quarta-feira, 11 de agosto de 2010

- Mas o quê? - explodiu Pôncio. - Que queres dizer com isso?
Adoptei uma falsa serenidade e, olhando-o fixamente, respondi-lhe,
fazendo minha uma sentença de Ennio:
- Então, para cúmulo do infortúnio, trovejou à esquerda estando o
céu absolutamente sereno.
Pilatos abriu muito os olhos, espantado. Ele sabia bem o significado
daquelas patranhas, maravilhosamente criticadas por Cícero. Pálido
suplicou-me que lhe decifrasse o augúrio.
- Em minha humilde opinião – conclui – Júpiter, e por razões que não
consigo compreender – menti-lhe pela terceira vez -, está desolado. E é
possível que manifeste a sua ira sem tardar muito. O céu será
testemunha de quanto te revelei.
- Hoje mesmo?
Assenti com rosto grave, ao mesmo tempo que desviava o olhar para
o Nazareno. Pilatos virou também a cabeça, comovendo-se.
Depois, esquecendo a conversa e esquecendo-Se de mim, voltou para
junto dos centuriões.
Preparava-me para solicitar a Civilis que me autorizasse a ir na
escolta e a presenciar as execuções quando entrou no pátio, vindo de
uma das múltiplas portas que se abriam por baixo das colunatas, o
legionário que tinha medido a envergadura de Jesus. Para tal, o soldado,
muito habituado a este mister, a julgar pela sua desenvoltura, tinha
pegado numa das lanças e, enquanto outro companheiro levantava os
braços do Galileu na posição de crucificado, o portador do pilum pôs-se
atrás do réu, medindo a distância entre as pontas das duas mãos.
Agora, uma vez feita a macabra medição, o romano tinha voltado ao
pátio central, carregando um pesado madeiro; um tronco extremamente
tosco, por desbastar, com um grosseiro buraco ao centro. Esta rude
abertura, de uns dez centímetros de diâmetro, atravessava o madeiro de
um lado ao outro, no sentido da espessura.
O legionário, que vinha munido de uma comprida e grossa corda,
assentou o patibulum 2, apoiando uma das facas – perfeitamente serrada
– no lajedo. E esperou.
* Felizmente para mim, eu fora instruído na arte dos antigos
áugures e arúspices, gregos e romanos. Uma vez no templum, ou espaço
do cbu que se devia observar, o áugure pegava no seu lituus e voltava-se
para o sul, traçando uma linha no céu – de norte a sul – chamado cardo.
Depois fazia o mesmo de oriente para ocidente (decumanus) dividindo
assim em quatro áreas a parte visível do rku. Em seguida, traçando duas
linhas paralelas às duas traçadas anteriormente, formava um quadrado,
que projectado sobre a terra, formava o prisma ou templum. A zona que
ficava na sua frente chamava-se antica e a que ficava atrás postica. (N.
Do M.)
2 A origem do patibulum remonta à viga que servia para trancar as
portas de Roma. Ao remové-la, abria-se a porta. Daí o nome. (M do M.)
Ao colocar a madeira na posição vertical pude verificar que o seu
comprimento atingia quase dois metros (possivelmente, um metro e
noventa). Quanto à sua espessura, calculo que andaria pelos vinte e cinco
centímetros. Era. Em resumo, um sólido lenho, com um peso que não seria
inferior a trinta quilos. Simulando grande curiosidade aproximei-me do
legionário, perguntando-lhe para que servia aquele tronco. O soldado
sorriu ironicamente e, apontando primeiro para Jesus, fez-me depois um
significativo sinal com o dedo polegar.
Colocou-o para baixo, à maneira dos Césares quando decretavam a
morte dos gladiadores.
Passei as mãos pela superfície rugosa do patibulum e concluí que se
tratava do troço de uma árvore, de alguma das espécies de pinheiro, tão
frequentes na Palestina ou importado talvez dos bosques do Líbano. (Não
tenho a certeza, mas talvez fosse o chamado Pinus halepensis, de uma
madeira quase incorruptível.)
Absorto na análise não reparei na chegada dos dois zelotas.
O optio e os legionários tinham-nos trazido manietados, até junto
do procurador e dos restantes centuriões. Mal os viu, Civilis ordenou que
lhes arrancassem as túnicas ensebadas e dessem início ao castigo
obrigatório que antecedia a crucifixão.
Quatro legionários, empunhando cada um o seu flagrum, começaram
a açoitar os guerrilheiros. Um deles, rapazote ainda, caiu de joelhos na
frente de Pilatos, gemendo e implorando piedade. Mas o governador
apressou-se a dar meia volta, afastando-se do prisioneiro.
Naquele instante, enquanto os látegos silvavam novamente a meio do
recinto, o legionário que desaparecera no túnel abobadado da porta
ocidental de Antónia regressou a correr, entregando a Longino uma
tabuleta de madeira de sessenta por vinte centímetros, totalmente
branqueada, à base de gesso e de alvaiade. O centurião pegou na
tabuleta e numa espécie de pequeno carvão, pedindo ao soldado que
arranjasse mais duas tábuas.
Chamou depois a atenção do governador, mostrando-lhe a tabuleta e
o pedaço de carvão afiado, recordando-lhe que a escolta teria de pôr nas
cruzes a identidade de cada um dos condenados e a natureza dos seus
crimes.
A emoção voltou a sacudir-me. Estava prestes a assistir à redacção
do chamado INRI. Também nesta questão, e ainda que fosse só no
aspecto circunstancial da redacção, os quatro evangelistas tinham-se
mostrado discordantes. Qual deles tinha acertado no texto? Marcos
dissera: o Rei dos Judeus (Mc, 15, 26).
Mateus, por seu lado, acrescenta: Este é Jesus, o Rei dos Judeus (Mt,
27, 37). Quanto a Lucas, o seu INRI diz assim: Este é o Rei dos Judeus
(Lc, 23, 38). Por último, João Zebedeu, conhecido por o Evangelista,
reproduziu o seguinte: Jesus Nazareno, o Rei dos Judeus (Jn, 19, 19).
Quem tinha razão?
Discretamente, olhei por cima do ombro do procurador e vi como a
sua mão tremia. Segurava a tabuleta em posição horizontal, firmemente
apoiada na couraça reluzente. Tinha pegado no pequeno carvão com a
direita mas o seu rosto desviara-se da superfície do rectângulo branco
de madeira.
Reparei que olhava Jesus de soslaio. O Mestre, que não descolara os
lábios em todo aquele tempo, conseguira regularizar o ritmo
respiratório, mas continuava curvado e trémulo. O sangue, embora em
menor quantidade, continuava a pingar da orla da túnica, formando um
círculo em volta dos pés.
Um dos guerrilheiros – mais adulto – retorcia-se no lajedo,
retorcendo-se a cada chicotada. Os legionários tinham-lhe rasgado a
túnica, deixando a descoberto o tronco. Apesar de ter as mãos
amarradas atrás das costas e de estar seguro por outro soldado, que
conservava entre as mãos a ponta da corda com que fora atado, o zelota,
no seu desespero e dor, revolvia-se em cima das lajes, pondo em grande
dificuldade este último infante. O mais jovem, com a roupa igualmente
rasgada, enroscara-se em si mesmo, procurando defender a cabeça com
as pernas. Mas os golpes eram tão violentos e continuados que não
tardou em se pôr de joelhos, oferecendo as costas aos verdugos e
soltando gritos que fizeram aparecer o corpo da guarda e numerosos
legionários. De repente, Pilatos
- sempre mais nervoso – começou a escrever com a sua
característica letra quadrada...
Jesus de Nazaré....
As primeiras palavras foram escritas em aramaico, da direita para a
esquerda. Tinham uns trinta milímetros de altura e ocupavam toda a
parte superior da tabuleta.
Pilatos hesitava. Parecia não saber que acrescentar. Na realidade,
tinha consciência da falsidade das acusações e, logicamente, acabava de
tropeçar num sério problema.
O zelota mais novo levantou a cabeça e, com o rosto suado e
contraído, procurou Jesus. Depois, apesar dos puxões do guarda,
arrastou-se nos joelhos até ao Rabi e, ao chegar a seus pés, no meio de
uma chuva de furiosas chicotadas, pondo o rosto sobre as grandes pingas
de sangue que caíam da orla da túnica do Rabi, exclamou, entre soluços: -
Mestre... Tem misericórdia de nós... Não nos deixes morrer! Jesus
entreabriu os olhos inflamados e violáceos, mirando o infeliz com infinita
ternura. Mas, antes de poder responder-lhe, o soldado que agarrava a
corda do jovem zelota deu ao Mestre um violento empurrão, fazendo-O
recuar e vacilar. Um dos verdugos dirigiu então o seu flagrum, preparado
para o ferir, mas Civilis, atento a quanto acontecia, interpôs-se,
amparando o Nazareno pelas axilas e evitando que caísse. Depois voltouse
para o pelotão, ordenando-lhes que não flagelassem o rei dos Judeus.
- Este já recebeu o seu castigo – declarou.
Os verdugos prosseguiram no seu ataque desapiedado, abrindo
novas feridas nas costas, pernas e flancos dos zelotas.
Enquanto o que se aproximara do Galileu continuava de joelhos, com
a cabeça assente nas lajes, o companheiro, num arranque de desespero,
levantou-se, atirando um pontapé frenético ao baixo ventre de um dos
fustigadores. O romano vergou como um boneco, caindo no chão entre
gritos de dor. De costas para a cena sanguinária, Pilatos voltou a
escrever: ... rei dos Judeus.
João era, pois o único evangelista que tinha sido absolutamente fiel
na transcrição do “INRI” (Jesus Nazarenus, Rex Judaeorum).
Imediatamente, de modo quase mecânico, o procurador repetiu a
frase Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus em grego e, por último, em latim.
Devolvendo a tabuleta a Longino sacudiu as palmas das mãos, fazendo
uma careta ostensiva de repugnância.
Mas o legionário enviado pelo centurião à procura das outras duas
pranchas de madeira regressou naquele instante e Pilatos, muito
contrariado, teve de repetir a operação. Desta vez foi muito mais
rápido. Depois de perguntar os nomes dos condenados, escreveu na parte
branca das tabuletas: Gistas.
Bandido e Dismas. Bandido. Tudo isto, naturalmente, nas três
línguas de uso comum naqueles tempos na Palestina: aramaico, em
primeiro lugar, grego (o idioma universal, como o pode ser hoje o inglês
ou o espanhol) e o latim, língua natal de Pilatos. O procurador deu uns
passos para o tanque circular e enxugou as mãos. Quando se dispunha a
retirar-se, adiantei-me e supliquei-lhe que me permitisse assistir às
execuções.
- Se realmente vai acontecer alguma coisa de anormal – dissequero
estar presente... Pilatos encolheu os ombros e, mecanicamente, como que
mergulhado noutros pensamentos, transmitiu o meu pedido a Civilis. Este
encarregou-se de me apresentar a Longino, anunciando-me como um
áugure, amigo de Tibério.
Acho que a primeira qualificação não impressionou excessivamente o
veterano centurião. Mas a segunda foi diferente. Naquele instante, a
intervenção de Arsenius, que participou ao capitão da escolta que me
tinha encontrado na noite anterior, revestiu-se também de importância.
Levantando o braço com enfado, Pilatos saudou os oficiais e retirouse.
Civilis não tardaria muito a segui-lo.
Quando os restantes legionários viram como o seu companheiro caía,
vítima do pontapé do terrorista, os flagrum já não foram os únicos
instrumentos de tortura. Com uma raiva pouco habitual, os restantes
verdugos, a que se tinham unido outros curiosos, acompanharam as
chicotadas com uma infinidade de pontapés que acabaram por fazer cair
o revolucionário.
Uma vez por terra, as solas cardadas dos romanos incrustaram-se
muitas vezes no corpo do condenado e, poucos segundos depois, um fio
de sangue correu entre as comissuras dos seus lábios. A chegada dos
novos madeiros, um pouco mais curtos que o destinado à Cruz do
Nazareno, interrompeu a flagelação. Mas a trégua momentânea foi
apenas o prólogo de uma peregrinação angustiosa...
Sob a vigilância atenta de Longino e do seu optio, e sem
demonstrarem qualquer cuidado, os soldados puseram os dois troncos de
madeira sobre os ombros e últimas vértebras cervicais dos zelotas, ao
mesmo tempo que outros legionários obrigavam os prisioneiros a
estender os braços, até que as faces dorsais das mãos tocassem na
áspera superfície dos madeiros.
O revolucionário mais novo continuou de joelhos, enquanto o seu
companheiro, semi-inconsciente, era atado ao patibulum na mesma
posição em que tinha ficado: estendido e de barriga para baixo.
Nenhum deles teve força bastante para resistir. O que tinha pedido
clemência continuou a soluçar lastimosamente, enquanto uma longa e
grossa corda lhe imobilizava os pulsos, braços e axilas. Os romanos
iniciaram a sujeição do primeiro condenado pela ponta direita do
patibulum. Foram depois prendendo os braços até terminar no pulso
esquerdo. E dali a corda caiu até ao pé esquerdo do culpado, sendo atada
em volta do tornozelo.
Com a mesma corda, e uma vez rematada a colocação do primeiro
madeiro, os verdugos levantaram o segundo guerrilheiro, repetindo a
manobra. Finalmente, os soldados transportando uns quatro metros de
soga (os últimos do mesmo braço), dirigiram-se ao Mestre. Docilmente
Jesus viu-os chegar, e antes que os legionários o ferissem ou o puxassem
pelo cabelo, para que se inclinasse, lançou o corpo para a frente,
oferecendo os ombros martirizados. Mas a estatura do Rabi
ultrapassava em muito a dos verdugos e a inclinação voluntária do tórax
não foi suficiente.
Desse modo, um dos soldados, não podendo empurrar a cabeça do
Mestre, agarrou-lhe as barbas, puxando por elas até ao chão, e assim o
manteve, à espera que os companheiros colocassem o patibulum nos
ombros do Rabi.
Dois legionários estenderam os braços de Jesus e outros dois
soldados pegaram no madeiro. Levantaram-no pelas pontas e, de repente,
encaixaram-no contra a nuca do Galileu. Mas as múltiplas ramificações da
coroa de espinhos eram um obstáculo: o espesso cilindro de madeira não
se ajustava com precisão aos músculos trapézios, rolando pelas costas.
Cada vez mais embaraçados, por três vezes os romanos golpearam o
pescoço de Jesus até que, por fim, em novas dores, foi o Mestre que se
inclinou ainda mais facilitando a colocação do patibulum nas omoplatas. A
cada uma daquelas tentativas selvagens de colocação do madeiro
experimentei uma espécie de chicotada que me percorreu as entranhas.
As puas da nuca e da zona occipital cravavam-se um pouco mais a
cada esforço, rasgando o couro cabeludo e, possivelmente, enterrandose
no penósteo craniano (película que envolve os ossos). (Os
traumatólogos sabem muito bem que tipo de dor produz a perfuração
desta película.) A dor intensa e contínua fez com que Jesus gemesse a
cada um dos três embates e, em questão de segundos, o cabelo e o
pescoço voltaram a brilhar, abundantemente ensanguentados.
Os carrascos estenderam os braços por baixo da zona inferior do
tronco e ali os deixaram, atando a corda – da direita para a esquerda –
rematando a prisão no tornozelo esquerdo. O peso considerável do
patibulum – pelo menos para um homem tão extremamente castigado –
levou o corpo do Rabi a inclinar-se perigosamente, obrigando-O a flectir
as pernas. Jesus tentou levantar a cabeça.
Os músculos e artérias pareciam ir rebentar por baixo da pele
avermelhada do pescoço mas, a cada tentativa de se levantar e vencer o
peso do lenho, a nuca embatia na casca rugosa do patibulum e a dor
provocada pelos espinhos que entravam sem piedade na cabeça do Rabi,
vencia-O, forçando-O a baixar o rosto.
Compreendendo que era inútil todo o esforço para recuperar a
posição erecta, o Mestre pareceu resignar-se. A respiração tornara-se
novamente agitada e temi que, a qualquer momento, o esforço acabasse
em novo desfalecimento. (Logicamente, os evangelistas não reflectem,
nos seus testemunhos, a dureza daquele instante, pois que nenhum deles
assistiu ao carregar do patibulum.)
O enfraquecido organismo de Jesus de Nazaré viu-se subitamente
esmagado por um madeiro, deixando os seus músculos na posição em que
se encontravam na altura em que lho colocaram nos ombros e nuca. Não
houve pré-aquecimento nem possibilidade de os principais feixes
musculares poderem reagir convenientemente. Isto, em suma, precipitou
as frequências cardíaca e arterial, disparando-as pela enésima vez. Em
questão de três a cinco minutos – desde o momento em que os soldados
conseguiram amarrar o tronco aos braços – o coração de Jesus chegou
às cento e setenta pulsações por minuto, elevando a tensão arterial
máxima a cerca de cento e setenta.
Em minha opinião, aquele foi um golpe que consumiu as escassas
energias que ainda podiam restar ao Rabi. ) Ao ver o Mestre naquele
estado lamentável perguntei-me quanto poderia ainda resistir com o
patibulum às costas...
Mas um outro facto ia originar novo e dilacerante sofrimento ao
Gigante da Galileia. Enquanto Arsenius pregava as três tabuletas no
fuste de madeira de um dos pilum, outro legionário reparou nas sandálias
do Mestre e mostrou-as a Longino que, num gesto de honradez e
comiseração, ordenou ao soldado que as calçasse nos pés de Jesus.
O infante acocorou-se na frente do Rabi e, ao obrigá-lo com ambas
as mãos a levantar o pé esquerdo, para calçar a sandália, o corpo do
Nazareno desequilibrou-se para o lado contrário, provocando aparatosa
queda, tão rápida quanto inesperada. Com os braços amarrados, o Galileu
não pôde evitar que o patibulum O arrastasse e, depois de bater nas
lajes com a ponta direita, foi cair de bruços no pavimento, ficando
esmagado debaixo do travessão da Cruz.
Ao ver e ao ouvir o violento embate contra as lajes receei o pior.
Quando os soldados correram a levantá-lo observei que, felizmente, o
elmo de espinhos actuara como amortecedor, evitando que os ossos da
cara se fracturassem, mas as puas da testa, têmporas e faces tinham
perfurado ainda mais a carne, deixando a descoberto nalgumas áreas
parte do tecido celular subcutâneo, dando lugar a novas e abundantes
hemorragias.
Apesar da violência da queda, o Nazareno não chegou a perder os
sentidos. Dois verdugos levantaram o patibulum, escorando-o com os
ombros, enquanto o desastrado legionário acabava de calçar Jesus. Uma
vez terminada a infeliz operação, os verdugos soltaram o madeiro e o
Rabi voltou a suportar-lhe o peso, inclinando-se uma segunda vez.
A impossibilidade de inclinar a cabeça para trás diminuía-lhe
consideravelmente o campo de visão, limitando-o praticamente ao
terreno que pisava. Em várias alturas, enquanto durou aquela curta mas
acidentada caminhada para o Calvário, observei como o Mestre se
esforçava por elevar o olhar para o alto. Mas, ao enrugar a testa, os
espinhos dilaceravam as feridas e a dor intensa obrigava-O a baixar os
olhos. Pela hora sexta, Longino deu ordem de marcha. A escolta fora
aumentada com outros legionários, todos eles fortemente armados.
Oito postaram-se de ambos os lados dos prisioneiros e os restantes,
de um total de doze, distribuíram-se entre a vanguarda da comitiva,
imediatamente atrás do centurião e do seu lugar-tenente e a retaguarda.
A cada
condenado, portanto, fora atribuído um contingente de quatro
soldados, expressamente encarregados da sua vigilância e posterior
crucificação. Um destes infantes transportava ainda um ensebado saco
de couro pendurado de um pau terminado em forma de forca e que logo
pôs ao ombro. Fechavam o cortejo dois romanos que carregavam uma
escada de mão com cinco metros, aproximadamente.
Quatro dos infantes postados à direita e à esquerda dos zelotas
desenrolaram os látegos, recomeçando a flagelação dos infelizes, tal
como tinham por costume antes da execução.
Entre gemidos e com o corpo a sangrar, os dois primeiros
condenados começaram a andar, cambaleando com o peso dos troncos.
Cumprindo rígidas normas de segurança, os três prisioneiros, tinham sido
atados pelos artelhos a uma mesma corda. Deste modo, qualquer possível
tentativa de fuga era extremamente problemática. Ao pôr-se em
marcha, o condenado que vinha no meio deu um esticão à corda,
obrigando o Nazareno
- que ocupava o terceiro e último lugar – a acompanhá-lo. As
oscilações do lenho que o Rabi carregava e os seus passos vacilantes,
inseguros, com o arrastar penoso da perna esquerda, fizeram-nos recear
a todos uma nova e imediata queda e, o que era muito pior, uma possível
paragem cardíaca.
E digo a todos porque, desde o princípio, os quatro legionários que
comigo fechavam a escolta trocaram alguns olhares de preocupação,
confirmando com movimentos de cabeça significativos que Aquele
prisioneiro não estava em condições de chegar ao Gólgota. Mas, de
momento, ninguém disse nada.
Os condenados percorreram os primeiros vinte e cinco metros e o
pelotão entrou no túnel abobadado da porta ocidental, aquela por onde
eu entrara em Antónia na companhia do José de Arimateia. Ali,
infelizmente, se deu um novo problema...
Algumas sentinelas tinham assomado por curiosidade à porta do
corpo da guarda, assistindo entre risos, à passagem dos condenados.
Quando o guerrilheiro que caminhava no meio chegou à altura dos
guardas, aproveitando-se do facto de os legionários terem interrompido
as chicotadas por causa da penumbra e da estreiteza da passagem, o tal
Gistas voltou-se para a esquerda, cuspindo no romano mais próximo.
E antes que os seus verdugos pudessem pôr-lhe as mãos em cima,
arremeteu com a extremidade do patibulum contra o legionário que
marchava à sua direita, apontando-lhe o tronco para o rosto. O soldado
caiu para trás, indo contra Jesus. Ambos rolaram no escuro e húmido
empedrado do túnel. Nesta altura, o choque fez com que o Galileu caísse
de costas.
O tumulto foi indescritível. Vários membros do corpo da guarda e
alguns dos romanos da escolta, enraivecidos contra o guerrilheiro,
enterraram-lhe as hastas das lanças no ventre, costelas e boca do
provocador, até o fazerem cair de joelhos.
Longino e Arsenius correram imediatamente ao centro da passagem,
tentando restabelecer a ordem. Outros soldados ajudavam o
companheiro que fora ferido com o madeiro. Uma das arestas rasgaralhe
o pómulo esquerdo, originando forte hemorragia.
O centurião examinou a ferida, ordenando que fosse rendido
imediatamente. O seu lugar foi ocupado por uma das sentinelas.
Entretanto, Jesus continuava imóvel, de rosto para cima e impotente
para se levantar. Os espinhos tinham voltado a ferir-lhe a nuca e o
Mestre, com uma contracção de dor, tentava levantar a cabeça, evitando
assim o contacto com a madeira.
Alguns dos legionários que empunhavam os flagrum, cegos de fúria,
lançaram-se também contra o Rabi e começaram a feri-Lo, insultando e
exigindo que se levantasse, exigências tão inúteis quanto absurdas.
