segunda-feira, 9 de agosto de 2010

FORTALEZA DIGITAL

FORTALEZA
DIGITAL
DAN BROWN
SEXTANTE
Prólogo
Plaza de Espana
Sevilha, Espanha
11 h da manhã
Dizem que, quando chega a hora da morte, tudo se torna claro. Ensei Tankado sabia agora que isso era verdade. Quando caiu no chão com fortes dores, apertando o peito com a mão, percebeu a dimensão terrível do seu erro.
Algumas pessoas se aproximaram, cercando-o e tentando ajudar. Mas Tankado não queria ajuda. Era tarde demais.
Levantou a mão esquerda, tremendo, e esticou os dedos. Olhem para a minha mão! As pessoas em volta olhavam, mas ele percebia que não estavam entendendo.
Em um de seus dedos havia um anel dourado entalhado. Por um breve instante, as inscrições do anel reluziram ao sol da Andaluzia. Ensei Tankado sabia que essa seria a última luz que jamais veria.
CAPíTULO
1
Estavam no seu hotel preferido nas Smoky Mountains. David olhava para ela, sorrindo.
- Então, querida, o que me diz? Vamos nos casar?
Deitada na cama, ela devolveu o olhar. Aquele era o homem certo. Para sempre. Enquanto admirava seus profundos olhos verdes, em algum lugar distante uma campainha começou a tocar. Ela tentou abraçá-lo, mas seus braços encontraram apenas o vazio.
O ruído do telefone acabou despertando Susan Fletcher do seu sonho. Ela suspirou, sentou-se na cama e tateou em volta, procurando o telefone.
- Alô?
- Olá Susan, é o David. Eu te acordei?
Ela sorriu, rolando na cama.
- Estava sonhando com você. Vem pra cá ficar comigo...
Ele riu.
- Ainda está escuro lá fora.
- Humm - ela murmurou, sensualmente -, então você tem mesmo que vir pra cá. Vamos brincar. Podemos dormir um pouco antes de viajar.
David soltou um suspiro de frustração.
- É por isso que estou ligando. Vamos ter que adiar nossa viagem.
Susan acordou totalmente, como se tivesse levado um soco.
- O quê?
- Mil desculpas. Vou ter que viajar, mas volto amanhã. Podemos partir para as montanhas bem cedo e ainda teremos dois dias.
- Mas já fiz as reservas - disse Susan, contrariada. - Consegui nosso quarto predileto no Stone Manor.
- Eu sei, mas é que...
- Essa é uma data especial, íamos comemorar nossos seis meses. Você ainda lembra que estamos noivos, não é?
- Susan, não posso explicar os detalhes agora - ele suspirou. - Eles mandaram um carro que está me esperando lá fora. Ligo do avião e explico tudo depois.
- Avião? - perguntou, espantada. - o que está acontecendo? Por que a sua universidade... ?
- Não é a universidade. Ligo depois e explico. Preciso ir agora, estão me chamando. Entro em contato assim que puder, prometo.
- David! - ela gritou - O que está...
Ele já havia desligado.
Susan Fletcher ficou acordada durante horas, esperando que ele ligasse, mas o telefone não tocou.
Mais tarde, naquela mesma manhã, Susan sentia-se abandonada. Resolveu tomar um banho. Entrou na banheira e afundou a cabeça na água, tentando esquecer o Stone Manor e as Smoky Mountains. Onde será que ele está? Por que não ligou ainda?
Aos poucos, a água quente foi ficando morna, depois fria, e ela estava se preparando para sair do banho quando o telefone deu sinal de vida. Levantou-se com pressa, espalhando água pelo chão enquanto agarrava o aparelho que havia deixado sobre a pia.
- David?
- Não, é Strathmore - respondeu a voz do outro lado.
Susan desmoronou.
- Ah... - Foi incapaz de esconder seu desapontamento. - Boa tarde, comandante.
- Você estava esperando alguém mais jovem, talvez? - ele respondeu, brincando.
- Não, senhor - disse Susan, desconcertada. - Não foi o que eu...
- Claro que sim! - ele disse, rindo. - David Becker é um bom sujeito. Não o deixe escapar.
- Obrigada, senhor.
O comandante mudou de tom e falou com uma voz grave:
- Susan, estou ligando porque preciso de você aqui. Imediatamente.
Ela tentou se concentrar.
- É sábado, senhor. Em geral nós não...
- Eu sei - ele disse calmamente. - Mas é uma emergência.
Susan sentou-se. Emergência? Era a primeira vez que ouvia o comandante Strathmore dizer isso. Uma emergência? No Departamento de Criptografia? Não conseguia imaginar o que poderia ser.
- S-sim, senhor. - Fez uma pausa. - Vou chegar aí o mais rápido possível..
- Não demore - disse Strathmore e desligou.
De pé, enrolada na toalha, Susan ficou olhando as gotas de água caírem sobre as roupas que havia cuidadosamente separado na noite anterior - shorts para usar em caminhadas, um suéter para as tardes
frias da montanha e a nova lingerie que comprara para as noites tórridas. Deprimida, foi até o armário pegar uma blusa e uma saia. Uma emergência?
Enquanto descia as escadas, ela pensava no que mais poderia dar errado naquele dia.
Em breve iria descobrir.
CAPÍTULO
2
Trinta mil pés acima das águas plácidas do oceano, David Becker fixava o olhar, abatido, através da pequena janela oval do Learjet 60. O telefone de bordo não estava funcionando, e ele não pôde ligar para Susan.
O que estou fazendo aqui?, resmungou para si mesmo. A resposta era simples: há pessoas para as quais não se diz "não”.
- Sr. Becker - disse uma voz pelo alto-falante -, chegaremos dentro de meia hora.
Becker balançou a cabeça melancolicamente ao ouvir a voz invisível. Excelente. Fechou a proteção da janela e tentou dormir. Mas só conseguia pensar em Susan.
CAPÍTULO
3
Susan parou seu Volvo logo abaixo da cerca de arame farpado de três metros de altura. Um jovem guarda apoiou as mãos no teto do carro.
- Sua identificação, por favor.
Susan lhe entregou o documento e olhou para o infinito, enquanto esperava o guarda passar seu cartão por um leitor computadorizado.
- Obrigado, senhorita Fletcher. - O guarda fez um sinal discreto, e o portão se abriu.
Quinhentos metros à frente, Susan repetiu o procedimento diante de outra cerca de arame farpado igualmente imponente. Vamos, lá rapazes... Esta é só a milionésima vez que venho aqui.
Ao se aproximar da última guarita, um sentinela musculoso, segurando dois cães de guarda e uma metralhadora, olhou para sua placa e fez sinal para que prosseguisse. Ela seguiu a Canine Road por mais alguns metros, depois estacionou na área C, reservada para funcionários. Inacreditável, pensou. Eles têm 26 mil empregados e um orçamento de 12 bilhões de dólares - será que não conseguem passar um fim de semana sem mim? Susan estacionou o carro na vaga e desligou o motor, contrariada.
Atravessou os impecáveis jardins, entrou no prédio, passou por mais duas verificações de segurança e finalmente chegou ao túnel sem janelas que levava à nova ala. Uma cabine com um sistema de reconhecimento de voz bloqueava sua passagem.
NATIONAL SECURITY AGENCY (NSA)
DEPARTAMENTO DE CRIPTOGRAFIA
SOMENTE PESSOAL AUTORIZADO
O guarda armado olhou para ela.
- Boa tarde, senhorita Fletcher.
Susan sorriu, cansada.
- Oi, John.
- Não esperava vê-la aqui hoje.
- É, nem eu. - Ela se aproximou do microfone parabólico e disse, em voz clara: "Susan Fletcher." O computador reconheceu o espectro de freqüências de sua voz e o portão se abriu. Ela entrou.
O guarda observou Susan enquanto ela ia andando pelo corredor. Notou que seus vibrantes olhos castanhos pareciam meio distantes, mas seu rosto exibia um certo frescor, e os cabelos castanhos, na altura do ombro, ainda estavam úmidos. Ela deixava atrás de si um suave perfume de talco para bebês. O sentinela percorreu com os olhos suas costas bem torneadas, observando a blusa branca com a marca do sutiã quase invisível por baixo. Desceu o olhar pela saia até chegar às pernas - as famosas pernas de Susan Fletcher.
Difícil imaginar que elas sustentam um QI de 170, ele pensou.
Ficou olhando para ela por um bom tempo, até que sua silhueta sumiu ao longe.
Quando Susan chegou ao final do túnel, uma porta circular, parecida com a de um cofre, bloqueava sua passagem. Havia uma placa com letras grandes que dizia: CRIPTOGRAFIA.
Com um suspiro resignado, colocou a mão sobre o teclado numérico embutido na parede e digitou seu código pessoal de cinco dígitos. Alguns segundos depois, a porta de 12 toneladas de aço começou a girar. Susan tentava se concentrar, mas seus pensamentos acabavam voltando para ele.
David Becker. O único homem que havia amado em toda a sua vida. O mais jovem professor titular da Universidade de Georgetown, brilhante especialista em línguas estrangeiras e praticamente uma celebridade no mundo acadêmico. Dotado de uma memória prodigiosa e profundo amante das línguas, dominava seis dialetos da Ásia, assim como espanhol, francês e italiano. Suas palestras na universidade sobre etimologia e lingüística eram concorridíssimas, e ele geralmente se estendia muito além do horário para poder responder à enxurrada de perguntas da platéia. Falava com autoridade e entusiasmo, aparentando indiferença em relação aos olhares de admiração das suas alunas, fascinadas com um professor famoso.
Becker era um homem de 35 anos, moreno e forte, cheio de vitalidade. Tinha olhos verdes e uma inteligência à altura de seu porte. Seu queixo quadrado e feições bem marcadas faziam com que Susan se lembrasse de uma estátua de mármore. Com mais de um metro e oitenta de altura, jogava squash com uma rapidez que surpreendia seus colegas. Depois de massacrar seu oponente na quadra, ele costumava se refrescar enfiando a cabeça embaixo de um bebedouro e deixando a água escorrer pelo cabelo espesso e preto. Então, ainda pingando, em geral tomava uma vitamina de frutas com um sanduíche em companhia do adversário.
O salário que a universidade lhe pagava era modesto como o de qualquer outro professor em início de carreira. Algumas vezes, quando precisava renovar sua anuidade no clube de squash ou colocar um novo encordoamento de tripas em sua velha raquete Dunlop, conseguia algum dinheiro extra fazendo trabalhos de tradução para agências do governo em Washington ou nos arredores. Foi num desses trabalhos que conheceu Susan.
Era uma manhã fresca durante as férias de outono, e Becker voltava de sua corrida matinal para o apartamento de três quartos cedido pela universidade.
Viu que havia recados na secretária eletrônica. Tomou um grande copo de suco de laranja enquanto ouvia o recado. A mensagem era parecida com muitas outras que já tinha recebido: uma agência do governo estava requisitando seus serviços de tradução naquela mesma manhã. A única coisa peculiar é que Becker nunca tinha ouvido falar dessa organização específica.
- É chamada de National Security Agency. Agência de Segurança Nacional - disse Becker, telefonando para alguns colegas em busca de informações.
A resposta era sempre a mesma:
- Você está falando do Conselho de Segurança Nacional?
Becker ouviu de novo a mensagem.
