhas. Durante a minha passagem por
Betânia tive a oportunidade de saber que Jesus de Nazaré sentia uma
especial predilecção pelos frutos daquelas parreiras.
Lázaro e os seus amigos atravessaram o empedrado piso do pátio e
dirigiram-se a uma das portas da esquerda. Ao passar por baixo do
pórtico reparei em quatro mulheres, sentadas num dos bancos de pedra
encostados a cada uma das quatro fachadas existentes por baixo do
claustro. Todas elas vestiam compridas túnicas de cores claras –
geralmente esverdeadas – com as cabeças cobertas por grandes lenços.
No entanto, nenhuma escondia o rosto.
Conservarei sempre uma grata e inesquecível recordação daquela
sala rectangular a que me levara o amigo de Jesus. Ali decorreriam
alguns dos momentos mais agradáveis da minha incursão em Betânia...
Tratava-se da sala familiar. Uma espécie de salão-casa de jantar, de
uns oito metros de comprimento por quatro e meio de largura.
Três ja nelas altas e estreitas, abertas na parede oposta à porta,
mal deixavam entrar a claridade. Uma branca mesa de pinho presidia ao
centro da quadra, cujo soalho fora rebocado com argamassa.
Num dos cantos, uns troncos largavam fagulhas, alimentados pela
forte tiragem da lareira. O fogão cumpria uma dupla tarefa. Por um lado,
servir de aquecimento nos rudes meses de Inverno e, por outro permitir
a preparação dos alimentos. Para tal, os proprietários tinham levantado a
pequena distância da chaminé. Propriamente dita, um pequeno muro
circular com aproximadamente trinta centímetros de altura, formado
por quatro camadas em que alternavam o barro e o entulho.
Dentro, entre as brasas, eram depositadas as caçoilas, bem como
umas gamelas convexas que serviam para cozer tortas feitas com massa
sem fermento.
Quando se desejava cozinhar sem a aplicação directa do fogo, as
mulheres depositavam umas pedras lisas em cima do lume. Uma vez
aquecidas, as brasas eram afastadas e o guisado era feito em cima das
pedras.
Em quase todas as paredes tinham sido dispostos armários e
prateleiras de madeira, em que alinhavam alguidares, travessas, terrinas
e outras louças, na sua maioria de barro ou de bronze.
Na parede oposta ao fogão, e enterradas no soalho, distinguiam-se
duas grandes e barrigudas talhas, com uma tonalidade vermelhoacastanhada.
Atingiam pouco mais de um metro de altura e, segundo me
comentaria Marta, dias depois, eram destinadas ao consumo diário de
trigo e de vinho. Uma delas, em especial, era tida em grande apreço por
Lázaro e sua família. Tinha sido obtida muitos anos atrás, nas cercanias
da cidade de Hébron, e pertencera – segundo o selo real que apresentava
numa das suas quatro asas – aos vinhedos reais. Numa minuciosa
inspecção posterior, pude corroborar que, efectivamente, a talha em
questão apresentava uma gravação superior com as letras Imlk, que
significava pertencente ao rei. A sua capacidade – sensivelmente inferior
à da talha destinada ao trigo – era de dois batos israelitast.
Mantinha-se sempre hermeticamente fechada com uma tampa de
barro, segura, por sua vez, com faixas de pano.
O tecto do aposento, situado a dois metros, era atravessado por
seis vigas de madeira, provavelmente de coníferas, muito abundantes nos
arredores. Outras partes cobertas da casa, com excepção dos terraços,
apresentavam uma construção menos sólida. A cavalariça e o armazém
das alfaias do campo, por exemplo, tinham sido cobertas com materiais
muito combustíveis: palha misturada com barro e cal. Este tipo de
cobertura – segundo me explicou Lázaro – tinha um grande
inconveniente. Sempre que chovia era necessário alisá-lo de novo, com o
fim de consolidar o material da superfície e evitar as goteiras. Para isso
valiam-se de pequenos rolos de pedra, com cerca de sessenta
centímetros de comprimento.
Lázaro e os restantes hebreus dispuseram-se em volta do
crepitante fogão e sentaram-se em cima de algumas das peles de cabra
que atapetavam o chão. Eu fiz o mesmo e preparei-me para o diálogo.
Naquele momento, entrou na sala uma mulher. Trazia na mão
esquerda uma frágil apara acesa. Sem dizer palavra, foi percorrendo as
seis candeias de barro que estavam suspensas ao longo das brancas
paredes e que continham azeite. Depois, pegou numa lanterna – também
de argila – e introduziu a chama do improvisado archote pela boca do
recipiente bojudo. Logo saltou uma chamazinha amarelenta.
A mulher, com passada diligente, colocou aquela lanterna portátil na
extremidade da mesa mais próxima do grupo. Depois, aproximou-se da
lareira e atirou para as brasas os restos da apara e duas bolinhas de
aspecto resinoso. As cápsulas de canafístula – um perfume empregue
com frequência entre os hebreus – lançaram como que uma exalação,
invadindo o recinto um aroma suave e duradouro.
1 Medida equivalente a aproximadamente, vinte e dois litros (. do l.
De repente, quase sem crepúsculo, a escuridão encheu aquele
histórico aposento.
- Rogamos-te que desculpes o nosso receio – solicitou um dos amigos
de Lázaro. - Desde que o sumo sacerdote José ben Caifás e muitos dos
archiereis do Sinédrio concordaram em pôr termo à vida do Mestre,
todas as nossas precauções são poucas...
- Sabemos que os betusianos e esbirros de Ben Bebayz têm ordens
para prender Jesus – afirmou outro dos participantes na reunião.A festa
da Páscoa está perto e os nossos informadores garantem que os bastões
e cacetes da guarda do Grande Sinédrio estarão dispostos a cair sobre o
Rabi. Esperam apenas uma oportunidade.
- Para quê? - intervim, aparentando vivos desejos de compreender. -
O Mestre, segundo entendi, é homem de paz.
Nunca fez mal a ninguém...
Lázaro deve ter notado uma especial vibração na minha voz.
Aquele foi o primeiro passo para a definitiva abertura do seu
coração.
- Tu és grego – respondeu o ressuscitado, dando-me a entender que
eu ignorava muitas das circunstâncias que rodeavam o Rabi da Galileia. -
Não sei se conheces a profecia que afaga e contempla o nosso povo
desde tempos remotos. Um dia, nascerá em Israel um messias que
tornará os homens livres. Pois bem, a casta sacerdotal acredita e, fez o
povo acreditar, que esse salvador terá de ser, em primeiro lugar e
principalmente, um sumo sacerdote.
- O Messias terá de ser membro do Grande Sinédrio?
- É o que eles dizem. Os longos anos de domínio estrangeiro
fortaleceram a esperança nesse messias, convertendo-o num chefe
político que liberte Israel do jugo romano. Os sacerdotes sabem que o
Mestre prega um outro tipo de libertação e por isso o consideram um
impostor. Isto já seria bastante para acabar com a vida de Jesus. Mas
há mais...
Lázaro continuava a observar-me com os olhos brilhantes de uma
progressiva e incontrolável cólera.
.. Esses sepulcros caiados – como o Mestre lhes chamounão perdoam
que Jesus os tenha ridicularizado publicamente. É a primeira vez em
muitos anos que alguém os desmascara, minando
Naquela noite, no meu último contacto com o módulo, Eliseu
esclareceu-me o significado de archiereis. Tratava-se de um numeroso
grupo de sacerdotes-chefes que ocupavam cargos permanentes no
Templo e que, em virtude do referido cargo, tinham voz no Sinédrio. O
Pai Natal trouxe documentação complementar (Actos dos Apóstolos,
4,5-6, e Antiguidades, de Josefo, XX 8,11/189 sgts.), na qual se
especifica que o chefe supremo do Templo e tesoureiro eram membros
do Sinédrio. O número mínimo deste grupo era de um (sumo sacerdote)
mais um (chefe supremo do Templo) mais um (guardião do Templo,
sacerdote) mais três (tesoureiros). Quer dizer, seis. A este número
mínimo teriam de acrescentar-se os sumos sacerdotes cessantes e os
sacerdotes guardiães e tesoureiros. O Sinédrio, portanto, era formado
por setenta e um membros.
O computador central do módulo confirmou o nome de Ben Belay
como um dos chefes, do Templo, com o cargo concreto de esbirro”
(escrito rabínico Sheqalim, V, 1-2). Este personagem estava encarregue,
entre outros misteres, de açoitar, por exemplo, os sacerdotes que
tentavam fazer trapaças no sorteio das funções do culto. Outra das suas
funções era a fabricação e colocação das mechas, que se confeccionavam
com os calções e cinturões velhos dos sacerdotes. (N. Do M.)
Jesus, com as suas palavras e os seus milagres, arrasta multidões e
isto multiplica a sua inveja e rancor.
Por isso juraram matá-lo...
- Mas não o conseguirão – exclamou um outro hebreu.
Interroguei Lázaro com o olhar. Que queriam dizer aquelas
vigorosas palavras?
O amigo amado de Jesus desviou a conversa.
- Por favor, desculpa a nossa indelicadeza. A julgar pela poeira das
tuas sandálias e pela fadiga do teu rosto, deves ter caminhado muito.
Suplico-te – como irmão nosso – que aceites a minha hospitalidade...
Aquela brusca reviravolta na conduta de Lázaro desconcertou-me,
mas nada disse.
O homem deixou a quadra, voltando poucos minutos depois na com
panhia de uma mulher.
- Marta, minha irmã mais velha – explicou Lázaro, referindo-se à
hebreia que o acompanhava -, te lavará os pés...
O meu coração bateu com força. E, sem me aperceber do erro que
estava a cometer, levantei-me. O resto do grupo continuou sentado. Era
tarde de mais para emendar. Procurei serenar os meus nervos.
Não podia negar-me às delicadezas do meu anfitrião. Teria sido
considerado como um insulto ao arraigado sentido oriental da
hospitalidade. Assim, colocando as minhas mãos nos ombros do
ressuscitado, sorri-lhe, agradecendo a sua delicadeza o melhor que
soube.
Quase não tive tempo de reparar em Marta, a senhora, pois é este o
significado do referido nome. Antes de o irmão ter acabado de falar, já
ela atravessara o limiar da sala, afastando-se no pátio de colunas.
Lázaro pediu-me que me sentasse num dos pequenos e dispersos
tamboretes de quatro pernas e assento de vime que rodeavam a mesa.
Cinco minutos depois, novamente a figura de Marta se recortava na
porta. Trazia nas mãos um alguidar vazio e do antebraço esquerdo pen
dia um longo pano branco. Acompanhava-o um menino com uma jarra de
bronze cheia de água.
Como se se tratasse do hábito mais rotineiro, a irmã mais velha de
Lázaro pousou a vasilha a meus pés, cingindo-se com o que hoje
chamaríamos toalha. Apressei-me a desatar os atilhos de couro das
minhas sandálias, enquanto a mulher despejava parte do conteúdo da
jarra no alguidar. Ao introduzir os pés no largo recipiente de barro
experimentei uma agradável sensação. A água estava quente!
- Obrigado... - murmurei. - Muito obrigado...
Marta levantou o rosto e sorriu, deixando a descoberto um fio de
ouro que servia para prender alguns dentes postiços.
Aquele era outro sinal inequívoco de abastada posição da familia.
Enquanto a mulher procedia à lavagem dos meus doridos pés (as
quatro voltas dos cordões tinham deixado outras tantas marcas
avermelhadas na pele), procurei observá-la demoradamente. Sem dúvida,
Marta era mais velha que Lázaro. Aparentava ter entre quarenta e cinco
e cinquenta anos. As mãos, fortes e calejadas, reflectiam uma intensa e
longa vida de trabalho. Era de uma estatura muito semelhante à de seu
irmmão – cerca de 1 metro e 60 -, mais gorda e com um rosto redondo e
queimado. Deduzi que o cabelo – coberto por um véu preto que lhe caía
pelas costas – devia ser negro, tal como os olhos e as sobrancelhas.
Uma vez terminada a lavagem, Marta envolveu-me os pés no lenço
com que cingia a cintura e foi pressionando o suave tecido
(provavelmente de algodão) até que ambas as extremidades ficassem
completamente secas. Pegou nas sandálias e, ante a minha surpresa,
entregou-as ao rapazinho. Fiquei em silêncio, imaginando que a boa
mulher mandara limpá-las.
Quando pensava que a operação tinha terminado, Marta rogou-me
que arregaçasse as mangas da minha túnica. Obedeci e, com extrema
delicadeza, agarrou-me as mãos, pondo-as por cima do alguidar.
Sobre elas verteu a água que restava na jarra, convidando-me a que
as esfregasse energicamente. Por fim, secou-as, pondo de lado o
alguidar. Nesse instante, a senhora da casa – que continuava ajoelhada
na minha frente – levou a mão a um fino cordão que lhe rodeava o
pescoço, extraindo de entre os seios uma bolsinha de pano, de cor
azeviche. Abriu-a, despejando o conteúdo na palma da mão esquerda.
Tratava-se de um punhado de suaves e diminutos grânulos – em forma de
lágrimasque cintilavam à luz das candeias. Marta esfregou aquela
substância, de aspecto gomo-resinoso, em cada um dos meus pés. Depois,
fez o mesmo com as mãos, devolvendo o aromático produto à bolsa.
Não pude conter a minha curiosidade e perguntei-lhe o nome
daquele perfume.
- É mirra.
Nos dias que se seguiram à minha saída do módulo, pude saber que
muitas das mulheres israelitas – em especial as das classes média e alta
– traziam por baixo da túnica, tal como Marta, aquelas bolsinhas de
mirra. Aquilo proporcionava-lhes uma permanente e agradabilíssima
fragrância. Tanto a mirra como o aloés, a erva do bálsamo e outras
resinas aromáticas eram consumidas com grande profusão pelo povo
judeu, que as utilizava não só para aromatizar os templos mas também na
higiene pessoal, no lar e mesmo no leito.
Marta e o menino abandonaram a quadra e eu, agradecido e aliviado,
Nas minhas indagações durante aqueles dias na Palestina verifiquei que.
Embora muitas destas plantas que serviam de base à fabricação de
perfumes se cultivassem em solo israelita, a maioria provinha,
originariamente, de outros países. O incenso, por exemplo, que se
obtinha da bosvélia, peregrinara desde a Arábia e Somália. E o mesmo
acontecera com a commiphora myrrha ou árvore da mirra. O aloés, por
seu lado, viera da ilha de Socotorá, na embocadura do mar Vermelho.
Quanto ao apreciado bálsamo, cuja erva é conhecida entre os
botânicos como commiphora opobalsamum, segundo parece, em princípio,
foi originária da Arábia. No entanto, como muito bem afirma Ezequiel
(27,17), Judeia e Israel forneciam a Tiro perfumes, mel, azeite e
bálsamo. A explicação estava num dos livros do historiador judeu
romanizado, Flávio Josefo. As sementes da erva do bálsamo tinham
chegado até à Palestina em tempos do rei Salomão e foram, segundo
Josefo, um dos muitos presentes da mítica rainha do Sabá a Salomão.
No dia seguinte, sexta-feira, 31 de Março, eu mesmo teria oportunidade
de comprovar como Jesus entregava a Marta e a Maria uma preciosa
oferta: ervas de bálsamo, provenientes das férteis planícies de Jericó.