Naquela posição, ninguém poderia erguer o tronco pelos seus
próprios meios. Numa tentativa desesperada para obedecer, o Nazareno
tentou dobrar as pernas, retesando os músculos. Mas, segundos depois,
vencido e exausto, desistiu.
Antes que a lógica e bom senso se impusessem entre a soldadesca
confusa, um dos romanos inclinou-se para o Mestre e, agarrando-O pela
barba, começou a puxar por ele, gritando um chorrilho de imprecações e
blasfémias. A raiva do verdugo era tal que, num daqueles selvagens
puxões, os dedos crispados do legionário se soltaram do rosto de Jesus
levando com ela uma mecha de pêlos.
Com aquele pedaço de barba, o soldado arrancou também parte da
epiderme e do cório ou camada interna da pele, deixando a descoberto –
entre borbotões de sangue – as faixas fibrosas do músculo quadrado (na
zona direita). Com um forte queixume, o Galileu deixou cair a cabeça
sobre o patibulum, invadido pela dor insuportável,que vinha do
dilaceramento de um sem-número de papilas nervosas. (É importante
anotar que, entre os minúsculos órgãos violentamente arrancados se
encontravam os conhecidos como intérpretes da sensibilidade dolorosa:
alguns receptores específicos para a dor e que se ramificam em
terminações nervosas livres, que se multiplicam nos interstícios do
epitélio cutâneo.)
A surpresa e o susto da sentinela foi tal que não voltou a agredir
Jesus. O optio, com mais sensatez que os seus homens, ordenou que O
levantassem, e a comitiva continuou a sua marcha, com dois
revolucionários massacrados a chicotadas e pancadas e com um Jesus de
Nazaré irreconhecível, consumido pela febre e pela fraqueza galopante.
Ao pisar a cobertura metálica da ponte levadiça, o Sol, quase no zénite,
iluminou plenamente a figura do Mestre.
As quedas tinham aberto algumas das suas feridas, empapando
novamente a túnica, que perdera a cor original.
Vários fios de sangue corriam incessantemente pelos tendões de
Aquiles, encharcando as sandálias. Arrastando os pés, o Mestre foi-se
aproximando do parapeito exterior da Torre Antónia. A Sua respiração
era cada vez mais ofegante e a cabeça e o tronco iam-se inclinando
centímetro a centímetro.
Na abertura do muro, quando já tínhamos percorrido mais de
quarenta e cinco metros a partir do centro do pátio com pórtico, o
pelotão parou novamente. A passagem muito apertada obrigou os
legionários a inclinar os troncos dos condenados, de moda a poderem
atravessar o recinto exterior do quartel general.
A partir dali, as coisas podiam complicar-se e os soldados cerraram
fileiras, guardando uma distância mínima entre si e os condenados.
Longino fez um sinal ao lugar-tenente e este pôs-se à frente da
comitiva, arvorando com ambas as mãos o pilum, onde tinham sido presas
as três tabuletas com os nomes e os crimes dos que eram levados ao
patíbulo.
Mal deixámos a fortaleza, fomos surpreendidos por um vento em
rajadas, muito mais forte do que aquele que notara durante os debates
de Pôncio Pilatos no terraço do pretório. O vento leste, vinha carregado
de pó e de areia. Intrigado com o súbito agravamento do tempo, premi a
ligação auditiva e perguntei a Eliseu que notícias tinha quanto à
anunciada instabilidade das altas camadas da atmosfera, nas
proximidades da fronteira do actual Iraque com a Arábia Saudita.
O meu companheiro – que eu praticamente abandonara havia horas –
censurou-me o silêncio, embora compreendesse que as circunstâncias não
tinham sido óptimas para o manter informado. De imediato começou a
explicar-me que a turbulência se convertera num haboob 1, ou
tempestade com vento violento, alimentado pelo contacto entre uma
corrente em jorro e outro sistema de pressão barométrica distinto. A
tempestade fora aumentando, especialmente na periferia ocidental da
depressão bárica, localizada, como disse, a sul do Iraque. Os sistemas
eleetrónicos do berço tinham detectado correntes cónicas de partículas
suspensas no ar, movendo-se em direcção noroeste, e em frentes que
oscilavam à volta dos cem quilómetros.
As faixas deste haboob tinham-se ido enroscando e alargando, até
atingirem os quinhentos quilómetros levantando à sua passagem
gigantescas nuvens de areia, provenientes dos desertos arábicos de
Nafud e Dahna. Segundo os detectores do módulo, as rajadas atingiam
vinte e cinco e trinta nós por hora.
Contrariamente àquilo que Eliseu calculava, a chegada da tormenta
elevara a humidade relativa, avaliando-se também uma ligeira baixa da
temperatura.
.. A visibilidade dentro do turbilhão de pó – acrescentou o meu
irmão – foi calculada pelo Pai Natal nuns trezentos metros. Tempo
previsto para que o lóbulo central do haboob varra a cidade... entre
trinta e quarenta e cinco minutos a partir deste mesmo instante.
Aquilo significava que se a comitiva conseguia alcançar o local da
crucifixão antes da chegada da tempestade à zona de Jerusalém, as
trevas – provocadas pelos bancos de areia em suspensão – cairiam sobre
nós durante a execução.
Quem podia imaginar naquele instante que as famosas trevas
descritas pelos evangelistas pouco tinham a ver com o obscurecimento
do Sol pela areia...
A curta distância do parapeito de pedra que rodeava aquela zona da
Torre Antónia um grupo de judeus esperava (calculei uns duzentos),
entre os quais se encontravam uns quantos saduceus – os mesmos que
tinham assistido à condenação de Jesus no
Pretório – e, naturalmente, José de Arimateia, na companhia de
outro jovem emissário de David Zebedeu. Este acabava de comunicar ao
ancião que Maria, a mãe do Mestre, e outros familiares vinham já a
caminho de Jerusalém e que, provavelmente, se encontrariam com João
no caminho de Betânia.
Segundo José de Arimateia, Caifás e os outros membros do
Sinédrio tinham-se dirigido ao Templo, dispostos a dar notícia dos
acontecimentos daquela manhã e da morte iminente do Rabi da Galileia.
Mas a máxima
* Em meteorologia, chama-se haboob. A uma tempestade de pci que
se forma nos desertos durante um período de instabilidade convectiva.
O termo haboob deriva de um outro árabe, que significa vento violento,.
São notáveis e famosos os haboobs do Sudão, com velocidades que
chegam aos oitenta e cinco quilómetros por hora. (N. Do M.
preocupação de José não era a sorte do Mestre. Ele sabia que a
sentença do procurador era já inapelável e que só os poderes divinos de
Jesus O poderiam libertar da morte certa. Os pensamentos do ancião
dirigiam-se para outro problema. Uma vez conseguida a sentença contra
o Galileu, os sacerdotes saíram da fortaleza, discutindo e preparando a
sua próxima acção: a prisão e aniquilamento dos discípulos de Jesus.
José avisara o correio sobre tal manobra e insistiu para que fosse a
Getsémani e pusesse de sobreaviso David e quantos adeptos e amigos
pudesse localizar. Assim fez.
Eu atrevi-me a insinuar-lhe que a sua presença perto do sumo
sacerdote e dos saduceus podia ser muito mais útil que naquele trágico
cortejo e José, sem poder conter as lágrimas assentiu com a cabeça,
enquanto observava atónito o rosto ensanguentado do Nazareno e o seu
corpo cada vez mais esgotado e vergado ao peso do tronco.
Ao lerem o INRI de Jesus os dirigentes judeus saíram ao caminho
do optio e do pelotão e, furiosamente protestaram contra a inscrição.
Longino tentou serenar os ânimos exaltados dos hebreus, fazendo-lhes
ver que as tabuletas tinham sido escritas pelo punho e com a letra do
próprio procurador.
Foi inútil. Os saduceus exigiram que o centurião mudasse o texto,
retirando a expressão rei dos Judeus. A tensão chegou ao máximo
quando alguns deles se puseram a atirar pedradas aos soldados. Vários
legionários avançaram, defendendo Longino e o optio com os escudos.
Sem perder a calma, o centurião afastou o infante que o protegia e
erguendo a voz, ordenou ao grupo que dispersasse.
Depois, apontando a terceira tabuleta – a correspondente a Jesus
Nazareno -, lembrou aos homens do Sinédrio que, se desejavam alterar a
inscrição, voltassem a Antónia e discutissem o assunto com Pilatos. As
palavras de Longino apaziguaram a cólera dos judeus e três juízes
retiraram-se apressadamente em direcção ao Pretório, dispostos a
negociar o que consideravam um insulto ao seu nacionalismo.
(Eu não voltaria a ver Pilatos naquela primeira grande viagem.
No entanto – e antecipando acontecimentos -, posso dizer que, na
nossa segunda aventura, Civilis me relatou o novo encontro com os
desprezíveis sacerdotes, congratulando-se com a atitude de Pilatos. O
governador foi inflexível, lembrando aos hebreus de que Jesus se
proclamara rei dos Judeus fora um dos motivos da sua condenação.
Segundo parece, quando os saduceus se convenceram da dura e
intransigente posição do romano, sugeriram-lhe que, pelo menos,
trocasse o dístico por outro: Disse: sou o Rei dos Judeus. A resposta de
Pilatos foi a idêntica às anteriores: O que escrevi, escrito está por mim.
E a representação do Sinédrio não teve outra solução que não fosse
retirar-se, mas antes ameaçou o governador com uma infinidade de
maldições e castigos divinos...) Encerrado o incidente, o centurião deu
ordem para continuar.
Desembainhou a espada e, sem hesitação, abriu passagem entre a
turba. As centenas de fanáticos, na sua maioria gente sem ocupação,
comprada pelo Sinédrio ou, simplesmente, doentiamente sedenta de
sangue, recuaram imediatamente, abrindo um corredor por onde desfilou
o pelotão com os condenados. Por mais que olhasse não pude descobrir
um só
dos amigos ou discípulos de Jesus. Quanto à multidão que gritara
pela libertação de Barrabás e pela crucifixão do Galileu, onde estava?
Aqueles hebreus constituíam uma ínfima parte dos dois ou três mil que
se tinham juntado minutos antes, diante da escadaria da residência do
procurador. Este súbito desinteresse pelo final do odiado rei dos Judeus
confirmou a minha hipótese. A imensa maioria dos judeus que nessa
manhã subiu até ao Pretório só tinha uma intenção: solicitar a tradicional
libertação de um preso. No fundo, pouco lhes importava em quem
recaísse a graça. Se os juízes tivessem clamado pela liberdade de Jesus,
aquela gente, provavlemente, teria feito coro pelo nome do Nazareno.
Uma vez satisfeita a sua curiosidade, os milhares de peregrinos e
habitantes de Jerusalém retiraram-se, esquecendo-se praticamente do
condenado. Mas tropeçar naqueles duzentos cobardes algum efeito teve;
Longino, homem de grande experiência, pensou sem dúvida que a
passagem dos zelotas e do rei pelas ruas da cidade alta de Jerusalém
podia originar complicações para si e para os seus homens. Com sensatez
alterou o caminho que tradicionalmente era seguido por aquele tipo de
desfiles. Em geral, os justiçados eram levados pelas vielas da cidade,
para que assim se desse exemplo ao povo.
Nesta ocasião, insisto, o centurião decidiu-se por um caminho muito
mais curto. Tenho pena de desiludir quantos acreditaram e acreditam
numa via dolorosa pelas estreitas ruas do Bairro Alto de Jerusalém.
Nada disso. O centurião e os soldados desviaram-se para norte,
entrando pelo caminho poeirento que conduzia a Cesareia e que percorria
quase paralelamente o vale do Tyropeon. (Hoje, essa mesma via
atravessa – um pouco mais a norte – a Porta de Damasco, na muralha
setentrional.)
Os primeiros a ficarem surpreendidos por esta mudança de
itinerário foram os hebreus que tinham arremessado pedras contra a
escolta romana. Dali a pouco, encabeçados pelos saduceus, começaram a
seguir Longino e os legionários. Suponho que a inesperada alteração do
caminho tradicional, lhes acicatou, ainda mais, a curiosidade.
De acordo com os meus cálculos, Jesus caminhara cem metros
desde o pátio da Torre Antónia, quando o centurião, de repente,
abandonou a calçada, virando à esquerda e iniciando a descida pela
quebrada do Tíropéon, em direcção a uma das esquinas da muralha norte
da cidade.
Naquela zona exterior de Jerusalém o vento levantava grandes
massas de poeira e de terra, dificultando o já penoso caminhar do
Mestre e dos bandidos. Estes tinham voltado a ser açoitados, embora
aquele declive e a irregularidade do terreno impedissem a precisão dos
golpes dos verdugos.
Foi precisamente ao descer pela curta ladeira, cheia de cardos e de
abrolhos espinhosos, que o corpo destroçado do Nazareno perdeu
novamente o equilíbrio, caindo por terra entre uma nuvem de pó. Desta
vez, Jesus conseguiu apoiar-se nos joelhos, que foram bater em pedras.
A terceira queda do Prisioneiro obrigou a comitiva a parar. Dois dos
verdugos recuaram e, às chicotadas, tentaram obrigar o Mestre a
levantar-se. De boca aberta, resfolegando e a meio de uma nova elevação
do ritmo cardíaco, o Gigante – que tinha ficado de joelhos – conseguiu
por fim firmar-se na perna direita. Mas a esquerda, destroçada pelo
flagrum, não correspondeu. O Filho do Homem apertou os dentes com
todas as forças. Os músculos do pescoço tornaram a ficar tensos dandose
uma perigosa contracção do esterno.
Os olhos fechados reflectiam o firme desejo de vencer o peso do
madeiro, mas o esgotamento, a sede e a cada vez mais preocupante baixa
da volemia (naquele momento era muito possível que o Rabi tivesse
perdido dois litros de sangue), puderam mais que Sua vontade e, apesar
das chicotadas, o corpo do condenado, longe de se recompor, foi-se
inclinando mais e mais, até a barba tocar no joelho direito. Naquele
momento crítico a voz do centurião deteve os legionários. E o próprio
Longino, ajudado por mais dois soldados, se encarregou de levantar o
patibulum, aliviando assim a recuperação do Prisioneiro. Uma vez de pé a
comitiva continuou a descida até chegar ao fundo do vale. A partir dali e
até ao Gólgota, o caminho foi muito mais dramático.
Segundo os meus cálculos, a depressão do Tiropéon encontrava-se
na cota 745. Tínhamos descido cinco metros (a cota da Fortaleza
Antónia e da Pista de Cesareia era de Setecentos e cinquenta metros) e
o Calvário encontrava-se a 755 metros de altitude sobre o nível do mar,
o que significava, a partir daquele instante, um caminho em constante
declive... Mas, para surpresa minha, o Nazareno conseguiu descer a
rampa com menor dificuldade do que eu imaginava. Cambaleando e
respirando pela boca, conseguiu vencer outra centena de metros. Aquilo
somava cerca de duzentos e cinquenta metros desde a nossa saída de
Antónia.
Porém, enganava-me. A triste realidade não tardou em se impor.
De repente Jesus parou. O lenho oscilou nervosamente para um e
outro lado e o Nazareno caiu de joelhos, sacudido por convulsões mais
intensas. Desta vez, felizmente para Ele, a comitiva apenas se deteve
uns segundos. O Rabi prosseguiu o avanço, arrastando os joelhos pela
ladeira áspera.
Não pude evitar um sentimento de admiração. Aquele homem, no
declive da Sua vida, era capaz de continuar – fosse como fosse
- o caminho para o fim... Longino tinha escolhido o perímetro
externo da muralha norte, evitando assim as concorridas ruas de
Jerusalém e, ao mesmo tempo, encurtando o caminho. Apesar disso, o
esgotamento físico e penso que mental, de Jesus estava a beirar
novamente o estado de choque.
As pontas dos dedos tinham começado a tingir-se de um tom
violáceo, sinal inequívoco de má circulação nas extremidades superiores
consequência do agarrotamento prolongado. Embora fosse difícil
verificá-lo naqueles angustiantes momentos, era mais que certo que os
braços e os ombros estavam a iniciar um processo de tetanização,
juntando assim uma nova e pungente dor, consequência da progressiva
cristalização dos cristais microscópicos de ácido láctico dos músculos.
(O processo de tetanização seria um dos mais duros suplícios que o
Mestre teria de enfrentar durante os primeiros minutos da crucifixão.)
Com a cabeça e o tronco flectidos, o Galileu foi ganhando cada palmo de
terreno, envolto numa vaga de poeira e levantando as pequenas colunas
de pó à medida que arrastava os joelhos. O sangue que lhe empapava a
túnica foi-se enchendo de terra, bem como o cabelo, barba e rosto.
A respiração era cada vez mais rápida e, quando tinha ganho mais
cinquenta metros, um suor frio banhou-lhe as têmporas e o pescoço.
Jesus avançava já com movimentos muito bruscos, quase aos sacões em
típica marcha espástica, consequência da rigidez muscular. De súbito, vio
levantar o rosto por duas vezes, procurando inspirar e, sem que
ninguém pudesse evitá-lo tombou, ficando estendido na terra.
Os soldados não hesitaram, e antes que o centurião tivesse tempo
de intervir atacaram a pontapé o corpo inerme do Nazareno. As catorze
cardas em forma de S das solas foram abrindo novas feridas nas pernas
e, suponho, em quase todos os pontos que atingiam: rins, costelas e
costas. O pé esquerdo ficara voltado para a direita e um dos furiosos
verdugos pisou-o por duas vezes. À segunda patada, a unha do dedo
grande soltou-se por completo.
Quando faltavam poucos metros para vencer o declive, as forças
tinham abandonado de vez o Condenado. A chegada de Longino pôs termo
ao espancamento inútil. E digo inútil porque o Mestre desmaiara. O
oficial, que estava informado da dura intervenção dos legionários na
flagelação, censurou aos soldados aquele absurdo comportamento.
Baixou-se e colocando os dedos na artéria carótida mediu a pulsação. -
Ainda vive - exclamou, aliviado.
Os quatro legionários que o tinham à sua guarda levantaram então o
patibulum. Mas Jesus ficou materialmente suspenso do lenho, com a
cabeça pendente para o peito. Um dos soldados sugeriu ao centurião que
soltassem o tronco. Longino dirigiu o olhar para o horizonte poeirento e
ao ver que estava muito perto da porta de Efraim, recusou a ideia,
ordenando que transportassem o condenado e o patibulum até junto da
muralha.
Assim se fez. Sem se deter em contemplações de tipo algum, o
pelotão recomeçou a marcha em direcção à referida entrada noroeste da
cidade. Dois dos verdugos apoiaram as extremidades do madeiro nos
ombros, carregando assim com o corpo desmaiado do Prisioneiro.
Durante estes novos oitenta ou cem metros os pés de Jesus foram
arrastados sem piedade pelo mato e pequenas formações rochosas,
ulcerando mais ainda os tecidos. Uma vez junto da muralha, ao pé da
referida porta e do atalho que da esquina seguia para Jaffa, os soldados
sentaram o Mestre, encostando-o aos blocos do muro alto.
Enquanto dois lhe amparavam o tronco, outro soltou a corda,
desatando Jesus. Os braços, exânimes, tombaram contra os flancos, e o
mesmo aconteceu com a cabeça, que ficou inclinada para o tórax. Os
verdugos que tinham açoitado os zelotas aproveitaram aquele descanso
para se sentarem à beira do caminho, enquanto os guerrilheiros,
exaustos, igualmente se deixavam cair.
Não tardou a aparecer um bando de curiosos. Mas, ao ver que o
pelotão estava parado, conservou-se a prudente distância, suspensa de
todos e de cada um dos movimentos dos romanos. A passagem de
caminhantes pela calçada era muito frequente.
Estávamos muito perto da tradicional celebração da ceia pascal e os
peregrinos apressavam o passo, tocando as cavalgaduras, e os rebanhos
de ovelhas. Muitos paravam por baixo do arco da Porta de Efraim,
surpreendidos com o aspecto daqueles homens ensanguentados, meio
nus, esmagados pelo peso dos troncos. Mas a tempestade de pó e de
areia continuava a aumentar e depois de deitar uma olhadela, a maior
parte dos curiosos logo se retirava. Parece-me que bem poucos chegaram
a reconhecer o Nazareno.
O centurião e o seu lugar-tenente voltaram a observar Jesus.
Ambos se mostravam seriamente preocupados. Não queriam de
modo algum que o condenado perdesse a vida durante o percurso, o que
só ia complicar as coisas. A pedido de Longino, o legionário que trazia o
saco de couro retirou dele um cântaro de barro envolto numa rede
entrançada à base de cordas e, protegendo-o do pó com o próprio corpo,
encheu um púcaro de metal, de um tom esverdeado, com um líquido
incolor.
O centurião aproximou o recipiente dos lábios de Jesus que, ao
contacto com o que em princípio identificou como água, reagiu
favoravelmente. Vi então como tinha os lábios gretados, com as
características manchas amareladas nos bordos, próprias da
desidratação. Lentamente, o Galileu foi engolindo a beberagem.
Ao terminar a boca ficou entreaberta, com o corpo a tremer de
febre e a consequente sensação de frio. Então, ao reparar na sua boca,
verifiquei com espanto que a bela dentadura do Rabi parecia estar
partida. Acocorei-me, ao lado de Longino e tocando-lhe no lábio inferior
com os dedos descobri a dentadura. Um dos incisivos superiores tinha
desaparecido e outro estava reduzido apenas a uma parte da coroa, o
que só podia ter acontecido nalguma das quatro quedas. Em minha
opinião, na primeira ou na quarta e última.
Ao notar a suave pressão de dedos, baixando-lhe o lábio Jesus abriu
os olhos como pôde. O esquerdo estava praticamente fechado pelos
hematomas e o rasgão na sobrancelha. O meu olhar deve ter sido tão
intenso e compassivo que adivinhei uma centelha de gratidão naquela
pupila. A hipotonia ou brandura do globo ocular era tão evidente que
imediatamente tive a certeza da gravíssima desidratação de que padecia.
A temperatura do lábio era muito alta e sem o poder remediar,
comentei com o oficial o estado delicado de Jesus.
Longino levantou-se e com um gesto de preocupação dirigiu-se para
o caminho pondo-se a observar os passantes. De início estranhei aquela
atitude do capitão da escolta, mas compreendi depois a razão por que se
afastara do pelotão.
Enquanto observava como o Galileu ia recuperando alento um grupo
de vinte ou trinta mulheres apareceu debaixo do Arco de Efraim.
Vinham, sem dúvida alguma, ao encontro do Mestre porque, ao
descobrirem-No ao pé da muralha, pararam. Avançaram timidamente e,
quando se encontravam a três metros, um dos legionários cortou-lhes a
passagem com a lança. Pus-me de pé e procurei com ansiedade a mãe do
Mestre, mas depressa compreendi que a tentativa de identificação era
ridícula. Eu não conhecia Maria. As mulheres começaram a chorar. Foram
lágrimas amargas e silenciosas. Então o Galileu virou a cabeça e, ao
contemplar o grupo de judias, inspirou profundamente. Depois, para
surpresa geral, exclamou com voz rouca:
- Filhas de Jerusalém!... Não choreis por Mim. Chorai antes por vós
e pelos vossos...