- Não. Eles disseram "agência”. A sigla é NSA.
- Nunca ouvi falar.
Becker verificou a listagem oficial de agências e organizações governamentais, mas também não encontrou nada. Confuso, ligou para um de seus velhos companheiros de squash, um ex-analista político que trabalhava como assistente de pesquisa na Biblioteca do Congresso. David ficou um pouco chocado com a explicação.
Não apenas a NSA existia de fato, como era também considerada uma das organizações mais influentes do mundo. Coletava informações de inteligência de todo o planeta e protegia informações secretas norte-americanas há mais de 50 anos. Apenas 3% dos americanos tinham conhecimento de sua existência.
Seu amigo brincou com ele.
- NSA significa: Ninguém Sabe dessa Agência.
Preocupado e curioso ao mesmo tempo, Becker aceitou a oferta da agência misteriosa. Percorreu os 60 quilômetros até a central de operações da NSA, que ocupava 350 mil metros quadrados discretamente escondidos pelas verdejantes colinas de Fort Meade, em Maryland. Depois de ter passado por inúmeras verificações de segurança e ter recebido um passe de visitante com holograma, válido por seis horas, foi levado até um luxuoso laboratório onde lhe disseram que iria passar a tarde fornecendo "suporte cego" ao Departamento de Criptografia, um grupo de elite de gênios matemáticos responsáveis por decifrar todo tipo de códigos.
Durante uma hora, os criptógrafos pareciam não ter sequer notado que Becker estava presente. Iam e vinham em torno de uma enorme mesa e falavam usando termos que Becker nunca tinha ouvido antes. Falavam de cifras de fluxo, geradores autodecimados, variantes knapsack, protocolos de conhecimento zero, pontos de unicidade. Becker limitou-se a observar, completamente perdido. Rascunhavam símbolos em papel quadriculado, debruçavam-se sobre listagens de computadores e se referiam constantemente à massa ilegível de texto que estava sendo exibida no projetor.
JHdia3iKH Dhmado/ertwtilw+igi328 5iha IsfnHKhhhfafOh hdfgaf/fi37we ohi93450s9difd2h/H H rtyFH Lf89303 95 i s P if2i08901 h i98yhfi080ewrt03 i o i r845hOroq+itOeu4tqefqellou iw 08UVOI H0934itpwfiaier09qu4i r9gu iviP$duw4h95pe8rtugviw3p4e/ikkc mffuerhfgvOq394iki rmg+unhvs90er i rk/0956y7uOpoi klO i p9f8760qwerqi
Após algum tempo, um deles aproximou-se e explicou a Becker aquilo que ele mesmo já havia deduzido. O texto todo bagunçado era um código - um texto cifrado, ou criptograma -, grupos de números e letras que representavam palavras encriptadas. O trabalho dos criptógrafos era estudar o código e extrair dali a mensagem original, ou mensagem clara. A NSA chamou Becker porque suspeitava que a mensagem tinha sido escrita no dialeto mandarim da língua chinesa. Ele deveria traduzir os símbolos assim que os criptógrafos os decifrassem.
Durante duas horas, Becker interpretou uma sucessão sem fim de símbolos em mandarim. Mas todas as vezes que fazia uma tradução, os criptógrafos sacudiam a cabeça, em completo desespero. Aparentemente, o código não fazia sentido. Tentando ajudar da melhor forma possível, Becker lhes disse que todos os caracteres traduzidos até então tinham uma particularidade: eram caracteres Kanji. No mesmo instante o burburinho que tomava conta da sala cessou. O chefe das operações, um fumante inveterado e magricela chamado Morante, virou-se para Becker, espantado:
- Você quer dizer que estes símbolos possuem múltiplos significados? Becker disse que sim. Explicou que Kanji era um sistema de escrita japonesa
baseado em caracteres chineses modificados. Até então, ele estava traduzindo-os como se fossem mandarim porque era isso que lhe tinham pedido.
- Meu Deus! - disse Morante, tossindo. - Vamos tentar o Kanji.
Como num passe de mágica, subitamente tudo fez sentido.
Os criptógrafos ficaram muito impressionados, mas, ainda assim, fizeram com que Becker trabalhasse nos caracteres fora de ordem.
- É para sua própria proteção - disse Morante. - Assim você não tem como saber o que está traduzindo.
Becker riu. Mas ninguém à sua volta estava rindo.
Quando o código finalmente foi quebrado, Becker não tinha idéia dos segredos sombrios que teria ajudado a revelar, mas uma coisa era certa: a NSA levava aquele assunto muito a sério. O cheque que lhe deram equivalia a mais de um mês de seu salário na universidade.
Quando estava saindo, passando pelos muitos postos de segurança ao longo do corredor principal, sua passagem foi bloqueada por um guarda que acabara de desligar o telefone.
- Sr. Becker, aguarde aqui, por favor.
- Algum problema? - Becker não esperava que o trabalho demorasse tanto e estava começando a se atrasar para sua partida de squash dos sábados à tarde.
- A chefe da Criptografia quer falar com você. Ela está vindo para cá – disse o guarda.
- Ela? - Becker riu. Não tinha visto nenhuma mulher desde que pisara na NSA.
- Há algo de errado nisso? - disse uma voz feminina atrás dele.
Becker virou-se e sentiu o rosto corar. Olhou para o crachá na blusa da mulher. A chefe do Departamento de Criptografia da NSA não era só uma mulher, era uma linda mulher.
- Não - ele disse, atrapalhando-se com as palavras. - Eu só...
- Susan Fletcher - disse ela, sorrindo e estendendo-lhe a mão delicada. Becker cumprimentou-a.
- David Becker.
- Parabéns, Sr. Becker, soube que fez um bom trabalho hoje. Podemos conversar um pouco?
Ele hesitou.
- Na verdade, estou com um pouco de pressa. - Ficou pensando se era realmente sensato não dar atenção à agência de inteligência mais poderosa do mundo, mas sua partida de squash iria começar em pouco menos de uma hora e ele tinha uma reputação a manter: David Becker jamais se atrasava para o squash... Para as aulas, talvez, mas nunca para o squash.
- Serei breve - disse Susan Fletcher, sorridente. - Por aqui, por favor.
Dez minutos depois, Becker estava na cantina da NSA, comendo salgadinhos e tomando um suco de frutas com a adorável chefe da Criptografia. David percebeu rapidamente que aquela moça de 38 anos não estava ocupando um alto cargo na NSA por mero acaso: era uma das mulheres mais inteligentes que já havia encontrado. Enquanto conversavam sobre códigos e como decifrá-los, Becker teve que se esforçar para não se perder na conversa, o que era uma experiência nova e estimulante para ele.
Um hora depois, quando Becker já tinha deixado de lado sua partida de squash, e Susan, por sua vez, havia ignorado completamente três chamadas pelo sistema interno de comunicação, ambos estavam achando tudo aquilo muito engraçado. Lá estavam eles, duas mentes altamente racionais e analíticas, supostamente imunes a paixões súbitas, mas, enquanto discutiam morfologia, lingüística e geradores de números pseudo-aleatórios, sentiam-se como um casal de adolescentes, como se houvesse fogos estourando a seu redor.
Naquele dia, Susan não chegou a tocar no assunto pelo qual havia originalmente chamado David para aquela conversa: queria convidá-lo para trabalhar, durante um período de teste, na Divisão de Criptografia Asiática. Mas o jovem professor falava com tanta paixão de suas aulas que Susan percebeu que ele nunca deixaria a universidade. E não quis estragar o clima com assuntos de negócios. Sentia-se novamente como
uma adolescente e não queria que nada atrapalhasse isso. E assim foi.
A fase inicial do relacionamento foi lenta e romântica: momentos roubados sempre que as agendas de ambos permitiam, longos passeios pelo campus da Universidade de Georgetown, um café já tarde da noite no Merlutti, algumas palestras e concertos. Susan percebeu que nunca tinha rido tanto em sua vida. David conseguia fazer com que todas as coisas parecessem engraçadas. Era uma boa forma de relaxar da tensão do trabalho na NSA.
Ela adorava se lembrar de uma tarde fresca de outono em que os dois ficaram assistindo a uma partida de futebol e falando bobagem.
- Qual é mesmo o esporte que você disse que pratica? - perguntou Susan, zombeteira. - Splash? É na água?
Becker olhou torto para ela:
- Chama-se squash.
Ela lançou um olhar vago, como se não houvesse entendido.
- É parecido com tênis, mas a quadra é menor - ele continuou.
Susan encostou o ombro no dele, carinhosamente.
- E você? - perguntou Becker. - Pratica algum esporte?
- Sou faixa-preta em spinning.
Becker fez cara de total desprezo.
- Prefiro esportes onde se possa vencer.
Susan sorriu.
- Conheço alguém que é competitivo...
Susan chegou mais perto de Becker e sussurrou no ouvido dele:
- Doutor.
Ele virou-se e olhou para ela, sem entender.
- Doutor - ela repetiu. - Me diga a primeira coisa que lhe vier à cabeça. Becker continuava olhando, meio desconfiado.
- Livre associação?
- Procedimento-padrão da NSA. Preciso saber com quem estou andando...
- Ela olhou para ele muito seriamente e repetiu:
- Doutor.
Becker deu de ombros.
- Seuss, o dos livros infantis.
Susan olhou de volta com um sorriso torto.
- Tá bom, vamos tentar outra: cozinha.
Ele não hesitou:
- Quarto.
Susan levantou as sobrancelhas.
- Mais uma... gato.
- Tripas.
- Tripas?
- É. Tripas... Mais especificamente, tripa de gato. É o encordoamento de raquetes de squash usado por todos os campeões.
- Que simpático - ela resmungou.
- Seu diagnóstico? - perguntou Becker.
Susan refletiu e disse:
- Você é infantil, viciado em squash e sexualmente frustrado.
Becker deu de ombros.
- Acho que é mais ou menos isso.
As coisas continuaram assim durante várias semanas. Becker lhe fazia milhares de perguntas quando se encontravam para jantar em restaurantes que funcionavam durante 24 horas. Onde ela tinha aprendido matemática? Como foi parar na NSA? Como tinha se tornado tão atraente?
Diante da última pergunta, Susan corou e admitiu que tinha custado a desabrochar. Fora uma adolescente magrela e esquisitona, com aparelho nos dentes. Contou que uma de suas tias lhe dissera uma vez que Deus tinha compensado sua total falta de graça com um cérebro privilegiado. Becker pensou que aquela tinha sido uma declaração muito prematura.
Susan explicou que seu interesse em criptografia começou no início do ensino médio. Um de seus amigos viciados em informática, um grandalhão chamado Frank Gutmann, digitou para ela uma poesia de amor e encriptou-a usando uma cifra de substituição numérica. Susan implorou-lhe que contasse o que estava escrito, mas Frank., sedutor, se recusara a falar. Susan levou o código para casa e passou a noite trancada no quarto até descobrir o segredo - cada número representava uma letra. Ela o decifrou cuidadosamente e ficou olhando, maravilhada, quando aqueles dígitos aparentemente aleatórios se transformaram magicamente em uma poesia. Naquele instante soube que estava apaixonada: códigos e criptografia iriam se tomar o centro de sua vida.