O Pai Natal me confirmaria igualmente que, no ano 60, Tito Vespasiano
ordenaria que fossem protegidas com uma guarda especial as plantações
de bálsamo de Jericó. Mil anos mais tarde, os cruzados que entraram em
Israel não encontraram rasto algum de tão valiosa planta. Os Turcos
tinham talado grande parte das árvores, destruindo, também, os
arbustos que eram cultivados nas proximidades do rio Jordão. (N. Do
M. )
Lázaro atiçava o fogo. Na minha mente fervilhavam tantas
perguntas que nem soube por onde reatar a conversa.
Desejava conhecer a doutrina e a personalidade do Mestre da
Galileia, mas também sentia uma aguda curiosidade por aquele exemplar
único: um hebreu devolvido à vida, depois de morto e enterrado. Como
também não podia desperdiçar aquela oportunidade, que não podia ser
melhor - programada, além do mais, no esquema de trabalho do general
Curtiss -, roguei ao meu amável anfitrião que me desfizesse algumas
dúvidas em torno do conhecido milagre de Jesus. Na minha qualidade de
médico, e apesar dos textos evangélicos e dos numerosos comentários
que recolhera até àquele momento, era para mim muito difícil imaginar
sequer que aquele homem tivesse sofrido o que hoje conhecemos por
morte clínica e que, para cúmulo, vários dias depois do seu falecimento,
outro homem o tivesse arrebatado ao sepulcro.
- Que desejas conhecer? - respondeu Lázaro, sem deixar de
trabalhar no fogão.
Mesmo com o perigo de parecer impertinente, coloquei a minha
primeira dúvida com a astúcia suficiente para provocar a loquacidade dos
que ali estavam reunidos.
- Não podia acontecer que estivesses a dormir? Lázaro esqueceu a
chaminé e, olhando-me com dureza, replicou:
- É melhor que sejam eles a responder a essa pergunta...
Os seus amigos ficaram em silêncio. Por um momento, cheguei a
pensar que tinha forçado a situação. Mas, finalmente, um deles, em tom
compreensivo, agarrou o fio da conversa.
- É natural que duvides. Tu, como muitos outros, não estavas aqui
quando, nos últimos dias de Fevereiro, o nosso irmão Lázaro adoeceu com
grandes febres. Apesar dos cuidados de suas irmãs e das prescrições
dos sangradores vindos de Jerusalém, o mal foi aumentando sempre. A
sua fraqueza chegou a tal extremo que não era capaz de segurar nas
mãos uma escudela de leite.
Nem sequer o médico do templo, Ben Ajiat, pôde dar-lhe remédio.
O Mestre não se encontrava por aquela altura na Judeia e a família,
à vista de tão grave doença, tomou a decisão de enviar um mensageiro
para lhe rogar que sarasse o seu amigo. Contudo, poucas horas depois da
partida do cavaleiro, Lázaro morreu.
Eliseu confirmaria horas depois que. Segundo uma das duas listas
contidas no escrito rabínico Sheqalim V, 1-2, o nome de Ben Ajia
correspondia, com efeito, a um dos “chefes do Templo, com o cargo
específico de médico. O computador deu a seguinte informação:
Encarregado dos doentes do ventre. A alimentação dos sacerdotes era
extraordinariamente abundante em carnes, não podendo beber senão
água. Tudo isto originava frequentes doenças gástricas. O Pai Natal
remetia-nos para uma mais completa informação, para o manuscrito de
Erfurt, actualmente em Berlim. Dois dias depois ao assistir à
desconcertante entrada triunfal de Cristo em Jerusalém, tive
oportunidade de comprovar como na chamada parte baixa da cidade, uma
das profissões artesanais era precisamente a de médico. Os
sangradores, a que os companheiros de Lázaro se referiam,
encontravam-se concentrados numa das ruas - aliás, tal como os
restantes umman ou artesãos – e ali desempenhavam o seu ofício, que ia
da cirurgia à circuncisão, passando pela receita de ervas medicinais.
Extracção de dentes e, até, o corte de cabelo e barba. (N. Do M.)
- Recordai-vos da data? - intervim.
- Como esquecer o dia do falecimento de um amigo? O luto caiu
nesta casa nas últimas horas da tarde de domingo, cinco de Março.
- Isso significa – e interrompi novamente o meu interlocutor – que
Lázaro já tinha morrido quando o mensageiro encontrou Jesus...
- Efectivamente. O Rabi encontrava-se então na cidade de
Bethabara, em Pereiat, e, embora o emissário cavalgasse toda a noite,
Jesus só recebeu a notícia no dia seguinte, segunda-feira.
- Há qualquer coisa que não entendo. O mensageiro tinha ordem de
rogar ao Mestre que acorresse a Betânia?
- Não. As irmãs de Lázaro têm muita fé no Rabi, tanta que sabiam
não ser necessária a sua presença. Elas estavam conscientes de que
Jesus se encontrava a pregar e que bastaria apenas uma palavra Sua
para curar o irmão. Por isso, ao morrer Lázaro, pouco depois da partida
do mensageiro, toda a gente compreendeu e aceitou que era demasiado
tarde.
O que se tornou incompreensível, mesmo para Marta e Maria -
prosseguiu o meu narrador com voz triste, pela triste recordação
daqueles momentos -, foi a resposta de Jesus ao emissário.
Quando este regressou a Betânia na manhã de terça-feira, garantiu
uma e outra vez ter ouvido dizer ao Rabi que aquela doença não conduzia
à morte.
Todos, como te disse, crentes ou não, ficámos desconcertados.
Ninguém conseguia compreender por que razão Jesus, o grande
amigo da família, não dava sinais de vida.
Ao saberem da morte de Lázaro, muitos dos seus familiares e
amigos das aldeias próximas, bem como de Jerusalém, puseram-se a
caminho para acompanharem as irmãs em tão triste momento. Cumprida a
primeira parte das normas do luto, o nosso amigo foi sepultado junto de
seus pais, em túmulo familiar, no fim do jardim.
- Um momento – intervim de novo -, Lázaro foi enterrado aqui, na
sua própria casa?
- Sim, no panteão dos seus maiores.
Ainda que a minha pergunta pudesse parecer de pouco interesse,
encerrava para mim um indiscutível valor. Segundo todos os textos
bíblicos por mim consultados antes da Operação Cavalo de Tróia, o
sepulcro de Lázaro fora localizado pelos exegetas fora da aldeia e,
concretamente, na encosta oriental do monte das Oliveiras. Na manhã
seguinte, a irmã mais velha de Lázaro, a pedido meu, conduzir-me-ia, à
gruta natural que se abria ao pé de um penhasco de dez metros de
altura, a pouco mais de quatrocentos metros das traseiras da casa e ao
fundo do frondoso horto que a herdade formava. Aquela verificação
desfez as minhas dúvidas, fortalecendo a minha primeira impressão
sobre a desafogada situação econômica da família, que herdara de seus
pais, amplas zonas de plantações.
Nesta cidade. Na parte oriental do Jordão, deu-se o baptismo de
Jesus Cristo por João (N. Do M. )
A Misná, no seu capítulo terceiro de festas menores (moed qatan).
estabelece que os mortos deviam ser chorados durante os três
primeiros dias.
Durante os sete primeiros dias, o ritual estabelecia as lamentações
e ao longo do primeiro mês os familiares deviam usar os sinais próprios
do luto. (N. Do M.) vinhedos e de olivais. O facto indiscutível de dispor,
até, de panteão familiar dentro do recinto de sua casa, falava, só por si,
da riqueza dos irmãos.
- Em que dia foi sepultado Lázaro? Na quinta-feira, nove de Março,
pela manhã. Ao passarem os três dias estabelecidos pela lei, a família e
amigos depositámos os restos mortais de Lázaro num dos leitos de pedra
escavados na gruta e fechámos a abertura com a laje...
Os que me esclareciam referiram-se depois à difícil situação que
atravessavam as irmãs do falecido. Apesar dos numerosos amigos e
parentes que tinham vindo consolá-las, Maria e a senhora encontravamse
mergulhadas numa dor profunda. Alguma coisa, no entanto, as
diferenciava: enquanto Maria parecia ter perdido toda a esperança,
Marta continuou aferrada à sua ideia: o Mestre tinha de aparecer, de um
momento para o outro. E, embora não soubesse muito bem o que o Rabi
podia fazer por aquela altura, com o irmão morto e amortalhado, a
senhora viveu os quase quatro dias que se seguiram com o fervoroso
desejo de ver aparecer Jesus. A sua fé no Mestre era tal que, naquela
mesma manhã de quinta-feira, quando o túmulo foi fechado, pediu a uma
vizinha de Betânia que se pusesse no alto de uma colina, a leste da
aldeia, com o fim de vigiar o caminho que vai dar a Jericó e pelo qual
teria de chegar o Rabi de Galileia. Poucas horas depois, a jovem entrou
na casa de Lázaro avisando Marta, em segredo, da iminente chegada de
Cristo e dos seus discípulos.
Pouco depois do meio-dia, a senhora foi ao encontro do Nazareno no
alto da colina. Marta, ao ver Jesus, lançou-se a seus pés, exprimindo a
sua mágoa, ao mesmo tempo que exclamava entre grandes gritos:
Mestre, se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido! Jesus inclinouse
então e depois de a levantar disse-lhe: Tem fé e teu irmão
ressuscitará.
E Marta, que não se atrevera a criticar a aparentemente
incompreensível actuação do Mestre, respondeu: Sei que ressuscitará na
ressurreição do último dia mas agora acredito que nosso Pai Te dará
quanto lhe peças.
O Rabi pousou as mãos nos ombros da mulher e, olhando-a
fixamente nos olhos, disse-lhe: Eu sou a ressurreição e a vida!
As lágrimas continuavam a correr pela face da irmã de Lázaro e
Jesus prosseguiu: Aquele que creia em Mim viverá, mesmo que tenha
morrido. Em verdade te digo que quem viva acreditando em Mim, nunca
morrerá realmente. Marta, acreditas nisto? A mulher fez com a cabeça
um aceno afirmativo e, depois de enxugar os olhos, acrescentou: Sim, há
muito tempo que acredito que és o Libertador, o Filho de Deus vivo... o
que tem de vir a este mundo.
Os companheiros de Lázaro continuaram o seu relato, expondo a
estranheza do Mestre por não ver Maria junto de sua irmã. A senhora,
que recuperara já o seu comportamento habitual, explicou a Jesus o
profundo e doloroso transe que Maria atravessava. E o Nazareno pediulhe
que a fosse avisar.
Marta entrou novamente em casa e, chamando sua irmã de parte,
deu-lhe a notícia da chegada do Mestre.
Os meus interlocutores deviam ter notado a estranheza que eu
demonstrava perante esta atitude da irmã mais velha de Lázaro e,
antecipando-se aos meus pensamentos, esclareceram:
- Entre as numerosas pessoas que tinham acorrido a esta casa,
contavam-se alguns inimigos de Jesus; Marta, procurando evitar qualquer
incidente, considerou oportuno não falar em público da recente chegada
a Betânia do Rabi. Mais ainda: a sua intenção foi permanecer em casa
com os amigos e familiares, enquanto Maria corria à procura de Jesus.
Mas a impetuosa saída da irmã mais nova alarmou os presentes, que
a seguiram, pensando que Maria se dirigia ao túmulo do seu irmão.
Quando Maria chegou junto do Mestre, igualmente se lançou a seus
pés, exclamando: Se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido!
O grupo, ao ver Jesus com as duas irmãs, permaneceu a uma
prudente distância. Naqueles momentos, enquanto o Rabi as consolava,
muitos dos amigos e parentes recomeçaram as suas lamentações e
gemidos.
O Sol começara já a decair para Oeste quando Jesus perguntou a
Marta e a Maria: Onde está? A senhora respondeu-lhe:
- Vem e verás.
E as irmãs conduziram-no para a herdade, atravessando o horto.
Quando estavam em frente do grande penhasco, Marta indicou-lhe a
laje que encerrava o panteão familiar, enquanto Maria – em nova crise de
lágrimas – se ajoelhava aos pés do Galileu, soluçando e enterrando o
rosto na terra. Fez-se um grande silêncio, e os que estávamos perto do
Rabi vimos como os Seus olhos se enchiam de lágrimas, que Lhe corriam
pela face. Um dos amigos de Jesus, ao vê-lo chorar, exclamou: Vede
como lhe queria. Aquele que abriu os olhos aos cegos, não poderia
impedir que este homem morresse?
Mas outros dos ali reunidos, implacáveis detractores do Mestre,
aproveitaram aquela oportunidade para ridicularizar Jesus, dizendo: Se
tinha em tão alta estima este homem, porque não salvou o Seu amigo?
De que serve curar estranhos na Galileia se não pode salvar os que
am a?.
Jesus, no entanto, permaneceu em silêncio. Então, levantando Maria,
estreitou-a entre os braços, aliviando a sua aflição.
- Que hora era? - perguntei.
- Faltava muito pouco para a nona. Naquele momento, o Rabi,
dirigindo-se a alguns dos Seus discípulos, ordenou-lhes: Levantai a pedra!
Mas Marta, avançando para o Mestre, perguntou-Lhe: Devemos
mover a pedra de lado?
Interroguei os amigos de Lázaro sobre o significado daquela
pergunta da senhora. Sinceramente, não conseguia compreender. Que
quisera ela dizer?
- Marta, tal como os que ali estavam presentes explicaram-me
-pensou que Jesus desejava ver Lázaro pela última vez. Ainda que
todos acreditássemos na ressurreição dos mortos, ninguém (nem sequer
Marta) imaginou quais eram, na verdade, as verdadeiras intenções do
Rabi.
Por isso, a senhora acreditou que seria suficiente retirar
parcialmente a lousa. Desta forma, o Mestre teria podido inclinar-se
para a sepultura e contemplar o cadáver do Seu amigo.
A irmã mais velha de Lázaro, no entanto, tentou persuadir Jesus,
dizendo-lhe: Meu irmão morreu já há quatro dias... a decomposição do
corpo principiou...
Os cinco homens que se preparavam para deslocar a pedra olharam
Marta, sem saberem que fazer. Mas Jesus, que se colocara na frente
deles, e num tom que não dava lugar a dúvidas, censurou a lógica
insinuação da senhora. Não lhes afirmei desde o princípio que esta
doença não é mortal? Não vim cumprir a Minha promessa? E depois de
vos ter visto, não disse que, se acreditásseis, veríeis a glória de Deus?
Porque duvidais? De quanto tempo necessitais para crer e obedecer?
Marta olhou fixamente para o Mestre e, num dos seus típicos impulsos,
animou os apóstolos e vizinhos de Betânia, que se tinham oferecido para
empurrar a pedra, a que abrissem a caverna.
O pesado silêncio foi rasgado com o gemido da lousa circular ao
roçar pela rocha e pelos entrecortados gritos de encorajamento que
proferiam os voluntários, no seu esforço em afastar para o lado o pesado
obstáculo. À quarta ou quinta tentativa, a boca do túmulo ficou a
descoberto.
O nosso Rabi levantou então os olhos para o azul daquele entardecer
e exclamou, de forma a que todos pudéssemos ouvi-lo: «Pai...
agradeço-te que tenhas ouvido a minha súplica. Sei que sempre Me
escutas, mas, por causa dos que estão junto de Mim, falo contigo para
que acreditem que Me enviaste ao Mundo e saibam que intervéns Comigo
no acto que nos preparamos para realizar».