O vento agitava os mantos das hebreias, que não paravam de
soluçar. E Jesus, após uma breve pausa, acrescentou:
- A Minha missão está quase cumprida. Bem depressa Me juntarei a
Meu Pai... mas a época de terríveis males para Jerusalém não fez mais
que começar...
Os calafrios agravaram-se e, fazendo um último esforço, concluiu: -
Vereis chegar dias em que direis: Benditas as estéreis e aquelas cujos
seios não amamentaram os filhos...
Nesses dias pedireis às rochas que caiam sobre vós para vos
libertarem do terror das vossas atribulações. Aquelas mulheres tinham
sido valentes. Muito mais que os discípulos e amigos do Mestre. Com
excepção de João Zebedeu, de José de Arimateia e do jovem João
Marcos – que encontraria poucos minutos depois – os outros não tiveram
a coragem bastante para acompanhar o Mestre, nem sequer de longe.
No meio da perturbação, o Nazareno apercebeu-se disso e talvez
por essa razão tenha dirigido aquelas quentes palavras ao pequeno grupo
de simpatizantes. Empunhando o pilum com ambas as mãos, o soldado
obrigou as judias a recuar. Mas uma delas, em vez de obedecer, avançou
até ao infante, mostrando-lhe uma moeda.
Depois murmurou qualquer coisa ao ouvido do verdugo. Este aceitou
o dinheiro e depois de ver o que a mulher fechava na mão deixou-a
passar. A hebreia, que eu tinha visto nas tarefas domésticas do
acampamento de Getsémani, correu para o Rabi e, caindo de joelhos
estendeu a mão esquerda, depositando qualquer coisa nos lábios do
Nazareno. Eram passas! Passas de Corinto! Um dos frutos preferidos de
Jesus...
A boa mulher ainda conseguiu meter três passas na boca do Mestre.
Não teve tempo para mais. O mesmo legionário que a deixara passar, uma
vez afastado o grupo, voltou atrás, obrigando a hebreia a sair dali.
Comovido com aquele último gesto de amor pelo Filho do Homem não vi
chegar Longino. Junto dele encontrava-se um homem corpulento, de uns
cinquenta anos e de pele branca, embora ligeiramente acobreado.
Trazia um turbante e o vestuário distinguia-o do comum dos
hebreus por umas calças de tom esverdeado brilhante, muito folgadas
em cima mas apertadas a meio da perna.
Pelo que pude apreciar, só falava grego e com evidente dificuldade.
A uma ordem do centurião carregou o patibulum de Jesus e os
legionários levantaram-se, recomeçando as chicotadas às costas dos
zelotas. O optio voltou à vanguarda do pelotão enquanto Longino dizia a
dois dos seus homens que cuidassem do terceiro condenado. Os infantes
puseram os escudos em bandoleira e soergueram o Galileu pelas axilas.
A comitiva dividiu-se então em duas partes. Em primeiro lugar, os
rebeldes, com Arsenius a abrir o cortejo. Atrás, a uns cinco ou dez
metros, mais quatro verdugos, dois deles amparando o Rabi.
Imediatamente, cerrando o pelotão, o chamado Simão, natural de Cirene,
país que se situava no Norte de África, entre o Egipto e a Tripolitânia.
Durante o tempo em que Cristo esteve suspenso na Cruz, tive
oportunidade de trocar algumas palavras com o cireneu, escolhido pelo
centurião pela sua força física. Segundo me contou, Longino escolhera-o
quando, na companhia de outros amigos e peregrinos, como ele de Cirene,
se dirigia pela estrada de Jaffa, do acampamento que lhes servia de
refúgio temporário para o Templo. Como judeu, tinha intenção de assistir
aos ofícios rituais daquela sexta-feira.
Mas as suas intenções viram-se impedidas pelo chamamento
inesperado do oficial romano.
Não vinha, portanto, de nenhuma herdade, como explicaram
numerosos comentários bíblicos. Aquele Simão, como muitos outros
peregrinos, viera para a festa da Páscoa e, por não dispor de melhor
albergue, montara a sua tenda muito perto das muralhas. Daí vem o erro
de Marcos (15,21) quando afirma que voltava do campo. Como era natural,
naquele tempo, Simão de Cirene praticamente não conhecia Jesus.
Alguma coisa tinha ouvido, sim, sobre os Seus prodígios e curas, mas,
pelo menos naqueles históricos momentos, a tragédia do Filho do Homem
em nada o afectou. Cumpriu o que lhe tinham ordenado, permanecendo
depois durante algum tempo perto das cruzes por pura curiosidade. Anos
mais tarde, no entanto, tanto ele como seus filhos Alexandre e Rufo se
converteriam em eficazes pregadores do Evangelho no Norte de África.
Envoltos na sibilante tempestade de areia, os soldados
atravessaram o caminho, dispostos a percorrer os últimos metros que
nos separavam do local da execução.
Os homens que ajudavam o Nazareno tinham passado os Seus
braços por cima dos ombros, agarrando-O pela cintura e pelos pulsos. E
assim, incapaz de andar, arqueando a perna direita com dificuldade e
com a esquerda inutilizada Aquele destroço humano foi socorrido e
transportado até ao Gólgota. De acordo com os meus cálculos a via
dolorosa – nunca melhor utilizado foi o qualificativo – tivera um total
aproximado de quatrocentos e oitenta metros.
Eram doze horas e trinta minutos de sexta-feira, 7 de Abril.
Meio cego pelas partículas de pó e de terra, por pouco não tropecei
nas rochas calcárias que se amontoavam por aquelas paragens a noroeste
da cidade. Sem o saber encontrava-me já ao pé do Rás ou Cabeço
também conhecido por Calvário e Gólgota Embora a visibilidade ainda
fosse aceitável, os turbilhões de areia dificultaram a minha primeira
exploração daquele local.
Só depois do falecimento do Nazareno – uma vez serenada a
tormenta e livre o Sol do singular fenómeno que se registaria passadas
as treze horas e trinta – pude analisar com certo sossego o ponto onde
realmente me encontrava. O centurião e os seus homens conheciam bem
aquele cerro rochoso – pois de tal se tratava na realidade – e
apressaram-se em alcançar o cume. O primeiro e maior dos penhascos
(posto que a formação abrangesse duas moles contínuas) tinha uma
altura máxima de sets ou sete metros, tomando como referência o nível
do caminho que quase tocava as bases de ambos os promontórios.
* O termo Gulgultha é a forma aramaica do hebreu Gulgoleth, que
quer dizer crânio,. Por eliminação de um dos l, aparece a palavra grega
Golgotha e a siríaca Gugultha. A versão latina lê-se Calvarium. De onde a
denominação final de Calvário. (N. Do M. )
Enquanto subia pelas crostas de calcário corroídas, o que em
primeiro lugar me chamou a atenção foi a paupérrima vegetação
existente no local e o arredondado do cerro. Era muito provável que a
nudez da rocha – observada de certa distância – desse asas à imaginação
dos habitantes de Jerusalém, que tinham posto o nome de crânio 1
àquele penhasco.
O lugar, como era natural, tornara-se ideal para este tipo de
execuções públicas. Elevava-se a uma centena de metros da porta
ocidental de Efraim mesmo ao pé do concorrido caminho para Jafa. Se
realmente se pretendia impressionar os habitantes e peregrinos da
Cidade Santa, aquele era um ponto de notável interesse.
No que concerne às dimensões do Gólgota ou Cabeço (e faço
referência a esta denominação – Rás – porque se trata da última
explicação oferecida pelo prestigiado arqueólogo Vicent, baseado no que
pude ouvir de um velho habitante do bairro do actual Santo Sepulcro), o
cabeço mais volumoso sobre o qual se iriam dar as crucifixões, penso que
teria entre vinte e trinta metros de diâmetro na base, com uma coroa ou
cume arredondado de doze a quinze metros, aproximadamente.
Quanto ao penhasco situado logo a seguir, e para norte, as suas
dimensões eram sensivelmente menores. Aquele iria ser, enfim, o cenário
de toda uma série de trágicos e desconcertantes acontecimentos.
Como descrever aquele lugar e aquele momento? Como transmitir a
imensa solidão de Jesus de Nazaré ao pisar a calva pedregosa do
Gólgota? Hoje, ao defrontar-me com esta parte do meu diário, estive
prestes a
* Das diversas interpretações que eu tinha estudado acerca deste
lugar durante o meu treino para a missão Cavalo de Tróia, só que
associava a forma de penhasco com a palavra crânio” me parecia a mais
verosímil. E não estava enganado.
Para alguns, entre os quais se encontrava São Jerónimo, o Gólgota
tinha este nome por ser o local onde eram justiçados e sepultados os
criminosos. Crasso erro, já que os Judeus tinham por costume enterrar
os executados numa fossa comum ou, até, lançá-los para os barrancos de
Geena ou Hinnom, ao sul de Jerusalém, onde eram devorados pelos cães,
ratazanas e outros animais. Uma segunda teoria – mais peregrina que a
anterioralude a uma velha lenda, segundo a qual aquele promontório foi
assim denominado porque numa caverna inferior se encontrava o crânio
de Adão. Assim o acreditaram, por exemplo, personalidades tão
importantes como Orígenes, Santo Atanásio, Santo Ambrósio, Santa
Paula, etc. Neste sentido, uma vidente chamada Ana Emmerich chegou a
escrever o seguinte na sua obra A Dolorosa Paixão de Nosso Senhor
Jesus Cristo: Quanto à origem do nome Calvário, eis o que sei. A
montanha que tem esse nome, apareceu-me no tempo do profeta Eliseu.
Não era então como no tempo de Jesus; era uma elevação com muitas
muralhas e grutas que pareciam sepulcros. Vi o profeta Eliseu descer
aquelas grutas (não sei se o fez realmente ou se era simplesmente uma
visão). Vi-o tirar um crânio de um sepulcro de pedra, onde repousavam
ossos. Alguém que estava a seu lado, creio que era um anjo, disse-lhe: É
o crânio de Adão. O profeta quis levá-lo, mas quem estava com ele não o
permitiu.
Vi sobre o crânio alguns cabelos louros dispersos. Soube também
que o profeta, tendo contado o que lhe acontecera, originou que o local
recebesse o nome de Calvário. Enfim, vi a Cruz de Jesus, assente
verticalmente sobre o crânio de Adão.” Com toda a minha consideração
pela citada vidente, as suas informações”
não concordam com os estudos arqueológicos nem com a própria
natureza da humilde rocha. (N. Do M. )
abandoná-lo. Também a mim me faltam forças, abalado pelas
recordações. E se voltei à narrativa desta primeira grande viagem foi
pelo respeito à promessa feita ao meu irmão Eliseu... Espero que aqueles
que venham a ler este testemunho saibam perdoar a pobreza da minha
linguagem.
A ascensão até à plataforma arredondada que coroava o penhasco –
o qual, creio ter dito já, ter doze a quinze metros de diâmetro – foi
muito breve. Os soldados meteram-se por uma espécie de canal situado
no lado oriental e que, na realidade, mais não era que uma fenda natural,
consequência de alguma racha remota da enorme massa pétrea.
Bastaram vinte passos para chegar à zona superior, que não me decido a
chamar cume.
Ao pisar o local, o meu espírito ficou oprimido. As rajadas de vento
não assobiavam, antes uivavam, entre meia-dúzia de postes altos,
enterrados firmemente nas fendas da rocha. Eram os stipes, palus ou
staticulum, como eram chamados os madeiros verticais das cruzes! Foi
medo o que senti ao ver aqueles troncos rugosos? Agora, à distância,
penso que teve de ser uma mistura de terror e de decepção. Terror, pelo
seu perfil negro e pontiagudo, e decepção porque influenciado talvez
pelas inúmeras tradições e imagens sobre a Cruz bíblica, por excelência,
em mim se formara uma imagem muito diferente daquela que tinha
diante dos olhos. Aquilo nada tinha a ver com as majestosas, polidas e
trabalhadas cruzes que foram e são representadas nas igrejas ou por
quase todos os mestres universais da pintura e da escultura.
Na minha frente, quase no centro do dorso convexo do Gólgota, só
havia seis árvores mutiladas, nuas, mostrando aqui e além as cicatrizes
circulares e esbranquiçadas, onde, em tempos, tinham florescido outras
tantas ramadas. Conservavam ainda a casca cinzenta e áspera própria
das coníferas, ainda com resina que escorrera em fios por entre fendas
da casca e se solidificara.
Quase todos apresentavam na parte inferior uma infinidade de
marcas que permitiam ver a face sólida da madeira. Porém, naqueles
instantes não soube adivinhar a que eram devidas.
Nas extremidades, os stipes – cujas alturas oscilavam entre os três
e os quatro metros -, afiados muito toscamente. Como se os
responsáveis pelo patíbulo tivessem a pretensão de lhes aguçar a ponta a
golpes de machete!... Eram as únicas zonas claras daqueles sinistros
fantasmas, alinhados em duas fileiras quase paralelas. Nas pontas as seis
árvores apresentavam diversas rachas, à maneira de forquilhas. A
separação de poste a poste – na primeira fila – não chegava aos três
metros.
Quanto aos outros paus, tinham sido cravados quatro ou cinco
metros mais atrás e um deles, o voltado para ocidente, estava inclinado.
Sem dúvida, as cunhas de madeira que serviam para escorar a árvore
tinham cedido. Houve também outra coisa que me causou estranheza:
dois tinham sido perfurados, mais ou menos a um metro do chão, por
barras de ferro, que ficavam a descoberto de um lado e outro dos
postes cilíndricos. Os sediles em questão (foi a única identificação que
me veio à memória) tinham sido dispostos no madeiro central da primeira
fileira e no que se erguia à esquerda deste; quer dizer, no que ocupava o
extremo oriental da citada primeira fila de stipes. Não o podia saber
então, mas a presença do último sedile viria a ser de certa
transcendência naquilo que poderia qualificar de diálogo entre o Galileu e
um dos zelotas. Durante uns minutos que me pareceram intermináveis,
tanto os bandidos como Jesus permaneceram com o olhar fixo naqueles
troncos. O silêncio, quebrado pela tempestade, foi longamente
significativo. Mas aquela situação tensa duraria pouco.
Sete dos soldados tomaram posições, rodeando as três primeiras
árvores, enquanto o que transportava o saco de couro se apressava a
meter-lhe as mãos dentro e a tirar de lá uma série de ferramentas.
Gelou-se-me o sangue nas veias ao ver um molho de cravos (julgo que
contei quinze), dois martelos de grandes cabeças quadrangulares de
madeira, tenazes de ensebados cabos de couro, uma corrente de um
metro de comprimento e um machete de curtas dimensões e lâmina larga.
Os terroristas, como que hipnotizados ao pé dos stipes, logo saíram
do seu mutismo. Dois membros da patrulha tinham começado a soltar a
corda que amarrava ao patibulum o mais velho dos zelotas. Foi aquela a
chispa que incendiou um dos seus últimos ataques de histerismo e
desespero. Ao compreender que fora escolhido como primeira vítima,
começou a gritar desesperadamente, sacudindo o madeiro com os braços
e atirando pontapés aos legionários. Longino, que parecia esperar aquela
reacção, ordenou qualquer coisa a um terceiro soldado. Este pôs-se atrás
do condenado e, agarrando-o pelo cabelo, deu-lhe um forte puxão,
imobilizando-o.
Sem perder um segundo, o centurião agarrou uma das lanças e,
depois de apontar a base do fuste à cabeça do prisioneiro, vibrou uma
pancada seca que o fez desmaiar. Uma vez livre das ataduras, e enquanto
era amparado por dois dos infantes, o que o tinha imobilizado acabou por
lhe arrancar a túnica rasgada respeitando, no entanto, a tanga. Com uma
precisão e um desembaraço que me deixaram perplexo, os romanos
estenderam de costas o guerrilheiro inconsciente, esticando (a palavra
mais exacta seria retesando) os braços sobre o madeiro. Por se tratar
de um patibulum perfeitamente cilíndrico cada um dos legionários
encarregues de puxar pelos braços se ajoelhou na frente de cada uma
das pontas do lenho, segurando-o com os joelhos e as coxas. Deste modo
se conseguia uma estabilidade aceitável durante o processo do
encravamento.
Quando os verdugos consideraram que o patibulum se encontrava
perfeitamente seguro, fizeram um aceno de cabeça e o soldado
responsável pelas ferramentas veio à cabeceira, ajoelhando-se também
na rocha branca. Os seus joelhos musculosos prenderam a cabeça do réu,
esmagando-lhe, praticamente, as orelhas, ao mesmo tempo, e embora
aquela última medida de segurança não parecesse necessária no caso do
* O sedile era uma peça de madeira ou de metal – ferro, geralmente
– que em certas alturas era colocada nas zonas baixas da stipe. Era
colocado quando se desejava prolongar a agonia do crucificado. Nesta
peça, que adoptava formas diversas – de uma simples barra a um taco de
madeira, passando por uma estrutura semelhante a um corno -, o
condenado podia apoiar os pés e, consequentemente, o peso do corpo.
Tertuliano cita-o numa ocasião, chamando-lhe sedilis excelsus, ou
assento elevado. (N. Do M.)
bandido, um quarto legionário uniu os tornozelos, rodeando-os com a
corrente.
O soldado que as postara atrás do condenado, controlando-lhe a
cabeça, tirou um dos compridos cravos, que tinha metido no cinturão. À
sua direita, sobre a rocha do Gólgota, estava um dos volumosos maços.
O Mestre, ao ver-se sem os guardas que O acompanhavam, deixarase
cair de joelhos no Calvário, e continuava na mesma posição, dentro do
círculo formado pelo pelotão e voltado para os stipes. No entanto, não
creio que chegasse a contemplar a cena. A cabeça e o olhar estavam
voltados para a terra e assim continuou até os homens de Longino O
virem buscar.
Com a minúcia própria de um profissional muito experimentado
naquele funesto mister, o carrasco romano pegou no cravo com a mão
direita e foi apalpando com a ponta afiada os diferentes ossos do carpo
ou pulso esquerdo pela face palmar. Notei como localizava as artérias
radial e cubital, pressionando suavemente a veia que tem este último
nome. Depois, fez um pequeno rasgão no ponto certo passou o cravo para
a outra mão e colocou-o verticalmente por cima do ponto escolhido.
Pegou em seguida no martelo e levantou os olhos, esperando que o
oficial o autorizasse a golpear. Longino assentiu com uma leve inclinação
de cabeça e o legionário aproximou o maço até tocar suavemente na
cabeça de cobre. Em seguida, levantou o martelo mais alto que a orelha
direita, deixando-o cair com força no cravo.
A secção quadrada – com cerca de oito centímetros – penetrou sem
dificuldade, atravessando o pulso e entrando também na madeira do
patibulum. O cravo – de vinte ou vinte e cinco centímetros de
comprimento – inclinara-se ligeiramente, ao enterrar-se no carpo. A
cabeça aparecia agora voltada para os dedos. Naquele momento, com o
coração pulsando aceleradamente, não reparei num pormenor que muito
depunha a favor do carrasco... Com uma segunda martelada – muito
menos violenta que a primeira – o cravo entrou um pouco mais. A cabeça
tinha ficado a uns dez centímetros da pele. O sangue demorou dois ou
três segundos a sair. O guerrilheiro não reagiu. Estava inconsciente, e o
carrasco apressou-se em repetir a operação no pulso direito. Nesta
altura nem sequer olhou para o centurião.
Mais duas marteladas foram suficientes para pregar o condenado ao
madeiro. Curiosamente, a cabeça do cravo voltou a ficar obliquamente.
Apercebi-me então de como ambos os polegares se tinham voltado
bruscamente para o centro da palma das mãos. Os outros dedos tinham
ficado apenas dobrados. (Ao dirigir os ultra-sons para os pulsos do
Mestre pude formular uma hipótese – confirmada por estudos
anatómicos posteriores sobre a causa deste fenómeno.)
Ao atravessar os pulsos do zelota, dois borbotões de sangue
jorraram lentamente, escorrendo pela casca do lenho e pingando na
rocha, onde formou duas pequenas poças. Embora as hemorragias não
fossem preocupantes, a visão do sangue e o encravamento do seu
companheiro provocaram o desmoronamento do debilitado sistema
nervoso do jovem terrorista. Com o rosto suplicante conseguiu arrastarse
de joelhos até Longino. Uma vez a seus pés baixou a cabeça até ao
solo, pedindo aos gritos que tivesse compaixão dele. Durante décimos de
segundo, os olhos do centurião embaciaram-se com uma sombra de
piedade.
Levantou as mãos em sinal de impotência e, de modo a que o
condenado não o notasse, pediu ao legionário mais próximo o pilum.
Longino não podia evitar a crucificação do rapaz, mas podia evitar que
sofresse as dolorosas perfurações dos cravos nos pulsos. Levantando a
lança com ambas as mãos preparou-se para golpear o crânio do
aterrorizado prisioneiro. - Alto!... Que quereis daqui?
Os gritos de uma das sentinelas interrompeu os propósitos do
oficial. Ao voltar-se, viu um grupo de seis ou sete mulheres que subia
com passo decidido pela fenda do penhasco.
Longino esqueceu-se do réu e avançou ao encontro das hebreias. As
mulheres trocaram algumas frases com o centurião, mostrando-lhe um
pequeno cântaro de barro vermelho. O chefe da patrulha tranquilizou os
seus homens, permitindo que as judias chegassem ao alto do Calvário.
Uma vez lá em cima, a que trazia a vasilha dirigiu-se ao guerrilheiro
que acabava de ser pregado. Seguiu-a uma segunda mulher e as
restantes ficaram em silêncio à beira do patíbulo, defendendo-se das
aceradas rajadas de vento com os seus amplos mantos negros e verdes.
Ao verem que aquele homem jazia inconsciente, as resolutas
mulheres voltaram-se para Longino. O centurião, antecipando-se aos seus
pensamentos, indicou-lhes o segundo réu, que continuava sob o peso do
patibulum, sangrando e chorando desesperadamente.
Mas antes que as filhas de Jerusalém abrissem o cântaro e
cumprissem o velho conselho do filho dos Provérbios – dai bebidas
fortes ao que vai perecer e vinho à alma amargurada – o oficial fez sinal
aos legionários para que içassem o primeiro bandido.
A escada foi apoiada a uma das stipes da primeira fileira (a de
ocidente), enquanto dois infantes levantavam, não sem dificuldade, o
lenho a que estava pregado o condenado. Sem perda de tempo, o
carrasco responsável pelas perfurações amarrou uma corda à volta do
tórax, dando logo a seguir dois nós rápidos em cada uma das pontas do
patibulum.
Por fim, exibindo grande destreza, rematou a amarra com uma
laçada central.
Um quarto soldado pôs-se no alto da escada e os que seguravam o
guerrilheiro transportaram-no até junto do madeiro vertical. O autor do
encravamento estendeu a soga ao companheiro no alto da escada e este
introduziu-a na ranhura superior da árvore. Imediatamente, o legionário
começou a puxar pela grossa corda, ajudado em baixo pelo optio.
A cada puxão, a corda, em contacto com a stipe, emitia um rangido
agudo, que ia confundir-se com os gritos desesperados do segundo
zelota. Em questão de minuto e meio, o patibulum foi içado até ao cimo.
O lugar-tenente de Longino esticou ao máximo a corda e, antes que o
romano empoleirado na escada soltasse a soga, os três infantes que
vigiavam a elevação do réu correram em auxílio de Arsenius, aguentando
no ar o preso e o patibulum.