Quase 20 anos mais tarde, depois de completar seu mestrado em Matemática pela Johns Hopkins e de obter uma bolsa integral para estudar Teoria dos Números no MIT, ela defendeu sua tese de doutorado: Métodos, Protocolos e AIgoritmos Criptográficos para Aplicações Manuais. Aparentemente, seu orientador não foi o único a ler a tese: pouco tempo depois, ela recebeu um telefonema e uma passagem de avião da NSA.
Todos os que trabalhavam com criptografia conheciam a NSA. Era lá que estavam os maiores cérebros do planeta nessa área. No final de cada semestre, enquanto as empresas do setor privado cortejavam os alunos mais brilhantes recém-chegados ao mercado de trabalho, oferecendo-lhes salários ultrajantes e vários benefícios adicionais, a NSA observava cuidadosamente, selecionava seus alvos e então entrava em cena, oferecendo o dobro. O que a NSA queria, a NSA pegava. Trêmula com a expectativa, Susan pegou o vôo até o Aeroporto Internacional de Dulles, em Washington, onde um motorista da NSA estava à sua espera, pronto para levá-la a Fort Meade.
Havia outros 41 candidatos que tinham recebido o mesmo telefonema naquela vez. Com 28 anos, Susan era a mais jovem. Era também a única mulher. A visita acabou sendo mais uma sessão de relações públicas com uma bateria de testes de inteligência do que propriamente uma apresentação formal da NSA.
Na semana seguinte, Susan e seis outros foram convidados a retornar. Apesar de indecisa, ela acabou voltando. O grupo foi imediatamente separado. Os participantes foram submetidos individualmente a testes no polígrafo, investigações sobre seus antecedentes, análise de caligrafia e muitas horas de entrevistas, inclusive a respeito de suas orientações e práticas sexuais. Quando o entrevistador perguntou a Susan se já tinha praticado sexo com animais, ela quase se retirou, mas, de alguma forma, todo o mistério envolvido fez com que continuasse. Havia a perspectiva de trabalhar com o que existia de mais avançado dentro da teoria de códigos, entrar no "Palácio dos Quebra-Cabeças" e tornar-se membro de um dos mais secretos grupos do planeta: a Agência de Segurança Nacional.
Becker ouvia, fascinado, suas histórias.
- Então realmente perguntaram se você já tinha feito sexo com animais?
Susan deu de ombros:
- Faz parte da rotina de testes.
- Bem... - Becker tentou suprimir um sorriso malicioso. - O que você respondeu?
Ela chutou-o por baixo da mesa.
- Disse que não! - E acrescentou: - Até a noite passada, era verdade.
Aos olhos de Susan, David era a encarnação da perfeição. Só tinha uma qualidade lamentável: toda vez que saíam, ele insistia em pagar a conta. Ela odiava vê-lo gastar o dinheiro de um dia inteiro de trabalho para pagar um jantar a dois, mas Becker não cedia. Susan acabou desistindo de protestar, mas ainda assim isso a incomodava. Ganho mais dinheiro do que preciso, pensava ela. Era eu quem deveria estar pagando.
Ela decidiu que, apesar desse cavalheirismo um pouco exagerado e deslocado, David era o homem ideal. Sabia ser solícito, cuidadoso, interessante, engraçado e, o que era melhor, interessava-se de fato pelo trabalho dela. Durante as idas ao Smithsonian, os passeios de bicicleta ou enquanto deixavam o macarrão passar do ponto na cozinha de Susan, ele estava sempre curioso. Susan respondia a todas as perguntas que podia e lhe fornecia a visão geral e pública da Agência de Segurança Nacional. David ficava fascinado com aquilo que ouvia.
Fundada pelo presidente Truman no primeiro minuto do dia 4 de novembro de 1952, a NSA foi a agência de inteligência mais clandestina do mundo durante quase 50 anos. A doutrina de sua fundação, descrita em sete páginas, especificava um objetivo muito bem definido: proteger as comunicações do governo dos Estados Unidos e interceptar as comunicações de forças estrangeiras.
O teto do principal prédio de operações da NSA estava repleto com quase 500 antenas, incluindo dois grandes domos de captação de radiofreqüências, semelhantes a grandes bolas de golfe. O prédio em si era gigantesco - mais de 185 mil metros quadrados, o dobro do tamanho do centro de operações da CIA. Dentro do prédio havia quase 2.500 quilômetros de cabos telefônicos e 7.500 metros quadrados de janelas vedadas.
Susan contou a David sobre o COMINT (Communications Intelligence), a divisão global de reconhecimento da agência - uma rede admirável de postos de escuta, satélites, espiões e grampos telefônicos ao redor do planeta. Milhares de comunicados e conversas eram interceptados diariamente e enviados para que os analistas da NSA os decodificassem. O FBI, a CIA e os consultores de política externa dos EUA, todos dependiam do trabalho de inteligência feito pela NSA para tomarem suas decisões.
Becker ficava hipnotizado pela conversa.
- E quanto ao trabalho de decriptação, onde é que você se encaixa nisso tudo?
Susan explicou-lhe como as transmissões interceptadas muitas vezes vinham de governos potencialmente perigosos, facções hostis e grupos terroristas, muitos dos quais operavam dentro dos EUA. Suas comunicações em geral eram codificadas para impedir a quebra de sigilo, caso caíssem em mãos erradas. É claro que, graças ao COMINT, isso acontecia freqüentemente. Susan contou que seu trabalho era estudar os códigos, quebrá-los manualmente e fornecer à NSA as mensagens decodificadas. Contudo, essa não era toda a verdade.
Susan sentia-se mal por ter que mentir ao seu novo amor, mas não tinha escolha. Até poucos anos antes, isso seria verdade, mas as coisas haviam mudado na NSA. Todo o universo da criptografia tinha mudado. O novo trabalho de Susan era secreto, até mesmo para muitos dos que se encontravam nos altos escalões do poder.
- Códigos - disse Becker. - Como você sabe por onde começar? Quero dizer... como você os quebra?
Susan sorriu.
- Você, mais que ninguém, deveria saber. É como estudar uma língua estrangeira. No início, o texto parece incompreensível, mas aos poucos você aprende as regras que definem sua estrutura e começa a extrair o sentido.
Becker concordou, encantado. Queria saber mais.
Rabiscando suas lições em guardanapos e programas de concertos, Susan lançou-se à tarefa de dar a seu
novo e charmoso aluno um mini-curso de criptografia. Ela começou com a caixa de cifras, o "quadrado perfeito" de Júlio César.
- Historicamente - ela explicou - César foi o primeiro a usar códigos escritos. Como seus mensageiros eram algumas vezes capturados em emboscadas e seus comunicados secretos podiam ser roubados, ele criou uma forma rudimentar de codificar suas ordens. Reorganizou o texto de suas mensagens de uma maneira que o texto parecia não ter sentido. Obviamente isso não era verdade. Cada mensagem sempre possuía uma contagem de letras cujo total equivalia a um quadrado perfeito, dependendo de quanto César tivesse que escrever. Assim, uma mensagem com 16 caracteres usava um quadrado de quatro por quatro; se fossem 25 caracteres, seria cinco por cinco; 100 caracteres requeriam um quadrado de dez por dez, etc. Seus oficiais sabiam que deviam transcrever o texto preenchendo as casas do quadrado sempre que uma mensagem aleatória chegasse. Ao fazerem isso, podiam ler a mensagem na vertical e seu sentido se tornaria claro.
Ao longo do tempo, a idéia de César de reorganizar o texto para codificá-lo foi sendo adotada por outros e alterada para que o código se tornasse mais difícil de ser quebrado. O ápice da codificação sem uso de computadores foi durante a Segunda Guerra Mundial. Os nazistas criaram uma impressionante máquina de criptografia chamada Enigma. O dispositivo mecânico se parecia com uma antiga máquina de escrever. Possuía engrenagens rotatórias de metal que se encaixavam de formas complexas e transformavam uma mensagem clara em cadeias confusas de caracteres, agrupados de maneira incompreensível. Apenas através de outra máquina Enigma,' calibrada exatamente da mesma forma, o destinatário poderia quebrar o código.
Becker ouvia, compenetrado. O professor havia se tornado um aprendiz.
Uma noite, durante uma apresentação do Quebra-nozes na universidade, Susan escreveu para Becker sua primeira mensagem encriptada, usando um código básico. Ele ficou sentado durante todo o intervalo refletindo sobre a mensagem de 20 letras:
ENH ANL SDQ SD BNMGDBHCN
Finalmente, pouco antes de as luzes se apagarem para a segunda parte, ele compreendeu. Para codificar a mensagem, Susan havia simplesmente substituído cada letra do texto pela letra anterior do alfabeto. Para decifrar o código, tudo que Becker tinha a fazer era trocar cada uma das letras pela seguinte: A virava B, B virava C e assim por diante. Ele rapidamente fez isso com as outras letras. Nunca imaginou que cinco breves palavras pudessem deixá-lo tão feliz:
FOI BOM TER TE CONHECIDO
Ele rabiscou rapidamente sua resposta e deu o papel para Susan:
SZLADL ZBGDH
Susan leu e corou.
Becker riu. Tinha 35 anos e seu coração batia loucamente. Nunca havia se sentido tão atraído por uma mulher em toda a sua vida. Susan tinha feições delicadas e olhos castanhos brilhantes. Era um tipo de beleza européia, clássica, que lhe lembrava os belos anúncios de cosméticos da Estée Lauder. Talvez ela tivesse sido magrela e esquisitona quando adolescente, mas certamente havia mudado muito. Ao longo dos anos, ganhou belas e graciosas curvas, um corpo torneado, com peitos firmes e um abdômen perfeito. David muitas vezes brincava com ela, dizendo que era a primeira modelo que ele conhecera que tinha doutorado em Matemática Aplicada. Conforme os meses se passaram, os dois começaram a suspeitar que
aquela poderia ser uma relação para toda a vida.
Já estavam saindo há uns dois anos quando, do nada, David lhe propôs casamento. Foi durante uma viagem de fim de semana para as Smoky Mountains. Estavam deitados em uma grande e confortável cama no Stone Manor. Ele sequer tinha comprado um anel - apenas disse o que tinha em mente, do nada. Essa espontaneidade era uma das características que ela admirava. Beijou-o longa e amorosamente. Ele tomou-a em seus braços e tirou a camisola dela com um gesto suave.
- Vou considerar isso como um sim - disse ele.
Fizeram amor durante toda a noite ao lado da lareira.
Passaram-se três meses desde aquela tarde mágica. Fora antes da inesperada promoção de David a diretor do Departamento de Línguas Modernas. Desde então, o relacionamento dos dois se tomou cada vez pior.
CAPÍTULO
4
A porta da Criptografia emitiu um bipe, tirando Susan de seus devaneios. A maciça porta giratória estava aberta e iria se fechar de novo em cinco segundos, completando uma rotação de 180 graus. Susan deixou de lado seus pensamentos. Um computador registrou automaticamente sua entrada.
Apesar de ter praticamente morado na Criptografia desde que fora inaugurada, havia três anos, a visão da sala ainda a impressionava. A parte principal era uma câmara circular com a altura de cinco andares. O ponto mais alto do domo transparente que lhe servia de teto ficava a 35 metros de altura do chão. A cúpula de plexiglas fora revestida com uma rede de policarbonatos, capaz de resistir a uma explosão de dois megatons. A tela filtrava a luz do sol, tecendo delicados padrões de luz nas paredes. Pequenas partículas de poeira descreviam largas espirais para cima, capturadas pelo poderoso sistema de desionização do domo.