E, logo a seguir, pondo o joelho esquerdo em terra e assomando-se à
galeria que conduz à câmara funerária, gritou com força: Lázaro!...
Aproxima-te de mim!
O eco ressoou no interior da caverna, enquanto as quarenta ou
cinquenta pessoas que ali estavam sentiam um calafrio.
Alguns mais próximos do Mestre meteram-se no túmulo e
distinguiram, na penumbra do fosso, a forma de Lázaro, fortemente
envolvido em faixas de linho branco e repousando no nicho inferior
direito do panteão.
Maria, assustada, abraçou-se a sua irmã. Nunca um silêncio foi tão
dramático.
Durante um breve espaço de tempo, todos suspendemos a
respiração.
Embora muitos de nós tivéssemos sido testemunhas de outros
prodígios do Rabi, a palpável e crua realidade daqueles quatro dias de
enterramento fazia-nos duvidar.
Que ia acontecer?
Aquele insólito silêncio propagara-se até aos arredores. As
primeiras e familiares andorinhas tinham desaparecido do céu e até o
forte vento, tão próprio desta época, serenara inexplicavelmente.
De repente, o Mestre deu um passo atrás. Pelas escadas que
conduziam à boca da caverna apareceu um vulto. Maria lançou um grito
dilacerante e caiu, desmaiada. Instintivamente, todos recuámos.
Um homem coberto por um lençol lutava para sair. Mas as mãos e os
pés estavam presos com as faixas e isto dificultava-lhe a marcha.
Da surpresa passou-se ao terror e a maioria dos homens e mulheres
fugiram pelo jardim, entre gritos e quedas.
Era Lázaro!
Os que me informaram referiram-se sempr ao nome de “Psti, com a
palavra hba”. Segundo os meus estudos. Este título era também dado a
muitos mestres do Talmude, como prova de veneração e afecto.
Com muita dificuldade, apoiando-se nos cotovelos e nas mãos, aquele
vulto foi-se arrastando pelas húmidas escadas de pedra, até chegar aos
últimos degraus. Ali se deteve, ofegante, enquanto um suor frio nos
escorria pelo rosto.
Mas ninguém – nem sequer Marta – se atreveu a dar um único passo
para o ressuscitado. Dirigindo-se à senhora, Jesus compreendeu o nosso
pânico, e ordenou que lhe tirassem as faixas e o deixassem andar.
Com os olhos marejados de lágrimas, Marta aproximou-se
valentemente, começando por desatar, primeiro, as faixas que lhe
oprimiam os pulsos, e a seguir, sem esperar para lhe soltar as ataduras
dos tornozelos, rasgou o lençol e deixou a descoberto o rosto de seu
irmão. Tinha os olhos muito abertos e a face branca como a cal.
Uma vez liberto, Lázaro saudou o Mestre e os Seus discípulos,
interrogando sua irmã Marta sobre o significado daquelas roupas
funerárias e por que motivo tinha acordado no jardim. Enquanto a
senhora lhe falava da sua morte, enterro e ressurreição, Jesus deu meia
volta e, com a sua habitual serenidade inclinou-se, levantando o corpo de
Maria.
A rapariga ainda não tinha recuperado os sentidos e o Mestre
esquecendo-se por completo de Lázaro e de nós, levou-a nos braços até
casa.
Pouco depois, os três irmãos prostraram-se ante o Rabi,
agradecendo-lhe quanto fizera. Mas Jesus, agarrando as mãos de
Lázaro, levantou-o, dizendo: Meu filho, o que te sucedeu também
acontecerá a todos aqueles que creiam no Evangelho, mas ressuscitarão
sob forma mais gloriosa.
Tu serás a testemunha viva da verdade que proclamei: Eu sou a
ressurreição e a vida. Vamos agora tomar alimento para os nossos corpos
físicos.
Isto é quanto podemos dizer-te.
Lázaro observava-me fixamente. Suponho que com menor
curiosidade do que aquela que eu sentia por ele.
- Se mo permites – intervim, dirigindo-me ao ressuscitado -,
gostaria de te fazer uma última pergunta.
O amigo de Jesus acenou afirmativamente com a cabeça.
- Que recordação tens daqueles dias em que conheceste a morte?
- Nunca falei disso – respondeu Lázaro -, mas não é muito o que
posso dizer-te.
Aquela pergunta e a insinuação do dono da casa surpreenderam o
grupo. Curiosamente, ninguém se tinha preocupado em averiguar o que
Lázaro tinha visto ou sentido durante os quatro dias em que estivera
morto.
- Houve um momento – suponho que no instante da minha morte - em
que a minha cabeça se encheu de um estranho ruído...
Foi assim como o zumbido de um enxame de abelhas. Depois, não sei
por quanto tempo, experimentei uma sensação desconhecida: era como
se me precipitasse por um estreito e escuro corredor...
Quando voltei a abrir os olhos tudo era escuridão. Não sabia onde
estava nem o que tinha acontecido. Senti frio nas costas.
Apercebi-me então de que jazia num leito de pedra. Tentei pôr-me
de pé mas vi que me encontrava manietado e coberto por uma mortalha.
Tentei gritar mas um pano enrolado na cabeça prendia-me fortemente o
queixo.
Imediatamente, compreendi que estava numa das cavidades
subterrâneas que servem para enterrar os nossos mortos. No entanto
contrariamente ao que possas crer, não senti medo. Pelo contrário. Uma
grande paz se apoderou de mim e, lentamente como pude, fui-me
arrastando para a coluna de luz que se avistava ao fundo da câmara. O
resto já conhecem.
Não sei como pôde ocorrer-me mas, de repente, lembrei-me que no
relato da ressurreição se tinha mencionado um lençol.
- Abusando da tua hospitalidade – expus-lhe -, gostaria de saber se
ainda conservas as mortalhas?
- Sim, ainda as tenho.
- Poderia vê-las?
Aquele meu inusitado interesse pela mortalha confundiu os
presentes.
Mas Lázaro acedeu, rogando a um dos amigos que a fosse buscar.
Minutos depois, o hebreu punha nas minhas mãos um rolo de pano.
Com o auxlio do próprio Lázaro, e a meu pedido, estendemos o lençol
de linho em cima da mesa. Providencialmente, as irmãs tinham optado por
guardar a mortalha e as faixas, tal como foram retiradas do corpo de
Lázaro. E, ainda que a rigorosa lei judaica proibisse todo o contacto com
cadáveres ou com objectos que, tivessem permanecido junto de restos
mortais de homens ou de animais, a singularidade do acontecimento - que
quebrava todos os esquemas legais – e a vontade liberal destes
seguidores da doutrina de Jesus tinham feito o possível para que as
vestes fúnebres não fossem destruídas e a familia as manejasse sem
escrúpulos de consciência.
Ao passar uma das candeias de azeite por cima do tecido pude
observar um rasgão mesmo no centro do lençol; justamente na parte que
devia cobrir a cabeça. Ao examinar atentamente o pano comprovei a
existência de umas manchas castanhas causadas por misturas de
unguentos que tinham sido utilizadas no embalsamento.
Como médico, prestei especial interesse à detecção de possíveis
sinais ou marcas que pudessem denunciar o processo natural de
putrefacção.
A julgar pelas informações dos meus amigos, Lázaro falecera vinte e
cinco dias antes, pelo entardecer do domingo, 5 de Março.
Apesar do isolamento da gruta sepulcral, da sua baixa temperatura
e da possível acção retardadora dos óleos e dos aloés, a advertência de
Marta a Jesus sobre o cheiro do cadáver era, sem dúvida, um sintoma
claro de que seu irmão devia apresentar já, pelo menos, a chamada
mancha verde abdominal, primeiro sinal de decomposição. (Esta mancha
costuma aparecer vinte e quatro dias depois do falecimento e Lázaro, no
momento de abertura do túmulo, devia andar pelas noventa horas de
morte.)
No entanto, por mais que explorasse a mortalha, não pude encontrar
vestígio algum de líquidos provenientes, por exemplo, da ruptura de
bolhas na epiderme. O que notei, sim, ao cheirar algumas das áreas do
tecido, foi um inconfundível odor a sulfídrico, emanação muito própria da
putrefacção da matéria orgânica. Ainda que não se tratasse, obviamente,
de uma prova definitiva, aquilo deu-me uma certa ideia sobre a possível
causa da morte de Lázaro: provavelmente, um processo infeccioso, agudo
e generalizado. (A título pessoal, e depois da grande viagem, interesseime
por todos os textos, apócrifos ou não, tradições, etc., em que se
falasse da sorte que teve Lázaro nos anos seguintes. Os escassos dados
que encontrei apontavam para o facto de o amigo de Jesus ter morrido
pela segunda vez na idade de sessenta e quatro anos e, curiosamente,
como consequência do mesmo mal que o levou à sepultura no ano 30. Mas
estas informações, logicamente, não puderam ser comprovadas. )
O que me atraiu, sim, poderosamente a atenção foi verificar como o
testemunho de Lázaro e dos seus amigos se encaixava plenamente na
tradição judaica sobre a sua morte. Em geral, os Hebreus acreditavam
em a gota de fel na ponta da espada do anjo da morte começava a agir no
final do terceiro dia. Ao quarto, portanto, a decomposição do cadáver
era já um facto indiscutível. De acordo com a informação da família de
Lázaro, o Mestre recebeu a notícia da grave doença do seu amigo quando
este já estava morto havia onze horas; quer dizer, na manhã de segundafeira,
6 de Março, Jesus conhecia esta crença judaica sobre a morte, e,
sabiamente, esperou até terça-feira para se pôr a caminho, chegando a
Betânia quando os restos mortais de Lázaro estavam já sem vida há
perto de noventa e seis horas. Tempo mais que suficiente para que todos
os judeus que sabiam do falecimento não pudessem duvidar do prodígio
que se preparava para consumar.
Nas horas que se seguiram graças a estas e a outras informações,
consegui entender, a sua verdadeira medida, por que razão a aristocracia
sacerdotal judaica – encabeçada naqueles anos pela saga do ex-sumo
sacerdote Anás – procurava a morte de Jesus de Nazaré.
É quase certo que se o milagre tivesse tido lugar noutro momento do
ano judaico e não em vésperas da solene Páscoa – e com um protagonista
menos abastado e prestigiado entre os dignitários de Jerusaléma obra
do Rabi talvez tivesse ido engrossar, a título de inventário, a já longa
lista de prodígios. Mas o Nazareno tinha retirado à morte – poder
reservado unicamente ao Divino – Lázaro de Betânia.
(Demasiado perto, demasiado espectacular e demasiado importante
para ser esquecido ou condenado ao silêncio.)
O facto adquiriu tais proporções que – segundo me contaram Lázaro
e seus amigos -, Jerusalém sofreu uma comoção. A circunstância de
entre os testemunhos da sua ressurreição se contarem alguns membros
do Templo e distintos judeus, amigos da família de Lázaro, precipitou
ainda mais os acontecimentos. E o Sinédrio, inquieto com a notícia,
convocou uma assembleia urgente para uma hora depois do meio-dia de
sexta-feira: O tema único podia resumir-se na seguinte frase:
«Que faremos com o impostor?»
Ainda que a suprema assembleia de Israel tivesse discutido já
noutras alturas a possibilidade de deter e julgar Jesus de Nazaré,
acusando-o de blasfemo e transgressor das leis religiosas, desta vez foi
diferente.
Um dos fariseus chegou a propor uma resolução para que se
decretasse a imediata captura do Galileu e sua execução sem julgamento
prévio.
Isto provocou azedas discussões entre os setenta e um membros do
Sinédrio, em especial entre alguns anciãos ou representantes
da nobreza laica (caso de José de Arimateia) e os fariseus. Aqueles
consideravam ilegal e abominável tal decisão.
Depois de duas horas de discussão, e em vista do fraco êxito dos
que pretendiam que o processo contra Jesus se desenrolasse sob a mais
rigorosa ortodoxia, catorze membros da assembleia judaica levantaramse,
apresentando ali mesmo a sua demissão. Duas semanas depois, quando
o Sinédrio aceitou estas demissões, o conselho exonerou dos seus cargos
mais cinco destacados membros, com a acusação de reflectirem
sentimentos de amizade pelo Nazareno. Estas circunstâncias abriram
caminho ao Sinédrio, que tomou a decisão quase unânime de prender e
justiçar o Mestre.
Lázaro e sua família não se enganavam ao crer que a sorte de Jesus
estava lançada. O ódio do Sinédrio contra o Rabi era tal, que naquela
mesma tarde de sexta-feira, 10 de Março, os guardas do Templo
receberam ordem de procurar e capturar Jesus lá onde se encontrasse.
Mas a iminente entrada de sábado (pelo entardecer de sexta-feira)
salvaria o Nazareno. Ainda que toda a Jerusalém soubesse da presença
de Jesus em Betânia, os levitas decidiram aguardar o domingo para
executar a ordem de caça e captura. Os amigos do Mestre apressaramse
em comunicar-lhe a grave resolução, insistindo para que fugisse.
Mas Jesus não fez caso e continuou em Betfagé até à manhã de
domingo 12 de Março. Depois de se despedir de Lázaro e de suas irmãs,
o Rabi e o seu grupo partiram para o seu acampamento da cidade de
Pélal.
Poucos dias depois da marcha do Mestre, o ludibriado Sinédrio
centrou as suas iras no ressuscitado. Lázaro e sua família foram
convocados a depor em Jerusalém e os sacerdotes tiveram de render-se
à evidência do milagroso acto de Jesus. Neste sentido, o testemunho do
médico do templo, Ben Ajua, que tinha assistido ao vizinho de Betânia
durante a sua fulminante doença e comprovado com os próprios olhos o
ritual do embalsamamento, foi decisivo. No entanto, o pérfido coração
de Caifás e dos seus partidários ordenou que se registasse nos arquivos
do Sinédrio que aquele prodígio tinha a sua origem no maléfico poder do
príncipe dos demónios, aliado do Rabi da Galileia.
Esta ressurreição – insisto -, longe de abrir a alma dos
representantes religiosos do povo hebreu, envenenou ainda mais os seus
sentimentos contra Jesus.
O sumo sacerdote e os chefes do Templo encarregaram-se de
convencer o resto do tribunal de que, seguindo por aquele caminho, todo
o povo de Jerusalém acabaria por acatar a doutrina do Galileu, podendo
conduzir a nação a uma catástrofe. De certo modo, o Sinédrio tinha
razão, já que muitos hebreus – entre os quais figurava boa parte dos
seus próprios discípulos – consideravam o Messias como um libertador
político, um revolucionário, que expulsaria os Romanos de Israel.
Foi precisamente numa daquelas reuniões do Sinédrio segundo me
informou Nicodemo – que Caifás aludiu, pela primeira vez, ao antigo
adágio judeu, repetido mais tarde, e que rezava: «Mais vale ver morrer
um homem, que ver perecer uma comunidade».
Mas os problemas da suprema assembleia de Israel não terminavam
em Jesus. O Sinédrio ganhara perfeita consciência de que era mister
eliminar também Lázaro. Que conseguiam prendendo e executando o
Mestre, se continuava com vida o máximo expoente do Seu poder? A
popularidade do ressuscitado alcançara tal grau que Caifás e os fariseus
decretaram igualmente a eliminação de Lázaro.