Ao desfazer-se da corda, o legionário que estava em cima prendeu-a
nos dois ramais da laçada central, arrastando a abertura do tronco para
a ponta da stipe. Uma vez encaixado o patibulum, o infante deu um grito
e os quatro romanos largaram o comprido cabo. Com um rangido, deslizou
para baixo até ficar enfiado na estaca vertical.
O corpo do bandido caiu também em peso, dando-se uma máxima
distensão nos braços, que fizeram um ângulo de sessenta e cinco graus
com a stipe. Esta descaída aterrorizadora abriu as feridas dos pulsos e
provocou ainda a distensão dos ligamentos das articulações dos ombros e
dos cotovelos.
A dor devia ter sido tão insuportável que o infeliz reagiu, voltando a
si. Os olhos queriam saltar-lhe das órbitas. Mas a posição forçada em
que ficara quase lhe bloqueara o aparelho respiratório e a boca
desarticulada, não conseguiu emitir som algum.
No entanto, os soldados pareciam já não ter excessiva pressa.
Antes de descer da escada, o legionário pegou no maço e deu umas
quantas marteladas no patibulum, firmando-o. Depois aceitou das mãos
do optio a tabuleta onde se lia o nome de Gistas e pregou-a no troço
superior da cruz, um palmo acima do madeiro transversal. Os duzentos
curiosos que tinham seguido a patrulha e que iam tomando agora posição
em redor do rochedo romperam em gritos e exclamaram de protesto ao
verem como o soldado pregava o inri do zelota.
Com efeito, Longino tinha razão. Se a comitiva se tivesse
aventurado pelas ruas de Jerusalém com os dois guerrilheiros, quem
sabe do que teria sido capaz o populacho. Pouco a pouco, o grupo inicial
de observadores judeus foi multiplicando-se com outros peregrinos que
iam e vinham pela estrada de Jafa. Muito perto, na primeira fila – cerca
de dez metros em linha rectadistingui alguns dos saduceus.
E, entre estes, Judas Iscariotes, com a cabeça coberta pelo manto.
(Ignoro se por medo às possíveis represálias dos amigos e adeptos do
Mestre ou para se proteger como muitos outros, dos turbilhões de areia
que varriam os arrabaldes da cidade.) Sinceramente, ao ver o traidor, o
meu desejo foi descer do Gólgota e ir ter com ele. O seu estranho
suicídio era um dos acontecimentos que teria gostado de esclarecer. Mas
a missão impunha claramente que não devia separar-me de Jesus
naqueles momentos críticos.
O encarregado do encravamento apanhou o martelo e, pondo-se na
frente do condenado, fincou o joelho esquerdo na terra.
Tirou outro cravo do cinto e fez sinal aos seus companheiros.
Um deles agarrou o pé direito do crucificado, esticando a perna, e
ajustou a planta do pé à superfície da stipe. Este movimento deixou
rente à pele um dos ossos do tarso – o astrágalo -, que serviu de
referência ao hábil carrasco.
Colocou o cravo sobre o referido osso e de uma só martelada
pregou-o à madeira. A dor subiu pelo corpo de Gistas, transformando-se
de imediato num uivo. E antes que o outro romano estendesse a perna
esquerda do zelota, encostando a planta do pé ao pau vertical, um jorro
de sangue nasceu por baixo do pé recém-cravado, correndo pela árvore
até às cunhas que a escoravam. Ao uivo seguiram-se uma série de berros
entrecortados.
O diafragma do zelota tinha começado a ressentir-se e a sua
respiração entrou num enfraquecimento angustiante. Poucos minutos
depois, entre um grito e outro grito, o desesperado Zelota começou a
ofegar, multiplicando as curtas e dramáticas inspirações de ar.
Os gritos – mistura de espanto, dor e raiva – arrancaram ao seu
isolamento o jovem terrorista. Levantou penosamente a cabeça e ao ver
o companheiro empalideceu e começou a suar. Os legionários terminaram
o encravamento do prisioneiro, cujo pé esquerdo ficou a dez ou quinze
centímetros acima do direito.
O sangue, correndo em abundância pela stipe, acabou por provar
fortes náuseas no segundo guerrilheiro, que não tardou em vomitar.
Longino apressou os seus homens para que desatassem Dimas.
O infeliz, atordoado e tremendo de medo, não opôs resistência. Uma
vez nu, banhado em suor frio, as mulheres receberam do centurião sinal
para que lhe ministrassem a poção. Mas, antes, quatro legionários
rodearam o condenado, quase lhe espetando as pontas das lanças nos
rins, costas e ventre. As tremuras do bandido foram aumentando e os
joelhos começaram a oscilar. Contagiadas pelo pavor do prisioneiro, as
judias encheram com mãos trémulas uma escudela funda de madeira com
o líquido amarelo-esverdeado do cântaro.
Ao aproximar-me cheguei a cheirar a beberagem, identificando
entre os seus ingredientes o odor especial do fel ou bílis de touro. Ao
interessar-me pela natureza da mistura, a que trazia o cântaro explicoume
com algum temor – confundindo-me possivelmente com alguma
elevada personalidade estrangeira – que consistia essencialmente num
vinho aguardentado a que se juntava o conteúdo de uma ou várias bolsas
biliares de boi recém-sacrificado. Longe de conter algum tipo de
narcótico, os hebreus utilizavam para estes fins um processo muito mais
corrente e natural.
Preparavam em primeiro lugar um extracto de fel, deitando num
filtro de balta o conteúdo das bolsas.
Depois punham-no a evaporar em banho-maria, sem pararem de o
agitar. Desta forma se obtinha o extracto desejado que podia
conservar-se indefinidamente.
Quando aquela piedosa associação de mulheres tinha notícia de uma
execução, vertiam o extracto de fel de boi num vinho ou aguardente de
elevada graduação alcoólica. A fulminante acção metabólica da bílis
libertava o álcool do vinho, provocando assim no condenado uma rápida e
considerável embriaguez que lhe embotava o cérebro, aliviando em certa
medida os seus sofrimentos e debilitando principalmente a sua
consciência. Assim, Mateus foi o único que estava certo ao narrar esta
passagem evangélica. Marcos) garante que as mulheres deram a beber a
Jesus vinho com mirra. Isto é inexacto. Entre outras razões, porque a
mirra, pela sua natureza excitante, tónica e emenagoga, provavelmente
teria actuado de forma contrária ao fim desejado. (Naquele tempo era
geralmente utilizada como bálsamo, como pomada para certos tumores
articulares, como elemento dentífrico e, principalmente, como perfume.)
A hebreia pousou a mão direita sobre a escudela de madeira, para que o
pó e a terra arrastada pelo vento não contaminassem o vinho. Olhou para
Longino e este voltou a indicar o prisioneiro, autorizando-a a que se
aproximasse.
A mulher foi até Dimas e estendeu-lhe a beberagem. Acossado pelo
terror, o rapaz não reagiu. Os seus olhos, avermelhados pelo choro,
desviaram-se para o centurião, interrogando-o com o olhar.
- Bebe! - ordenou-lhe Longino.
E o zelota ergueu os braços pegando na escudela. Mas as suas
convulsões eram já tão fortes que parte do líquido se perdeu.
Por fim conseguiu levar a escudela à boca, bebendo os duzentos e
cinquenta ou trezentos centímetros cúbicos que continha.
As hebreias retiraram-se, juntando-se ao grupo, e o condenado foi
levado aos empurrões para junto das stipes que estavam livres na
primeira fila e para junto das quais tinham transportado o patibulum.
Dimas foi colocado de costas para os postes e, enquanto dois dos
legionários lhe puxavam os braços para trás, um terceiro rasteirou-o
fazendo-o cair de costas.
O centurião, postado atrás do réu, pegou numa lança, disposto a
bater no crânio do prisioneiro se assim fosse necessário. Levantou a
conteira do pilum e esperou. No entanto, o terrorista quase não
ofereceu resistência. Aparentemente, parecia ter assumido a sua sorte.
O medo, aliás, garrotara-lhe os músculos. Ao encostarem-no ao madeiro
levantou a cabeça e com um fio de voz começou a chamar por sua mãe.
Mas os constantes chamamentos desapareceram quando o carrasco
vibrou a primeira martelada.
Um grito elevou-se da rocha, e a multidão acolheu o novo
encravamento com fortes assobios e protestos. O prisioneiro, de olhos a
saltar das órbitas e com os músculos anteriores e posteriores do
pescoço tensos como cordas de violino, estremeceu, deixando cair a
cabeça para trás do tronco.
Naquele instante, o vento espalhou um grande fedor. O legionário
que segurava os pés do condenado explodiu em mil imprecações e insultos
contra o zelota. Num pânico incontrolável, os esfíncteres do rapaz
tinham-se aberto, soltando as fezes.
Ao pregarem-lhe o pulso direito, o jovem perdeu os sentidos, e os
carrascos aproveitaram o facto de estar inconsciente para acelerar o
seu levantamento na stipe.
Quando se dispunham a içar o patibulum surgiu uma dúvida. Em qual
dos dois madeiros livres deviam crucificá-lo? Os legionários perguntaram
ao oficial e este encolheu os ombros. Foi o encarregado dos cravos quem
deu a solução, bem recebida por todos. - Deixemos o rei no centro... -
comentou, divertido.
Assim se fez. Foi esta a razão por que os chamados ladrões ficaram
à direita e à esquerda do Mestre.
Quando foi a vez do pé esquerdo do guerrilheiro, o verdugo
atravessou-o de tal forma que os dedos ficaram sobre um dos braços do
sedile de ferro que, como disse, atravessava a árvore de um lado ao
outro. Esta circunstância proporcionaria a Dimas certo alívio quando
precisou de inspirar.
O pé direito foi pregado um pouco mais baixo e na face frontal da
stipe. O segundo braço do sedile – que ficaria paralelo ao patibulum como
na Cruz de Cristo – não foi utilizado. É minha opinião que este relativo
descanso pôde influir decisivamente neste crucificado, até ao ponto de
lhe permitir uma melhor oxigenação e, consequentemente, maior lucidez.
Concluída a crucificação de Dimas, os soldados, suados e manchados
de sangue, recuperaram a corda que tinha servido para levantar o réu e
lançaram os olhos para Jesus de Nazaré. O meu coração voltou a
estremecer ao notar sorrisos sarcásticos nos rostos de alguns romanos.
Eram treze horas...
A súbita intervenção de Eliseu distraiu-me momentaneamente. O
módulo detectava o olho do siroco a pouco mais de quinze minutos de
Jerusalém. A velocidade de haboob baixara ligeiramente, mas o arrasto
de areia era muito considerável, levantando turbilhões de partículas até
dois mil e dois mil e quinhentos metros do solo. Para o meu companheiro,
o mais preocupante daquela tempestade seca era a possibilidade de
arrastar agentes biologicamente activos que poderiam afectar-me.
Sinceramente, a advertência de Eliseu não me preocupou. O meu
coração e os meus cinco sentidos encontravam-se a quatro metros de
mim mesmo, na figura daquele Homem de 1,81 metros, agora curvado e
destruído. O Mestre foi levantado sem mais demoras. Foi-lhe tirado o
manto púrpura que ainda conservava nos ombros, preso ao pescoço,
cabendo depois a vez ao roupão. Ao desenrolá-lo ficou a descoberto a
parte superior da túnica. E ao vê-la, fechei os olhos. Era uma mancha
informe, sangrenta e colada ao corpo por cima das feridas da flagelação.
Engoli em seco. Que aconteceria no momento de o despir?
Porém, o transe angustiante foi atrasado por um problema com que
ninguém tinha contado: a coroa de espinhos.
Quando um dos soldados se preparava para tirar a túnica, outro
reparou no entrelaçado das puas, fazendo notar que ou rasgavam a
túnica ou tinham primeiro de tirar a coroa.
Os infantes enredaram-se numa discussão. Penso que se teria
prolongado indefinidamente se o optio não interviesse. Com um sentido
prático bastante mais acentuado que o dos seus soldados, limitou-se a
tocar no tecido e ao verificar que se tratava de uma túnica inconsútil, ou
seja, sem costura, ordenou aos carrascos que o despojassem da coroa.
De início, pareceu-me absurdo que os legionários discutissem por uma
coisa que podia ter tido uma solução rápida e fácil: rasgar a roupa.
Depois compreendi. Segundo parecia era costume não oficial que os
carrascos distribuíssem entre si a roupa do justiçado 1.
Assim, um dos romanos pôs-se na frente de Jesus, introduzindo
lentamente os dedos por duas das aberturas da coroa, quando as mãos
agarraram o feixe de juncos por altura das orelhas deu um violento
puxão para cima. O Mestre estremeceu. Mas o elmo de espinhos não se
soltou por completo.
Algumas das compridas e afiadas puas estavam solidamente
enterradas na carne e aquela primeira tentativa apenas conseguiu
dilacerar mais ainda os tecidos, provocando o nascimento de novos fios
de sangue.
Arsenius moveu a cabeça com impaciência, lembrando ao infante que
primeiro teria de alargar horizontalmente e depois puxar por cima. O
Nazareno apertou os lábios e esperou pelo segundo puxão. Ao alargar
para os lados, muitos dos espinhos das áreas parietais e frontal
soltaram-se.
O carrasco repetiu a manobra. O puxão vertical foi tão violento que
o elmo saltou, mas as puas situadas por cima das faces e da nuca
arranharam a pele, e dois dos espinhos – cravados no tumefacto pómulo
* A partir do imperador Adriano (117-138) torna-se oficial este
costume. Denominado pannicularia ou propina”, por decreto recolhido no
Digesto. (N. Do M.)
direito e no músculo elevador esquerdo – partiram-se e ficaram
alojados em ambas as regiões do rosto. Um gemido acompanhou aquele
arranque brutal e os saduceus, atentos no Mestre acolheram a manobra
com aplausos e aclamações.
Antes de o Rabi ter tempo de se recompor das novas e agudas
dores, dois dos soldados levantaram-lhe os braços, enquanto um terceiro
o despia levantando a túnica pela orla inferior. Ao descobrir-lhe as
pernas senti como o meu coração acelerava o seu ritmo. Estavam
atravessadas e percorridas em todos os sentidos por regos de sangue,
coágulos, hematomas azulados ou rebentados e uma infinidade de
pequenos círculos, na sua maioria abertos pelas cardas das sandálias
romanas. Quanto aos joelhos, o esquerdo apresentava um inchaço
considerável. O direito, embora menos deformado, estava aberto na
face anterior da rótula, apresentando múltiplos rasgões e perda do
tecido celular subcutâneo, podendo ver-se mesmo parte do penósteo do
osso. Era incompreensível como Aquele ser humano conseguira caminhar
e arrastar-se sobre os joelhos até à muralha. As forças – confesso –
começaram a faltar-me de novo.
Mas o martírio ainda nem sequer começara...
O rangido da túnica ao despegar-se do tronco de Jesus fez-me
empalidecer. O legionário, ao verificar que o tecido se encontrava colado
às feridas não hesitou: voltou a cabeça e, sorrindo maliciosamente aos
companheiros, foi levantando a túnica com lentidão. O linho foi-se
descolando das feridas, arrancando grandes crostas de sangue. Corei de
fúria. E aferrei-me à vara de Moisés até quase a partir. Grandes gotas
de suor começaram a rolar-me pelas têmporas e tive de morder uma das
mangas do manto para não me atirar àqueles sádicos.
Por fim, quando a túnica foi arregaçada até à altura da cara do
Nazareno, os soldados baixaram os braços e a cabeça do Rabi,
despojando-o de toda a sua roupa.
E o Filho do Homem ficou inteiramente nu, ligeiramente inclinado e
banhado por novas hemorragias. Ao ver aquelas costas abrasadas por
hematomas e rasgões, Longino ficou perplexo. O cruel descolamento da
túnica abrira muitas das feridas, originando outra sangria abundante.
Apesar da protecção dos mantos e da túnica, o madeiro tinha ferido a
parte superior das espáduas, ulcerando as áreas da omoplata direita e a
pele situada sobre o feixe muscular esquerdo do trapézio.
Nesta última região observei uma esfoladura de uns nove por seis
centímetros, com bordos irregulares e enrugamento da pele, produzida
possivelmente nalguma das violentas quedas (talvez na segunda, ao
tombar de costas no túnel da Fortaleza Antónia).
Os cotovelos encontravam-se também praticamente desfeitos pelos
golpes e quedas. Quanto ao antebraço esquerdo, a fricção com a corda
do patibulum tinha desfibrado o plano muscular, com perda de substância
e amplas áreas arroxeadas.
Mas a visão mais aterrorizadora era a das costas. As patadas
tinham rebentado alguns dos hematomas e massacrado muitas das fibras
musculares vitais na função respiratória. O sangue corria de novo por
Aquele destroço humano que, ao ser desapossado da roupa, tinha
começado a tiritar, acusando os duros embates do vento e do pó. A
impotência, abandono e amargura daquele Homem alcançaram naquele
instante um dos seus pontos culminantes.
Os curiosos e passantes que tinham vindo a engrossar o grupo inicial
de testemunhas romperam aqueles dramáticos momentos, troçando e
acolhendo com grande risota a nudez do Galileu. Os sacerdotes,
principalmente, foram os mais corrosivos. Alguns chegaram mesmo a
saltar para os penhascos inferiores do Gólgota, gesticulando e imitando
Jesus que, humilhado e de cabeça baixa, ocultava com ambas as mãos a
região pudenda.
Livres da tenaz do elmo de espinhos, os cabelos começaram a
flutuar ao vento, descobrindo as marcas das chicotadas de Lucílio nas
orelhas. Apesar dos 17,5 graus centígrados que o módulo registava
naquele momento em Jerusalém, o Mestre continuava a tremer de frio.
Ao ficar sem a protecção das roupas, amplas zonas dos braços, tórax,
ventre e pernas ofereciam o conhecido aspecto de pele de galinha. A
febre, em vez de ceder, continuava a enfraquecê-lo.
Como estava longe a majestosa figura do Galileu! Embora os Seus
discípulos e amigos não se encontrassem presentes, estou convencido de
que muito poucos O teriam reconhecido. As dores, o esgotamento e a
sede deviam ser insuportáveis; no entanto, ao contemplá-lo ali, só,
ultrajado e sem o mais fugaz alento ou prova de amizade ou
encorajamento, acho que a Sua verdadeira e mais profunda tortura não
eram os padecimentos físicos, mas sim, a sensação de aniquilamento
moral que sempre invade um homem injustamente condenado. Porém, são
apenas reflexões pessoais de um mero observador. Quem poderia
adivinhar os pensamentos de Jesus de Nazaré? A verdade é que o Seu
fim se encontrava muito próximo. Enquanto os soldados colocavam o
patibulum perto da stipe central, Longino dirigiu-se ao grupo de
mulheres e convidou-as a que dessem também ao Rabi a beberagem de
fel e vinho. E as mesmas hebreias, com passo apressado, encaminharamse
para o Mestre.
Ao separar-se das suas companheiras, logo atrás das encarregadas
da beberagem, tinha aparecido o jovem João Marcos. Ignoro como pôde
chegar até ali mas, antes que cometesse alguma loucura, fiz-lhe sinal
para que se aproximasse. As judias encheram pela segunda vez a
escudela de madeira, oferecendo a Jesus o líquido fétido.
O Nazareno levantou a cabeça e fitou as mulheres. Estas,
estranhando o silêncio do Condenado, fizeram. Um ligeiro movimento com
a escudela, animando-o a que bebesse. Mas o Gigante não se decidia. As
mãos não se moviam dos genitais. Respeitando o pudor do Galileu, a que
segurava a beberagem colocou-a junto dos lábios, inclinando o recipiente
de modo a que pudesse bebê-la sem necessidade de utilizar as mãos.
O Mestre entreabriu a boca e provou o líquido. Mas assim que se
apercebeu de que era Jesus afastou a cara, negando com a cabeça. A
atitude do prisioneiro deixou atónitas as hebreias e o centurião.
Olharam para Longino e este voltou a encolher os ombros, dando por
concluído o assunto.
Ao ver-me, o rosto de João Marcos iluminou-se. Atravessou em
corrida os escassos metros que o separavam de mim abraçando-me.
Tinha as faces sujas, sinal inequívoco do seu pranto. Choramingando e
entre soluços, o pequeno rogou-me que salvasse o Mestre. Não pude
fazer mais do que sorrir-lhe. Como podia explicar-lhe quem era e no que
consistia a minha missão? Não vou ocultar que naquele instante cheguei a
pensar nessa possibilidade. Que teria acontecido se, daquele
promontório, eu tivesse dado ordem a Eliseu para que deslocasse o
módulo e fizesse rumo ao Gólgota? Teria sido extremamente simples
descer no penhasco e arrebatar o Galileu das garras da patrulha. Mas
eram sonhos impossíveis... Antes que o rapaz atraísse a atenção dos
legionários consegui persuadi-lo a que se afastasse dali,
responsabilizando-o por um trabalho que – umas horas depois – seria
muito importante para mim. João Marcos não entendeu, mas obedeceu.
O optio, alertado por um dos soldados que estava de guarda em
volta do patíbulo aproximou-se de nós, aconselhando-me com cortesia
mas com uma firmeza que não dava lugar a dúvidas, que tirasse dali o
jovem. Não foi necessário repeti-lo. João Marcos desapareceu,
metendo-se entre as mulheres que já desciam do Gólgota. Dali a pouco
vi-o junto de Judas Iscariotes, tal como lhe pedira. A atitude de Jesus,
recusando a aguardente biliosa, desconcertou-me. Ao abrir a boca, a
língua com as mucosas secas como estopa, revelava o angustioso suplício
da desidratação. Os lábios gretados como o casco de um velho barco
encalhado deviam estar a suportar uma sede sufocante.
Não pude entender que o Mestre voltasse a cara à escudela de
vinho. Se realmente o fez – como suspeito – para aguentar ao máximo a
lucidez ameaçada, só posso descobrir-me, ante a Sua coragem.
- Chegou a hora – avisou o centurião.
Submisso, com as mãos a esconder os testículos, o Nazareno
começou a arrastar-se – mais do que a caminhar – na direcção das
cruzes. Longino e outro legionário escoltaram-no, amparando-o pelos
braços. O suor frio começou a envolver-me.
O guerrilheiro que fora pregado em primeiro lugar continuava vivo,
tendo convulsões de quando em quando. Mas os soldados não lhe
prestavam a menor atenção. Ajoelhado diante do patibulum, o carrasco
responsável pelo encravamento esperava com um dos aterrorizadores
cravos de ferreiro na mão direita.
Era praticamente semelhante aos utilizados anteriormente: de vinte
centímetros de comprimento – talvez um pouco mais – e com a ponta
afiada, ainda que não tanto como os seus Irmãos.
Houve outro pormenor que também o distinguia dos precedentes;
embora a secção fosse quadrangular, as arestas estavam notavelmente
deterioradas, com rebarbas e dentes.
Os soldados colocaram o Mestre de costas para o lenho e,
afastando-lhe os braços puxaram-no para a terra, ao mesmo tempo que
um terceiro legionário repetia a rasteira. Nesta altura a extrema
fraqueza do condenado foi mais que suficiente para acelerar a queda.