As laterais inclinadas da sala formavam um amplo arco na parte superior e ficavam quase verticais conforme se aproximavam do nível de visão. Tornavam-se então sutilmente translúcidas e esmaeciam até atingir um preto opaco quando se encontravam com o chão - uma ampla área cintilante de cerâmica preta polida, que emanava um brilho surreal, causando no observador a estranha sensação de que o chão era transparente. Gelo negro.
No centro da câmara, atravessando o chão como a ponta de um enorme torpedo, encontrava-se a máquina para a qual o domo havia sido construído. Seus reluzentes contornos negros arqueavam-se quase dez metros acima, para depois mergulhar novamente no chão. Curvada e lisa, parecia uma gigantesca baleia assassina que houvesse sido congelada no meio de um salto em um mar frígido.
Esse era o TRANSLTR, o mais caro computador do planeta, único em seu gênero. Uma máquina que o NSA jurava não existir.
Como um iceberg, 90% de sua massa e poder computacional se ocultavam sob a superfície. Seus segredos estavam trancados em um silo de cerâmica que ocupava os seis andares abaixo. Assemelhava-se a uma cápsula de foguete, circundada por uma trama de plataformas, cabos e válvulas de exaustão do sistema de resfriamento a gás fréon. Os geradores de energia na parte mais baixa emitiam um zumbido grave e contínuo que dava à Criptografia uma sonoridade abafada, quase fantasmagórica.
O TRANSLTR, como todos os grandes avanços tecnológicos, era produto da necessidade. Durante os anos 1980, a NSA presenciou uma revolução nas telecomunicações que mudaria o mundo da espionagem para sempre: o acesso público à Internet. Mais especificamente, a chegada do e-mail.
Criminosos, terroristas e espiões, fartos de ter que lidar com linhas telefônicas grampeadas, voltaram-se imediatamente para essa nova forma de comunicação global. O e-mail combinava a segurança do correio convencional com a velocidade do telefone. Como as transferências eram feitas através de cabos de fibra
óptica e nunca transmitidas por ondas de rádio, era impossível interceptar e-mails - ou, ao menos, era o que parecia.
Na verdade, interceptar e-mails enquanto eles viajavam pela Internet era trivial para os tecno-gurus do NSA. A Internet não era uma nova revelação originada dos computadores pessoais, como muitos acreditavam. Havia sido criada pelo Departamento de Defesa dos EUA três décadas antes - uma gigantesca rede de computadores projetada para assegurar as comunicações do governo em caso de uma guerra nuclear. Os olhos e ouvidos da NSA eram profissionais veteranos da Internet. Aqueles que estavam conduzindo negócios ilícitos através de e-mails rapidamente descobriram que seus segredos não eram tão secretos assim. Órgãos do governo americano, como o FBI, a DEA (Drug Enforcement Administration) e outros, auxiliados pela hábil equipe de hackers da NSA, tiraram proveito disso para realizar uma leva de prisões e condenações muito útil.
É claro que, tão logo os usuários de computadores ao redor do mundo descobriram que o governo americano tinha livre acesso a suas comunicações por e-mail, houve uma onda de protestos. Até mesmo amigos que usavam e-mail apenas para correspondências pessoais acharam a falta de privacidade perturbadora. Por todo o planeta, programadores independentes se lançaram à tarefa de tornar os e-mails mais seguros. Rapidamente encontraram uma forma de fazê-lo, e foi assim que nasceu a codificação por chave pública.
A codificação por chave pública era um conceito ao mesmo tempo simples e brilhante. Consistia no uso de um programa simples, para computadores pessoais, que alterava as mensagens de e-mail de tal forma que estas se tornavam impossíveis de ler. Os usuários passaram a poder escrever suas mensagens e codificá-las usando um programa desse tipo. O texto resultante parecia um bloco de caracteres aleatórios e sem sentido: um código. Qualquer um que interceptasse a mensagem iria ver apenas lixo em sua tela.
A única maneira de decifrar o código era digitar a senha do remetente - uma série secreta de caracteres que funcionava basicamente como a senha de um cartão de crédito. Geralmente, as senhas eram longas e complexas e transportavam as informações para transmitir ao algo ritmo de decodificação as operações matemáticas necessárias para recriar a mensagem original.
Os usuários desses programas voltaram a poder, então, enviar e-mails com total confiança. Mesmo se a transmissão fosse interceptada, apenas aqueles que tivessem a chave poderiam decifrá-la.
A NSA sentiu o peso dessa nova forma de criptografia imediatamente. Os códigos com os quais se deparava não eram mais simples cifras de substituição que podiam ser decifradas com lápis e papel quadriculado. Eram agora funções de hash geradas por computadores que usavam a teoria do caos e múltiplos conjuntos de símbolos para codificar as mensagens de forma que parecessem absolutamente aleatórias.
No início, as chaves geradas eram pequenas o suficiente para que os computadores da NSA fossem capazes de decifrá-las. Se a chave desejada tivesse dez dígitos, um computador era programado para testar todas as possibilidades entre 0000000000 e 9999999999. Mais cedo ou mais tarde, o computador iria encontrar a seqüência correta. Esse método de tentativa e erro era conhecido como "ataque de força bruta”. Era demorado, mas também matematicamente garantido que iria funcionar.
Á medida que o mundo foi compreendendo o poder da abordagem por força bruta para a quebra de códigos, as chaves foram se tornando cada vez maiores. O tempo necessário para que os computadores descobrissem a chave correta passou de semanas para meses e, finalmente, para anos.
Na década de 1990, as chaves já tinham mais de 50 caracteres e empregavam todos os 256 caracteres do código ASCII usado pelos computadores pessoais letras, números e símbolos. O número de possíveis combinações para uma chave era próximo de 10120 - ou seja, 1 com 120 zeros depois. Adivinhar uma chave de tamanha complexidade era mais ou menos tão improvável quanto escolher o grão de areia correto em uma praia de cinco quilômetros. Estimava-se que, para obter sucesso na descoberta de uma chave-padrão de 64 bits usando um ataque de força bruta, o supercomputador mais poderoso da NSA
levaria 19 anos. Quando o computador finalmente conseguisse encontrar a chave e quebrar o código, o conteúdo da mensagem certamente já seria irrelevante.
Paralisada em um vazio virtual de inteligência, a NSA traçou uma diretriz ultra-secreta que foi endossada pelo presidente dos Estados Unidos. Munida de financiamento governamental e com carta-branca para fazer o que fosse preciso para resolver o problema, a NSA decidiu construir algo considerado impossível: a primeira máquina do planeta capaz de decifrar qualquer código.
Apesar de muitos engenheiros considerarem a proposta de criação do novo computador inviável, a NSA persistia em seu lema: "Tudo é possível. O impossível apenas demora mais."
Cinco anos, 500 mil homens-horas e 1,9 bilhão de dólares depois, a NSA provou mais uma vez do que era capaz. O último dos três milhões de microprocessadores, cada um do tamanho de um selo postal, foi soldado em seu lugar, a programação interna do computador foi finalizada e o revestimento de cerâmica, fechado. O TRANSLTR havia nascido.
Ainda que os segredos do funcionamento interno do TRANSLTR fosse produto de muitas mentes e não houvesse um único indivíduo que compreendesse todos esses segredos simultaneamente, seu princípio básico era simples: muitas mãos tornam o trabalho mais leve.
Seus três milhões de processadores iriam trabalhar em paralelo, executando cálculos a uma velocidade impressionante, experimentando cada uma das permutações possíveis no processo. A esperança era de que mesmo códigos que possuíssem chaves fabulosamente grandes não estariam a salvo da tenacidade do TRANSLTR. Essa obra-prima de quase dois bilhões de dólares usaria o poder do processamento paralelo, assim como alguns avanços altamente secretos em análise de mensagens claras, para descobrir chaves e códigos de quebra. Seu poder viria não apenas do número colossal de processadores, mas também dos avanços obtidos em computação quântica, uma tecnologia em desenvolvimento que permitia que a informação fosse armazenada como estados quânticos em nível atômico, em vez de meros dados binários.
O momento da verdade veio em uma manhã tempestuosa de Outubro. O primeiro teste real. Apesar das dúvidas quanto à velocidade final da máquina, os engenheiros concordavam quanto a uma coisa: se todos os processadores funcionassem em paralelo corretamente, o TRANSLTR seria um computador poderoso. A questão era saber o quão poderoso ele seria.
A resposta chegou 12 minutos mais tarde. Em silêncio, admirados, os poucos privilegiados que estavam presentes observaram quando o computador mostrou o resultado: a mensagem clara, o código decifrado. O TRANSLTR havia descoberto uma chave de 64 caracteres em pouco mais de 10 minutos, cerca de um milhão de vezes mais rápido do que as duas décadas que o segundo computador mais veloz da NSA teria levado.
Conduzido pelo vice-diretor de operações, comandante Trevor J. Strathmore, o Departamento de Produção da NSA havia triunfado. O TRANSLTR era um sucesso e, para manter esse sucesso absolutamente secreto, o comandante Strathmore deixou vazar prontamente informações de que o projeto havia sido um fracasso total. Todas as actividades na Criptografia eram, supostamente, uma tentativa de salvar o fiasco de dois bilhões de dólares. Apenas a elite da NSA conhecia a verdade: o TRANSLTR estava funcionando a pleno vapor, quebrando centenas de códigos todos os dias.
Com a divulgação de que nem mesmo a todo-poderosa NSA era capaz de decodificar as mensagens encriptadas pelos computadores, os segredos começaram a ser revelados. Chefões do mundo das drogas, terroristas e criminosos em geral, preocupados com a possibilidade de interceptação de suas transmissões por celular, voltaram-se para o fantástico mundo dos e-mails codificados a fim de se comunicarem instantaneamente através do planeta. Nunca mais teriam que encarar um júri no tribunal e ouvir suas vozes saindo de uma fita, prova de alguma ligação por celular há muito esquecida, mas captada por um dos satélites da NSA.
O trabalho de inteligência nunca foi tão fácil. Os códigos interceptados pela NSA entravam no TRANSLTR como cifras absolutamente ilegíveis e saíam, minutos depois, como mensagens
perfeitamente claras. Não havia mais segredos.
Para tornar o mistério em torno de sua incompetência completo, a NSA mantinha um forte lobby contra qualquer novo programa de computador para encriptação de dados, insistindo que isso atrapalharia seu trabalho e tornaria impossível que os agentes da lei perseguissem e prendessem os criminosos. Os grupos de direitos civis ficaram felizes, defendendo que, de qualquer forma, a NSA não deveria estar lendo os e-mails das pessoas. Programas de encriptação continuavam a ser criados e vendidos. A NSA havia perdido a batalha, exatamente como havia sido planejado. Toda a comunidade eletrônica mundial fora enganada... Ao menos, era o que parecia.
CAPÍTULO
5
Onde estão todos?, pensou Susan, enquanto atravessava a sala deserta da Criptografia. Que grande emergência essa...
Apesar de muitos departamentos da NSA funcionarem durante os sete dias da semana, a Criptografia normalmente ficava vazia aos sábados. Os matemáticos que trabalhavam nesse ramo eram, por natureza, viciados em trabalho e bastante tensos, e existia uma regra informal de que nunca trabalhariam aos sábados, excepto em casos de emergência. Especialistas em quebrar códigos eram um recurso valioso demais para que a NSA se arriscasse a perdê-los por conta da estafa.