Apesar de ter solicitado vários esclarecimentos a Lázaro.
A suas irmãs e ao próprio grupo de Jesus sobre a cidade para onde
fora o Mestre depois da ressurreição do Seu amigo, todos coincidiram
em Péla. Isto desorientou-me, pois que, no texto evangélico de São João
(11, 54-55) se fala de outra localidade: Efrém – a actual et-Taiybe -,
situada a uns dezanove quilómetros em linha recta, a nordeste de
Jerusalém.
O deserto, propriamente dito, estendia-se entre a referida cidade
e o rio Jordão. Esta zona montanhosa recebe hoje o nome de elbarriyeh,
o deserto.
A cidade de Péla ou Péla é citada por Flávio Josefo, na sua obra
Guerra dos Judeus (livro III), como uma das povoações situadas ao
norte da região da Pereia, na margem do Jordão, e relativamente
próxima de Filadelfia (mais a leste), onde terminou por refugiar-se
Lázaro, escapando à perseguição dos Judeus. (N. Do M.)
* O nome de Lázaro, para cúmulo, significa etimologicamente, Deus
socorreu”. Isto foi tomado entre muitos judeus como um novo sinal a
favor de Jesus. (N. Do M.
Os planos do Sinédrio acabaram por transpirar e o amigo de Jesus
foi informado com todos os pormenores. Esta dramática situação
mergulhara a família de Betânia numa permanente angústia.
Começava agora a compreender a sua natural desconfiança quando,
poucas horas antes, eu tinha solicitado falar com Lázaro...
Talvez, em minha opinião, outro dos graves erros do Sinédrio fosse
não prender primeiro o ressuscitado. Ao verificarem que Jesus tinha
desaparecido, os sacerdotes esqueceram temporariamente Lázaro e
deram ordens expressas a Yojanan ben Gudgeda, porteiro-chefe, como
aos restantes levitas, ou guardas ao serviço do Templo, para que, caso
fizesse acto de presença, o Nazareno fosse imediatamente capturado.
Um dos comentários mais repetidos naqueles dias antes da
celebração da Páscoa - e que eu tivera de escutar desde a minha
chegada a Betânia – era, precisamente, se o Nazareno teria a coragem
suficiente para ir a Jerusalém e celebrar, como todos os anos, os
sagrados ritos. Este rumor popular desorientara os sacerdotes, até ao
extremo de passarem o problema Lázaro a segundo plano.
Assim decorreu o meu primeiro encontro com o amado amigo de
Jesus, interrompido, finalmente, pela entrada de Marta na sala. Numa
bandeja de madeira ofereceu-me um refresco, que novamente agradeci,
com todo o meu coração. Depois do relato dos hebreus que me
acompanhavam, a minha admiração pela senhora aumentara
sensivelmente.
E suponho que ela, com a sua grande intuição feminina, o devia ter
notado. Ao entregar-me a comida, Marta baixou os olhos, corando.
- Rogo-te, irmão Jasão – falou Lázaro -, que hajas por bem aceitar
este humilde alimento. Sabemos que necessitas dele. E suplico-te
igualmente que te consideres em tua casa. Esta noite, e de quantas
precises, este será o teu tecto...
Tentei dissuadi-lo, mas foi inútil. Lázaro e os seus amigos tinham
descoberto que – na verdade – a minha atitude era límpida e nobre.
As emoções do dia tinham-me aberto o apetite e, ante a mirada
compadecida dos meus novos amigos, não tardei em dar boa conta do
trigo tostado, dos figos secos, das tâmaras, do mel e da tijela de leite
de cabra que foram a minha ceia.
Bem já noite, o próprio Lázaro me guiou até uma das salas do andar
de cima. Nela fora armado um catre dos chamados de tesoura, com uma
cama de pano e cordas entrelaçadas. A armação da cama fora construída
à base de dois alizares de madeira de pinho, cada um deles solidamente
amarrado a duas pernas que se cruzavam em forma de aspa e que não se
erguiam a mais de quarenta centímetros do solo.
Como mobiliário, o reduzido quarto rectangular (de 1,80 m por 2,50
metros) apresentava uma grande arca de sólida madeira de acácia (a
mesma que deve ter servido para construir a lendária Arca da Aliança),
de um metro de altura. Em cima, Marta colocara as minhas sandálias,
muito bem lavadas; uma bacia, uma jarra de metal com água, um lenço e
um pequeno ramo de alecrim, de fragrantes flores azuladas.
Na cabeceira do leito, suspensa da parede branca e a curta
distância do chão de tijolo vermelho, estava acesa uma singela candeia
de azeite em forma de concha.
Ao fechar a porta, e ficando sozinho, assomei à estreita fresta
que fazia as vezes de janela e os meus olhos encheram-se de lágrimas,
ao contemplar aquela legião de estrelas iguais à que costumava ver no
deserto de Mojave. Depois de uma longa ligação com o módulo, caí
extenuado no catre. Na realidade, a minha agitada exploração ainda mal
começara.
31 DE MARÇO, SEXTA-FEIRA
Durante a madrugada, fui despertado por um som rouco e
monocórdico. Ao chegar à janela, verifiquei, surpreendido, que aquele
som parecia sair de toda a aldeia. Não o consegui explicar.
Depois de uma rápida lavagem, estabeleci contacto com o berço,
mas também Eliseu não me soube dar informação a esse respeito.
Intrigado, desci as escadas de pedra que conduziam ao pátio central
da herdade. Ao chegar às pilastras, aquele irritante ronronar aumentou.
Notei que vinha da sala onde tinha permanecido boa parte da tarde
anterior e para ali me encaminhei. O fogo da lareira erguia-se vigoroso
de lenhos recentemente depositados no fundo da chaminé. Junto do
murete circular do fogão, Marta e uma das servas procediam com ímpeto
ao moer do trigo, sobre uma pedra muito parecida com as que eu vira na
manhã anterior, na minha descida pela encosta sul do monte das
Oliveiras. Diferindo daquelas, este triturador era negro e muito polido.
Ao aproximar-me das mulheres e ao saudá-las verifiquei que se tratava
de uma pedra basáltica de quase meio metro de comprimento e trinta
centímetros de largura, muito gasta na parte superior, como
consequência da diária e vigorosa fricção. Num instante, as minhas
dúvidas se dissiparam. E, a partir daquele dia, aprendi a identificar o
quotidiano despertar de Betânia e da própria Jerusalém com aquele som
obrigatório e generalizado em todas as casas – poderosas e humildes –
da moenda do trigo. Como me contaram os anciãos da aldeia de Lázaro,
se algum dia se deixasse de ouvir o barulho da mó, convertendo o trigo
em farinha, era por que a ruína e a desolação – como escrevera Jeremias
tinham chegado a Israel.
Naturalmente, não tinha sido eu o primeiro a levantar-me.
Desde muito antes do amanhecer, as mulheres da casa afadigavamse
já nas tarefas domésticas. Enquanto Marta se encarregava da compra
do pão no forno comunal da aldeia, Maria e outras raparigas traziam água
e acabavam de limpar a casa. Os homens, por seu lado, ultimavam os
preparativos para o duro trabalho nos campos. O pai Lázaro – rico
lavrador deixara a seus filhos a terra suficiente para viverem sem
dificuldades, permitindo folgadamente em cada colheita que os pobres
pudessem recolher um dos cantos dos seus campos, tal como ordenavam
os velhos preceitos.
Quando entrei na sala de jantar, a diligente e incansável Pai Natal
confirmaria este costume. Com base nos textos sagrados do Levítico (19.
9; 23, 22) e do Deuterónimo (24,19-21). Um tratado completo, com oito
capítulos, pode encontrar-se na Misná. (N. Do M.)
Marta preparava a farinha para cozer umas pequenas tortas sem
levedura.
Ao ver-me, levantou-se, pedindo que desculpasse o irmão.
Lázaro tivera de acompanhar os seus trabalhadores até um dos
campos próximos, onde se andava a trabalhar no que chamavam a
semeadura tardia; quer
dizer, na cultura de produtos como o milho, sésamo, lentilhas,
melões, etc, e que, necessariamente, tinham de se plantar entre
Janeiro e Março.
Antes que eu pudesse reagir, Marta suplicou-me que me sentasse à
mesa. Num abrir e fechar de olhos pôs diante de mim uma larga
escudela de madeira na qual verteu leite quente. Sempre em silêncio,
enquanto a sua companheira continuava a triturar o trigo, cortou várias
fatias de uma fogaça de pão escuro, que, possivelmente, pesaria mais de
três libras. Duas generosas porções de queijo e mel completaram o meu
pequeno-almoço.
Desde a terceira hora (as nove da manhã, aproximadamente) que
grupos de peregrinos provenientes da Galileia, de Pereia, velhos
conhecidos da família, parentes de Jerusalém e muitos curiosos tinham
chegado até às portas da casa de Lázaro. Como quase todos os dias,
aqueles hebreus tinham aproveitado a sua forçada presença na Cidade
Santa para se distraírem, vendo e ouvindo o ressuscitado. Ao vê-los
sentados no jardim e invadindo, mesmo, o átrio e pátio central, senti uma
certa raiva. Pois Lázaro não reparava que a maioria daqueles indivíduos
só procurava um motivo para mexericos? Compreendi que o paciente
amigo de Jesus preferira sair dali...
Ao consultar Marta sobre o caminho que devia seguir para
encontrar seu irmão, a senhora abandonou gentilmente os seus afazeres
e rogou-me que a seguisse pelo espaçoso horto situado nas traseiras da
casa, e onde se alinhavam numerosas árvores de fruto. Ainda não
tínhamos andado trezentos passos quando, ao desembocar num pequeno
terreiro, parei em sobressalto. Na minha frente erguia-se um enorme
penhasco de calcário. Junto daquela mole acizentada, salpicada nalgumas
das suas gretas superiores pelos ninhos de barro das primeiras
andorinhas, distingui uma pedra circular.
Marta compreendeu o motivo da minha surpresa e, com um gesto de
mão, convidou-me a aproximar-me do sepulcro familiar.
Em silêncio, inspeccionei a tampa da boca da caverna.
Tratava-se de uma lousa perfeitamente lavrada, de um escasso
metro de diâmetro e apenas trinta centímetros de grossura. Aquela
pedra, muito semelhante às mós de um moinho, constituía o fecho de uma
entrada, a julgar pelas dimensões, era bastante estreita. A parte da
frente do penhasco, numa superfície de dois metros – a partir do solo –
por mais três metros de largura fora esculpida à maneira de fachada e
rebocada de branco.
Eu sabia que retirar a lousa constituía uma falta de respeito pelos
mortos. Assim, sem fazer comentário algum, esqueci aquele impulso que
me levava a pedir à irmã de Lázaro que me permitisse deslocar a rocha.
Por outro lado, o mais provável é que, ainda que Marta tivesse
consentido, nem ela nem eu juntos teríamos sido capazes de mover
aqueles trezentos ou quinhentos quilos que a tampa do sepulcro devia
pesar.
Minutos depois, saía do jardim, metendo por uma das veredas que ia
na direcção Oeste e que, segundo a senhora, me levaria ao encontro de
seu irmão.
Àquelas horas da manhã a temperatura era ainda fresca, dez graus
centígrados e um moderado vento de norte de dez nós, confirmaria
Eliseu. Na noite anterior, o equipamento especial do berço à base de um
feixe de luz laser – tinha detectado uma barreira de nuvens
tormentosas (cumulonimbos) com cerca de trezentos quilómetros de
extensão, que se levantava a três mil pés sobre o perfil da costa fenícioisraelita.
De momento, estas ameaçadoras nuvens de desenvolvimento
vertical pareciam travadas no seu avanço para Jerusalém por uma
corrente de ar frio proveniente de norte.
Não ponha de parte, no entanto, anunciou-me o meu companheiro
que possam alterar-se as condições e que em vinte e quatro ou quarenta
e oito horas se registem chuvas na nossa área.
Envolvi-me na chlamys e prossegui pelo caminho tortuoso, entre os
campos ondulantes de cevada. Alguns camponeses tinham iniciado já a
ceifa. Os ceifeiros apanhavam os caules com a mão direita e com a outra
cortavam-nos a pouca distância da base das espigas. As foices
consistiam em pequenas folhas curvadas de ferro, solidamente fixadas
com rebites a uma pega de madeira. A debulha fazia-se numa eira
próxima do caminho. As mulheres carregavam as paveias, espalhando-as
no chão.
Depois, separavam o grão de palha, ou à mão ou com a ajuda dos
bois.
Neste último caso – o mais frequente, segundo pude comprovar os
animais pisavam a cevada. Depois, os homens passavam a debulhadora por
cima, puxada pelos bois. As mais vulgares eram construídas com uma
tábua lisa, em cuja face inferior tinham sido cravados pequenos pedaços
de pederneira, outras eram simples rolos, também de madeira.
Numa segunda operação, as mulheres afastavam a palha,
amontoando o grão e guardando-o, finalmente, em sacas. Vários asnos e
alguns carros se encarregavam do seu transporte até à aldeia, onde era
despejado para grandes silos ou grandes vasilhas de barro, como as que
tinha visto em casa de Lázaro.
Não tardei a encontrar o ressuscitado e os seus trabalhadores.
Lázaro alegrou-se ao ver-me, mas recusou logo a minha ideia de os
ajudar nos trabalhos de semeadura. Encontrávamo-nos em plena batalha
dialéctica quando alguns dos servidores nos chamaram a atenção. Vindo
da aldeia aproximava-se um cavaleiro.
Lázaro colocou a mão esquerda à maneira de viseira e observou
atentamente. De repente, sem fazer o menor comentário, soltou o saco
das sementes que lhe pendia do ombro e foi a correr direito à vereda. O
cavaleiro chegou a trote junto do seu amigo e, desmontando, abraçou
Lázaro. Um instante depois, voltou a montar, afastando-se na direcção
de Betânia. O ressuscitado fez sinais para que me aproximasse. Ao
chegar junto dele o seu rosto parecia iluminado.
- O Mestre vem – largou-me a novidade com uma incontrolada
alegria. - Poderás enfim conhecê-lo... Vamos, temos muito que fazer.
- Mas... onde está?... Já chegou? - comecei eu a perguntar-lhe,
atabalhoadamente, enquanto o ia seguindo. Mas Lázaro não me
respondeu.
Antes que pudesse raciocinar, tinha-me ganho uma dianteira de meia
centena de metros. Apesar da sua aparente fraqueza, corria como um
gato selvagem.
Ao entrar em casa, notei que a notícia agitara a família e os seus
amigos. Marta, principalmente, corria de um lado para o outro,
sorridente e nervosa. Ao ver-nos, abraçou-se a Lázaro, confirmando-lhe
a boa nova:
- Vem... Jesus vem!...
O irmão tentou serená-la, perguntando-lhe alguns pormenores.
.. Dizem que está a uns dez estádios de Betânia acrescentou a
senhora.
Fiz um rápido cálculo mental. Aquilo significava que o Rabi se
encontrava a uns 1860 metros da aldeia.