Uma vez com as omoplatas no madeiro, os carrascos apoiaram os
braços do Mestre no patibulum, ao mesmo tempo que seguravam as
pontas do cilindro rugoso com os joelhos. As palmas ficaram para cima,
com as pontas dos dedos levemente flectidas, trémulas e – como os
braços e antebraços – salpicadas de sangue seco.
A perna esquerda, inflamada à altura do joelho, tinha ficado
dobrada, mas o encarregado da corrente tratou de a estender,
baixando-a com uma seca palmada na rótula. O Galileu acusou a dor,
abrindo a boca. Mas não soltou gemido algum. Longino, no seu posto
rotineiro – junto da cabeça do acusado, que tocava na rocha com o cabelo
– preparou-se, apontando a hasta do pilum à testa de Jesus. Os
ajudantes do carrasco principal estenderam os braços e o que se
encontrava na ponta esquerda do tronco, desembainhando a espada, e
colocando a lâmina sobre os quatro dedos maiores de Mestre. Aquela
novidade, pelo que parecia, facilitava o trabalho de fixação da
extremidade superior ao patibulum. Se o prisioneiro tentasse reagir, ao
agarrar-se ao gume cortar-se-ia fatalmente. O grau de crueldade e
perícia daqueles legionários parecia não ter limites...
Em certa medida os regos de sangue numerosos que banhavam os
largos antebraços do Nazareno dificultaram a exploração dos vasos.
Finalmente, o verdugo pareceu distinguir as linhas azuladas das artérias
e veias, marcando o ponto escolhido para a perfuração.
Antes de levantar os olhos para o centurião, o soldado que se
preparava para martelar o cravo – extremamente surpreendido ante a
docilidade do rei dos Judeus – olhou para os companheiros, acentuando a
surpresa com um significativo movimento das sobrancelhas. Os outros,
igualmente atónitos, responderam com idêntico sinal.
Longino, cansado de aguentar a lança, baixara a arma, autorizando o
primeiro golpe com outro leve aceno de cabeça.
E o carrasco, segurando o cravo totalmente perpendicular ao centro
do pulso (no conjunto de pequenos ossos do carpo), lançou o maço contra
a cabeça do cravo. A ponta, um tanto romba, perdeu-se imediatamente
pelo interior dos tecidos. A pele que rodeava o metal rebentou como uma
flor, logo brotando uma densa coroa de sangue. Ao abrir-se a ponta do
cravo passou entre os tendões, ossos e vasos, deve ter roçado pelo
nervo mediano, um dos mais sensíveis do corpo, provocando uma descarga
dolorosa difícil de compreender.
Instantaneamente, os braços contraíram-se, a cabeça de Jesus
disparou para cima, permanecendo tensa e oscilante, paralela ao solo. Os
dentes apertados durante escassos segundos abriram-se e o condenado,
quando todos esperavam um natural e agudo grito, limitou-se a inspirar
numa respiração curta e ofegante.
Os soldados, que esperavam uma reacção violenta, não saíam do seu
assombro.
Por fim, derrotado pela dor, o Mestre deixou cair a cabeça para
trás, ferindo-se na rocha. Todos acreditámos que desmaiara. Mas,
segundos depois, abria o olho direito, acelerando o ritmo respiratório.
Como é que eu não me apercebera antes! Jesus só respirava pela boca.
Aquilo fez-me suspeitar que o septo nasal tinha de apresentar alguma
complicação – resultado das pancadas -, dificultando a respiração pelo
nariz.
O carrasco mudou de posição, inclinando-se desta vez para o braço
direito. Porém, a segunda perfuração ia ter complicações.
O sangue tinha começado a sair com extrema lentidão, formando
como que uma pulseira em redor do pulso esquerdo do Nazareno.
Evidentemente, o cravo estava a servir de tampão, dando lugar a
hemóstase ou estancamento do derrame sanguíneo.
Porém, a fraca hemorragia constituía uma arma de dois gumes.
Os médicos sabem que, nestas situações, a dor aumenta.
Arsenius e o oficial entreolharam-se, sem compreender a ausência
de gritos e do espernear clássico de todo o homem que se sabe à beira
da morte. Pelo contrário, Aquele condenado, longe de provocar
problemas, tinha começado a despertar uma profunda admiração em
Longino e no seu lugar-tenente. O contraste com o zelota que suspenso
da cruz rasgava o ar com os seus berros e pragas era tão extraordinário
que o oficial, ao ver que ainda tinha nas mãos a lança a arremessou
violentamente contra a base das cruzes, subitamente indignado consigo
mesmo.
A segunda martelada foi tão precisa quanto a primeira. O cravo
inclinou-se igualmente, voltando a cabeça para os dedos do Mestre.
Porém, em vez de penetrar na madeira do patibulum, seguindo a direcção
do cotovelo, a peça mal arranhou o tronco.
Neste segundo encravamento, o Rabi nem sequer levantou a cabeça.
Grandes gotas de suor tinham começado a escorrer pelas têmporas,
esbarrando aqui e além nos coágulos. Limitou-se a abrir a boca ao
máximo, soltando um som gutural sufocado e indecifrável. - Que há? -
perguntou o centurião, ao ver a cabeça do cravo mais de catorze
centímetros acima do pulso direito. O carrasco soltou o braço e
examinou a superfície côncava do lenho. Ao passar as polpas dos dedos
pela casca moveu a cabeça contrariado, e dirigindo-se a Longino
explicou-lhe que tinha dado num nó. Senti que me ardiam as entranhas.
Sem perder a calma, o legionário colocou novamente o pulso
torturado contra o patibulum e, segurando a aresta do cravo entre os
dedos indicador e polegar, preparou-se para vencer a resistência do
inoportuno obstáculo com nova martelada.
A pancada foi tão violenta que a secção piramidal do cravo se
quebrou a poucos centímetros da pele ensanguentada do condenado.
O novo contratempo foi acompanhado por uma soez imprecação do
legionário.
Atirou o maço para um lado e ordenou aos companheiros que
segurassem o antebraço. Depois, agarrando como pôde a extremidade do
metal fez força, tentando arrancar o que ficara do cravo. Foi em vão. A
ponta tinha conseguido perfurar o nó e o metal resistiu.
Entre novas maldições, o furioso infante levantou-se, pisou a zona
cúbito-radial de Jesus com a sandália e começou a arrancar o cravo,
fazendo-o oscilar para um lado e para o outro. Até Longino empalideceu
ao ver aquele novo massacre. Os puxões bruscos do verdugo, procurando
a libertação do metal, alargaram a abertura do pulso, rasgando tecidos e
inundando de sangue os dedos do carrasco, o patibulum e a rocha.
É muito provável que a dor se tivesse atenuado, em parte, pela
hemorragia abundante. De contrário, não posso explicar o
comportamento do Galileu. A cada movimento pendular do soldado, no
seu esforço para extrair a peça, Jesus de Nazaré respondeu com um
lamento. Cinco, seis... oito sacudidelas e outros tantos gemidos,
acompanhados por alguns ofegos e vários movimentos de cabeça. Porém,
o Gigante não protestou... Ao fim de uma eternidade, o carrasco separou
a ponta do tronco e, depois de arrancar a barrinha metálica do carpo,
avermelhada e gotejante, encaminhou-se para o saco de couro,
rebuscando lá dentro. Ao voltar para junto do Nazareno, vi que trazia
uma espécie de verruma curta, com um cabo de madeira.
Afastou o braço do Galileu e, depois de cuspir na mancha de sangue
que cobria o madeiro, limpou com a mão a zona onde se encontrava o nó.
Pegou na ferramenta e introduziu a rosca em espiral no buraco feito pelo
cravo. Apoiando todo o peso do seu corpo no cabo, fez girar a verruma
de ferro, abrindo a rugosidade com movimentos lentos mas firmes.
A operação foi laboriosa. Entretanto o sangue do Rabi continuou a
correr, fazendo uma extensa poça na superfície branca do Gólgota. A
julgar pela velocidade do derrame, não creio que as arestas em serra do
cravo chegassem a rasgar alguma das artérias ou veias principais. No
entanto, aquela perda de sangue começava a ser dramática. Jesus
empalidecia por instantes e receei que entrasse em novo estado de
choque.
Quando o soldado considerou ter verrumado o patibulum quanto era
preciso, rebuscou no cinto e tirou outro cravo. Antes examinou a ponta e
a cabeça. Uma vez satisfeito levantou o antebraço do condenado até à
posição inicial. No entanto, contrariamente ao que eu pensava atravessou
o pulso pela larga abertura. Quando a ponta saiu pelas costas da mão, o
carrasco introduziu-a no buraco que acabara de fazer e só então repetiu
a martelada. Vencido o nó, o cravo entrou sem problemas no lenho. Com
segunda pancada, o braço direito do Mestre ficou definitivamente
pregado. A base do cravo, tal como aconteceu com o pulso esquerdo, não
chegou a tocar a carne.
Ambas as cabeças – horas depois compreenderia a razão –
sobressaíam entre oito e dez centímetros. Tal como acontecera com os
guerrilheiros, ao dar-se o encravamento dos pulsos, os polegares de
Cristo vergaram, saltando e voltando-se para dentro das palmas das
mãos, em direcção oposta à dos quatro dedos, ligeiramente flectidos.
Enquanto a ferida do pulso esquerdo – de forma oval – tinha apenas
quinze por dezanove milímetros, a da direita era muito mais aparatosa,
com quase vinte e cinco milímetros de comprimento, no sentido do eixo
do antebraço.
Aquela abertura fez-me temer pela estabilidade do Mestre quando
fosse içado para a stipe. Não se daria um rasgão nos tecidos?
Os soldados obedeceram ao oficial. Aquilo estava a demorar
excessivamente. Assim, ajudados pelo optio, içaram o patibulum e o
crucificado com ele, actuando com ligeireza na altura de enroscar o
prisioneiro na soga que deveria servir para o erguer até ao alto da
árvore. Ao passar a corda pela ranhura da extremidade da stipe e
começar a esticá-la, o madeiro – controlado pelos legionários para que
não perdesse a sua posição horizontal – iniciou uma lenta e exasperante
elevação.
Mas as fortes rajadas de vento, cobrindo o corpo do Nazareno com
sucessivas cargas de pó e terra, começaram a pôr em dificuldade o
levantamento. Gritando, o centurião exigiu a presença dos dois homens
que estavam de sentinela no Gólgota, colocando-os junto da escada de
mão, como apoio ao soldado que em cima puxava.
Enquanto o Galileu conservou os pés sobre a rocha a posição dos
braços pôde manter-se mais oo menos no eixo do patibulum.
Pouco a pouco, a cabeça recuperou a verticalidade, caindo por vezes
para a frente, tocando na extremidade superior do esterno. Num dos
puxões, depois de ter sorvido lentamente o ar, Jesus levantou
fugazmente a cabeça e dirigindo o olhar para o céu, exclamou: - Pai!...
Perdoa-lhes!... Eles não sabem o que fazem!
Os infantes, ao escutarem a quebrantada voz, pararam. O Mestre
tinha falado em aramaico. Creio que, com excepção de um ou dois
legionários, os outros não entenderam. Mas, lamentavelmente, quiseram
saber o significado. Os dois que tinham compreendido encararam-se
indecisos e, antes de traduzirem as palavras do condenado, um dos
soldados deu uma bofetada no rosto de Cristo. - Maldito hebreu! -
resmungou aquele que o esbofeteara. - Nem mortos nem vivos são dignos
de piedade!
A versão do tradutor foi correcta, mas os incultos legionários
interpretaram erradamente as palavras de Jesus.
- Não sabemos então o que fazemos... - gritou-lhe o que tinha feito
as perfurações. - Espera que já vês! E indo até ao centro do Calvário
apanhou do chão o elmo de espinhos voltando logo ao Galileu.
O centurião que também não entendera o sentido da expressão
vacilou perante a atitude irritada dos seus homens. Penso que não se
atreveu a intervir. No fundo, também ele se sentiu ofendido pelo que
parecia ser a troça pelo seu profissionalismo. O carrasco afastou do
patibulum a cabeça do Mestre e com uma palmada enfiou-lhe o capacete
de puas. A colocação, talvez pelo receio de se ferir nos espinhos, não foi
excessivamente violenta, e a massa espinhosa ficou meio a dançar sobre
as têmporas do prisioneiro. A multidão, que por aquela altura devia
oscilar entre dois mil e três mil pessoas, gritou de prazer ao ver o gesto
do romano.
O Mestre permaneceu de cabeça baixa e os seus torturadores
continuaram a içar o tronco. A elevada estatura e o peso de Jesus –
possivelmente à volta dos oitenta quilos – foram outra desvantagem para
os suados carrascos, que não tardaram em encorajar-se mutuamente,
acompanhando cada puxão com um ei.
Palmo a palmo, a soga foi içando o crucificado numa elevação
interminável e penosa. Para cúmulo, a multidão – cada vez mais excitada
juntava-se às interjeições dos legionários, animando-os com os seus eis.
Mas os braços fortes dos três soldados que do chão e do alto da
escada puxavam não eram suficientes. Temendo que condenado e
madeiro caíssem por terra, Longino e Arsenius não tiveram remédio
senão unirem as suas forças às dos soldados no levantamento.
- Ei!... Ei!
O corpo do Galileu soltou-se por fim do solo e aí teve começo a
demolidora contagem decrescente para uma horrorosa agonia. Ao perder
o apoio dos pés, os braços do Gigante ficaram tensos e os estalidos dos
seus ossos uniram-se durante alguns segundos ao rangido da corda na
forquilha do pau vertical.
Naquele instante, as clavículas, esterno e costelas ficaram
desenhadas por baixo da pele e fios de sangue lhe percorreram a pele,
enquanto os músculos peitorais dos ombros, pescoço e braços se
esculpiam, retesados, a um passo da distensão. Mas a força daqueles
feixes musculares era ainda grande e evitou a luxação dos ombros e dos
cotovelos. As fibras dos antebraços, especialmente os músculos
extensores das mãos e dos dedos, ficaram afiados como sabres e fechei
os olhos, temendo que saltassem num daqueles puxões.
- Ei!..
Jesus estava suspenso já a meio metro do solo. A força da
gravidade fez com que, desde o primeiro momento da suspensão
absoluta, os braços girassem e, arrastados pelo peso do corpo descaíram
até ficarem num ângulo de uns setenta e cinco graus com a stipe.
O formidável peso que o Nazareno suportou em cada um dos golpes
nos pulsos, juntamente com o rasgar das feridas e a extrema tensão dos
ligamentos de ombros e cotovelos multiplicou as Suas dores
(considerando que lhe restasse capacidade para isso) até à loucura. Em
vários alturas, acossado pelo sofrimento, lançou a cabeça para trás,
procurando ar e, principalmente, um ponto de apoio. Mas esses pontos só
os podia encontrar num lugar.
Ou antes, em dois: nos cravos que lhe atravessavam os carpos. Mas,
como elevar-se sobre peças de metal, estando suspenso? A cada recuo
do crânio, os espinhos mais e mais se cravavam na região occipital,
forçando o Mestre a desistir. As derrotas sucessivas para ganhar algum
oxigénio transformaram a Sua respiração num ofegar descompassado e
agitado do tórax, cada vez menos eficiente. O fantasma da asfixia
começava a pairar sobre o Filho do Homem...
- Ei!... Ei!
Quando os soldados pararam o pesado avanço da corda, o corpo de
Jesus balançava a cerca de um metro do chão. Os pés, escorrendo
sangue, palparam a casca do tronco vertical e a ele se agarraram
desesperadamente. Mas as hemorragias fizeram-No escorregar uma e
outra vez. E, em questão de minutos, toda a parte dianteira do tronco se
tingiu de vermelho na zona que ia das omoplatas aos calcanhares.
O legionário colocado no extremo superior da stipe cerrou os
dentes e começou a puxar a laçada central. Mas o patibulum não se
moveu um centímetro. O peso do madeiro e do condenado (pouco mais de
cento e dez quilos) era excessivo para o exausto infante. Quase em
uníssono,
* Um simples cálculo matemático proporciona-nos a imagem
aterrorizadora do peso que Jesus de Nazaré teve de suportar durante a
angustiante elevação. Distribuindo o peso total do Mestre pelos dois
braços (cerca de quarenta quilos em cada) a força de tracção exercida
em cada um deles é igual a 40/ coseno de 65o = 40 0,4226 = 95 quilos,
aproximadamente. (N. Do M.).
o centurião e Arsenius gritaram-lhe para que se esforçasse no
arranque final. Foi inútil. O romano, ofegante, fez um sinal de impotência
com a mão direita, deixando-se cair sobre a forquilha da stipe.
Observei Jesus e vi a frequência respiratória. Trinta e cinco
brevíssimas inspirações por minuto! As pontas dos dedos tinham
começado a ganhar um tom azulado. A cianose, ou deficiente oxigenação
do sangue, dava sinal da sua presença.
Alarmado, examinei os Seus lábios. Mas a diminuição da quantidade
normal de oxigénio no sangue não se manifestava ainda na mucosa labial
nem nas orelhas. O pulsar do exausto coração do Mestre aumentou de
ritmo, mas duvido que fosse suficiente para irrigar as partes mais
periféricas do corpo.
Se Longino e os seus homens não actuassem com rapidez, a má
circulação e a consequente falta de oxigénio no cérebro podiam originar,
primeiro, a perda de conhecimento de Jesus, e o Seu falecimento
fulminante. Honestamente, nalguns daqueles críticos segundos cheguei a
desejá-lo com todas as minhas forças. Seria a forma de acabar de vez
com as torturas.
Mas o oficial, sem se deixar dominar pelos nervos, ordenou aos que
permaneciam ao pé da stipe que colaborassem com o legionário que devia
encaixar o patibulum. Mas como – pensei – se só há uma escada de mão...
A solução não tardou.
Dois daqueles destros soldados, ágeis e treinados, agarraram-se
com ambas as mãos à estaca vertical enquanto os outros dois lhe
trepavam para os ombros, alcançando assim os extremos do madeiro
transversal. A um sinal do que voltara a prender o nó central,
empurraram o lenho até a afiada ponta da árvore entrar no buraco
central do patibulum. - Agora! - gritou o infante, no alto da escada.
Os soldados saltaram para a rocha, ao mesmo tempo que o centurião
e os outros carrascos soltavam de repente a corda.
O pau horizontal precipitou-se para terra. Mas, a uns quarenta
centímetros da forquilha, ficou encaixado no grosso perímetro da stipe.
A manobra foi recebida pela multidão com muitos vivas e aplausos. O
Mestre acusou o choque com um lamento mais forte. A respiração ficou
suspensa por segundos e os raspões nos pulsos tornaram-se maiores. Os
dedos, quase imobilizados, mal puderam reagir à bárbara tracção.
Longino estendeu a tabuleta ao infante e este pregou-a por cima do
patibulum.
Enquanto acabava de ajustar o pau transversal, um outro romano
esticou com força a perna direita de Jesus, forçando o abaixamento do
ombro e de toda aquela metade do corpo do Nazareno. Ao sentir o
puxão, Jesus inclinou ainda mais a cabeça, separando o tronco e as
nádegas do madeiro. O joelho direito dobrou-se involuntariamente, mas o
carrasco que se preparava para pregar o pé esmagou-o com uma súbita
martelada.
O companheiro que tinha esticado a perna obrigou a planta do pé a
assentar na stipe. Um terceiro cravo massacrou o pé do Nazareno,
entrando pelo peito por um ponto próximo da prega de flexão. (Ao
examinar de perto a entrada e a saída do cravo pensei que o legionário
tinha perfurado o ligamento anular anterior do tarso. Desta forma, o
metal deslizou entre o tendão do músculo extensor próprio do dedo
grande e os do extensor comum dos dedos, penetrando à força entre os
ossos calcâneo e cubóides e o astrágalo e escafóides por dentro. Os
quatro ossos ficaram habilmente separados e o cravo dirigiu-se para
trás e para baixo, ficando mais perto do calcanhar que dos dedos.)
Nesta altura, apesar da destreza do carrasco, a ponta ou as arestas do
cravo deslocaram ou esmagaram algumas ramificações das artérias
digitais ou da veia safena externa, causando uma hemorragia que me
assustou.
O sangue jorrou aos borbotões, banhando inteiramente o escasso
metro existente entre o pé direito e o solo do Gólgota. É de supor que
tal destruição afectasse também o nervo tibial anterior, lacerando perna
e coxa e provocando uma insuportável dor reflexa nas ramificações e nos
nervos denominados plexo sacro e lombar, em pleno ventre. Apesar das
horríveis dores, o Galileu continuou consciente. Não encontrava
explicação para aquilo! O encravamento do pé direito, incrivelmente,
aliviou o ritmo respiratório do Nazareno, pelo menos durante os
primeiros minutos da crucifixão.
Ao apoiar o peso do corpo no cravo, distribuindo assim os pontos de
sustentação, os pulmões conseguiram captar maior volume de ar,
ventilando um pouco mais os alvéolos. Mas, à custa de que sofrimento
conseguiu a momentânea regularização respiratória? Aquela inspiração
mais funda durou uns décimos de segundo.
Quase instantaneamente, o corpo do Galileu voltou a cair, afundando
o diafragma e entrando numa nova e angustiante fase de asfixia
progressiva. As inspirações, sempre pela boca, tornaram-se vertiginosas,
curtas e em todos os aspectos insuficientes para encher e ventilar os
pulmões. Um pouco mais sereno, o carrasco colocou o quarto cravo na
zona dianteira do pé esquerdo. A pancada nos ligamentos posteriores do
joelho tinha inchado e enegrecido toda a região onde se inseriam o
fémur, a tíbia e o perónio e, apesar da rigidez daquela perna, o legionário
dobrou-a violentamente fazendo estalar as massas ósseas. O cravo
entrou sem dificuldade, sobressaindo – como no caso do pé direito –
entre cinco e seis centímetros acima do peito do pé. O sangue correu em
menor quantidade, ou porque o metal não chegou a tocar em vasos
importantes ou, simplesmente, porque a volemia do Nazareno descera
consideravelmente.
A perna esquerda tinha ficado flectida, formando com a estaca
vertical um ângulo de cerca de cento e vinte graus e aberta para a
esquerda da cruz. Embora a árvore dispusesse, como já antes referi, de
uma barra de ferro ou sedile, atravessada a cerca de um metro e vinte
da extremidade inferior da stipe e paralela ao patibulum, nesta altura
não foi eficaz. A considerável estatura do condenado fez que os pés
ficassem mais baixos que o apoio que – caso lá tivessem chegado – talvez
só tivesse servido para prolongar a sua agonia.
Ao ver consumada a crucifixão do Rabi, a multidão começou a
gesticular, sublinhando o macabro trabalho dos legionários com uma
grande salva de aplausos. Os sacerdotes, principalmente, davam mostras
de especial satisfação. Toda a sua cólera anterior se convertera em
júbilo. A sua vingança estava quase saciada. E digo quase porque, mesmo
depois de morto o cadáver do Filho do Homem se veria ameaçado por
aquela enlouquecida escumalha sacerdotal...
A minha atenção fixou-se em Iscariotes. Assim que pregaram
osegundo pé do Mestre, o traidor afastou-se da multidão perdendo-se
no caminho poeirento, rumo a Jerusalém. João Marcos desapareceu
também da minha vista, pelo que supus que teria seguido os passos de
Judas.