Susan atravessou a sala, tendo à sua direita a imponente figura do TRANSLTR. O ruído difuso dos geradores seis andares abaixo parecia estranhamente ameaçador naquele dia. Susan não gostava de ficar na Criptografia fora do horário de trabalho. Era como estar trancada em uma cela com uma gigantesca besta futurística. Ela apressou o passo, dirigindo-se ao escritório do comandante lá no fundo.
A sala de Strathmore era toda de vidro e tinha recebido o apelido de "aquário" devido à sua aparência quando as cortinas estavam abertas. Ficava acima do salão principal, ligada por um conjunto de escadarias e passarelas. Enquanto subia os degraus, Susan olhou para cima, na direção da porta de carvalho maciço do escritório de Strathmore. Podia ver o símbolo da NSA - uma águia americana, de asas invertidas, segurando ferozmente uma chave de prata. Atrás da porta estava um dos homens mais impressionantes que ela já conhecera.
O comandante Strathmore, vice-diretor de operações, tinha 56 anos e era como um pai para Susan. Foi ele quem a contratou, transformando a NSA em sua casa. Quando Susan foi trabalhar na agência, há mais de 10 anos, Strathmore era o chefe do Departamento de Desenvolvimento em Criptografia, que servia como local de treinamento para novos talentos - ou melhor, novos homens - para a criptografia. Strathmore nunca tolerou qualquer tipo de discriminação, mas era especialmente protector em relação à única mulher em seu grupo. Quando era acusado de favoritismo, respondia com a verdade: Susan Fletcher era uma das aprendizes mais inteligentes que já tinha visto e ele não tinha a menor intenção de perdê-la por conta de assédio sexual. Um dos criptógrafos teve a má idéia de testar a resolução de Strathmore.
Em uma manhã, durante seu primeiro ano, Susan passou pela nova sala de lazer dos criptógrafos para preencher alguns formulários. Quando estava saindo, notou que havia uma foto sua no quadro de avisos. Quase desmaiou de tanta vergonha. Na foto, ela aparecia de calcinha, deitada em uma cama.
Mais tarde descobriram que um dos criptógrafos havia digitalizado uma foto de uma revista erótica e editado a imagem, colando a cabeça de Susan no corpo da modelo original. O resultado ficou bem convincente.
Infelizmente para o autor da brincadeira, Strathmore não achou a menor graça. Duas horas depois, um memorando significativo foi emitido:
FUNCIONÁRIO CARL AUSTIN EXPULSO POR CONDUTA INADEQUADA.
A partir desse dia, ninguém mais ousou mexer com ela. Susan Fletcher era a menina-dos-olhos do comandante.
Os jovens criptógrafos de Strathmore não foram os únicos que aprenderam a respeitá-lo. Logo no início da carreira, ele chamou a atenção de seus superiores ao propor diversas operações de inteligência pouco ortodoxas e altamente bem-sucedidas. À medida que foi subindo na carreira, Trevor Strathmore ficou conhecido por suas análises coesas e sucintas de situações altamente complexas. Parecia ter uma habilidade única de enxergar além das complexidades morais que sempre envolviam as difíceis decisões da NSA e depois agir sem remorsos no interesse do bem comum.
Ninguém tinha dúvidas de que Strathmore amava seu país. Era conhecido entre seus colegas como um patriota e um visionário, um homem decente em um mundo de mentiras.
Desde em que Susan começou a trabalhar na NSA, Strathmore subiu rapidamente de seu posto de chefe do Desenvolvimento em Criptografia para o posto de segundo em comando de toda a NSA. Agora havia apenas um homem hierarquicamente superior ao comandante Strathmore na agência: o director Leland Fontaine, o lendário senhor supremo do Palácio dos Quebra-Cabeças nunca visto, raramente ouvido e eternamente temido. Ele e Strathmore dificilmente se encontravam, e, quando isso acontecia, era como uma batalha de titãs. Fontaine era um gigante entre os gigantes, mas Strathmore não parecia se intimidar. Argumentava com o director a favor de suas idéias com o mesmo fervor de um boxeador apaixonado. Nem mesmo o presidente dos Estados Unidos ousava desafiar Fontaine como Strathmore fazia. Para isso, era preciso imunidade política ou, no caso do comandante, indiferença política.
Susan subiu as escadas. Antes mesmo que batesse, a tranca eletrônica da porta de Strathmore soou. A porta se abriu, e o comandante fez sinal para que entrasse.
- Obrigado por ter vindo, Susan. Fico te devendo essa.
- Sem problemas. - Ela sorriu, enquanto sentava-se do outro lado da mesa. Strathmore era um homem grande, bruto, cujas feições inexpressivas ajudavam a disfarçar a eficiência obstinada e o perfeccionismo. Seus olhos acinzentados geralmente transmitiam uma impressão de confiança e circunspecção resultantes da experiência, mas naquele dia pareciam irrequietos e perturbados.
- Você parece cansado - disse Susan.
- Já estive melhor - Strathmore suspirou.
- Eu diria que sim, ela pensou.
Susan nunca tinha visto Strathmore tão mal. Seus cabelos grisalhos e ralos estavam despenteados e, mesmo com o ar-condicionado no máximo, sua testa suava. Parecia que havia dormido usando aquele terno. Estava sentado em uma mesa de design moderno, com dois teclados embutidos e um monitor de computador em um dos cantos. Havia várias listagens de computador impressas jogadas pela mesa, fazendo com que esta parecesse uma espécie de cabine de comando alienígena colocada ali no centro de sua sala acortinada.
- A semana foi difícil? - perguntou Susan.
Strathmore sacudiu os ombros e respondeu:
- O de sempre. A EFF está novamente infernizando minha vida com a questão dos direitos civis.
Susan sorriu. A EFF - Electronic Frontier Foundation - era uma entidade mundial formada por usuários de computadores que haviam criado uma poderosa organização para a manutenção dos direitos civis, destinada a apoiar a liberdade de expressão e instruir outras pessoas sobre os factos e os perigos de se viver num mundo eletrônico. Faziam um forte lobby contra aquilo que chamavam de "capacidade orweliana de vigilância por parte das agências governamentais”, em particular a NSA. A EFF era uma, eterna pedra no sapato de Strathmore.
- Nada de novo, então - disse ela. - Qual é a grande emergência que fez com que você me tirasse do banho?
Strathmore sentou-se por um instante, brincando distraidamente com a trackball embutida em sua mesa. Após uma longa pausa, olhou para Susan fixamente e disse:
- Qual foi o tempo mais longo que o TRANSLTR já levou para quebrar um código?
A pergunta pegou Susan completamente desprevenida. Parecia sem sentido.
Foi por isso que ele me chamou?
- Bem... - ela pensou um pouco. - Teve uma mensagem interceptada pelo COMINT alguns meses atrás que levou cerca de uma hora, mas a chave era absurdamente longa - algo como dez mil bits, se não me engano.
Strathmore resmungou.
- Uma hora, certo? O que você me diz dos testes de capacidade máxima que já executamos?
Susan respondeu:
- Se você incluir os diagnósticos, obviamente temos um tempo mais longo.
- Quanto tempo?
Susan não estava entendendo aonde Strathmore queria chegar com aquela conversa.
- Senhor, eu me lembro de ter executado um algoritmo, em Março deste ano, com uma chave segmentada de um milhão de bits. Usei funções de loop ilegais, autômatas celulares, tudo junto. Ainda assim o TRANSLTR conseguiu quebrá-la.
- Em quanto tempo?
- Três horas.
Strathmore se surpreendeu.
- Três horas? Levou esse tempo todo?
Susan fez uma cara feia, ligeiramente ofendida. Seu trabalho durante os últimos três anos havia sido o de aperfeiçoar o desempenho do computador mais secreto do mundo. Boa parte da programação que tornava o TRANSLTR tão rápido fora escrita por ela. Uma chave de um milhão de bits era, obviamente, uma situação pouco realista.
- Muito bem - disse Strathmore. - Então, mesmo em condições extremas, o tempo mais longo que um código já sobreviveu dentro do TRANSLTR foi de cerca de três horas?
Susan concordou. - É. Mais ou menos isso. Strathmore fez uma nova pausa, como se estivesse com medo do que tinha a dizer. Então olhou novamente para ela e disse:
- O TRANSLTR encontrou algo...
Susan esperou.
- Mais do que três horas?
Strathmore assentiu, mas ela não pareceu preocupada.
- Um novo diagnóstico? Algo que o Departamento de Segurança de Sistemas nos enviou?
- Não, é um arquivo externo.
Susan ficou esperando para ver qual era o final da piada.
- Um arquivo externo? Você está brincando, não é?
- Bem que eu queria. Eu o coloquei na fila de processamento ontem à noite, por volta das 23h30. Ainda não foi quebrado.
Susan ficou boquiaberta. Olhou para o relógio, depois para Strathmore.
- Ainda está sendo processado? Mais de 15 horas?
Strathmore inclinou-se um pouco para a frente e virou seu monitor para Susan. A tela estava toda preta, exceto por uma pequena caixa de texto amarela no meio, com números piscando.
TEMPO DECORRIDO: 15:09:33 AGUARDANDO CHAVE: _________
Susan olhou, impressionada. Parecia que o TRANSLTR estava tentando quebrar um único código há mais de 15 horas. Ela sabia que os processadores do computador eram capazes de verificar 30 milhões de chaves por segundo - 100 bilhões por hora. Se o TRANSLTR ainda estava calculando, significava que a chave deveria ser algo monstruoso - mais de dez bilhões de dígitos. Aquilo não fazia o menor sentido.
- É impossível! - declarou ela. - Você verificou se há algum indicador de erro? Talvez o TRANSLTR tenha ficado preso em um erro de programação e...
- Não há nada de errado.
- Mas essa chave deve ser enorme!
- É um algoritmo comercial padrão. Meu palpite é de que a chave seja de 64 bits.
Perplexa, Susan olhou pela janela na direcção do TRANSLTR, um pouco abaixo deles. Por experiência própria, ela sabia que uma chave de 64 bits geralmente levava menos de dez minutos para ser encontrada.
- Deve haver uma explicação.
Strathmore assentiu.
- Há, sim. Mas você não vai gostar dela. Susan olhou para ele com uma sensação ruim. - O TRANSLTR está funcionando mal?
- Não há nada de errado com ele.
- Temos um vírus?
Strathmore balançou a cabeça.
- Nenhum vírus. Apenas me escute.
Susan estava estupefata. O TRANSLTR nunca tinha encontrado um código que não pudesse quebrar em menos de uma hora. Em geral a mensagem clara era enviada ao módulo de impressão de Strathmore em poucos minutos. Ela olhou rapidamente para a impressora laser atrás de sua mesa. Estava vazia.
- Susan - disse Strathmore, em um tom de voz abafado. - Vai ser difícil aceitar isso de cara, mas ouça o que tenho a dizer. - Ele mordeu o lábio. - Esse código em que o TRANSLTR está trabalhando é único. Não é nada parecido com o que já encontramos até agora. - Strathmore fez uma pausa, como se fosse difícil completar a frase. - Esse código é inquebrável.