Posso jurar que, apesar da minha intensa preparação, dos longos
anos de treino e da minha condição de céptico, a família de Lázaro
conseguiu transmitir-me o seu nervosismo. Sem o poder evitar, um
calafrio percorreu-me a coluna vertebral. Inexplicavelmente, a minha
garganta ficara seca. Mas, num esforço para me acalmar, atribui-o à
louca correria pelos campos (uma vez mais me enganava... )
Seguindo os conselhos de Lázaro, permaneci em casa. A minha
primeira intenção foi sair ao encontro do Nazareno, mas o ressuscitado
sugeriu-me que era muito melhor esperá-lo ali.
- Ele vem sempre a nossa casa... Além disso – insinuou -, a notícia já
terá chegado a Jerusalém, e, dentro em pouco, não se poderá andar
pelas ruas de Betânia.
- Então – comentei com preocupação -, o Mestre aceitou o desafio e
passará a Páscoa na Cidade Santa...
O meu amigo não quis responder. No entanto, adivinhei no seu olhar
uma sombra de preocupação. Eles pressentiam que aquela podia ser a
última Páscoa de Jesus de Nazaré... Nem é preciso dizer que o sumo
sacerdote e os seus sequazes podiam estar informados da presença do
impostor na aldeia vizinha. E isso, como muito bem sabiam Lázaro e suas
irmãs, era perigoso.
Pouco depois da nona hora – talvez fossem as quatro ou quatro e
meia da tarde -, a agitação entre as numerosas pessoas que se
encontravam no pátio em claustro da casa aumentou subitamente.
Marta e Maria precipitaram-se para o átrio e desapareceram entre
os grupos de homens e mulheres que, praticamente, obstruíam a entrada
principal.
O meu coração bateu mais depressa. Ouvia-se lá fora um som de
vozes, gritos e saudações. Sem saber a razão, senti medo.
Recuei uns passos, ocultando-me atrás de uma das colunas da ala
direita do pátio. As palmas das minhas mãos tinham começado a suar.
Carreguei dissimuladamente na orelha e, em voz baixa, informei Eliseu da
iminente chegada de Jesus.
Poucos minutos depois, os criados, amigos e familiares de Lázaro
foram-se afastando e um grande grupo de homens entrou no pátio.
De repente, entre risadas, beijos, mantos multicores, os meus olhos
ficaram presos num indivíduo que muito sobressaía dos outros... Aquele
tinha de ser Jesus!
A Sua extraordinária estatura – num primeiro instante calculei um
pouco mais de um metro e oitenta – convertia-o, ao lado da quase
totalidade dos que ali estavam reunidos, num gigante. Trazia um manto
cor de tijolo, que lhe cingia o tórax, com as pontas enroladas em volta do
pescoço e caindo sobre uns ombros largos e poderosos. Uma comprida
túnica branca de amplas mangas cobria-o quase até aos artelhos. Não
Lhe vi faixa ou cinturão algum. A envolver-lhe a testa, trazia um lenço
branco, que lhe caía do lado direito do cabelo.
Nem sequer no instante da inversão da massa do módulo, naquela
noite de 30 de Janeiro de 1973, experimentei uma aceleração cardíaca
como a que estava a suportar naqueles momentos.
O Gigante caminhou devagar até ao centro do pátio. O seu braço
direito apoiava-se no ombro de Lázaro. À sua volta, Marta e Maria
gesticulavam e davam palmas, entre o alvoroço geral.
Era, sem dúvida, um homem branco, de rosto comprido e estreito,
próprio dos povos caucasianos. O cabelo liso e de um tom ligeiramente de
caramelo, caía-lhe sobre os ombros. Pouco depois, ao soltar-se a faixa de
pano que trazia enrolada na testa, e que quase todos os homens do grupo
usavam, verifiquei que se penteava com risca ao meio.
Usava bigode e uma fina barba, partida em duas, cor de ouro-velho,
semelhante aos cabelos. O bigode, ainda que pronunciado, não chegava a
esconder os lábios, relativamente finos. O nariz desconcertou-me.
Era comprido e ligeiramente proeminente.
Desde a sua entrada em casa, Jesus não tinha deixado de sorrir,
mostrando uma dentadura branca e impecável, muito diferente da que
apresentava a maioria dos Hebreus.
O Mestre foi sentar-se à beira da piscina central, num dos
tamboretes que alguém trouxera da casa de jantar. Os homens,
mulheres e crianças juntaram-se à sua volta. Os raios de sol incidiram
então no seu rosto e fiquei maravilhado. O contraste com aquelas caras
endurecidas, semeadas de rugas e envelhecidas dos seus amigos e
discípulos era simplesmente admirável. A sua pele parecia curtida e
bronzeada.
Timidamente, pus-me atrás de um pilar e espreitei. Jesus, a pouco
mais de quatro ou cinco metros, levantou repentinamente o rosto e
penetrou-me com o Seu olhar. Uma espécie de fogo me percorreu as
entranhas. Ante a surpresa geral, o Rabi levantou-se, abrindo passagem
entre as pessoas que tinham começado a sentar-se nos tijolos vermelhos
do pavimento. Os joelhos começaram a tremer-me. Porém, já não era
possível escapar. Aquele Gigante estava na minha frente...
Nunca esquecerei Aquele olhar. Os olhos do Galileu ligeiramente
rasgados e de uma viva cor de mel – tinham uma virtude singular:
pareciam concentrar toda a força do Cosmos. Mais do que observava,
trespassava. Umas pestanas compridas e densas proporcionavam-lhe um
especial atractivo. A testa, ampla, terminava numas sobrancelhas rectas
e bem separadas. Não pestanejou. A sua face, serena e francamente
iluminada pelo sol, infundia um estranho respeito.
Levantou os braços e, pousando uma das mãos compridas e macias
nos meus ombros, sorriu, ao mesmo tempo que me piscava o olho.
Um inesperado calor me inundou dos pés à cabeça. Tentei
corresponder ao Seu gesto mas não pude. Estava confuso e aturdido,
comovido...
- Sê bem-vindo...
Aquelas palavras, pronunciadas em grego, acabaram por me
desarmar. Havia tal segurança e afecto na Sua voz que precisei de muito
tempo para reagir.
O Rabi voltou para junto da cisterna, enquanto os Seus amigos O
contemplavam num mutismo total. Alguns dos discípulos quebraram por
fim o silêncio e perguntaram ao ressuscitado quem eu era.
Lázaro, com evidente satisfação, explicou-lhes que era seu
convidado. Um estrangeiro chegado expressamente de Tiro para
conhecer Jesus.
Eu permaneci imóvel – como que petrificado -, tentando pôr em
ordem os meus pensamentos. Não pode ser, repetia para comigo uma e
outra vez. É impossível que tenha adivinhado... Como pode ser?...
Por mais voltas que desse, chegava sempre à mesma encruzilhada.
Se ninguém Lhe falara de mim – porque haviam de o fazer? -, como podia
saber quem era e porque estava ali? No pátio havia meia centena de
pessoas. Muitas conhecia – isso era claro -, mas outras não.
Era este o meu caso e, no entanto, encaminhara-se para mim...
Nunca, nem sequer agora, quando escrevo estas memórias, tive a
certeza, mas só um ser com um poder especial poderia ter actuado
assim.
Para que vou mentir. O resto da tarde foi para mim como um
relâmpago que rasga os céus de oriente a ocidente. Quase não me
apercebi de nada. Sei que Marta, tal como fizera comigo, lavou os pés do
Nazareno e os esfregou com mirra. Lembro-me vagamente – entre
saudações constantes – como Jesus saiu de casa, acompanhado por
Lázaro e por numeroso grupo. Marta me informaria depois que as
dependências da casa estavam completamente ocupadas pelos amigos e
familiares chegados a Betânia e que – de comum acordo com Simão, um
ancião inseparável do Mestre e velho amigo da família – Jesus
pernoitaria na casa deste antigo leproso.
De início, muitos dos habitantes de Betânia e dos peregrinos
chegados à aldeia discutiram entre si, acreditando que o Rabi entraria
nessa mesma tarde de sexta-feira em Jerusalém, como desafio ao
decreto de prisão que o Sinédrio promulgara. Mas enganavam-se. Jesus e
a Sua gente prepararam-se para passar a noite em casa de Simão, bem
como noutros lares de amigos e parentes da família de Lázaro. Todos –
essa é a verdade – fizeram o possível para que o Mestre se sentisse
feliz durante a sua passagem pela pequena povoação.
Segundo Marta, Simão quisera receber condignamente Jesus, e
anunciara um grande banquete para o dia seguinte, sábado. Isto
significou um novo esforço em ambas as casas, já que – de acordo com as
rigorosas prescrições da Lei judaica – o dia sagrado para os Hebreus
começava, precisamente, no crepúsculo do dia anterior.
Durante o resto da jornada, o Mestre da Galileia recebeu uma
infinidade de amigos e visitantes, com todos conversando.
Pelo anoitecer, Jesus regressou a casa de Lázaro e ali, na companhia
dos seus íntimos e da família do ressuscitado, recompôs as forças,
mostrando-se de um humor excelente.
Lázaro pediu-me que os acompanhasse. Os homens tomaram lugar
em volta da grande mesa rectangular da casa-de-jantar e as mulheres -
dirigidas por Marta – começaram a servir. Num primeiro momento, fiquei
prudentemente junto da chaminé. Mas Lázaro insistiu e vi-me obrigado a
partilhar com eles as abundantes iguarias: caça, feijões, legumes, frutos
secos e vinho. Surpreendeu-me comprovar que em nenhuma das comidas
se bebia água. Esta era substituída habitualmente pelo vinho.
Antes de começar a tardìa ceia, o Mestre e as catorze ou quinze
pessoas que compartilhavam os alimentos puseram-se de pé, entoando um
breve cântico. Fiz o mesmo, embora ficasse logicamente em silêncio. Ao
terminar, Marta – numa das apressadas idas e vindas – explicou-me que
aquele hino, intitulado Ouve, Israel, era na realidade uma oração.
Surpreendeu-me ver como o Rabi, apesar das suas públicas e
acentuadas diferenças com os doutores da Lei, respeitava os velhos
costumes do Seu povo. Não sei se mencionei que o Mestre fizera gala,
durante toda a tarde, de um contagioso sentido de humor, rindo e
gracejando por qualquer coisa. Aquilo ia ser – pelo menos nos dias que
antecederam sexta-feira, 6 de Abril – outro dos aspectos com que Ele
me surpreendeu. Que longe estava daquela imagem grave, atormentada e
distante que se deduz ao ler muitos dos livros do século xx!... Jesus de
Nazaré era uma mistura de criança e de general; de ingénuo pastor e de
consciencioso analista; de homem que vive o dia-a-dia e de prudente
conselheiro. Mas, principalmente, notava-se que era feliz. Muito mais
alegre e despreocupado que os seus discípulos e amigos, visivelmente
assustados pelas ameaças do sumo sacerdote. A seguir, Jesus – que
presidia à mesa, junto de Lázaro – tomou a Seu cargo uma fogaça de pão
e, segundo o Seu costume, partiu-a e distribuiu pelos comensais.
Mal tínhamos começado a comer quando, de repente, o Mestre se
dirigiu a um dos homens do grupo. Ao tratá-lo pelo seu nome, o coração
deu-me um baque. Era Judas Iscariotes! O discípulo levantou-se
lentamente e, aproximando-se do Rabi, entregou-lhe qualquer coisa.
Depois voltou ao seu lugar.
Fiquei como que hipnotizado, contemplando aquele indivíduo fraco e
esgrouviado, com um pouco mais de um metro e setenta de estatura e
cabeça pequena. O nariz aquilino destacava-se numa pele pálida, quase
macilenta, dando-lhe o clássico perfil de pássaro que eu estudara na
classificação tipológica de Ernest Kretschmer. (O grande psiquiatra terse-
ia sentido muito satisfeito ao saber que a sua definição do tipo
leptossómico coincidia plenamente, neste caso, com o temperamento
esquizotímico de Judas: sério, introvertido, reservado, pouco sociável e
até tortuoso. A verdade é que, conforme fui conhecendo o carácter
deste homem, me apercebi de que se tratava na realidade de um grande
tímido, que não tivera oportunidade de desenvolver o seu imenso
potencial afectivo.) O cabelo negro, fino e abundante contrastava com
um rosto praticamente imberbe. Ao aproximar-se de Jesus notei que a
sua túnica, em vez do simples cordão ou cinto, estava presa na cintura
com um hagorah ou faixa escura, de onde retirara aquela pequena bolsa
de couro. Segundo parecia, pelo que pude ir observando, a mencionada
faixa servia, principalmente, para guardar dinheiro ou pequenos
objectos, além das armas. Judas trazia uma pequena espada, presa na
ilharga direita. Naqueles instantes, no entanto, não me apercebi de um
facto singular: tal como Iscariotes, outros discípulos também escondiam
espadas por baixo dos seus mantos e hagorahs.
O Rabi pediu às irmãs de Lázaro que se aproximassem dEle.
Maria foi a primeira a deixar os afazeres a que estava entregue
junto do fogão, colocando-se num dos cantos da mesa, perto do Galileu.
Dali a pouco entrava Marta, enxugando as mãos no avental. A luz de uma
das duas grandes candeias ou lanternas portáteis que tinham sido
colocadas em cima da mesa punha em evidência o atraente perfil de
Maria. Uma espessa cabeleira, negra e cuidadosamente penteada, caíalhe
pelas costas, quase até à cintura. Na testa, Maria, prendendo parte
do cabelo, usava uma faixa azul-celeste que sobressaía na sua pele
azeitonada. Tinha as feições pequenas e delicadas, próprias dos seus
dezasseis ou dezassete anos. Nem uma só vez tinha conseguido falar
com ela e, não obstante, os seus enormes olhos negros revelavam um
coração singularmente sensível. Jesus pôs a bolsinha nas mãos de Maria
e, dirigindo-se a ambas, pediu-lhes que aceitassem aquela pequena
oferta. Enquanto Maria se ruborizava, Marta, invadida pela curiosidade,
arrebatou o presente das mãos de sua irmã abrindo-o com rapidez. Do
meu lugar mal consegui ver uns grânulos. Soube depois que se tratava de
sementes de bálsamo, compradas pelo próprio Rabi na sua passagem por
Jericó.
Ante o regozijo geral, Maria – sempre em silêncio – aproximou-se de
Jesus dando-lhe dois sonoros beijos na cara.
Pouco a pouco, no entanto, o tom alegre e despreocupado da
refeição foi decaindo, por obra e graça de alguns dos homens de Cristo.
Saltava aos olhos que estavam seriamente preocupados com a direcção
que iam tomar os próximos passos do seu Mestre e que eles, não
oferecia qualquer dúvida, ignoravam totalmente. Não tardou em vir à
tona a questão da ordem de captura de Jesus por parte do sumo
sacerdote, e as medidas que deviam ser adoptadas para salvaguardar a
segurança do Rabi, em primeiro lugar, e do grupo, ao mesmo tempo.
Um dos mais fogosos e radicais era um discípulo de barba grisalha,
bigode rapado, calvo, praticamente, e de olhos claros. A cabeça redonda
destacava-se de um pescoço grosso.
Aquele homem de cara toda enrugada – considerei que era um dos
mais idosos (talvez andasse pelos quarenta ou quarenta e cinco anos) –
não era partidário da entrada em Jerusalém. Temia, logicamente, pela
vida do Rabi e procurou, por todos os meios ao seu alcance, convencer o
grupo do perigo de tal acção.