O triste espectáculo tinha entrado no último acto. Os curiosos
começaram a desfilar, retirando-se para a Cidade Santa. Jesus de
Nazaré e os zelotas – pregados na direcção Sul - eram apenas
destroços... Pelas treze horas e trinta minutos daquela sexta-feira, 7 de
Abril, comuniquei a Eliseu o final do duro encravamento. E tanto meu
irmão como eu ficámos em silêncio. Um doloroso silêncio.
Se o texto que figurava na tabuinha de Jesus de Nazaré tivesse
sido outro – ao gosto dos sacerdotes judeus – a troça ao crucificado
talvez tivesse sido menor. Conto isto porque, a partir do momento em
que ergueram o patibulum na stipe, os risos e os sarcasmos dos que
assistiam foram mais frequentes durante algum tempo e, pelo que
parece, de acordo com averiguações posteriores, como vingativa
compensação pelo conhecido INRI. Ao fracassarem com Pilatos, os
juízes tiveram um especial cuidado em intoxicar a multidão,
ridicularizando o Mestre e, por esta forma subtil, tirando seriedade às
três inscrições, evitar que os testemunhos pudessem tomar a sério o
título de rei dos Judeus.
Assim, voltando-se para a cada vez menos numerosa massa humana,
alguns dos saduceus começaram a apontar a cruz do Galileu, exclamando
aos gritos: - Salvou os mais, mas não pode salvar-se a si mesmo! E a
multidão aprovou esta nova forma de escárnio com grandes e repetidos
aplausos. Dali a pouco, outra voz se destacava entre a turba,
perguntando ao Nazareno: - Se és o Filho de Deus, bendito seja o seu
nome, porque não desces da Tua cruz? Tal como a patrulha e como eu
Jesus pôde escutar estas exclamações, impregnadas da mais cruel e
mordaz ironia.
Encontrando-se a um escasso metro do solo e a pouco mais de dez
da primeira fila de judeus não era muito difícil ouvir estes gritos e até
as conversas que os legionários tinham entre si no apertado círculo de
pedra do Gólgota. Estes terminada a trabalhosa crucificação, fizeram
uma pausa de descanso. O optio suspendeu o cordão inicial de segurança
em volta do promontório, formado, como disse, por seis infantes,
reduzindo a vigilância a um primeiro turno de quatro soldados.
Cada um deles se postou nos pontos cardeais, rodeando os três
condenados e os outros legionários do pelotão. Os outros – excepto dois
– não tardaram em se sentar a uns três metros das cruzes. E
contemplaram enfadados como os seus dois companheiros retiravam a
escada de mão, enrolando cuidadosamente a corda e apanhando as
diversas ferramentas utilizadas no encravamento. Os preparativos
pareciam indicar uma longa espera. Era isto pelo menos, o que Longino e
os seus homens acreditavam. Na realidade, segundo me informou o
centurião, a rendição não chegaria antes do ocaso.
- Avistas já da tua posição as primeiras frentes do haboob? As
palavras de Eliseu recordaram-me a iminente proximidade do olho do
siroco. Protegi a vista com a mão esquerda, fazendo pala e,
efectivamente, ao longe – atrás do monte das Oliveiras – descobri
massas pardacentas e oscilantes que avançavam numa frente extensa. O
oficial também reparou nas ameaçadores nuvens de pó e, como bom
conhecedor daquele tipo de fenómeno meteorológico, alertou os
legionários. A primeira medida de precaução foi verificar a estabilidade ;
das cruzes. As stipes, em princípio, pareciam estar solidamente cravadas
nas gretas da rocha. No entanto, Arsenius ordenou que as cunhas de
madeira fossem entaladas ao máximo. Depois, os soldados rasgaram os
restos das túnicas dos zelotas, convertendo-as em estreitas tiras. E sem
perda de tempo o oficial distribuiu-as equitativamente entre os doze
infantes.
Só quando vi cada um deles cobrindo as pernas nuas com aquelas
faixas de pano compreendi o sentido da operação.
Prudentemente, os romanos procuravam defender a pele do açoite
daquele vento terroso. Por último, os seis escudos dos homens de folga
do serviço de vigilância do Calvário foram deitados no chão com a face
côncava para cima, uns juntos dos outros, formando uma fileira.
Alguém recordou ao pelotão as vestes do Nazareno, que ainda
estavam caídas na extremidade sul do penhasco. Mas, quando os
soldados as apanharam, dispostos a rasgá-las, os quatro legionários
responsáveis pela guarda e encravamento de Jesus, protestaram,
aludindo – com toda a razão – que aquelas roupas lhes pertenciam e que,
dado o seu bom estado, as queriam para si.
O resto da tropa cedeu, e precipitadamente, antes que a
tempestade de areia caísse sobre Jerusalém, o oficial fez o inventário,
distribuindo as roupas pelo cuatérnio. Coube a um a capa de púrpura que
Antipas dera, a outro o cinto. Ao terceiro, o par de sandálias e o último
viu-se recompensado com o esplêndido manto. Mas restava a túnica. Que
fazer com ela? Insistiram alguns na primitiva ideia de a rasgar, mas o
subalterno opôs-se. Apesar do seu aspecto deplorável – cheia de sangue
seco, molhada pela água e a urina de Lucílio, suja do pó do caminho e com
alguns rasgões à altura dos joelhos – aquela peça de roupa, tecida à mão,
merecia um final mais honroso que o de enfaixar as pernas dos romanos.
A solução foram os dados. O soldado responsável pelo saco de couro não
tardou em voltar para junto do grupo, fazendo chocalhar nas mãos um
terço de dados. Formaram um círculo apertado e, um após outro, foram
lançando os pequenos cubos de madeira de dois centímetros de lado pelo
chão do patíbulo.
Com o uso, as peças tinham perdido a sua primitiva cor branca, bem
como o gume das arestas. A sujidade acabara por lhes dar um brilho
característico. Os valores de cada face – perfurados por meio de alguma
ferramenta em brasa – estavam distribuídos de maneira que sempre a
soma dos lados opostos desse sete.
Os dados foram lançados: 1-5-3 (com o primeiro jogador); 6-3-4
(para o segundo jogador); 1-3-5 (com o terceiro) e 1-5-3 na última
jogada.
* Embora não seja entendido nos chamados mistérios da Cabala, ou
Qabbalah (vocábulo hebraico equivalente a conhecimento ou tradição”),
convido quem possa ler este diário a submeter as
sucessivas numerações aparecidas nos dados ao método de
conversão utilizado por Cagliostro e que pressupõe uma correspondência
entre os números e as letras, segundo os alfabetos hebraico e latino. Filo
e fiquei surpreendido com as palavras que parecem formar os números
153-634-135-153”...
Não só aparece O que ganhou dobrou cuidadosamente a sua túnica
enquanto, da multidão, se ouviam frases ferinas contra o Mestre:
- Tu, que querias destruir o Templo e reconstruí-lo em três dias...
salva-te a Ti mesmo!
- Se és o Rei dos judeus – interrogavam outros – desce da cruz e
acreditaremos em Ti...
- Confiou-se a Deus – bendito seja – para que O libertasse e chegou
a pretender ser Seu filho... Olhai-O agora! Crucificado entre dois
bandidos.
O autor daquela última frase – outro dos sacerdotes de Caifás – não
conseguiu o efeito desejado. A multidão, como era natural, não
considerava Gistas e Dimas como ladrões e não fez coro ao malintencionado
saduceu.
Enquanto os soldados guardavam as roupas do Mestre assaltou-me
um pensamento. Que aconteceria com aquelas vestes.
Onde iriam parar?
De uma coisa estava certo: os legionários não ofereciam nem
deixariam facilmente aquilo que, segundo o costume, lhes pertencia. Por
outro lado, seguir a pista daquela roupa não seria tarefa fácil para os
discípulos de Jesus. Na sua maioria, os legionários romanos em breve
regressariam ao seu acampamento-base, na cidade de Cesareia e, com o
andar dos meses, muitos mudariam de destino ou seriam licenciados.
Tudo isto me fez suspeitar que – contrariamente ao que aconteceria
com o lençol que serviu para o Seu enterramento – Jesus de Nazaré não
era muito partidário de que os seus discípulos guardassem aquelas
relíquias, susceptíveis sempre de se converterem em motivos de
adoração supersticiosa, com o consequente risco de esquecerem ou
relegarem para segundo plano a sua verdadeira mensagem.
* o nome cósmico, de Jesus – sempre segundo o Esoterismo – como
ainda, principalmente, quando esta sequência numérica é traduzida, ou
convertida” em letras (as do alfabeto hebraico) os peritos em Cabala
descobriram com assombro uma mensagem completa. Através deste
sistema – conhecido na ciência cabalística como gueematria” - estes
números (pela mesma ordem que aparecem no texto) foram decifrados e
interpretados, obtendo, como disse, uma mensagem múltipla,. Prefiro que
seja o leitor a trabalhar com este apaixonante enigma e descubra por si
mesmo o segredo” da referida numeração. Apenas acrescentarei o
seguinte: no meu desejo de verificar e analisar quantos dados aparecem
neste diário, submeti os lançamentos dos dados a um exame frio e
rigoroso, por parte do catedrático de Ciências Matemáticas e
Estatísticas, J. A.
Viedma, e de um grupo de especialistas em Informática, dirigidos
pelo meu bom amigo José Mora, todos eles residentes em Palma de
Maiorca. Pois bem segundo estes peritos, o cálculo de probabilidade
matemática para a saída dos referidos números, e por aquela ordem, é
de 1/1.679.616 = 0,00000059537.
Quer dizer, a probabilidade é baixíssima. (N. De J.J.B.)
Como bem sabem os crentes das igrejas – especialmente da Igreja
Católica – o actual número de relíquias, supostamente relacionadas ou
pertencentes à Paixão do Galileu, vai para além do milhar. Isto, de um
ponto de vista objectivo, arqueológico e científico, é tão absurdo quanto
impossível. Na Basílica de Saint-Denis, em Argenteuil, ao norte de Paris,
conserva-se, por exemplo, uma suposta túnica sagrada, E o mesmo
acontece na catedral de Tréveris. Com o devido respeito pelos que
acreditam em ambas as túnicas”, nenhuma delas pode ser a que o Mestre
da Galileia vestiu. Na primeira, ainda que as dimensões sejam próximas
das reais (1,45 m de comprimento por 1,15 m de largura), carecendo até
de costuras, o tecido, em contrapartida, é um entrançado de fios de
estopa de cânhamo, que nada tem a ver com a natureza das roupas
usadas habitualmente pelos Hebreus naquela época: algodão, lã e linho.
(Por uma túnica confeccionada com um pano tão ralo como tosco, os
legionários não teriam perdido tempo a jogá-la aos dados.) Quanto à
segunda, ainda se torna mais difícil identificar. Trata-se de uma série de
fragmentos de um tecido muito fino e pardacento, envoltos e protegidos
contra a traça entre dois panos. Um deles é de seda adamascada,
fabricada possivelmente no Oriente entre os séculos vi e Ix. Com os
cravos e a cruz de Cristo acontece algo de semelhante. Segundo a
tradição, a piedosa imperatriz Santa Helena desenterrou-os no século
Iv. (Para começar, duvido que as forças romanas perdessem tempo e
dinheiro sepultando as stipes e patibulum, bem como os cravos, depois de
cada execução, como pretendem alguns exegetas, em defesa da tradição
da mãe do imperador Constantino.) Segundo as lendas, com um dos
cravos, Santa Helena mandou fazer um freio para o cavalo de seu filho
(conserva-se hoje em Carpentras). Com outro formou um círculo para o
capacete de Constantino e diz-se que esse círculo faz agora parte da
coroa de ferro dos reis lombardos, conservada em Monza. O terceiro
cravo conta-se que serviu para serenar uma tempestade no Adriático... A
verdade é que, em várias igrejas da Europa se veneram cravos da
Paixão”, num total de dez! Dois em Roma, um em Santa Cruz de
Jerusalém, em Santa Maria do Capitólio, em Veneza, em Tréveris, em
Florença, em Sena, em Paris e em Arras. No que diz respeito aos
madeiros da cruz de Jesus, o assunto complica-se muito. O mundo dos
cristãos está materialmente semeado com pedaços de todos os
tamanhos, todos eles supostamente retirados da verdadeira Cruz. Como
diziam Breckhenridge e Salmásio, entre outros, se se juntassem estas
relíquias poderíamos plantar um bosque...” Talvez o troço mais volumoso
seja aquele que se venera em Espanha: em Santo Toribio de Liébana, na
província nortenha de Santander. A tradição assegura que este lignum
crucis foi trazido de Jerusalém por S. Tonôio, bispo de Astorga, em
Espanha, e contemporâneo de S. Leão I, o Grande. Um dos dados a favor
deste suposto resto da cruz em que foi crucificado o Mestre é o tipo de
madeira: pinho. Mas, de um ponto de vista científico, as dúvidas
continuam a envolver a sua origem. (N.
Do M.)
Concluída a distribuição das roupas, Longino pediu ao seu lugartenente
que examinasse também o encravamento dos condenados. O
optio aproximou-se primeiro da cruz da direita e tocou na cabeça do
cravo do pé esquerdo do guerrilheiro.
Parecia solidamente pregado. O zelota, com o corpo descaído e
violentamente curvado para a frente, nem por um momento tinha parado
de gritar e de se torcer, tentando sobreviver! Mas a cada vez maior
dificuldade em respirar, só lhe tinha acrescentado novas dores e
maiores hemorragias.
Ao ver Arsenius ao pé da cruz, Gistas fez um supremo esforço e
retesando os músculos dos ombros conseguiu elevar os braços.
Inspirou e, logo, enquanto expulsava o pouco ar conseguido, atirou
uma cuspidela misturada com sangue contra o suboficial.
Indignado, o ajudante do centurião agarrou uma lança, batendo com
o fuste de madeira em cheio na boca do estômago do zelota.
O diafragma ainda mais se ressentiu, mergulhando o condenado num
processo mais acelerado de asfixia. Sem deixar de olhar para cima,
desconfiado, o optio repetiu a verificação nos pés de Jesus e,
finalmente, com os cravos do terceiro crucificado.
Este fora recuperando os sentidos, ainda que o seu olhar –
possivelmente consequência da aguardente – se tivesse tornado opaco e
desfocado. A dor tinha-o arrancado da sua inconsciência e os gemidos já
não cessariam. De repente, entre um berro e outro berro, Gistas, com o
rosto banhado em suor frio, virou a cabeça para a esquerda, gritando ao
Mestre:
- Se és filho de Deus... porque não garantes a Tua salvação e a
nossa?
Mas logo, sufocado pelo esforço, caiu sobre os pontos de apoio
inferiores, ofegante e empenhado em novas e rapidíssimas inspirações.
Mas o Mestre não respondeu. Fê-lo, em contrapartida, o outro
guerrilheiro. Apoiado como estava com a ponta do pé esquerdo em
metade do sedile a sua respiração não era tão fatigante como a dos seus
companheiros de cruz, e com voz balbuciante censurou o amigo. - Nem
sequer temes Deus?... Não vês que os nossos sofrimentos... são pelos
nossos actos?
Dimas fez uma pausa, lutanto para respirar de novo e, por fim,
continuou: .. Mas... Este homem sofre injustamente...
Não seria preferível que procurássemos o perdão dos nossos
pecados... e a salvação... das nossas... almas? Os músculos dos braços
relaxaram e o ventre voltou a inchar como um globo.
Jesus de Nazaré, que escutara as palavras dos dois zelotas,
entreabriu os lábios, com desejo evidente de responder. Mas o corpo,
solto da stipe e muito descaído para as extremidades inferiores, não Lhe
obedeceu. No entanto, o Gigante não se rendeu. Acelerou o número de
inspirações orais – cheguei a contar quarenta por minuto, quando o ritmo
normal e inconsciente de respirações de um ser humano é de dezasseis –
e tentou contrair os poderosos músculos das coxas, no esforço para se
elevar uns centímetros e deixar entrar ar nos pulmões.
No entanto, aqueles cinco ou dez primeiros minutos na cruz foram
queimando o escasso potencial de todos os feixes musculares das coxas
e das pernas – utilizados pelo Rabi no apoio sobre os cravos dos pés para
aspirar oxigénio – e os tricípites, costureiros, rectos internos, vastos e
gémeos negaram-se a funcionar. A rigidez de todas estas fibras
musculares levou-me a concluir que a temida tetanização se iniciara
antes do previsto. (Este dolorosíssimo quadro – a tetanização – registase
sempre que os músculos entram num processo anaeróbico ou de falta
de oxigénio.
Nestas condições, o ácido láctico existente nas fibras musculares
não pode metabolizar-se, cristalizando. O organismo vê-se então
submetido a uma dor dilacerante, bem conhecida pelos atletas.) O
Mestre, ao compreender que as pernas tinham começado a falhar –
apanhadas pelas primeiras convulsões e espasmos musculares, próprios
da inicial mas irreversível tetanização -, forçou as articulações dos
cotovelos, ao mesmo tempo que, procurando apoio nos cravos dos pulsos
pedia aos músculos dos antebraços que lhe servissem de ponte, para
elevar os ombros.
Entre ofegos, inspirações e lamentos entrecortados – provocados
pelo roçar ou esmagamento dos nervos médios dos pulsos no metal que
lhe atravessava os carpos -, aquele Homem venceu por fim a força da
gravidade, elevando-se sobre si mesmo, relaxando o diafragma. Os
deltóides, duros como pedras, transformaram os ombros em mãos e a
boca do Nazareno, abriu-se, trémula, ganhando meia batalha pela
inspiração do ar poeirento que nos fustigava.
Ao observar o esforço titânico de Jesus, o zelota que O tinha
defendido voltou a falar-Lhe:
- Senhor – disse-Ihe, em voz suplicante. - Lembra-te de mim...
quando entrares no Teu reino!
Ao mesmo tempo que expulsava parcialmente o pouco ar conseguido
na última inspiração, e com as artérias do pescoço tensas como tábuas, o
Galileu ainda foi capaz de responder:
- Em verdade... te digo hoje... que um dia estarás junto de Mim... no
Paraíso...
Os músculos dos ombros, braços e antebraços foram-se abaixo e,
com eles, toda a massa corporal do Nazareno, que ficou novamente
vergada em serra e sem esperanças imediatas de repetir semelhante
trabalhol. Pelo meu lado, devido à degradação acelerada do organismo do
Gigante, preparei-me para colocar nos olhos os crótalos e iniciar uma das
mais delicadas e importantes operações de exame médico daquela
missão.
Mas dois factos – um deles absolutamente imprevisto e
desconcertante – atrasariam uma nova observação do corpo do Galileu...
Os homens de Cavalo de Tróia, numa informação posterior a esta
primeira grande viagem e baseados no peso de Jesus, no comprimento
dos seus braços, as distâncias ombro-cravo e o ângulo de trinta graus
que os membros superiores formavam com a horizontal, expuseram,
entre outras, as seguintes considerações teóricas: a distância entre os
cravos dos pulsos e uma linha horizontal (imaginária) que passasse pelo
centro de ambas as articulações dos ombros era de 26,5 centímetros,
aproximadamente. Esta era, em suma, a arrepiante altura a que tinha de
se elevar o Mestre sempre que fazia uma destas inspirações um pouco
mais fundas. Pensando que o músculo deltóide (que se estende da
clavícula e da omoplata ao úmero) está concebido para elevar o membro
superior cujo peso é de pouco mais de um quilo, o esforço a que se viu
submetido, no caso do Galileu, é simplesmente excepcional.
Se fizermos actuar o deltóide em sentido inverso – tornando fixas
as suas inserções no úmero, puxando para cima os ombros para elevar o
peso do corpo – verificaremos que as enormes dificuldades que isso
pressupòe, perfeitamente evidentes nesse exercício de ginástica, único,
que é levado a cabo com as argolas e que, popularmente é conhecido
como fazer o Cristo”.
Não podendo contar com a ajuda dos músculos das extremidades
inferiores, a musculatura do homem tinha de elevar o peso
correspondente à cabeça, tronco e ventre, até à raiz dos membros
inferiores. Ou seja, calculando que a massa total de Cristo fosse de uns
oitenta e dois quilos, esses músculos teriam de arcar com a elevação de
dois terços do peso do corpo. Por outras palavras: à volta de 54,6 quilos.
De acordo com a fórmula peso = massa x gravidade, obteve-se:
54,6x9,8=535,73 joules. Ao cronometrar essa elevação de 26,5
centímetros (0,265 metros), nuns 1,5 segundos, Cavalo de Tróia deduziu
que a aceleração sofrida por Jesus de Nazaré foi, aproximadamente,
0,2355 metros por segundo, em cada segundo. (Foram considerados,
obviamente, os seguintes parâmetros: e = espaço ou distância
percorrida; Vo, = velocidade inicial, neste caso zero: a = aceleração e t =
tempo gasto. Ou o que é o mesmo: e=Vo±½.a.tZ. Isto significava o
seguinte: 0,265=½ a.l,5z.) Também foi calculada a força que o Mestre
teve de fazer em cada uma destas violentas elevações em vertical: peso
– força = massa x aceleração. Quer dizer, 535 73-F=54,6x0,2355. O
resultado foi: F=522,87 joules.
Quanto ao trabalho” desenvolvido, eis o aterrorizante número:
trabalho = força x distância (T=522,87x0,265=138,56 newtons). Isto
equivale a uma potência de 92 37 watts! (potência = trabalho/tempo ou
138,56/1,5.) Se compararmos estes 92,37 watts com os 2,5 que
normalmente a mesma musculatura realiza para elevar simplesmente o
braço, começaremos a ter ideia do gigantesco e extremamente doloroso
esforço que, como disse, Jesus de Nazaré fez na Cruz. (N. Do M 430
431
Pelas treze horas e quarenta minutos a voz de Eliseu fez-se ouvir
cinco por cinco no meu ouvido. Com uma certa excitação, deu-me a
conhecer antecipadamente qualquer coisa que, tanto os hebreus como o
pelotão de vigilância no Gólgota e eu próprio tínhamos à vista e que não
tardaria em converter a Cidade Santa e aquele lugar num inferno.
A primeira frente do haboob acabava de cair como uma neblina
tenebrosa e negra sobre a encosta oriental do monte das Oliveiras.
Como medida de precaução, o berço activara o seu cinturão de defesa.
As rajadas de vento, à passagem pelo módulo, alcançavam os trinta e
cinco nós.
Ao avistar as nuvens pardacentas da tempestade, avançando de
oriente como uma onda gigantesca, a multidão começou a agitar-se,
fugindo precipitadamente para a muralha. Muitos meteram-se pela Porta
de Efraim e outros, bons conhecedores daquela espécie de siroco,
procuraram refúgio ao pé do alto muro que rodeava Jerusalém naquele
ponto. O Sol continuava a brilhar no alto, na metade de um céu azul e
transparente.
Creio que este registo é extremamente interessante:
contrariamente ao que dizem os evangelistas, a multidão não se retirou
das proximidades do Calvário em consequência das trevas que ainda não
tinham feito a sua entrada em cena. Mais: não notei que naquele
momento sentissem medo. O fenómeno – não me cansarei de insistir
nisto – era mau, mesmo perigoso, mas frequente por aquelas latitudes.