Susan olhou para ele e quase riu. Inquebrável? Como assim? Não fazia sentido pensar em um código inquebrável. Alguns códigos podiam requerer mais tempo, mas todo código podia ser quebrado. Era matematicamente certo que, mais cedo ou mais tarde, o TRANSLTR iria descobrir a chave certa.
- Você disse inquebrável?
- Sim, é isso mesmo - ele respondeu secamente.
Inquebrável? Susan não podia acreditar que aquilo havia sido dito por alguém com 27 anos de experiência em análise de códigos.
- Inquebrável, senhor? - disse ela, constrangida. - E o Principio de Bergofsky? Susan havia aprendido a respeito do Principio de Bergofsky logo no início de sua carreira. Era um dos fundamentos da técnica de força bruta. Havia sido também a inspiração de Strathmore ao construir o TRANSLTR. O princípio dizia claramente que, se um computador testasse um número suficiente de chaves, era matematicamente garantido que iria encontrar a correcta. A segurança de um código não dependia de sua chave não poder ser encontrada, mas do facto de que a maioria das pessoas não tinha nem tempo nem equipamento suficientes para fazê-lo.
Strathmore sacudiu a cabeça.
- Esse código é diferente.
- Diferente? - Susan lançou-lhe um olhar suspeito. Um código inquebrável é uma impossibilidade matemática! Ele sabe disso!
Strathmore enxugou com a mão sua testa suada.
- Esse código é produto de um algoritmo de encriptação completamente novo, que jamais encontramos antes.
As dúvidas internas de Susan aumentavam. Os algoritmos de encriptação eram apenas fórmulas matemáticas, "receitas de bolo" para misturar o texto e transformá-lo em código. Matemáticos e programadores criavam novos algoritmos todos os dias. Havia centenas deles no mercado: PGP, Diffie-Hellman, ZIP, IDEA, El Gamal. O TRANSLTR quebrava todos esses diariamente, sem problemas. Para o supercomputador, todos os códigos eram iguais, não importando qual fosse o algoritmo usado.
- Não entendo - disse ela. - Não estamos discutindo como fazer a engenharia reversa de uma função complexa, estamos falando sobre a abordagem de força bruta. PGP, Lúcifer, DSA, não importa. O algoritmo gera uma pequena chave que ele considera segura, e o TRANSLTR continua fazendo novas tentativas até encontrá-la.
A resposta de Strathmore demonstrava a paciência e o controle de um bom professor.
- Sim, Susan, o TRANSLTR sempre irá encontrar a chave, mesmo se for gigantesca. - Fez uma longa pausa. - A menos que...
Ela quis falar, mas estava claro que Strathmore ia finalmente soltar a bomba.
A menos quê?
- A menos que o computador não saiba quando tiver quebrado o código. Susan quase caiu da cadeira.
- O quê?
- A menos que o computador já tenha encontrado a chave correcta, mas continue tentando porque não percebeu que a encontrou. - Strathmore parecia estar profundamente cansado. - Acho que esse algoritmo possui uma mensagem clara circular.
Susan engoliu em seco. A noção de uma função de mensagem clara circular foi enunciada, pela primeira vez, por um matemático húngaro, Josef Harne, em um obscuro artigo acadêmico de 1987. Uma vez que os computadores usando o método de força bruta quebravam códigos examinando a mensagem clara a fim de encontrar padrões identificáveis de palavras, Harne propôs um algoritmo de encriptação que, além de encriptar, deslocasse a mensagem clara de acordo com uma variável temporal. Teoricamente, a mutação contínua iria assegurar que um computador que tentasse quebrar o código jamais encontraria padrões de palavras identificáveis e, assim, nunca saberia que tinha encontrado a chave correta.
- Onde você conseguiu isso? - perguntou ela.
A resposta do comandante veio lentamente:
- Um programador do sector privado escreveu isso.
- O quê? - Susan caiu de volta na cadeira. - Temos os melhores programadores do mundo aqui! Todos nós, trabalhando em conjunto, jamais chegamos sequer perto de escrever uma função de mensagem clara circular. E agora você está me dizendo que um cara qualquer, sentado em casa com um PC, descobriu como resolver o problema?
Strathmore diminuiu um pouco o tom de voz, aparentemente tentando acalmá-la.
- Não diria que esse programador é um "cara qualquer':
Susan não estava mais ouvindo. Estava convencida de que devia haver alguma outra explicação: um erro. Um vírus. Qualquer coisa era mais provável do que um código indecifrável.
Strathmore olhou para ela friamente.
- Uma das mais brilhantes mentes criptográficas de todos os tempos escreveu esse algoritmo.
Susan pareceu ainda mais descrente. As mais brilhantes mentes da Criptografia estavam em seu departamento e ela certamente estaria a par de um algoritmo como esse.
- Quem?
- Acho que você é capaz de adivinhar - disse Strathmore. - Digamos que é alguém que não gosta muito da NSA.
- Assim fica fácil! - devolveu ela, com sarcasmo.
- Ele trabalhou no projeto TRANSLTR. Quebrou as regras. Provocou um alvoroço no meio da inteligência. Eu o deportei.
Susan estava com uma expressão distante, mas em seguida ficou branca. - Meu Deus...
Strathmore acenou positivamente.
- Ele passou o ano todo se vangloriando a respeito de seu trabalho em um algo ritmo capaz de resistir à abordagem de força bruta.
- M - mas... - Susan balbuciava. - Achei que ele estava blefando. Ele realmente conseguiu?
- Sim. a encriptador definitivo e inquebrável.
Susan ficou em silêncio.
- Mas... isso quer dizer que...
Strathmore olhou-a no fundo dos olhos.
- Ensei Tankado acabou de tornar o TRANSLTR obsoleto.
CAPÍTULO
6
Ensei Tankado ainda não tinha nascido quando a Segunda Guerra terminou, mas ele estudou cuidadosamente tudo o que pôde a respeito dela. Em particular, estudou tudo a respeito de seu ponto culminante, a explosão em que 100 mil de seus compatriotas morreram, incinerados por uma bomba atômica.
Hiroshima, 8h15 da manhã. Dia 6 de Agosto de 1945 - um acto desprezível de destruição. Uma demonstração de poder sem sentido por parte de um país que já havia vencido a guerra. Tankado aceitou tudo isso. A única coisa que ele não podia aceitar era que a bomba tinha tirado dele a possibilidade de conhecer sua mãe. Ela morreu durante seu parto, devido a complicações decorrentes do envenenamento por radiação sofrido muitos anos antes.
Em 1945, antes que Ensei nascesse, sua mãe, assim como muitos de seus amigos, viajou para Hiroshima para trabalhar como voluntária nos centros de tratamento de pessoas queimadas. Foi lá que ela se tornou uma das hibakusha - as vítimas da radiação. Dezanove anos mais tarde, quando tinha 36 anos, deitada na enfermaria com uma hemorragia interna, ela sabia que iria morrer. O que não sabia era que a morte a livraria do último dos horrores: seu único filho iria nascer deformado.
O pai de Ensei nem mesmo chegou a ver o filho. Abalado pela perda da mulher e envergonhado pela chegada de um filho, que, segundo as enfermeiras, era uma criança com má-formação e que provavelmente não sobreviveria até o dia seguinte, desapareceu do hospital e nunca mais voltou. Ensei Tankado foi para a casa de pais adoptivos.
Ao entrar na adolescência, todas as noites o jovem Tankado olhava para seus dedos deformados, segurando sua boneca-talismã daruma, e jurava que iria vingar-se do país que havia lhe tirado sua mãe e envergonhado tanto seu pai que ele o abandonara. O que ele não sabia é que o destino estava prestes a entrar em cena.
No mês de Fevereiro do ano em que Tankado completou 12 anos, um fabricante de computadores de Tóquio ligou para seus pais adoptivos e perguntou se seu filho gostaria de participar de um grupo de usuários para testar um novo teclado que estava sendo desenvolvido para crianças deficientes. Sua família concordou.
Ensei Tankado nunca havia visto um computador, mas parecia saber usá-lo instintivamente. Os computadores lhe abriram possibilidades com as quais sequer havia sonhado. Em pouco tempo, aquelas máquinas tornaram-se o centro de sua vida. Tankado cresceu, deu aulas, ganhou dinheiro e eventualmente obteve uma bolsa para a Universidade de Doshisha. Logo ficou conhecido em Tóquio como fugusha kisai, o gênio aleijado.
Em algum momento Tankado leu sobre Pearl Harbor e sobre os crimes de guerra japoneses. Seu ódio pela América se dissolveu lentamente. Tornou-se um budista devoto e esqueceu a promessa de vingança que havia feito na infância. O perdão era o único caminho para a iluminação.
Quando completou 20 anos, Ensei Tankado já era uma figura cult no meio underground dos programadores. A IBM ofereceu-lhe um visto de trabalho e um emprego no Texas. Tankado aproveitou a oportunidade. Três anos depois havia deixado a IBM, estava vivendo em Nova York e programando por conta própria. Pegou a nova onda de encriptação com chave pública. Escreveu alguns algoritmos e fez fortuna.
Como muitos dos melhores programadores de algoritmos de encriptação, Tankado foi sondado pela NSA. Ele não deixou, é claro, de perceber a ironia: a oportunidade de trabalhar no coração do governo de um país que uma vez ele havia jurado odiar. Decidiu ir em frente e comparecer à entrevista. Qualquer dúvida que ainda possuísse se desfez quando conheceu o comandante Strathmore. Conversaram francamente sobre o passado de Tankado, a hostilidade em potencial que poderia sentir contra os Estados Unidos, seus planos para o futuro. Ele fez um teste com o polígrafo e se submeteu a cinco semanas de rigorosas entrevistas com psicólogos. Passou por tudo isso. Sua raiva havia sido substituída pela devoção a Buda. Quatro meses depois, Ensei Tankado foi trabalhar no Departamento de Criptografia da Agência de Segurança Nacional.
Apesar de seu alto salário, Tankado ia trabalhar numa moto antiga e comia sanduíches sozinho em sua mesa, em vez de se juntar ao resto do pessoal para desfrutar de um bom almoço no refeitório da NSA. Os outros criptógrafos o admiravam. Ele era brilhante: um dos programadores mais criativos que todos já haviam conhecido. Era gentil, honesto, tranqüilo e tinha uma ética impecável. A integridade moral era da maior importância para ele. Por isso, sua dispensa da agência e subseqüente deportação foram um choque para todos.
Tankado, assim como o restante da equipe de criptógrafos, estava trabalhando no projeto do TRANSLTR com a idéia de que, se tivessem sucesso, o computador seria usado para decifrar e-mails apenas em casos em que isso fosse previamente autorizado pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos. O uso que a NSA faria do TRANSLTR seria regulamentado, mais ou menos do mesmo modo como o FBI precisava da ordem de uma corte federal para instalar um grampo telefônico. O supercomputador deveria incluir uma programação que precisasse de senhas - que estariam sob controle do Banco Central Americano e do Departamento de Justiça - para decifrar um arquivo. Isso impediria que a NSA bisbilhotasse indiscriminadamente as comunicações pessoais de cidadãos inofensivos ao redor do mundo.
Contudo, quando chegou a hora de programar essa parte, a equipe do TRANSLTR foi avisada de que houvera uma mudança de planos. Por conta da urgência associada ao trabalho antiterrorismo da NSA, o TRANSLTR passaria a ser um dispositivo de decodificação independente, cuja operação no dia-a-dia seria regulada apenas pela própria agência.