Simão Pedro pertencia também ao tipo pícnico, que Kretschmer cita:
cara larga, branca e arredondada. O seu rosto, visto de frente, lembrava
um escudo. A testa era ampla, conservando algum cabelo nas zonas
temporais.
No entanto, Pedro não apresentava uma excessiva obesidade. A sua
caixa torácica, bem como ombros e braços, era forte e musculosa,
própria de uma vida consagrada ao rude trabalho da pesca.
No que realmente coincidia com a classificação de Kretschmer era
no seu temperamento cicLotímico: aberto espontâneo, de amizade rápida
e com grandes oscilações no seu estado de humor. Pela sua grande
capacidade de sintonização afectiva era fácil de contagiar, tanto pela
alegria como pela tristeza.
E tive muitas probabilidades para o confirmar. Em suma, Pedro era
muito sociável e bem aceite pelo resto do grupo. (N. Do M.
Jesus assistiu impassível e sério a toda a discussão.
Deixava falar uns e outros, sem pronunciar palavra. Até que, num
momento mais tenso da controvérsia, o Mestre deixou ouvir a Sua voz
grave. E, dirigindo-se ao apóstolo de olhos claros, sentenciou.
- Pedro, ainda não entendeste que nenhum profeta é recebido pelo
seu povo e nenhum médico cura aqueles que o conhecem?...
Depois, fixando aqueles olhos de falcão nos meus, acrescentou:
- Se a carne foi feita por causa do espírito é uma maravilha. Se o
espírito foi feito por causa do corpo, é a maravilha das maravilhas.
Porém, Eu maravilho-Me com isto: como esta grande riqueza se instalou
nesta pobreza? Um silêncio denso pairou na sala. E o Mestre,
levantando-se, retirou-se para descansar. Naquela noite, e nas
seguintes, os discípulos – temerosos de tudo e do leproso – montaram
guarda, aos pares, às portas da casa de Simão, de todos Tanto Judas
Iscariotes como Pedro, seu irmão André Simão, conhecido pelo Zelota e
os surpreendentes irmãos gémeos Judas e Tiago de Alfeu iam armados
com espadas curtas praticamente iguais aos gládius dos legionários
romanos: Hispânicus, ou espada espanhola, como a definiu Políbio.
Eram armas de sessenta a setenta centímetros de comprimento, de
folha larga e duplo fio, com uma ponta que as tornava temíveis.
Os discípulos de Jesus procuravam escondê-las por baixo dos
mantos
- geralmente na ilharga direita – e dentro de uma bainha de
madeira. Jesus não ignorava que alguns dos Seus mais próximos adeptos
traziam armas. No entanto, salvo no triste momento da Sua prisão, na
noite de sexta-feira, na herdade de Getsémani, nunca as mencionou ou
censurou.
1 DE ABRIL, SÁBADO
Diferindo dos restantes dias, aquele amanhecer de sábado não foi
despertado pelo barulho da moenda do grão. A aldeia parecia
adormecida, estranhamente silenciosa. Os Hebreus – amos, servos e
mesmo os seus animais de carga – paralisavam praticamente a vida a
partir daquilo que eles denominavam a vigilia do sábado quer dizer, desde
o crepúsculo de sexta-feira. A Lei proibia todos os trabalhos mais
pesados as grandes deslocações, fazer amor, tirar água dos poços e até
acender o lume... Aquelas pesadas normas de origem religiosa
transtornam por completo o ritmo diário da vida social dos Judeus. E o
que em princípio devia ser um motivo de alegria e repouso acabou por
deformar-se, convertendo-se num emaranhado código de disposições, na
sua maioria absurdas e ridículas.
Lázaro e sua familia seguindo o exemplo de Jesus, adoptavam uma
posição muito mais liberal.
Naquela mesma tarde teria oportunidade para verificar os muitos
desgostos e dores de cabeça que tinham em consequência da sincera
observância da doutrina que o Rabi da Galileia vinha pregando.
Apesar de tudo, fiquei francamente surpreendido ao ver – desde as
primeiras horas da manhã – um incessante movimento de gente que,
proveniente de Jerusalém e do acampamento erguido junto das suas
muralhas, pretendia saudar Lázaro e o homem que fora capaz de
desafiar o grande Sinédrio. Segundo as minhas informações, um dos
preceitos sabáticos especificava que o homem da casa devia dar três
ordens quando começava a escurecer, quer dizer, na recolha do dízimo.
Por último o chefe tinha de ter separado o dízimo. Haveis disposto o
erub.
A família devia ordenar que se preparasse a candeia.
Pois bem, se a distância de Jerusalém a Betânia era de uns quinze
estádios (quase três quilómetros), como é que aqueles judeus não
respeitavam uma das normas mais severas de sábado: caminhar mais dos
dois mil côvados fixados pela Lei? Lázaro, com um sorriso malicioso veio
explicar-me que, também naqueles tempos, feita a lei, feita a fraude...
Os Israelitas, para suavizarem esta disposição dos dois mil côvados
tinham inventado o erub. Se uma pessoa, por exemplo, colocava na
véspera de sábado (sexta-feira) alimentos para duas refeições.
A minha condição de estrangeiro e gentio proporcionou-me, por fim,
uma oportunidade para ajudar a familia que me acolhera debaixo do seu
tecto. Até à hora terceira (nove da manhã), e depois de vencer a
resistência de Marta, ocupei-me do transporte da água, bem como de
alimentar o fogo da chaleira e recolher os ovos da capoeira, e de limpar
e pôr em funcionamento um engenhoso artefacto a que chamavam antiki,
e que não era mais que um aquecedor metálico, com um recipiente para
as brasas. O descanso sabático proibia que dele se tirassem as cinzas e,
naturalmente, voltar a enchê-lo. Aquele utensílio, munido de um tubo
interior, em contacto com o fogo, era de grande utilidade para aquecer
água. Por não ser judeu, eu estava livre daquelas normas, e isto permitiume
compensar, em parte, a gentileza e a hospitalidade dos meus amigos.
Mas o meu coração ardia no desejo de ir ao encontro de Jesus.
Marta, com o seu finíssimo instinto, sugeriu-me que largasse tudo e
fosse à procura do Mestre. Pouco antes, numa das suas visitas à casa do
seu vizinho, Simão, a pretexto da preparação do festim que os
habitantes de Betfagé e Betânia queriam oferecer ao Rabi, tivera
oportunidade de O ver no jardim.
Quando me dispunha para sair de casa, a senhora recordou-me que
também eu fora convidado e que, se assim o considerasse, ela mesma me
levaria até ao lugar que me fora atribuído. Eu sabia muito bem que
naquela ceia ia dar-se um acontecimento especial. O que eu não podia
imaginar naquela altura, era a gravíssima repercussão que iria ter no
Mestre...
A casa de Simão, o homem mais rico e importante de Betânia desde
a morte do pai de Lázaro, erguia-se a pouca distância e também no
aglomerado oriental da povoação. A única diferença substancial com a
casa do meu amigo era o frondoso jardim – com muitos ciprestes,
alfarrobeiras e palmeiras -, perfeitamente rodeado por um muro de
pedra de dois metros de altura. Em Jerusalém, com excepção dos
roseirais, os jardins eram proibidos. Aquela norma, em compensação não
era obrigatória para as restantes cidades. Simão fervoroso crente e
adepto de Cristo, era, além disso, um apaixonado das plantas, passando
boa parte da já avançada velhice entre as suas rosas, gálbanos,
luminosos e perfumados estoraques de flores brancas, estevas e os
curiosos tragacantos, de cujos ramos e troncos flui uma apreciada goma
esbranquiçada, altamente medicinal. Às portas da herdade amontoava-se
uma silenciosa multidão, à espera de poder ver o Mestre. Como se se
tratasse de um estadista do século xx, alguns discípulos de Jesus
estavam a postos junto do portão, com as espadas escondidas pela faixa
do manto, controlando entradas e saídas dos amigos, familiares e criados
da casa: os únicos autorizados a transpor o limiar.
Não tive o menor problema para passar pelos homens do galileu. A
minha amizade por Lázaro e o oportuno gesto de Jesus, saudando-me na
tarde do dia anterior, tinham feito com que eu ganhasse as simpatias e a
confiança dos apóstolos. Ao ver-me, um dos discípulos – Judas de
Santiago, gémeo do outro Alfeu – perguntou-me se procurava alguém em
especial.
Disse-lhe que procurava Jesus e ofereceu-se encantado, para me
acompanhar. Ao passar a porta principal encontrei-me ante o cuidado e
espaçoso jardim. Um caminho estreito, pavimentado com pedras brancas
(calcário, sem dúvida), levou-nos directamente ao terreiro, aberto
mesmo ao pé da escadaria de mármore que dava acesso à casa.
Não foi preciso que Judas me indicasse ao seu mestre. O gigante
encontrava-se rodeado por uma dezena de crianças e brincava com elas!
Aquele espectáculo fascinou-me de tal forma que, em silêncio, quase
nas pontas dos pés, rodeei o pequeno terreiro, sentando-me nos
primeiros degraus da escadaria. E ali fiquei, absorto, divertindo-me
como os pequenitos.
Jesus desembaraçara-se do manto. A sua esplêndida túnica branca
aparecia desta vez cingida por um cordão. Entre a algaraviada dos
garotos, destacava-se por vezes o seu riso, límpido e aberto como aquela
luminosa manhã. Na verdade, o que mais me comoveu foi verificar como
aquele homem feito e forte - capaz de desafiar os sumos sacerdotes ou
de ressuscitar os mortos -, saltava, corria ou rolava pelo chão, entregue
por completo às exigências daquela gente miúda.
Algumas mulheres apareciam dissimuladamente no átrio,
espreitando a cena e escapando depois entre risos mal contidos.
Uma daquelas brincadeiras era especialmente curiosa. O Galileu
punha-se de costas para o grupo de crianças e atirava um pauzinho para
trás, de modo a cair o mais perto possível da criançada. Os rapazes
disputavam a posse do pau até que um deles – geralmente o que mais
saltava – o agarrava. Nesse instante, tanto Jesus como as crianças
corriam em todas as direcções enquanto o proprietário do testemunho
se esforçava por perseguir e tocar com o pau em qualquer dos jogadores.
Não era por acaso que todas as crianças queriam caçar o Rabi.
Porém, este, longe de dar facilidades, punha-os loucos, esquivandose
e enganando-os entre as árvores e os arbustos.
Não sei quanto tempo durou aquilo. Talvez uma ou duas horas...
Subitamente, assaltou-me um pressentimento. Ou muito me enganava ou
iam ser aquelas as últimas brincadeiras de Jesus de Nazaré. De súbito,
quando mais pungente era aquela inexplicável melancolia, o Mestre
interrompeu o jogo.
Retirou dos olhos a venda de pano com que brincava à cabra-cega e
acariciou as crianças, dando por terminado o divertimento. Embora
Jesus tivesse tido múltiplas oportunidades de me ver ali, sentado foi
nesse momento que dirigiu o Seu olhar para mim. As crianças
espalharam-se pelo jardim e o Mestre encaminhou-se para a escadaria.
Quis levantar-me, porém, o Rabi estendeu a mão, indicando-me que não
me movesse.
Sentou-se a meu lado, com a respiração ainda agitada e a testa
encharcada de suor. - Jasão amigo, que se passa contigo?
Aquela descoberta voltou a mergulhar-me em confusão. O Mestre,
sem sequer me olhar e sem esperar por uma resposta – que tipo de
resposta lhe poderia dar? - continuou, num tom de cumplicidade que logo
adivinhei. -... Estás aqui para dar testemunho e não deves desfalecer. -
Então sabes quem sou...
Jesus sorriu, e pondo-me o seu comprido braço nos ombros, apontou
a porta do jardim, onde ainda os seus discípulos montavam guarda.
- Passará muito tempo até que eles e as gerações vindouras
compreendam quem sou e porque fui enviado por Meu Pai... Tu, por vires
de onde vens, estás mais perto do que eles da Verdade.
- Não compreendo, Mestre, por que razão os teus homens andam
armados. Bem poucos acreditariam... no meu tempo.
- Os que estão comigo – respondeu com um timbre de tristeza – não
me entenderam.
- Senhor, há tantas coisas de que desejaria falar-te!...
- Ainda temos tempo. A cada dia o seu trabalho.
Era irritante. Tanto tempo esperando por aquela oportunidade e
agora, ali tão perto dEle, não sabia que dizer nem que perguntar... -
Perguntaste-me antes o que se passava comigo
- comentei, intrigado. - Como te apercebeste? - Levanta a pedra e lá
Me encontrarás. Corta a madeira e Eu estou lá. Onde há solidão, também
Eu estou...
Sabes, toda a minha vida me senti só.
Jesus replicou de modo fulminante:
- Eu sou a luz que todos ilumina. Há muitos que estão junto da porta
mas, em verdade te digo, que só os solitários entrarão na câmara nupcial.
- Tranquiliza-me saber que também os que duvidam têm um canto no
Teu coração.
O gigante sorriu pela segunda vez. Porém, desta vez os seus olhos
brilhavam como bronze polido. - O mundo não é digno daquele que a si
mesmo se encontra... - Mil vezes para mim tenho feito a mesma
pergunta: porque estamos aqui?
- O mundo é uma ponte. Passai por ela, mas não vos instaleis nela. -
Mas – insisti -, não respondeste à minha pergunta...
- Sim, Jasão, respondi. Este mundo é como a antecâmara do Reino
de Meu Pai. Prepara-te na antecâmara, a fim de que possas ser admitido
na sala do banquete. Sê caminhante que não se detém!
- Mas, Senhor, conheço muitos que se instalaram na sua sabedoria e
dizem possuir a Verdade...
- Diz-me uma coisa, Jasão. Onde cresce a semente?
- Na terra.
- Em verdade te digo que a verdadeira sabedoria só pode nascer no
coração que chegou a ser como o pó... O sábio e o ancião que não
hesitarem em perguntar a um menino de sete dias pelo lugar da Vida,
viverão. Porque muitos primeiros serão últimos e virão a ser um só... - Se
os que vos guiam vos dizem: Olhai, o Reino está no céu; então os pássaros
do céu vos precederam. Se vos dizem que está no mar, então os peixes
do mar vos precederam. Porém, eu digo-te que o Reino de Meu Pai está
dentro e fora de vós. Quando vos conhecerdes sereis conhecidos e
sabereis que sois os filhos do Pai vivente. Mas se não vos conhecerdes,
estareis na pobreza e sereis a pobreza.
O Rabi deve ter notado a minha confusão. E acrescentou:
- Alguma vez escutaste o teu próprio coração? Concordei, sem
saber onde queria chegar.
- O segredo para possuir a Verdade está apenas em Meu Pai. E em
verdade te digo que meu Pai sempre esteve no teu coração.
Só tens de olhar para dentro... Bem-aventurado o que procura,
embora morra acreditando que nunca encontrou. E ditoso aquele que, à
força de procurar, encontra. Quando encontra, perturbar-se-á. E,
tendo-se perturbado, maravilhar-se-á e reinará em tudo. - Senhor, eu
olho à minha volta e maravilho-me e entristeço-me ao mesmo tempo...