Portanto, os Judeus estavam acostumados às tempestades de pó e de
areia. Em princípio, não era lógico que lhes causasse pânico. No entanto,
o terror de que Mateus, Marcos e Lucas falam foi real. Mas, tal como
narrarei em seguida, a origem desse medo não esteve no siroco...
Poucos minutos depois, daquelas centenas de pessoas que estavam a
ver os crucificados só ficou um pequeno grupo de sacerdotes e curiosos.
Talvez meia centena. A maioria, como se se tratasse de uma medida de
protecção habitual, começou a sentar-se no terreno, cobrindo as
cabeças com os mantos pesados e coloridos. O pequeno grupo era mais
uma prova do que afirmo. Sabiam que estava a chegar uma tempestade
seca e, no entanto, encaravam a questão com filosofia.
Como era natural, optaram e preferiram o espectáculo macabro dos
condenados, debatendo-se entre a vida e a morte. Estive tentado a
aproveitar aqueles momentos para me servir das lentes de contacto e
proceder a um exame do corpo do Mestre. Mas a chegada iminente do
escuro e denso turbilhão fez-me desistir. A tal velocidade – uns setenta
quilómetros por hora – as partículas de terra e os grãos de areia teriam
danificado a delicada superfície dos crótalos, impossibilitando aquela
fase da missão, pondo até em risco a integridade física dos meus olhos.
Assim, optei por adiar o registo ultra-sónico e teletermográfico.
Segundo Eliseu, o focinho do haboob e os dois ou três turbilhões que
vinham atrás não eram muito fundos, calculando-se que durassem entre
quinze e vinte minutos.
Não foi necessário que o centurião desse muitas indicações.
Cada homem sabia como se comportar naquela contingência. Ao
verificar a retirada em massa dos judeus, Longino permitiu às sentinelas
que se agrupassem no extremo sudeste do cume do Gólgota, de frente
para a tempestade. Juntaram os quatro escudos, formando um parapeito,
e assentaram os joelhos na rocha, mantendo aquela defesa improvisada
com as braçadeiras na parte interior de cada escudo. Os outros
elementos da patrulha levantaram a fileira de escudos que tinham sido
dispostos sobre a superfície do patíbulo, formando um segundo muro,
defensivo.
A totalidade do pelotão – incluindo o oficial e Arsenius – agachouse,
voltado para o sempre mais próximo temporal. Ao ver-me de pé e
indeciso, Longino fez-me um sinal com a mão para que me refugiasse
junto do grupo formado pelos seus homens. Assim fiz, sem perda de
tempo. Mas, em vez de me acocorar como os legionários na direcção do
siroco sentei-me de costas para a patrulha, sem perder de vista os
crucificados.
O vento rapidamente, tornou-se mais quente e sibilante. O primeiro
turbilhão do haboob precipitou-se sobre Jerusalém, e sobre o penhasco
onde nos encontrávamos, com violência considerável. Em questão de
segundos, uma massa esbranquiçada, de toneladas de areia e pó em
suspensão, arrasou o lugar, ouvindo-se a areia a bater contra os escudos.
Apesar do manto que me cobria a cabeça, uma miríade de grãos de
areia fina começou a acossar-me, penetrando por todas as aberturas da
roupa e ferindo-me a pele – especialmente nas pernas – como alfinetes.
O bramido do tornado foi aumentando com a velocidade. Dali a pouco,
tanto os soldados como eu nos vimos obrigados, quase com desespero, a
fechar os olhos e proteger a boca, ouvidos e fossas nasais daquela
poeirada angustiante.
À medida que o siroco ia aumentando, os gritos dos zelotas – de
cara para o vento e quase nus – tornaram-se cada vez mais fortes. As
rajadas tinham começado a fustigar-lhes os corpos indefesos,
massacrando-os com milhões de partículas de terra, acrescentando
assim um novo e insuportável suplício.
Como pude levantei a cabeça e, por entre as colunas de pó, ouvi,
mais do que vi, um dos guerrilheiros, pedindo entre gritos que acabassem
com ele. Quanto a Jesus quase não pude distinguir-Lhe a figura, mas
imaginei o tormento sufocante que estava a suportar. Duvido muito que
alguém no Gólgota ou nas suas imediações, ou mesmo na cidade, pudesse
levantar os olhos durante aquele pesadelo. As sucessivas frentes do
haboob, cujo tecto era quase impossível fixar em semelhantes condições,
elevavam-se – isso sim – a uma altitude suficiente para ocultar o disco
solar, pelo menos para qualquer observador que se encontrasse imerso
no tornado. Contudo, não observei uma escundão ou enfraquecimento da
luz diurna a que fosse lícito chamar trevas.
Houve, naturalmente, uma quebra na visibilidade, como consequência
do arrastamento de areia e do pó, mas não aquela escuridão cerrada que
parece depreender-se dos textos evangélicos. Quem quer que tenha
vivido uma destas experiências sabe que, por muito espesso que seja o
fenómeno meteorológico em questão, dificilmente chega às trevas.
Uma vez afastados os três ou quatro turbilhões de cabeça, Eliseu
estabeleceu novamente a ligação auditiva, anunciando-me que a cauda do
siroco, já muito enfraquecida, precisaria de mais cinco ou dez minutos
para atravessar a região. As massas de terra em suspensão eram menos
consistentes, embora os ventos à superfície mantivessem velocidades
não inferiores aos vinte ou vinte e cinco nós.
O centurião, ao notar que o turbilhão principal parecia diminuir,
levantou-se parcialmente, inspeccionando os quatro soldados que se
resguardavam a escassos metros da nossa paliçada. Não devia ter
observado muitas anomalias porque voltou a acocorar-se imediatamente,
à espera das últimas rajadas do haboob. Eliseu não estava enganado. Por
volta das catorze horas, a força do tornado diminuiu tal como a poeirada.
Felizmente, o corpo principal do siroco fora-se fragmentando desde
o seu nascimento nos desertos arábicos, alcançando as terras da
Palestina com uma cabeça cujo comprimento foi calculado pelos
instrumentos do módulo em cerca de vinte quilómetros e cuja frente
tinha quase cento e vinte cinco. No entanto, as rajadas, só parariam
bastante mais tarde.
Quando a tempestade acabou, o espectáculo que se ofereceu à
minha volta era simplesmente dantesco. Naturalmente, eu e todos os
legionários estávamos cobertos de areia. O pó embranquecera as
sobrancelhas, cabelo e roupas dos soldados, bem como os mantos dos
escassos cinquenta judeus que tinham preferido aguentar o açoite do
vento junto ao Gólgota.
Quanto aos crucificados, ao vê-los mudos e com as cabeças imóveis
descaídas para o peito, o que logo pensei é que tinham morrido por
asfixia. Longino deve ter pensado o mesmo porque se precipitou para as
cruzes, dando palmadas na roupa e sacudmdo a terra acumulada.
Contudo, ao pararmos junto dos condenados, verificámos – eu, pelo
menos, com alívio – que continuavam vivos.
As costelas flutuantes de Jesus registavam oscilações esporádicas,
sinal de débil ventilação pulmonar. As feridas e fios de sangue tinham
absorvido uma infinidade de partículas de terra e areia chegando a
formar tampão nos fundos golpes das ilhargas e no dilacerado da rótula.
Os cabelos, os pêlos das axilas e púbis, bem como do peito, estavam
irreconhecíveis. Tinham-se convertido em massas encanecidas. A
cabeleira, principalmente, encharcada pelas hemorragias, era agora, com
o pó, um viscoso e cinzento penduricalho. Fiquei aturdido ao ver-lhe a
barba e o bigode carregados de pó e os lábios, com uma crosta terrosa
que escondia as mucosas e, até, as feridas mais profundas.
As chagas dos cravos, tanto no Mestre como nos zelotas, quase
tinham sido tapadas pelo haboob. Aquele vento infernal que acabava de
atentar contra o fio de vida que ainda flutuava no alto daquelas árvores,
tinha conseguido o que parecia ser um milagre: deter a perda de sangue
do Nazareno (ainda que, sinceramente, por aquela altura da crucifixão já
não saiba o que teria sido melhor). De qualquer modo, o destino é muito
estranho...
Os guerrilheiros e Jesus de Nazaré estavam desmaiados. No fundo,
era o melhor que lhes podia ter acontecido.
Foi então que aconteceu. Pelas catorze horas e cinco minutos, o meu
companheiro no módulo – com uma excitação semelhante à que tivera
durante a minha permanência na herdade de Getsémani – estabeleceu
bruscamente ligação, anunciando-me alguma coisa que pôs a oscilar os
meus esquemas mentais.
- Aí está ele outra vez!... Jasão, tenho-o no écran!... O radar regista
um eco... Direcção?... Afirmativo: vem de oriente. Isto é uma loucura!
Voltei-me para o local, mas, mais uma vez, nada observei de anormal.
Era natural. Embora a vaga de pó se tivesse desfeito aquele objecto
encontrava-se ainda, segundo o Gun Dish de bordo, a cento e trinta e
cinco milhas do ponto de contacto onde estava pousado o berço. .. Não
vem muito depressa – prosseguiu Eliseu, que devia estar com o nariz
encostado ao visor do radar. - Calculo que a uns quatrocentos nós... Oh...
A voz do meu irmão interrompeu-se. Cercado como estava pelos
doze legionários e pelos chefes não pude restabelecer a ligação e
dirigir-me a ele. Que diabo se estava a passar no módulo?
..Jasão, nunca acreditarão em nós!... O eco acaba de fazer uma
ruptura de quase noventa graus... Tenho-o em rumo cento e noventa... Se
continuar assim passará quase na tua vertical...
Mas, como conseguiu?... Que tipo de coisa pode dar uma volta assim?
Jasão, percebo que não podes informar-me. Continuarei a informar...
Reduz, afirmativo, reduz a velocidade! E também o nível... Deixa ver...
com efeito... Roger! Passa de quatrocentos nós para duzentos e setenta
e cinco... Nível?...
Trezentos e continua a descer... Dou-te pegeons 1 no módulo:
noventa milhas e mantendo-se em cento e noventa... Um instante!...
Acelera!... Afirmativo, está a acelerar: quatrocentos... setecentos...
novecentos nós!... não é possível... Estabilizou-se ao nível de cento e vinte
(quatro mil metros)... Vais tê-lo à vista se se mantiver nesta velocidade...
Penso que às duas da tua posição...
Efectivamente, cinco minutos e seis segundos depois, a voz de
Eliseu entrou-me novamente no ouvido. Mas, desta vez, sim, tinha-o à
vista: de começo como um ponto brilhante. Depois, à medida que se ia
aproximando perdeu luminosidade, convertendo-se numa espécie de lua
cheia, de tom mate.
Os soldados não tardaram muito a ver. E o centurião, erguendo o
olhar, ficou tão perplexo como eu.
.. Jasão!... Já o tens? Eu vejo-o nos meus doze e alto...
Continua a doze mil pés! Pára!... Afirmativo! Está estacionário!...
As últimas palavras do módulo, carregadas de emoção, acabaram por
me contagiar. Esfreguei os olhos, convencido de que estava com
alucinações... Mas logo compreendi que essa explicação era ridícula:
Longino, os legionários e eu podíamos sofrer qualquer tipo de transtorno
mas não o radar.
Aquela coisa segundo Eliseu estabilizara-se a cerca de quatro mil
metros na vertical de Jerusalém. E assim permaneceu durante dois ou
três minutos. A julgar pela altura a que se encontrava e pelo seu
tamanho aparente – superior ao de dez luas – as dimensões eram
enormes. Enquanto observava boquiaberto aquele fenómeno passaram-me
pela mente uma infinidade de explicações possíveis que, naturalmente,
não me satisfizeram. Era o segundo objecto voador que via nas últimas
catorze horas. Como podia aquilo acontecer? Que significava? E, mais
importante, que ser ou que seres o tripulavam? Mas as minhas
alucinações viram-se definitivamente pulverizadas
* Pegeons: entre pilotos e astronautas, proporcionar distâncias e
rumo. (N. Do M.)
quando meu irmão, depois de verificar três vezes o diâmetro do
objecto voador me anunciou as suas dimensões: 1757,9096 metros!
Quase um quilómetro e oitocentos metros! Ou seja, uma superfície
ligeiramente superior a toda a Cidade Santa...
A presença do monstruoso disco, totalmente silencioso, flutuando
no céu como uma frágil pena, fez passar a escolta e os hebreus da
estupefacção ao medo. Num movimento reflexo, o centurião e alguns dos
seus homens desembainharam as espadas, recuando para a base das
cruzes. Mas nenhum conseguiu falar.
Um pânico irracional tomara conta dos seus corações e o mesmo
acontecia com a meia centena de curiosos que permanecia junto ao
Gólgota. Os olhares de todos estavam fitos naquela lua misteriosa.
Pelas catorze horas e oito minutos, de acordo com os cronómetros
do módulo, o objecto oscilou ligeiramente – como se tremesse – e
lentamente, numa ascensão que me atreveria a classificar como
majestosa dirigiu-se para o Sol. Ao alcançar o nível cento e oitenta
(dezoito mil pés) voltou a ficar estacionário.
Um grito colectivo soltou-se das gargantas dos judeus quando viram
como o misterioso objecto começava a interpor-se entre o disco solar e
a Terra. E fê-lo de leste para Oeste (considerada sempre a observação
do Calvário e suas imediações).
Em segundos, com uma precisão que me secou a garganta, o
formidável objecto tapou o círculo ardente, dando lugar a um
progressivo obscurecimento de Jerusalém num raio dilatado no qual,
naturalmente, me encontrava.
Aquela interposição ao Sol, milimétrica e magistralmente
desenvolvida por aqueles que governavam o imenso aparelho, deu-se com
certa lentidão, mas sem vacilações. Hoje, ao lembrá-lo, tenho a sensação
de que os responsáveis da operação quiseram que o eclipse pudesse ser
observado passo a passo.
Em menos de cento e vinte segundos, o astro-rei desapareceu e,
com ele, a claridade. Ou melhor, cerca de oitenta por cento da fonte
luminosa. Obviamente, ainda que a grande massa metálica – confirmada
pelo radar – projectasse imediatamente um grande cone de sombra
sobre a Cidade Santa e arredores, as radiações solares continuaram
presentes, formando uma coroa ou aura luminosa que abarcava toda a
curvatura do enigmático objecto. As trevas, efectivamente caíram sobre
Jerusalém, mas não com o carácter absoluto de uma noite cerrada, por
exemplo. A claridade existente em volta do disco era suficiente para que
pudéssemos distinguir à nossa volta com um índice de luminosidade muito
semelhante ao que costuma seguir-se ao pôr do Sol. E assim se manteve
até chegar o momento fatídtco...
(Não julgo necessário alongar-me em profundidade sobre esta
ilógica explicação científica, que procura resolver o fenómeno das trevas
com o auxi io de um eclipse total do Sol. Basta lembrar que por aquela
data se registava precisamente a lua cheia e, consequentemente tal
eclipse do Sol era impossível. A Lua, pelas catorze horas de 7 de Abril
de 30, ainda se encontrava oculta abaixo do horizonte oriental. Os
astrónomos sabem, também, que um eclipse desta natureza sempre se
inicia pelo lado ocidental do disco solar.
Aqui acontecia o contrário. O obscurecimento do Sol começou por
oriente.
Uma vez consumado o ocultamento solar, Eliseu verificou os
parâmetros a bordo, confirmando que aquela espécie de superfortaleza
voadora tinha ficado ancorada a dezoito mil pés de altura, mantendo uma
velocidade de deslocação de 1431,055 km/hora. Nos quarenta e cinco
minutos que o fenómeno das trevas durou, o objecto cobriu um total de
1073,2912 quilómetros, sempre a uma altitude de seis mil metros. (O
diâmetro solar aparente correspondia a um arco cujo valor aproximado
era de trinta e três minutos e dez segundos.)t Ao consumar-se o eclipse
que, insisto, só pôde ter uma projecção puramente local, muitos dos
judeus – espantados – caíram com o rosto em terra, batendo no peito
com ambas as mãos e dando gritos de terror.
Os saduceus, desorientados, não sabiam como proceder. Por fim, a
maioria dos hebreus fugiu para a Porta de Efraim, enquanto os seus
dirigentes – não muito convencidos – tentavam retê-los, gritando-lhes
que tudo aquilo só podia obedecer a algum encantamento do crucificado
ou a um fenómeno celeste... Foi inútil. A perturbação dos incultos e
supersticiosos inimigos de Jesus era tal que nem sequer escutaram as
razões dos sacerdotes. E ali ficou o desamparado grupo de juízes, muito
mais dependentes do que acontecia nos céus que no patíhuln. Suponho
que, se continuaram no Gólgota não foi por Ihes sobrtr valentia, mas sim
em obediência a Caifás e ao Conselho.
O oficial romano teve de fazer um supremo esforço para serenar o
seu nervosismo e o dos seus homens. Se os Hebreus tinham medo
daquele tipo de fenómeno, os Romanos muito mais. À força de rudes
gritos, Longino conseguiu finalmente que os seus soldados ocupassem os
postos de sentinela indicados pelo optio antes da tempestade de areia. A
ajuizar pela vozearia que se levantava mais para além da muralha, a
confusão e o medo entre os peregrinos e os habitantes de Jerusalém
tinham de ser extremos. Enquanto aquela área permaneceu em
penumbra, muitos curiosos chegaram a assomar à Porta de Efraim,
intrigados e, suponho, ansiosos por saber se tudo aquilo tinha alguma
ligação com o prodigioso Mestre da Galileia. Mas ninguém teve coragem
para se aproximar. Ou melhor, houve um grupo que o fez...
Poucos minutos depois de se iniciarem as trevas, pelo caminho que
partia de Jerusalém destacaram-se umas vinte pessoas. Com passo
rápido e decidido foram-se aproximando da grande rocha. Por causa das
sombras só pude distinguir o jovem apóstolo João quando já estava a
poucos metros do ponto onde eu me encontrava. Acompanhava-o outro
homem e dezoito mulheres, todas elas meio escondidas nas suas vestes.
Mas não consegui reconhecer nenhum dos amigos de Zebedeu.
Era muito estranho. Na realidade, tudo era estranho desde a
aproximação daquele objecto, que continuava fixo e imperturbável sobre
as
* Não posso resistir à tentação de recordar ao leitor outro
acontecimento que parece ter uma estreita relação com este: o Sol que
dançou” em Fátima em 1917. Quanto ao objecto que provocou as trevas,
sobre Jerusalém e ao seu redor, o computador do módulo calculou que
girava geo-sincronicamente sobre a Cidade Santa (paralelo calculado
para Jerusalém: 5463 quilómetros). (N. Do M.)
nossas cabeças. Precisamente desde o seu aparecimento no espaço –
embora só tivesse consciência disso com a chegada de João e do seu
grupo – o vento tinha parado. E, com ele, todos os sons próprios e
naturais do campo. Pelo menos, os que habitualmente tinha ouvido. Até os
trinos fugazes das andorinhas e outras aves, o zumbido dos insectos, o
silvo das nuvens de moscas verdes e grandes como moedas, que, antes da
passagem do haboob, tinham começado a pousar às dezenas no sangue
dos crucificados.
Quando me preparava para descer pela fenda, um súbito gemido do.
Galileu deteve-me. O Mestre parecia ter recobrado a consciência. O
centurião e eu demos uns passos e, efectivamente, verificámos como o
Crucificado se esforçava de novo por respirar com mais força A queda
do diafragma inchara-lhe o ventre e o tórax estava rígido como o
madeiro de onde pendia. Apesar do pó e da terra que o cobriam – quase
como uma fatídica antecipação da sepultura – os sinais da cianose eram
cada vez mais visíveis. As poucas unhas dos pés que não estavam
banhadas por sangue tinham começado a ganhar uma característica
coloração azulada. O mesmo acontecia com as pontas dos dedos. A
tetanização dos membros inferiores era já galopante. Os músculos das
coxas e das pernas continuavam a sofrer espasmos embora cada vez
mais longos.
Os dedos grandes de ambos os pés tinham entrado já em aducção,
desviando-se para o plano central do corpo do Nazareno. De repente,
uma mão me pousou no ombro esquerdo. Era João. Com a sua coragem
habitual tinha subido ao alto do Calvário. Vinha só. A verdade é que nem
sequer se demorou a olhar o Mestre.
Os olhos estavam enterrados no rosto, marcados pelas muitas horas
sem sono e pelo sofrimento. Parecia um velho... Com voz trémula dirigiuse
a Longino, suplicando-lhe que, ao menos por um instante, permitisse à
mãe de Jesus de Nazaré aproximar-se da cruz e dar o último adeus a
Seu filho. João acompanhou o pedido, dirigindo o braço direito para o
reduzido número de mulheres que esperava a pouca distância dos
saduceus.
I Apesar de quanto já vivera e sofrera naquela missão, ao ouvir o
Zebedeu, os meus joelhos tremeram. Maria estava ali! Longino não teve
coragem para negar, e autorizou o discípulo a que acompanhasse a mãe
do Mestre até ao cimo do pauôulo, com a condição de que as outras
ficassem onde estavam e de que a permanência junto da cruz fosse o
mais breve possível.
João agradeceu o gesto humanitário do centurião e apressou-se a
voltar para junto do grupo. Trocou algumas palavras com as mulheres e,
em seguida, uma das hebreias começou a subir por entre as rochas,
ajudada por João e por outro homem. À medida que se aproximavam, o
meu pulso acelerou. Poucos segundos depois tinha na minha frente a mãe
terrena do Gigante... Os legionários, um pouco mais tranquilos, tinham
descido pelo segundo penhasco em busca de lenha seca com que
pudessem acender uma fogueira. Como era lógico, não podiam prever a
duração da escuridão e Arsenius, prudentemente, ordenou aos mfantes
que fizessem uma boa provisão de combustível. Faltavam quatro horas
para o ocaso e a guarda dos condenados podia ser longa.
No instante em que Maria chegava junto da cruz central, dois dos
soldados pousaram na rocha feixes e ramadas da giesta chamada de
escovas, muito leve e de excelente qualidade para os seus objectivos.
Apoiando-se nos antebraços de João e do segundo homem (que se
chamava Jude ou Judas e que, segundo consegui apurar no dia seguinte,
era irmão carnal de Jesus), a hebreia de rosto extremamente pálido,
parou a um metro do madeiro em que se encontrava pregado o filho. Não
era muito alta. A cabeça, levantada para o Mestre, tinha ficado, mais ou
menos, à altura dos joelhos do Nazareno. Possivelmente, teria entre 1,60
e 1,65 metros. Contava à volta de cinquenta anos, embora a sua figura
frágil, um pouco curvada, e as rugas que nasciam nos belos olhos
amendoados a tornassem mais venerável.
Apesar do escuro chamou-me a atenção a testa alta e ampla,
rematando um rosto ovalado em que despontava um nariz pequeno e
direito. Tinha na cabeça um manto castanho-claro que não me permitiu
ver-lhe o cabelo. No entanto, a julgar pela cor das sobrancelhas – finas e
ligeiramente arqueadas – deviam ser de um negro de azeviche. A túnica,
de um tom semelhante ao do manto, embora um pouco mais apagado,
quase roçava pelo chão do Gólgota.
Ninguém disse nada. João começou a chorar, agarrando-se ao braço
da senhora. Longino, comovido, retirou-se.