Tankado ficou indignado. Na prática, isso significava que a NSA poderia abrir os e-mails de qualquer um sem que o usuário jamais ficasse sabendo. Era como ter um grampo em cada telefone do planeta. Strathmore tentou fazer com que o rapaz visse o TRANSLTR como um dispositivo para assegurar a aplicação das leis, mas não houve jeito. Ele foi inflexível e insistiu que aquilo constituía uma enorme violação dos direitos humanos. Pediu demissão no acto e, poucas horas depois, violou a norma de sigilo da agência ao tentar entrar em contacto com a Electronic Frontier Foundation. Tankado estava determinado a chocar o mundo com sua história sobre uma máquina secreta capaz de expor todos os usuários de computadores do planeta a tramóias secretas do governo. A NSA não teve outra alternativa senão impedi-lo.
A captura e a deportação de Tankado, amplamente divulgadas em listas de discussão na Internet, foram para ele uma enorme humilhação pública. Contra os desejos de Strathmore, os especialistas em contenção de danos da NSA - temendo que Tankado continuasse tentando convencer as pessoas de que o
TRANSLTR de facto existia - espalharam rumores que destruíram sua credibilidade. Assim, Ensei Tankado foi deserdado pela comunidade internacional de informática. Ninguém mais iria acreditar em um aleijado acusado de espionagem - sobretudo quando ele estava tentando comprar sua liberdade com alegações absurdas a respeito de uma máquina americana capaz de quebrar qualquer código.
A coisa mais estranha é que Tankado parecia entender que tudo fazia parte do jogo da inteligência. Não aparentava guardar rancor, mas apenas mantinha-se firme em sua decisão. Enquanto estava sendo levado pela segurança, ele pronunciou sua última frase para Strathmore, com uma calma assustadora.
- Todos temos o direito de guardar segredos - disse. - Um dia eu farei com que isso volte a ser possível.
CAPÍTULO
7
A mente de Susan estava em turbilhão. Ensei Tankado escreveu um programa que cria códigos indecifráveis! Era algo tão incrível que ela mal podia compreender.
- Fortaleza Digital - disse Strathmore. - Foi o nome que ele escolheu. É a arma definitiva de contra-inteligência. Se esse programa chegar ao mercado, qualquer moleque com um modem será capaz de enviar códigos que a NSA não poderá quebrar. Nossos serviços de inteligência terão problemas.
Mas os pensamentos de Susan estavam longe das implicações políticas do Fortaleza Digital. Ela ainda estava tentando entender a existência daquele programa. Havia passado toda a sua vida quebrando códigos, negando com convicção a existência de um código definitivo, indecifrável. Todo código pode ser decifrado, é o Principio de Bergofsky! Ela se sentia como um ateu que subitamente tivesse dado de cara com Deus.
- Se esse código se espalhar - murmurou -, a Criptografia irá se tomar uma ciência morta.
- Esse é o menor de nossos problemas.
- Podemos comprar Tankado?? Sei que ele nos odeia, mas não podemos lhe oferecer alguns milhões de dólares? Convencê-lo a não distribuir o código?
Strathmore riu.
- Alguns milhões? Você tem idéia de quanto vale essa coisa? Cada um dos governos do planeta irá oferecer rios de dinheiro. Você pode imaginar como seria dizer ao presidente que continuamos interceptando as comunicações iraquianas, mas não conseguimos mais ler as mensagens interceptadas? Não é algo que diga respeito apenas à NSA, é um problema para toda a comunidade de inteligência. Nós damos suporte a todos eles, o FBI, a CIA, a DEA, e subitamente estariam todos no escuro. Seria impossível rastrear as remessas dos cartéis de drogas; as grandes corpo rações poderiam transferir dinheiro sem deixar vestígios, burlando o fisco, e os terroristas poderiam conversar em total segredo - em suma, seria o caos.
- A EFF vai se divertir com a notícia - disse Susan, pálida.
- A EFF não tem a menor noção do que fazemos aqui – emendou Strathmore, irritado. - Se soubessem quantos ataques terroristas já conseguimos impedir porque decodificamos suas comunicações, eles iriam mudar de tom.
Susan concordou, mas estava claro que a EFF jamais entenderia o quanto o TRANSLTR era importante. O supercomputador já havia ajudado a frustrar dezenas de ataques, mas essas informações eram altamente secretas e nunca seriam reveladas. A lógica por trás da manutenção desse segredo era simples: o governo americano não poderia permitir uma histeria em massa causada pela revelação da verdade. A reacção do público às notícias era uma incógnita. Somente no último ano, grupos fundamentalistas tinham feito duas tentativas de ataques com armas nucleares em solo americano. Ambas foram evitadas por pouco.
E os ataques nucleares não eram a única ameaça. No mês anterior, por exemplo, o TRANSLTR havia
impedido um dos ataques terroristas mais engenhosamente concebidos que a NSA já vira. Uma organização de oposição ao governo tinha elaborado um plano cujo codinome era Floresta de Sherwood. O alvo era a Bolsa de Nova York, e o objectivo, a "redistribuição da riqueza': Durante seis dias, membros do grupo colocaram 27 dispositivos de fluxo EMI não explosivos nos prédios ao redor da Bolsa. Quando accionados, eles iriam gerar uma poderosa onda electromagnética. A descarga simultânea iria criar um campo magnético tão poderoso que qualquer mídia magnética dentro da Bolsa seria apagada - incluindo discos rígidos de computadores, bancos de armazenamento em memória ROM, backups de fita, disquetes, etc. Todos os registros de "quem possuía o quê" seriam permanentemente desintegrados.
Como era necessária uma precisão absoluta para a detonação simultânea dos dispositivos, eles foram interconectados via Internet através de linhas telefônicas. Durante a contagem regressiva de dois dias os relógios internos dos dispositivos trocaram infindáveis cadeias de dados de sincronização codificados. A NSA interpretou os pulsos como alguma anomalia na rede, mas ignorou-os porque pareciam ser uma troca inofensiva de bobagens. Mas depois que o TRANSLTR descodificou as cadeias de dados, os analistas da agência reconheceram a seqüência como uma contagem regressiva sincronizada através da rede. Os dispositivos foram localizados e removidos apenas três horas antes do momento em que deveriam disparar.
Susan sabia que, sem o TRANSLTR, a NSA não tinha como fazer frente ao avançado terrorismo eletrônico. Ela olhou novamente para o monitor. Continuava mostrando pouco mais do que 15 horas. Ainda que o arquivo de Tankado fosse descodificado naquele exacto momento, a NSA estava acabada. A Criptografia estaria relegada a quebrar menos de dois códigos por dia. Mesmo com a taxa actual de 150 códigos por dia, já havia uma fila de arquivos em espera para serem descodificados.
- Tankado entrou em contacto comigo mês passado - disse Strathmore, interrompendo os pensamentos de Susan.
Susan olhou para ele.
- Tankado falou com você?
- Sim, para prevenir-me.
- Preveni-lo? Mas ele o odeia!
- Ele ligou para me dizer que estava aperfeiçoando um algoritmo que gerava códigos indecifráveis. Não acreditei nele.
- Mas por que ele iria contar a você? - perguntou Susan. - Ele queria que a NSA comprasse o código?
- Não. Era chantagem.
As coisas começavam a fazer sentido para Susan.
- É claro. Ele queria que você limpasse o nome dele.
- Não - disse Strathmore. - Tankado queria o TRANSLTR.
- O TRANSLTR?
- Isso. Me ordenou que fosse a público e dissesse ao mundo todo que temos o TRANSLTR. Disse que, se admitíssemos que podíamos ler qualquer e-mail, ele destruiria o Fortaleza Digital.
Susan olhou para ele, pensativa. Strathmore continuou:
- De qualquer forma, é tarde demais agora. Ele colocou uma cópia gratuita do Fortaleza Digital em seu site na Internet. Todas as pessoas do planeta podem fazer o download.
- Ele fez o quê? - perguntou Susan, branca.
- É uma jogada de marketing, não há com o que se preocupar. A cópia que ele deixou no site está encriptada. As pessoas podem fazer o download, mas ninguém pode abri-la. Foi realmente bem pensado. O código-fonte do Fortaleza Digital foi encriptado, completamente trancado.
Susan estava impressionada.
- É claro! Dessa forma todos podem ter uma cópia, mas ninguém pode abri-la! - Exatamente. Tankado está balançando uma cenoura.
- Você já viu o algoritmo?
O comandante pareceu confuso.
- Não. Acabei de lhe dizer que está codificado.
Quando viu a cara de Strathmore, Susan lembrou-se de que as regras haviam mudado.
- Deus! - disse ela. - O Fortaleza Digital foi codificado usando seu próprio algoritmo?
- Exacto - assentiu Strathmore.
Susan estava chocada. A fórmula para o Fortaleza Digital havia sido codificada usando o próprio Fortaleza Digital. Tankado colocou no site uma receita matemática de valor inimaginável, mas o texto da receita - o algoritmo de encriptação - havia sido embaralhado, usando a si mesmo para fazer a encriptação.
- É um Cofre de Biggleman - disse Susan, profundamente admirada.
Strathmore concordou. O Cofre de Biggleman era um cenário hipotético em criptografia, no qual um fabricante de cofres teria projectado um cofre inviolável. Querendo manter seu projecto secreto, decidiu construir o cofre e trancar o projecto dentro dele. Tankado havia feito a mesma coisa com o Fortaleza Digital. Havia protegido seu algoritmo encriptando-o com a fórmula descrita por este algoritmo.
- E o arquivo que está no TRANSLTR? - perguntou Susan.
- Eu fiz o download do site de Tankado na Internet, como todo mundo. A NSA é agora a orgulhosa detentora do algoritmo Fortaleza Digital. Infelizmente não podemos abri-lo.
Susan estava perplexa com a engenhosidade de Ensei Tankado. Sem ter que revelar seu algoritmo, havia provado à NSA que ele era de facto inquebrável.
Strathmore lhe passou um clipping de jornais japoneses. Era uma tradução do Nikkei Shimbun, o equivalente japonês do Wall Street Journal. Uma matéria dizia que o programador japonês Ensei Tankado havia criado uma fórmula matemática que ele afirmava ser capaz de criar códigos indecifráveis. Chamava-se Fortaleza Digital e estava disponível para quem quisesse avaliá-la na Internet. O programador iria vendê-la em leilão para quem fizesse a melhor oferta. A coluna prosseguia dizendo que, apesar do grande interesse que o assunto despertou no Japão, as poucas empresas de software americanas que ouviram falar do Fortaleza Digital comentaram que a alegação era sem sentido, algo como dizer que era possível transformar chumbo em ouro. A fórmula, segundo essas empresas, era uma farsa e não devia ser levada a sério.
- Um leilão? - Susan olhou para Strathmore.
- Sim - disse ele. - Neste exacto momento todas as empresas de software do Japão já fizeram download do Fortaleza Digital e estão tentando quebrá-lo. E, a cada segundo que não conseguem fazê-lo, as ofertas sobem.
- Isso é absurdo! - argumentou Susan. - Qualquer arquivo encriptado com um novo algoritmo é indecifrável, a menos que alguém possua o TRANSLTR. O Fortaleza Digital poderia não ser nada além de um algoritmo genérico, e ainda assim essas empresas não conseguiriam quebrá-lo.