- Eu garanto-te, Jasão, que todo aquele que sabe ver o que tem
diante dos olhos receberá a revelação do oculto. Nada há oculto que não
venha a ser revelado.
A minha timidez inicial foi-se dissipando. O calor e a cordialidade
daquele Homem acabavam por destruir as muralhas mais inexpugnáveis.
Mas a nossa conversa viu-se subitamente interrompida por alguns dos
seus discípulos. A multidão que se apinhava às portas da casa de Simão
exigia o Rabi e os homens do Nazareno sentiam-se impotentes para a
conterem.
Quando o Mestre se afastou, jurei para comigo que procuraria
novas oportunidades de conversas com Ele e Lhe expor as minhas
intermináveis dúvidas.
Segui-o. A multidão que vira às portas do jardim da casa de Simão
agitou-se ao ver o Mestre. Mas Jesus não passou do portão. Ali, ladeado
pelos Seus discípulos, saudou os peregrinos. Porém estes, informados do
milagre que fizera com Lázaro, não se contentaram em vê-Lo e
começaram a pedir-Lhe um sinal. Eu não saía do meu assombro. A ajuizar
pelos seus gritos, aqueles hebreus – galileus na sua maioria – não
pretendiam escutar o Nazareno. O que realmente lhes interessava era
assistir a outro prodígio...
Jesus, com evidentes sinais de desilusão, levantou os braços e fezse
silêncio. Um silêncio de expectativa. E muitos dos ali apinhados
começaram a sentar-se no chão, convencidos de que a sua longa
caminhada não seria estéril e que depressa contemplariam outro
espectáculo. Mas o Mestre, em tom enérgico, disse-lhes:
- Néscios!... Eu apareci no meio do mundo e em carne fui visto por
ele. E encontrei todos os homens ébrios, e entre eles não encontrei
nenhum sedento... O meu espírito ficou dorido com os filhos dos homens,
porque são cegos de coração e não vêem!
E antes que algum dos presentes pudesse reagir deu meia volta,
encaminhando-Se com passo rápido para a mansão do Seu anfitrião.
Sinceramente, alegrei-me. Aquela turba, sedenta de emoções e
prodígios, não merecia outra coisa. Pouco a pouco, fui-me apercebendo
de que as multidões muito pouco tinham assimilado da mensagem daquele
Homem. Nem sequer os mais chegados – como verificaria no dia seguinte,
pela entrada triunfal em Jerusalém – tinham distinguido, naquela altura
do ensinamento de Cristo, de que reino falava o Mestre. Começava a
compreender o verdadeiro alcance daquelas frases do Rabi, pronunciadas
pouco antes, nas escadas: Os que estão comigo não me entenderam...
Pelas três da tarde, na companhia de Lázaro e de suas irmãs,
entrava pela primeira vez no pátio com arcadas da casa de Simão. O
ancião ia recebendo no centro do recinto aquela larga meia centena de
convidados. Todos – conhecidos ou não do dono da casa – eram saudados
com o ósculo, ou beijo da paz.
Imediatamente, os familiares e criados do antigo leproso
acompanhavam os convidados até aos lugares que lhes eram atribuídos,
em redor de uma mesa muito baixa e em forma de U.
Diferindo do pátio da casa de Lázaro, o de Simão estava coberto na
sua totalidade por um toldo ou lona, preso por sogas aos capitéis das
colunas que rodeavam o formoso local.
A cisterna central fora tapada com tábuas, de tal modo que no
centro do U ficava um espaço mais que suficiente para a movimentação
dos criados. Ao chegar em frente de Simão, Lázaro encarregou-se de me
apresentar ao ancião. Ao beijá-lo verifiquei como a sua face direita
conservava ainda as profundas cicatrizes da sua doença. Parte do olho, e
a zona correspondente do lábio superior estavam rasgadas e
deformadas. A barba branca e abundante não conseguia ocultar a marca
do temível mal. A mão esquerda ficara mutilada nas últimas falanges dos
três dedos do meio.
No entanto, o venerável ancião parecia ter esquecido aqueles anos
difíceis e mostrava-se agora feliz e satisfeito, ostentando as melhores
galas: uma túnica de linho, tingida de púrpura, e um manto de brilhante
seda, com franjas azuis e escarlates.
Quando Lázaro e eu fomos encaminhados para os nossos lugares à
mesa, verifiquei com alívio que o ressuscitado ia ficar a meu lado.
Instintivamente, olhei para Marta, que permanecia de pé junto das
restantes mulheres, e me sorriu maliciosamente.
Segundo o costume, tive de reclinar-me sobre a minha ilharga
direita. Embora, habitualmente, os Judeus comessem sentados em
cadeiras ou tamboretes, nos grandes momentos – e aquela era uma festa
em que ambas as aldeias, Betânia e Betfagé, prestavam uma sincera
homenagem ao Mestre – tinham adoptado a tradição helenística de
almoçar reclinados sobre cómodas almofadas e esteiras. A única
excepção, neste caso, foi Jesus.
Como convidado de honra, ocupava o centro do U, tendo sido
preparado uma espécie de divã baixo, que mal sobressaía da mesa.
Ainda que todos os convidados tivessem recebido na manhã de
sexta-feira o respectivo convite com os nomes dos restantes comensais,
de acordo com uma arraigada tradição, o dono da casa enviara naquela
mesma manhã de sábado outros tantos mensageiros aos domicílios dos
seus amigos, recordando-lhes o lugar e a hora do banquete.
Respeitosamente, esquecendo mesmo a grande amizade que unia as duas
famílias, Lázaro tinha esperado esta segunda e última comunicação do
mensageiro. Só nesse momento saímos de casa. Ao subir as escadarias da
casa de Simão atraiu-me a atenção uma tela branca, pendurada nas
portas do átrio. Lázaro explicou-me que aquele pano dava a entender que
ainda era tempo de entrar na ceia. O aviso só era retirado depois de ter
sido servido o terceiro prato. Jesus e os Seus discípulos – os doze –
estavam já no pátio quando o meu amigo e eu fomos recebidos pelo
anfitrião. Pelo que pude apreciar, o Rabi parecia ter esquecido o
desagradável encontro com a multidão que Lhe pedira um milagre, e ria
abertamente, demonstrando um humor invejável. Em contrapartida, os
Seus homens, apesar de terem prescindido das espadas, não reflectiam
demasiada alegria. Senti-os nervosos e tensos. Em seguida, compreendi a
razão. Entre os convidados os Israelitas desembaraçavam-se melhor com
a mão esquerda do que com a direita.
Encontravam-se quatro ou cinco sacerdotes de uma das
comunidades de fariseus: mortais inimigos do Mestre. Às portas
permaneciam alguns guardas do Templo – levitas, na sua maioria - que
tinham acorrido a Betânia com a suspeitíssima missão de escoltar os
altos dignitários do sacerdócio de Jerusalém.
Lázaro comentou-me, em voz baixa, que havia algumas dúvidas
quanto às verdadeiras finalidades daqueles fariseus. Era muito possível
que – cumprindo ordens de Caifás -, naquele mesmo entardecer, uma vez
passado o sábado, os homens do Sinédrio prendessem Jesus. Mas os
separados ou os santos – como também eram conhecidos os fariseus –
não fizeram gesto algum que pudesse alertar os adeptos de Cristo. Pelo
contrário: embora em momento algum se aproximassem do grupo em que
dialogava Jesus, depois de arregaçarem as amplas mangas das túnicas
deixaram que as mulheres procedessem à obrigatória lavagem de mãos e
pés, reclinando-se nos seus lugares com vivos sinais de satisfação.
Suponho que a sua cordialidade podia obedecer aos magníficos alimentos
que já tinham começado a circular pela mesa. Os criados de Simão
tinham disposto uma espécie de grandes malgas de fina cerâmica (hoje
conhecida como terra sigillata), compactas e de cuidada forma,
fabricadas de barro vermelho e – segundo me disse Lázaro –
provenientes de Itália.
Ao levantar a minha malga pude ver na sua base o selo do
fabricante: um tal Camurius, conhecido oleiro de Arezzo.
(Decorei aquele nome e, na tarde de segunda-feira, quando, por fim,
pude regressar ao módulo, o Pai Natal confirmou que o citado artesão
italiano vivera e trabalhara em tempos de Tibério e Cláudio, desde os
anos 14 e 54 depois de Cristo.) Simão, seguindo os costumes, contratara
um cozinheiro de Jerusalém. Curiosamente, se as coisas saíam mal e se
todos se mostravam desgostosos com a ementa, o chefe de cozinha
devia reparar a afronta, pagando do seu bolso os gastos, numa proporção
que sempre dependia da categoria social do anfitrião e dos seus
comensais. Não foi este o caso. A verdade é que tudo se passou de modo
estranho. (Pelo menos para os Hebreus.) Depois do caldo, à base de
verduras e ervas aromáticas, único prato em que se utilizou a colher, os
convidados saborearam peixe cozido e cordeiro assado, habilmente
condimentados à base de cebolas e alhos. Servidos em bandejas de
bronze e prata. O quarto ou quinto prato consistiu em frutos secos,
especialmente passas de uva, tâmaras e mel silvestre. Tudo isto,
naturalmente, generosa-mente regado – do princípio ao fim - com um
vinho do Hébron, servido em altos copos de cristal primorosamente
facetados. Nas costas de cada comensal fora colocada uma bacia de
metal, com o fim de nela poderem lavar as mãos. (O costume judaico
estabelecia que os alimentos deviam ser comidos com os dedos.)
Ao chegar às sobremesas, o alvoroço geral aumentou sensivelmente.
Alguns dos criados e músicos contratados por Simão começaram a
tanger os seus instrumentos – fundamentalmente flautas e cítaras – e as
mulheres, que tinham permanecido de pé ou sentadas num grupo à parte,
dependentes dos convidados, uniram-se à música, batendo palmas por
cima das cabeças e acompanhando o ritmo com o corpo.
Jesus – que tinha comido com grande apetite – bebeu o seu terceiro
copo de vinho e sorriu ao grupo, em que se destacava Maria. A irmã mais
nova de Lázaro, como as suas outras companheiras, tinha modificado a
sua indumentária comum e vestia uma atraente túnica, tingida com a
célebre púrpura de Tiro e Sídon. (As nossas informações apontavam para
o facto de o célebre molusco das praias da Fenícia – o murex – ser a
matéria-prima da qual se obtinha a púrpura. Este gasterópode segrega
uma tinta que, em contacto com o ar, fica vermelha-escura. Os Fenícios
descobriram-no e souberam comercializá-lo.) Maria – tal como
ordenavam as normas sabáticas – prescindira da sua habitual faixa na
testa e deixava flutuar a negra e longa cabeleira.
Naquele momento, enquanto os criados retiravam as bandejas, dava
começo, na realidade, o que nós conhecemos por sobremesa.
Os comensais, eufóricos pelos vapores do vinho, embrenhavam-se
nas mais diversas e intermináveis polémicas. Jesus e Simão, no centro da
mesa, dialogavam sobre o mítico Josué e de como foram derrubadas as
muralhas de Jericó. Os discípulos, por seu lado, permaneciam
estranhamente sóbrios e calados, atentos apenas ao grupo dos fariseus,
que não paravam de beber copo atrás de copo. Para minha surpresa,
alguns dos comensais começaram a arrotar sem o menor pudor. Aquilo
converteu-se de repente em algo de colectivo. Ninguém parecia dar
excessiva importância ao facto, com excepção do anfitrião e de mim.
Mas as razões de Simão – que correspondia a cada um dos grosseiros
gestos com uma leve inclinação de cabeça – obedeciam a outra escala de
valores. Aqueles arrotos vinham demonstrar publicamente a satisfação
de cada um dos convidados pela esplêndida comida e tratamento que lhe
fora dado.
Naturalmente, tive de me esforçar por arrotar, agradecendo assim
ao meu novo amigo a sua sabedoria e delicadeza gastronómicas. Depois
de serem servidas as sobremesas, várias donzelas foram passando junto
de cada um dos comensais, oferecendo umas minúsculas bolinhas ou
cápsulas transparentes e brancas-amareladas. Ante a minha dúvida,
Lázaro animou-me a tirar uma ou duas daquelas lágrimas e a introduzi-las
na boca.
Tratava-se de uma espécie de goma de mascar, muito refrescante e
aromática. Segundo o meu amigo, eram extraídas dos lentiscos, que eram
aos milhares por toda a Palestina. Para os Hebreus, aquelas bolinhas
reforçavam os dentes e a garganta, proporcionando, além disso, um
hálito mais fresco e agradável.
Nos dias seguintes – e graças às lágrimas de lentisco que Lázaro me
proporcionaria – a minha falta de limpeza dentária viu-se notavelmente
aliviada. Mas, ainda que tudo parecesse decorrer dentro da mais sã e
intensa alegria, não tardaria a rebentar o escândalo...
Creio que todos, ou quase todos os presentes – distraídos com a
música e a agradável tertúlia – tardaram uns minutos em reparar naquela
donzela que, saída às escondidas do grupo das mulheres, se ajoelhara nas
costas de Jesus. Era Maria.
Dentro de mim, uma como que chicotada me avisou. Estava prestes a
assistir à cena da unção. Sem o poder evitar, pus-me de pé e ante a
desorientação de Lázaro, insinuei-me por detrás da mesa, até me colocar
num dos cantos do U, a poucos metros dos convidados de honra.
Progressivamente, os comensais foram ficando em silêncio, atónitos
perante o que estava acontecendo. A irmã mais nova, com o seu habitual
mutismo, tinha aberto uma garrafa, de uns trinta centímetros de altura
e de forma afuselada. Parecia feita de um material extremamente
translúcido (soube depois que se tratava de alabastro oriental). E ante o
olhar complacente de Jesus, a adolescente verteu boa parte do conteúdo
no cabelo do Mestre. Um líquido cor de conhaque foi impregnando lenta e
suavemente a cabeleira acastanhada do Rabi, enquanto um penetrante
aroma foi enchendo o recinto.
Maria fechou o recipiente e, depois de o colocar junto das pernas,
foi espalhando o perfume entre os sedosos cabelos do Galileu. Aquela
unção foi feita com tanta simplicidade e amor que os olhos do gigante se
encheram de lágrimas.
Uma vez concluída a operação, Maria voltou a abrir a jarra,
despejando a essência de nardo sobre os pés nus do Mestre.
Espalhou o líquido ao longo dos artelhos, calcanhares e dedos,
proporcionando a Jesus suaves e prolongadas massagens até o líquido
ficar perfeitamente espalhado. Por aquela altura da unção, alguns dos
comensais tinham começado a murmurar entre si, lamentando aquele
esbanjamento. Num dos extremos da mesa, alguns dos discípulos – entre
os quais se destacava Judas Iscariotes, pelos seus exuberantes gestos e
palavras em voz altaapoiavam com os seus comentários os convidados que
se mostravam abertamente aborrecidos com a atitude da jovem.
Nem Maria nem Jesus se perturbaram com aqueles sussurros.
Pelo contrário: a belíssima irmã de Lázaro – que tinha adornado as
unhas das mãos e dos pés com um pó vermelho-amarelado (2) – lançou a
cabeça para trás, e passando as mãos pela nuca, inclinou-se para os pés
do Rabi, lançando para a frente a sua espessa cabeleira. Depois, sem
pressa, foi enxugando com o cabelo os pés do Mestre, até ficarem secos
e brilhantes. Os comentários, infelizmente, tinham-se tornado azedos.