No entanto para minha surpresa, Maria não derramou uma lágrima.
Só o tremor das mãos compridas e calejadas, sob cuja pele serpenteava
uma rede de veias azuis e pronunciadas, reflectia a sua aflição. Os meus
problemas viram-se aliviados quando o oficial, noutro gesto que muito
dizia em seu favor, voltou até junto de nós, trazendo uma tocha que
acabava de acender. Quando Longino aproximou o improvisado archote
do corpo do Mestre com o fim de que a sua mãe O pudesse ver melhor, o
Galileu, acordado talvez pelo resplendor avermelhado do fogo, descolou o
queixo do peito, vendo a Sua família. A respiração voltou a agitar-se e o
olho direito abriu-se ao máximo. A mulher, tal como João e o irmão de
Jesus, não tiravam já os olhos do rosto do crucificado.
A boca do Gigante abriu-se ligeiramente, tentando falar.
Porém, os pulmões – diminuídos na sua capacidade vital pelas
múltiplas lesões dos músculos respiratórios e pelas angustiantes faltas
de apoio – encontravam-se perante uma gravíssima insuficiência
ventilatória restritiva. (Poucos minutos mais tarde, quando ajustei os
ultra-sons ao tórax de Jesus, Cavalo de Tróia receberia informação
sobre aquela delicada situação, comprovando as minhas suspeitas; a
capacidade vital de Jesus encontrava-se muito abaixo dos oitenta por
cento do valor teórico normal, avaliado – como se sabe – em 5,50 litros.)
Apesar disso, o Nazareno, num esforço titânico contraiu os
músculos abdominais e, quase em uníssono, a esgotada musculatura dos
antebraços e dos ombros começou a palpitar, procurando a energia
necessária para elevar a parte superior do corpo naqueles quilométricos
26,5 centímetros. Porém, as reservas do Cristo estavam quase
esgotadas e a Sua vontade não foi suficiente. Naqueles momentos
dramáticos aconteceu uma coisa insignificante, pouco menos que
imperceptível para os 438 439 que se encontravam junto da cruz, mas
que, para mim, como um médico, me gelou o coração. Jesus arqueou o
diafragma pela segunda vez e distendeu de novo os músculos flexores e
extensores, fazendo-os vibrar.
Ao mesmo tempo, o seu pulso esquerdo girou um centímetro no eixo
do antebraço. Aquele movimento do carpo no cravo colaborou
decisivamente na elevação dos ombros. A cabeça do Rabi cravou-se no
patibulum e a barba voltou-se para o céu, enquanto a violenta dor
provocada pelo mínimo movimento do pulso esquerdo fazia pulsar com
precipitação as paredes da veia jugular externa, marcando as fossas
supraclaviculares e os músculos do pescoço como nunca vi em ser
humano. Logo, da ferida meio fechada do pulso esquerdo surgiram dois
fios de sangue, finíssimos e divergentes, que correram até ao cotovelo.
O Mestre – a que preço! - conseguira o Seu propósito. Ao elevar-se,
a boca abriu-se ao máximo e um hausto de ar fresco penetrou-lhe os
pulmões, ao mesmo tempo que o afundamento do ventre deixava a
descoberto a crista ilíaca do quadril direito. O corpo do crucificado
voltou a cair e Jesus, baixando o rosto, esboçou um sorriso estranho.
Aquele ricto alarmou-me: não se tratava na realidade de um sorriso, mas
sim de outro sintoma da tetanização que o acossava e que em medicina é
conhecido por sorriso sardónico, lábios apertados, com as comissuras
para fora e para cima.
Ao contemplar o esforço desesperado do Filho, Maria baixou a cara
e as pernas fraquejaram-lhe. Mas João Marcos e Judas ampararam-na.
Os lábios do Mestre, apenas sombreados pela luz do archote, começaram
a tremer e as profundas olheiras que acentuavam os pómulos altos e
afilados confundiram-se com a amargura escura e insondável de uns
olhos que, apesar de tudo, conservavam singular beleza.
- Mulher!
A voz arrastada do Mestre fez que Maria e todos os outros
levantassem o rosto. E o semblante da hebreia iluminou-se. - Mulher –
repetiu Jesus -, aqui tens o teu filho!
João enxugava as lágrimas com a palma da mão direita, olhando o
Mestre sem conseguir compreender.
Depois, desviando o rosto para o apóstolo exclamou, quase sem
forças:
- Meu filho... aqui tens tua mãe!
A pequena inspiração do Crucificado estava quase esgotada. A Sua
respiração entrou em queda e gastando as últimas forças, ordenou entre
ofegos:
- Desejo... que abandoneis... este... lugar.
O abdómen voltou a deformar-se e a cabeça, tal como os músculos
dos braços e ombros, descaíram.
Os homens manifestaram a intenção de darem meia volta e
retirarem-se mas Maria, sempre em silêncio, deu um passo para o
Crucificado. Inclinou-se muito lentamente e beijou o joelho direito de
Jesus. Depois, escondendo o rosto nas mãos, abandonou o penhasco,
amparada por seu filho e por João.
Creio que tanto o centurião como eu ficámos impressionados pela
força daquela mulher. Uma hebreia que teria oportunidade de voltar a
ver e da qual colheria uma revelação preciosa e inestimável.
A pequena, quase insignificante, sombra de Maria, mãe do Mestre,
não tardou em se desvanecer na penumbra. João e Judas acompanharamna
no seu caminho, de regresso a Jerusalém. Mas as outras mulheres
continuaram a curta distância, suspensas do Crucificado agonizante.
Estavam ali, entre outras adeptas e crentes, Ruth, também irmã carnal
do Nazareno; Salomé, a mãe de João; Miriam, esposa de Cleopas e irmã
da mãe de Jesus; Rebeca e Maria, a de Magdala, mais conhecida hoje por
Madalena.
Pelas catorze horas e vinte e cinco minutos, o optio autorizou ao que
fazia as vezes de rancheiro que distribuísse a comida entre os homens
da patrulha: porco salgado, queijo, pão e uma ração de água com vinagre,
conhecida com o nome de posca. Todos os soldados, com excepção dos
que estavam de sentinela se reuniram em volta da fogueira, dando boa
conta das viandas.
Durante aqueles breves momentos de tranquilidade perguntei ao
oficial por que razão os legionários tinham empilhado tantos montes de
rama na base de cada uma das cruzes.
Convidando-me a saborear o vinho fermentado, Longino explicou-me
que era uma simples medida de graça. Caso fosse necessário, se assim se
ordenava ou se a agonia dos condenados se prolongava demasiado,
deveriam deitar fogo à lenha. O fumo acabava com os crucificados,
asfixiando-os em questão de minutos. Alguns dos infantes, procurando
apaziguar o medo que, sem dúvida, ainda os atormentava, começaram a
gracejar à custa dos prisioneiros. Um deles, mais ousado que os outros,
voltou-se para Jesus, brindando com o seu púcaro de latão:
- Saúde e sorte ao rei dos Judeus!
Aquilo contagiou os outros, que também levantaram a sua posca para
a cruz do Galileu.
Interrompendo a respiração ofegante, Jesus exclamou:
- Tenho sede!
O optio consultou o centurião e este autorizou-o a que aproximasse
do Galileu a tampa do cântaro que continha a água envinagrada. Arsenius
agarrou na tampa e depois de a espetar na ponta de uma das lanças da
escolta aproximou-se do madeiro, levantando o pilum de modo a que a
rolha previamente impreganada de posca, tocasse nos lábios poeirentos
do Mestre.
Naturalmente, não desperdicei a oportunidade. Jesus abriu a boca,
mordendo ansiosamente a cortiça. O líquido limpou a terra mas, ao
penetrar nas feridas, o ácido feriu novamente a carne do Nazareno, que
logo afastou a cabeça. Arsenius baixou a lança e, ao observar que o
prisioneiro não tinha intenções de repetir o humedecimento da boca,
afastou-se.
Os lábios do Rabi acusavam com os seus tremores uma
intensificação da crise febril. Peguei então num archote e, ao aproximálo
do rosto de Jesus, descobri como a tetanização começara a reduzir o
brilho do esmalte dentário e aumentara a opacidade do cristalino. O olho
esquerdo continuava fechado pelos hematomas. (A insuficiência
paratiroideia, provocada pela tetanização, devia ser já alarmante, com
uma acentuada baixa da concentração de cálcio no sangue.) Não havia
tempo a perder. Afastei-me uns passos, até chegar ao extremo do
promontório e, de costas para os legionários, coloquei os crótalos nos
olhos. Segundos antes, quando tirava as lentes de contacto da bolsa, vi
como João e o seu companheiro regressavam da cidade, unindo-se às
mulheres.
Avisei Eliseu do exame iminente, anunciando-lhe que, se não me
enganava, Jesus de Nazaré tinha entrado em pleno no processo préagónico
e que, a fim de sincronizar a exploração médica com o tempo
real, ajustasse os cronómetros do módulo com a activação do circuito
ultra-sónico, recordando-me a hora de cinco em cinco minutos. Recuei de
novo, postando-me a três metros da cruz central, e activei as ondas
ultra-sónicas.
Eram catorze horas e trinta minutos...
A minha primeira preocupação foi conhecer a perda geral de sangue.
As hemorragias constantes – em especial depois do encravamento –
fizeram-me suspeitar de uma grave baixa da volemia. As ondas de 3,5
Mhz procuraram as principais artérias e o efeito Doppler nas cavas e na
aorta confirmaram os meus temores: naquele momento, o volume total de
sangue foi calculado em quarenta e sete por cento. Portanto, pelas
catorze horas e trinta minutos Jesus tivera já uma perda de 2,8 litros.
(Estes dados e outros mais complexos que preferi poupar no meu diário,
foram obtidos, como já anotei na devida altura, depois do termo daquela
primeira parte da grande viagem.)
O Nazareno, pois, tinha perdido quase metade da volemia,
continuava a sangrar e sem possibilidade de repor, pelo menos, parte do
plasma perdido – facto este francamente difícil -, a anemia galopante
acabaria por provocar um desfalecimento de que não poderia recomporse.
Naquele momento, supondo que isto pudesse ser possível, o corpo do
Messias deveria ser colocado em posição horizontal:
- Catorze e trinta e cinco...
O imediato exame do baço veio confirmar a quase total destruição
do circuito gerador de glóbulos vermelhos ou eritrócitos, que tinham
descido ao alarmante número de dois milhões e setecentos mil por
milímetro cúbico de sangue, o baço fora libertando as suas reservas, mas
depressa ficou esgotado. Quanto à aceleração da eritropoiese na medula
óssea e a estimulação da síntese proteica, havia tempo que tinham
descido ao limite mínimo. Estas perdas na corrente sanguínea e a não
ingestão de líquidos compensadores desde que fora içado ao madeiro
vertical estavam a originar uma sede esmagadora – talvez um dos piores
sofrimentos – e, consequentemente, um desmedido esforço cardíaco. A
insuficiente ventilação pulmonar, cada vez mais precária, fizera disparar
todos os alarmes e o coração, num esforço supremo, lutava para bombear
sangue à musculatura dos ombros, braços e intercostais. Estes últimos,
principalmente, tinham tomado a seu cargo, praticamente, noventa e, por
vezes, cem por cento da responsabilidade respiratória.
O músculo cardíaco, enfim, que numa pessoa normal trabalhava à
razão de sessenta a setenta pulsações por minuto, martelava a caixa
torácica de Jesus a uma média de cento e vinte, cento e trinta
pulsações, afligido pela dramática carência de oxigénio e de força das
áreas nobres do organismo: cérebro, rins e, nestas circunstâncias, da
musculatura que lutava pela entrada de ar nos pulmões.
O instinto de sobrevivência estava a imprimir ao coração um débito
que Cavalo de Tróia avaliou entre trinta e quarenta litros por minuto. No
entanto, à medida que o tempo ia passando as formidáveis palpitações do
Nazareno foram oscilando, com sucessivas baixas, consequência da
menor actividade do bolbo raquidiano, que começava também a
fraquejar, enviando muito menos impulsos nervosos ao coração.
Este, em suma, provocaria um círculo vicioso de carácter
irreversível.
- Catorze e quarenta...
O Mestre, com as costelas tensas como arcos e as artérias pulsando
sem descanso afastou o queixo do tórax. O olho direito começava a dar
sinais de um ligeiro estrabismo ou desvio divergente. Franziu as
sobrancelhas e com um gemido suplicante exclamou: - Tenho sede!
Longino repetiu a manobra mas, nesta altura, os lábios de
pergaminho mal roçaram a tampa esponjosa do cântaro. O centurião
oscilou o archote à altura da cara do Galileu, com lentos movimentos da
direita para a esquerda. Mas a pupila, muito dilatada, não chegou a
mover-se. Jesus começara a perder a visão! O olhar vidrado fez-me
pensar na possível formação de um edema pupilar ou inchaço do nervo
óptico no fundo daquele olho, certamente em consequência da
hipertensão intracraniana ou do menor fluxo sanguíneo naquela região da
cabeça.
O oficial examinou atentamente o rosto do Rabi. O nariz, apesar do
hematoma e do possível desvio ou fractura dos ossos, começara a
adquirir um sombreado alongado (sinal inequívoco da fase pré-mortal).
Também as cavidades orbitais estavam mais acentuadas, registando-se
um afundamento da bolsa adiposa do pómulo direito. O esquerdo
encontrava-se tão tumefacto e ensanguentado que nele era impossível
descobrir sinal algum.
- Este – comentou Longino – está pronto.
E voltou para junto dos seus homens, movendo a cabeça com certo
desalento.
Acocorei-me e dirigi o finíssimo laser avermelhado para baixo do
último segmento do esterno o apêndice xifoideu, procurando assim
evitar o choque dos ultra-sons com as costelas falsas e as flutuantes. Ao
encontrar a massa esponjosa e elástica dos pulmões, a catástrofe
respiratória surgiu em todo o seu dramatismo. O pulmão esquerdo
encontrava-se quase em colapso, por causa de um derrame pleural. As
chicotadas e suas sucessivas pancadas e pontapés nos flancos – e
concretamente no esquerdo – tinham originado, sem dúvida a acumulação
de líquido na parte inferior do saco pleural que envolve o pulmão.
* Ao medir os mais importantes parâmetros da respiração de Jesus
de Nazaré, o computador encarregado das avaliações e registos – um
Dataspir, sistema on line, EDV 70 – calculou que naqueles momentos (ca
Utilizando o chamado Sistema l, baseado em tabelas francesas
elaboradas em Nancy foram desenvolvidos cerca de quarenta
parâmetros. Por exemplo, a VC, ou capacidade vital VT ou volume
corrente; RV, ou volume residual; TLC, ou capacidade pulmonar total; MV,
ou volume-minuto; transferência ou difusão pulmonar do oxigénio; RAW,
ou resistência de vias aéreas; distensibilidade pulmonar e torácica, e
PST, ou pressão de retracção elástico-pulmonar. (N. Do M).
Catorze horas e quarenta minutos), tal como supunha, a capacidade
vital do Galileu encontrava-se em fase crítica: com défice superior a
setenta por cento.
Esta diminuição generalizada das funções respiratórias ocasionara
igualmente uma baixa no volume residual do ar, avaliado em condições
normais em 1,67 litros. Enfim, as quebras da capacidade vital, volume
residual e TLC, ou capacidade pulmonar total, tinham provocado em
Jesus a formação do chamado pulmão pequeno.
Por outro lado, o aumento da frequência respiratória – acima mesmo
das quarenta respirações por segundo – só permitia um pobre
arejamento dos chamados espaços mortos: boca, traqueia etc., sendo
muito pouco efectiva na altura de transportar oxigénio aos alvéolos
pulmonares.
E, consequentemente, a hipoventilação que derivava da existência do
pulmão pequeno originou de imediato o aumento de CO2 ou anidrido
carbónico, que contribuiu para o envenenamento progressivo e
intoxicação do Rabi. Esta dosagem elevada de CO2 não tardaria em
deprimir o sistema nervoso central. Cavalo de Tróia considerou que o
aumento do anidrido carbónico alcançara valores superiores aos
cinquenta, sessenta miligramas de pressão trinta minutos depois de ter
sido pregado na cruz.
O aumento do PaCO2, ou pressão arterial do anidrido carbónico
teve, no entanto, uma repercussão que poderíamos qualificar como
relativamente benéfica para o Nazareno: ao multiplicar-se a presença
deste tóxico, o organismo de Jesus entrou numa fase de adormecimento
que, sem dúvida, tornou mais suportável o tormento. - Catorze e
quarenta e cinco...
A baixa saturação de oxigénio em hemoglobina estimulou uma vez
mais o instinto de sobrevivência do Mestre. E içando-se de novo nos
cravos dos pulsos aspirou o que seria o último hausto de ar. A partir
daquele momento, afectado por uma taquicardia muito mais agressiva, o
Galileu – consciente dos poucos minutos de vida que Lhe restavam
começou a recitar o que me pareceu passagens das Sagradas Escrituras.
O centurião e vários legionários aproximaram-se, intrigados. Mas a Sua
linguagem era quase ininteligível. As forças escapavam-lhe
atropeladamente e só de vez em quando as suas palavras me chegavam
com um mínimo de nitidez aos ouvidos. Ao reter algumas daquelas frases
apercebi-me de que o Mestre não procurava dizer-nos coisa alguma.
Estava simplesmente a rezar.
Pude assim escutar, por exemplo: Sei que o Senhor salvará a sua
unção... ou A tua mãe descobrirá todos os meus inimigos e,
principalmente, a impressionante e polémica Meu Deus, meu Deus... por
que me abandonaste?
Ao voltar ao módulo consultei o livro dos Salmos e, efectivamente,
verifiquei que o Mestre recitara algumas das passagens deste texto
sagrado. Entre os que consegui identificar encontravam-se parágrafos
dos salmos xx, xxI e xxII. Este último (Salmo 22, 2) diz exactamente:
Meu Deus, meu Deus: Por que me abandonaste? As palavras do meu
brado não são por Vós ouvidas.
Não pude deixar de sorrir. Os teólogos, exegetas e moralistas de
todas as Igrejas escreveram durante séculos rios de tinta tratando de
interpretar e acomodar estas últimas palavras de Jesus. Para alguns,
principalmente para os padres latinos, este suposto lamento do Nazareno
era apenas uma expressão metafórica: Jesus, dizem, fala em nome da
Humanidade pecadora e, na Sua pessoa, os pecadores são abandonados
por Deus. Assim pensavam, por exemplo, Orígenes Atanásio, Gregório
Nazianzeno, Cirilo de Alexandria e Agostinho, entre outros.
Uma segunda hipótese – defendida por Eusébio e Epifânio – chegou
a propor o seguinte: A natureza de Jesus fala à Sua natureza divina,
queixando-se ao Verbo de que vai abandonar a natureza humana no
sepulcro por algum tempo.
Por último, uma terceira teoria aponta para o facto de Cristo
chegar a sentir-se verdadeiramente abandonado pelo Pai.
Assim dizem, pelo menos, homens tão prestigiados como Tertuliano,
Teodoreto, Ambrósio, Jerónimo, S. Tomás e uma infinidade de teólogos
modernos.
Em minha opinião, o Mestre, angustiado pela sombra da morte,
refugiou-se em alguma coisa que é comum a muitos humanos quando se
vêem em transe semelhante: a oração.
- Catorze e cinquenta...
A fulminante baixa da acidose foi outro anúncio do final iminente do
Nazareno. Ao voltar a observar a corrente sanguínea verificámos uma
alarmante quebra do pH. De 7,20 – 7,3 no momento da crucifixão, tinha
baixado para 7,15.
O rim continuava ainda a fabricar angiotensina, lutando para fazer
subir a tensão, mas tudo aquilo era pouco mais que inútil. Na realidade,
os últimos movimentos respiratórios de Jesus de Nazaré, cada vez mais
breves e acelerados, eram movidos já pela hipoxia, ou baixa quantidade
de oxigénio na hemoglobina do sangue. Porém, este último e sábio
estímulo da natureza humana tinha os minutos contados.
A cianose já dominava todas as mucosas e partes acras: pontas dos
dedos das mãos e dos pés, língua, lábios e, até, algumas regiões da pele.
De repente, o ritmo galopante do coração aumentou ainda mais, batendo
à razão de cento e sessenta e nove pulsações por minuto. Cristo, com os
dedos enclavinhados, tinha iniciado a sua última elevação muscular.
O pulso esquerdo girou pela segunda vez mas, nesta altura, o sangue
que saiu era muito mais viscoso e arroxeado. Apesar disso, fios de
sangue correram pelo antebraço, pingando na rocha do Calvário quando
se detiveram no cotovelo. O pescoço inchou e os músculos intercostais
passaram por novos espasmos, enquanto o rosto ganhava altura,
milímetro a milímetro. Com os olhos e a boca muito abertos, o Mestre
parecia querer apanhar a vida, que já se Lhe ia...
A caixa torácica, a ponto de estalar, inspirou o ar suficiente para
que Jesus de Nazaré, com uma força que fez voltar a cabeça de todos os
legionários, exclamasse: - Acabei! Pai, ponho nas Tuas mãos o Meu
espírito! Naquele instante o Seu corpo descaiu, fazendo ranger todas as
articulações. A voz de Eliseu anunciou-me as catorze e cinquenta e
cinco...
Ao escutar a retumbante frase do Condenado, o oficial correu para
a base da stipe. E, antes que me esqueça, desejo precisar que, tal como
assinala João no seu Evangelho (única testemunha entre os quatro
escritores sagrados), não houve grito, no sentido literal da palavra. A
voz propagou-se, estentórea, isso sim, e talvez por isso, com o passar
dos anos, as mulheres e o próprio centurião tenham confundido a
derradeira manifestação do Mestre com um grito. Tal como diz S. João,
Jesus não deu semelhante grito.
Dito isto, continuemos.
Longino aproximou de novo o facho do rosto do Nazareno.
Tinha o olho aberto e a pupila dilatada. Na revisão das filmagens
pôde precisar-se como minutos antes da última perda de consciência, a
córnea do olho se tornara opaca. Foi uma pena que o olho direito
estivesse fechado. Muito provavelmente os analistas de Cavalo de Tróia
teriam detectado o chamado sinal de Larchert. Exteriormente cessara
toda a evidência respiratória.
O Mestre, com o queixo enterrado no esterno, permanecia de boca
entreaberta. Apressei-me a dirigir os ultra-sons para a região cardíaca.
Cavalo de Tróia considerou que, a partir das catorze horas e cinquenta e
quatro minutos – quando as pulsações do coração tinham, havia uns três
minutos aproximadamente, uma frequência vertiginosa (que alcançou o
seu ponto máximo nas já mencionadas cento e sessenta e nove pulsações
por minuto) – o pulso baixou em queda vertical. O nódulo senoauricular
(que pulsa normalmente à razão de setenta e duas vezes por minuto)
ficou muito abaixo dos sessenta impulsos e, em questão de segundos,
todo o miocárdio entrou numa fibrilação ventricular.
Depois de trinta segundos de arritmia o Mestre tombou fulminado,
embora a paragem cardíaca final só se desse dois minutos e meio depois.
Segundo estas apreciações, o falecimento de Jesus de Nazaré deve ter
ocorrido às catorze horas, cinquenta e sete minutos e trinta segundos
de sexta-feira, 7 de Abril de 30.

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