Judas, com manifesta indignação, chegou junto de André - irmão de
Pedro – perguntando-lhe de forma que todos puderam ouvir: - Porque não
se vendeu este perfume e se entregou o dinheiro para * Naquela noite,
uma vez em casa de Lázaro, Maria mostrou-me o recipiente: era,
efectivamente, uma espécie de pequena jarra, belamente trabalhada,
com uma capacidade superior a trezentos gramas. (Um pouco mais de
uma tradicional garrafa de refrigerante.) Roguei-lhe que me permitisse
molhar um pequeno lenço no que restava do perfume e, dali a poucos dias,
na minha obrigatória entrada no módulo – com o fim de preparar a
segunda fase da exploração – os sistemas de bordo analisaram a
essência, confirmando a sua origem como uma planta herbácea, cultivada
em jardins, da familia das valerianáceas.
Apresentava-se (hoje quase só é trabalhada como essência pura) em
fragmentos de raiz, curtos, grossos, como o dedo mínimo e de cor
cinzento-escuro. Terminam num molho de fibras avermelhadas, em forma
de espiga. É de cheiro forte e agradável e de sabor amargo e aromático.
Também é conhecido como nardo do Índico, do Ganges Estaquide e
Espicanardo. A sua densidade era ligeiramente superior ao normal. (N.
Do M.) z Os Israelitas fabricavam este cosmético com a casca e folhas
do arbusto chamado junça” (henna para os Árabes). (N. Do M.)
alimentar os pobres?... Deves falar ao Mestre para que a repreenda
por esta perda...
Maria, assustada com o cariz que os acontecimentos tinham ganho,
tentou levantar-se, mas Jesus deteve-a. E, pondo a mão esquerda na
cabeça da jovem, dirigiu-se a quem ali estava, com voz serena mas firme:
- Deixai-a em paz, todos vós!...
Porque a molestais por isto, se ela fez o que lhe saía do coração? A
vós, que murmurais e dizeis que este unguento devia ter sido vendido e o
dinheiro dado aos pobres, deixai-Me dizer-vos que sempre tereis os
pobres convosco para que possais assistir-lhes a qualquer momento que
bem vos pareça...
Porém, eu nem sempre estarei convosco. Em breve irei para junto do
Meu Pai! Depois, assestando Aquele olhar – a que nem parecia escapar o
ondular das chamas das candeias – nos olhos de Judas Iscariotes,
continuou num timbre muito mais enérgico: - Esta mulher guardou muito
tempo este unguento para o Meu Corpo, no Seu enterro. E agora, que lhe
pareceu bem fazer esta unção em antecipação à minha morte, não lhe
deve ser negado tal desejo. Ao fazer isto, Maria a todos vós censurou,
pois com este acto evidencia fé no que lhe disse sobre a Minha morte e a
ascensão até Meu pai do céu. Esta mulher não deve ser condenada pelo
que fez esta noite. Mas antes vos digo que nos tempos vindouros, onde
quer que se pregue este evangelho por todo o Mundo, o que ela fez
ficará para Sua memória.
Maria desapareceu do pátio e eu retirei-me para o meu lugar.
Lázaro parecia triste. Tanto ele como Marta sabiam que sua irmã
poupara durante muito tempo para comprar aquele caríssimo perfume. A
família, contrariamente ao que tinha observado entre os próprios
discípulos, tinha chegado ao fundo do problema e compreendia que aquela
podia ser a última Páscoa de Jesus.
Os murmúrios baixaram, mas alguns dos apóstolos continuaram a
comentar o acontecido, movendo negativamente a cabeça, em sinal de
desacordo com o Rabi. Judas Iscariotes caíra num impenetrável silêncio.
Os seus olhos assustaram-me, exprimiam um ódio surdo e contido.
Saltava à vista que tomara aquelas palavras de Jesus como uma censura
pessoal e, sem dúvida alguma, se sentira ridicularizado diante dos
outros. Em minha opinião, fora a partir daquele incidente que o traidor
começou a tramar a sua vingança contra o Galileu. Duvido muito que
Judas pensasse naquele momento em entregar o Mestre aos membros do
Sinédrio. Não tinha sentido, já que a própria guarda do Templo recebera
ordens concretas para o prender. No entanto, o seu espírito vingativo viu
assim aberto um caminho para tentar humilhar Cristo e obter satisfação.
Estava já próxima a vigília do domingo quando alguns dos fariseus,
que tinham permanecido num prudente silêncio, se dirigiram a Jesus e,
não falando da valiosa natureza do perfume, o recriminaram por ter
consentido que aquela mulher tivesse violado as sagradas leis do
descanso.
* O conteúdo da pequena jarra representava cerca de trezentos
gramas de essência de nardo índico. O seu valor andava à volta de
trezentos denários. (Com duzentos se podia dar de comer a umas cinco
mil pessoas.) (N. Do M.)
sabático. Segundo consegui entender, uma das normas estabelecia
que uma mulher não podia sair de casa com uma agulha que tivesse
buraco (quer dizer, apta para coser), nem com um anel que tivesse
sinete, nem com um gorro em forma de caracol, nem com um frasco de
perfume. Se infringia este código era obrigada a pagar e oferecer
sacrifício, como compensação do seu pecado.
Jesus olhou divertido para os sacerdotes.
- Dizei-me – perguntou-lhes -, de onde vindes?
- De Jerusalém – afirmaram.
- E como é possível que condeneis uma mulher que caminhou menos
de um estádio, quando haveis percorrido mais de quinze? Recordei então
que os Hebreus tinham uma manha para irem além dos dois mil côvados
ou um quilómetro, que era o trajecto máximo permitido ao sábado. Jesus
sabia que, embora o povo simples pusesse em prática o erub, os santos ou
separados enalteciam publicamente a sua extrema pureza não hesitando,
contudo, em infringir estas leis quando estava em jogo uma boa
comezaina. Os fariseus agitaram-se, inquietos. Mas Cristo não estava
disposto a dar-lhes quartel. A quase totalidade dos cinco mil membros
das comunidades ou irmandades de fariseus de Israel era composta por
comerciantes, artesãos ou camponeses, sem a sólida formação dos
escribas e, baseados nas suas rigorosas normas de pureza e de
pagamento do dízimo, tinham-se elevado em relação aos ammé ha-ares ou
grande massa do povo de Israel. Esta presunção e dureza de coração era
algo que o Rabi da Galileia não suportava. E não tardou em dizê-lo nas
suas caras, para regozijo de uns e nervosismo de outros; em especial dos
Seus mais chegados, que temiam a ira dos que se autoproclamavam como
partido do povo.
- Ai de vós, fariseus – lançou Jesus, corajosamente. - Sois como um
cão deitado no estábulo dos bois, nem come ele nem deixa comer os bois.
- Quem és tu – esgrimiram os representantes de Caifás com ar de
suficiência -, para nos ensinares onde está a Verdade?
- Para que viestes ao campo? - atacou o Nazareno. - Talvez para ver
uma cana agitada pelo vento?... Para ver um homem de roupas delicadas?
Os vossos reis e os vossos grandes personagens – vós próprios – cobrisvos
de trajes de seda e de púrpura, porém Eu vos digo que não podereis
conhecer a Verdade.
- Vinte e quatro profetas falaram em Israel e nós seguimos o seu
exemplo..
Os convidados voltaram os seus rostos para Jesus. Mas o Galileu
continuava imperturbável. O Seu domínio da situação crispara os ânimos
dos fariseus.
- Falais dos que estão mortos e escorraçais O que vive entre vós? -
Diz-nos quem és para que acreditemos em ti – responderam.
- Observais atentamente a superfície do céu e da terra e não haveis
conhecido Aquele que está entre vós...
E, virando o olhar para mim, acrescentou:
- Não sabeis conhecer este tempo...
Uma onda de sangue me subiu do ventre.
Os fariseus optaram por se levantarem, renunciando àquela batalha
dialéctica. Entre expressivos sinais de indignação, lavaram as mãos nas
bacias. Mas Jesus não tinha terminado. E antes que tivessem
abandonado o recinto, atirou-lhes: - Ai de vós, fariseus! Lavais a parte
de fora da taça sem compreender que quem fez a parte de fora também
fez a parte de dentro... Começava a tornar-se muito clara para mim a
razão por que as castas dos sacerdotes, escribas e fariseus se tinham
conjurado para prender e dar morte àquele homem.
A tempestuosa cena culminou com a saída dos sacerdotes.
Quando já os convidados se despediam de Simão, Pedro aproximouse
do seu Mestre e, com ar conciliador, propôs-lhe que Maria fosse
afastada do grupo, já que as mulheres, comentou, não são dignas da Vida.
O Nazareno deve ter ficado tão perplexo como eu. E, no mesmo tom,
respondeu ao impulsivo discípulo:
- Eu a guiarei para a fazer homem, para que ela se transforme
também em espírito vivente semelhante a vós, homens. Porque toda a
mulher que se faça homem entrará no Reino dos Céus. Naquela noite, ao
retirar-me para o meu quarto e ao estabelecer ligação com o módulo,
Eliseu anunciou-me que a frente fria tinha penetrado já pelo Oeste e
que, muito provavelmente, a entrada de Jesus em Jerusalém – prevista
para o dia seguinte, domingo – ver-se-ia ameaçada pela chuva.
2 DE ABRIL, DOMINGO
Naquela noite de sábado precisei de muito tempo para adormecer.
Tinham sido demasiadas as emoções... Mas, principalmente, havia algo
que me preocupava. Porque se manifestara Jesus daquela maneira sobre
as mulheres? Depois de muito meditar, só pude chegar a uma conclusão:
o Nazareno tinha consciência da deprimente situação social da mulher e
propunha-se melhorá-la. Nos estudos que tinham precedido a Operação
Cavalo de Tróia, eu tivera a oportunidade de verificar que, na quase
totalidade do Oriente – e Israel não era excepção – o papel da mulher na
vida pública e social era nulo. Porém, os textos e documentos que eu
manipulara na minha preparação estavam muito distantes da realidade.
Pelo pouco que observara, o desprezo dos homens pelas suas
companheiras bradava aos céus. Quando a mulher judia, por exemplo,
saía de casa – pouco importava para quê – tinha de levar a cara coberta
por um toucado, que compreendia dois véus sobre a cabeça, um diadema
na testa – com fitas pendentes até ao queixo – e uma rede de cordões e
nós. Deste modo não se podiam ver os traços do rosto. Entre os Hebreus
contava-se o sucedido com um sacerdote importante de Jerusalém que
não chegou a conhecer a própria esposa, ao aplicar-lhe a sentença
prescrita para a mulher suspeita de adultério. (Poucos dias depois teria a
magnífica oportunidade de assistir a uma triste e fanática tradição que
os Judeus denominavam as águas amargas, compreendendo um pouco
melhor a revolucionária atitude de Jesus para com as hebreias.) __ A
mulher que saísse do seu lar sem levar a cabeça coberta ofendia a tal
ponto os bons costumes que o seu marido tinha direito e – segundo os
doutores da lei – até o dever de a repudiar sem ser obrigado a pagar-lhe
a soma estipulada em caso de divórcio. Pude verificar que, neste aspecto,
havia mulheres tão rigorosas que nem em sua própria casa se
descobriam. Foi este o caso de uma tal Qimjit que – segundo se conta –
viu sete filhos chegarem a sumos sacerdotes, o que se considerou uma
recompensa divina pela sua austeridade. Que caia sobre mim isto e
aquilo, dizia a pudica, se as vigas da minha casa alguma vez me viram a
cabeleira. Só no dia da boda, se a mulher era virgem e não viúva,
aparecia no cortejo de cabeça descoberta.
Nem é preciso dizer que as israelitas – especialmente as da cidade
deviam passar despercebidas em público. Um dos escribas
- Yosé ben Yojanan – tinha chegado a dizer, por volta de 150 antes
de Cristo: Não fales muito com uma mulher. Isto é válido para a tua
mulher, mas muito mais para a mulher do próximo., As regras da boa
educação proibiam, mesmo, encontrar-se alguém a sós com uma hebreia,
olhar para uma casada ou saudá-la. Era uma desonra para um aluno dos
escribas falar com uma mulher na rua. Aquela rigidez chegava a tal
extremo que a judia que falasse com toda a gente na rua ou fiasse à
porta de sua casa podia ser repudiada, sem receber a paga estipulada no
contrato matrimonial.
A situação da mulher na casa não se via modificada, em relação a
esta conduta pública. As filhas, por exemplo, deviam ceder sempre os
primeiros lugares e – até a passagem nas portas – aos rapazes. A sua
instrução limitava-se estritamente aos trabalhos domésticos, bem como
o coser e o tecer. Cuidavam dos irmãos mais novos e, em relação ao pai,
tinham a obrigação de o alimentar, de lhe dar de beber, de o vestir, de o
tapar, de o tirar e de o meter na cama quando velho, de lhe lavar a cara,
as mãos e os pés. Os seus direitos, no que se refere à herança, não eram
os mesmos que os dos varões. Os filhos e os seus descendentes
precediam as filhas. O poder paterno era extraordinariamente grande
em relação às filhas menores antes da sua boda. Encontravam-se em
poder dos pais. A sociedade judaica daquele tempo distinguia três
categorias: a menor (até idade de doze anos e um dia), a jovem (entre os
doze e os doze anos e meio), e a adulta (depois dos doze anos e meio).
Até à idade dos doze anos e meio, o cabeça-de-casal tinha todo o poder,
a não ser que a jovem – ainda mais nova – estivesse já prometida ou
separada. Segundo este código social, as filhas não tinham direito a
possuir absolutamente nada; nem o fruto do seu trabalho nem o que
pudessem encontrar, por exemplo, na rua. Tudo era do pai. A filha – até
à idade de doze anos e meio – não podia recusar um casamento imposto
por seu pai.
Chegou a dar-se o caso de serem casadas com homens disformes.
O escrito rabínico Ketubot falava, até, de alguns pais tolos que
chegaram a esquecer a quem tinham prometido as filhas. O pai podia
vender a filha como escrava, desde que não tivesse completado ainda os
doze anos. Os esponsais costumavam celebrar-se muito cedo. Um ano
depois, geralmente, a filha celebrava a boda propriamente dita, passando
então do poder do pai para o do marido. (E, realmente não se sabia qual
podia ser pior.) Depois do contrato de compra e venda, porque no fundo
era isso a cerimónia de esponsais e matrimónio a mulher passava a viver
na casa do esposo. Isto, geralmente, significava uma nova carga, além de
enfrentar uma família que lhe era estranha e que quase sempre
manifestava uma aberta hostilidade pela recém-chegada. Para dizer a
verdade, a diferença entre a esposa e uma escrava ou uma concubina era
dispor a primeira de um contrato matrimonial e a última não. A troco de
poucos direitos, a esposa encontrava-se sobrecarregada de deveres:
tinha de moer, coser, lavar, cozinhar, amamentar os filhos, fazer a cama
do marido e, como compensação pelo seu sustento, fiar e tecer. Outros
juntavam mesmo a estas obrigações as de lavar a cara, mãos e pés e
preparar o copo do marido. O poder do marido e do pai chegava ao
extremo de, em caso de perigo de morte, se ter de salvar primeiro o
marido.

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