- Mas você deve concordar que é uma jogada de marketing brilhante - disse Strathmore. - Pense bem: todas as marcas de vidro à prova de balas supostamente param as balas. Contudo, se uma companhia desafiar os clientes a fazerem uma bala passar pelo seu vidro, todos irão tentar.
- E os japoneses realmente acreditam que o Fortaleza Digital é diferente? Melhor do que qualquer outra coisa no mercado?
- Tankado pode ter sido afastado da comunidade de informática, mas todos sabem que é um gênio. É praticamente um ícone cult entre os hackers. Se Tankado diz que um algoritmo é indecifrável, as pessoas acreditam nisso.
- Mas, até onde o público em geral sabe, eles são todos indecifráveis.
- Sim... - disse Strathmore, pensativo. - Por enquanto.
- O que você quer dizer com isso?
Strathmore respirou fundo.
- Vinte anos atrás, ninguém imaginava que seríamos capazes de quebrar cifras de fluxo de 12 bits. Contudo, a tecnologia progrediu, como sempre. Os fabricantes de software estão presumindo que, em algum momento, computadores como o TRANSLTR estarão disponíveis. A tecnologia está avançando exponencialmente - em algum momento os algoritmos actuais que usam chaves públicas deixarão de ser seguros. É necessário encontrar algoritmos melhores para ficar à frente dos computadores do futuro.
- E o Fortaleza Digital seria a solução?
- Exactamente. Um algoritmo capaz de resistir a um ataque de força bruta jamais se tornaria obsoleto, não importa o quanto os computadores fiquem mais potentes. Ele se tornaria um padrão mundial da noite para o dia.
Susan deu um suspiro.
- Que Deus nos ajude - disse, em voz baixa. - Podemos fazer uma oferta? Strathmore balançou a cabeça.
- Tankado já nos deu uma chance. Ele deixou isso bem claro. De qualquer forma, seria arriscado demais: se descobrissem, seria basicamente uma admissão de que estamos com medo desse algoritmo. Não apenas estaríamos admitindo publicamente que realmente temos o TRANSLTR, mas também que o Fortaleza Digital é imune a ele.
- Quanto tempo ainda nos resta?
- Tankado planejava anunciar quem ganhou o leilão amanhã ao meio-dia. Susan sentiu seu estômago embrulhar.
- E depois?
- O acordo é que ele daria a chave ao vencedor.
- A chave?
- Faz parte do jogo. Todos já têm o algoritmo, então Tankado está leiloando a chave que poderá decifrá-lo.
- É claro - resmungou Susan.
Era um plano perfeito: simples e claro. Tankado havia encriptado o Fortaleza Digital e apenas ele tinha a chave capaz de decifrá-lo. Susan estava pensando que, em algum lugar do mundo, provavelmente anotada em um pedaço de papel no bolso de Tankado, estava uma chave de 64 caracteres que iria arruinar o trabalho de inteligência dos Estados Unidos para sempre.
Sua mente girava, estonteada por esse cenário improvável. Tankado entregaria a chave ao vencedor do leilão e essa empresa iria decodificar o arquivo do Fortaleza Digital. Depois, provavelmente, iria embutir o algoritmo em um chip à prova de engenharia reversa, e, cinco anos mais tarde, todos os computadores sairiam de fábrica com um chip do Fortaleza Digital. Nenhum fabricante havia tentado criar um chip de encriptação porque os algoritmos de encriptação normais se tornavam obsoletos após algum tempo. Mas o Fortaleza Digital jamais ficaria obsoleto: com uma função de mensagem clara circular, nenhum ataque de força bruta seria capaz de encontrar a chave correcta. Seria um novo padrão em encriptação. De agora até o final dos tempos. Todos os códigos se tornariam indecifráveis. Bancos, traficantes, terroristas, espiões. Um só mundo - um só algoritmo.
Anarquia completa.
- Quais são as nossas opções? - indagou Susan. Ela estava ciente de que em tempos extremos eram necessárias medidas extremas, mesmo na NSA.
- Não podemos simplesmente dar sumiço nele, se é isso que você está perguntando.
Era exactamente o que Susan queria saber. Desde que começara a trabalhar para a NSA, ela ouvia rumores de conexões vagas com os melhores assassinos profissionais do mundo - uma elite de mercenários chamada para fazer o trabalho sujo da comunidade de inteligência.
Strathmore sacudiu a cabeça.
- Tankado é demasiado inteligente para nos deixar uma opção tão simples. Susan achou a resposta
estranhamente tranqüilizadora.
- Ele está sob protecção?
- Não exatamente.
- Escondido?
- Tankado deixou o Japão. Ele planejava verificar os lances por telefone. Mas sabemos onde está.
- E vocês não vão agir?
- Não. Ele tem um seguro. Tankado deu uma cópia de sua chave para uma outra pessoa, de identidade desconhecida... caso algo lhe acontecesse.
É claro, pensou Susan, maravilhada. Um anjo da guarda.
- E suponho que, se algo acontecer a Tankado, esse homem misterioso venderá a chave?
- Pior. Se qualquer um atacar Tankado, seu parceiro irá publicá-la na web. Susan parecia confusa.
- Ele irá torná-la pública?
- Sim. Será colocada na Internet, em sites, em grupos de discussão, em jornais. Na prática, irá distribuí-la para quem quiser.
- Downloads gratuitos? - perguntou Susan, arregalando os olhos.
- Isso mesmo. Tankado concluiu que, se estivesse morto, não precisaria do dinheiro. Então, por que não deixar um pequeno presente de despedida para o mundo?
Houve um longo silêncio. Susan respirava profundamente, tentando absorver o impacto daquela situação. Ensei Tankado criou um algoritmo indecifrável. Ele está nos mantendo como reféns.
Subitamente levantou-se. Sua voz estava cheia de determinação.
- Temos que entrar em contacto com Tankado! Deve haver uma forma de convencê-lo a não divulgar o algoritmo! Podemos triplicar a oferta mais alta! Podemos limpar o seu nome! Qualquer coisa!
- Tarde demais - disse Strathmore, engolindo em seco. - Ensei Tankado foi encontrado morto em Sevilha, na Espanha.
CAPÍTULO
8
O Learjet 60 aterrissou no asfalto escaldante da pista de pouso. Olhando para fora da janela, a paisagem borrada das terras secas da Espanha aos poucos foi desacelerando, até se fixar.
- Sr. Becker? - chamou uma voz pelo rádio. - Chegamos.
Becker levantou-se e alongou-se. Ao abrir o compartimento de bagagens, lembrou-se de que não tinha bagagem alguma. Não teve tempo sequer para fazer uma mala. Não que isso importasse, pois haviam lhe prometido que seria uma viagem breve: entrar e sair.
Enquanto as turbinas paravam, o avião saiu do sol e foi para um hangar deserto do outro lado do terminal principal. Poucos instantes depois, o piloto apareceu e abriu a porta de segurança. Becker tomou o último gole de seu suco de frutas, colocou o copo sobre o bar e pegou seu blazer.
O piloto tirou um grosso envelope pardo do bolso de seu uniforme.
- Tenho ordens para lhe dar isto. - Entregou o envelope a Becker. Na frente, rabiscadas em caneta azul, estavam as palavras:
FIQUE COM O TROCO.
Becker passou o dedo pela grossa pilha de notas avermelhadas.
- Mas o quê...?
- Moeda local- retrucou o piloto, secamente.
- Essa parte eu sei - respondeu Becker. - Mas é muito dinheiro. Só preciso de uma pequena quantia para o táxi. - Becker fez uma rápida conversão mental. - Há milhares de dólares aqui!
- Apenas cumpro ordens, senhor. - O piloto se virou e trancou-se de volta na cabine de comando.
Becker olhou para o avião, depois para o dinheiro em suas mãos. Ficou em pé por alguns instantes no hangar vazio, depois colocou o envelope no bolso do blazer e seguiu em direção à saída. Era uma forma estranha de começar. Procurou clarear seus pensamentos. Com um pouco de sorte, estaria de volta a tempo de viajar com Susan para o hotel nas montanhas.
Entrar e sair, pensou consigo mesmo. Entrar e sair.
CAPÍTULO
9
O técnico em segurança de sistemas Phil Chartrukian tinha decidido passar rapidamente pela Criptografia, pois precisava pegar uma papelada que havia deixado por lá no dia anterior. Seus planos iriam mudar em breve.
Atravessou o salão da Criptografia e entrou no laboratório de Segurança de Sistemas (SegSis). Percebeu que havia algo errado quando viu que não tinha ninguém sentado em frente ao terminal que controlava continuamente o funcionamento do TRANSLTR e que seu monitor estava desligado. Chartrukian chamou em voz alta:
- Tem alguém aí?
Ninguém respondeu. O laboratório estava absolutamente limpo, dando a impressão de que nenhum funcionário pisara lá nas últimas horas. Chartrukian tinha apenas 23 anos e era relativamente novo no esquadrão de SegSis, mas havia sido bem treinado e conhecia os procedimentos: deveria sempre haver alguém de SegSis de plantão na Criptografia, sobretudo aos sábados, quando os criptógrafos ficavam em casa. Ele ligou imediatamente o monitor e virou-se para o quadro de escalas afixado na parede.
Quem deveria estar aqui?, perguntou a si mesmo, percorrendo a lista de nomes. De acordo com a escala, um novato chamado Seidenberg deveria ter começado um turno duplo à meia-noite. Pensativo, Chartrukian correu os olhos pelo laboratório vazio. Por onde anda esse cara?
Olhando para o quadro, ele pensou se Strathmore já sabia que o laboratório de SegSis estava deserto. Ele havia reparado, ao entrar, que as cortinas do escritório do comandante estavam fechadas, o que era relativamente normal em se tratando de um sábado. Ainda que Strathmore pedisse aos seus criptógrafos que tirassem sempre folga aos sábados, ele mesmo parecia trabalhar 365 dias por ano.
De uma coisa Chartrukian estava certo: se Strathmore descobrisse que não tinha ninguém no laboratório de SegSis, o novato que havia faltado seria demitido no acto. Chartrukian olhou para o telefone, pensando se deveria ligar para o técnico e dizer que ficaria no plantão em seu lugar. Existia uma regra informal entre o pessoal de SegSis de que cuidariam uns dos outros. Dentro da hierarquia da Criptografia, os SegSis eram cidadãos de segunda classe, constantemente envolvidos em disputas com os senhores do castelo. Ninguém tinha dúvida de que os criptógrafos dominavam esse palácio de alguns bilhões de dólares. Os SegSis eram tolerados apenas porque mantinham seus "brinquedos" funcionando correctamente.
Chartrukian tomou uma decisão. Pegou o telefone e começou a discar, mas interrompeu o gesto no meio. Seus olhos fitavam, hipnotizados, o monitor à sua frente. Como numa filmagem em câmara lenta, colocou o telefone de volta no lugar e ficou olhando para a tela, boquiaberto.
Em oito meses de trabalho, Phil Chartrukian jamais vira o ExeMon, o monitor de execução de tarefas do TRANSLTR, exibir nada além de zero no campo referente às horas. Essa era a primeira vez.
TEMPO DECORRIDO: 15:17:21
- Quinze horas e dezessete minutos? - Ele tremia. - Impossível!
Pediu uma actualização de tela, torcendo para alguma coisa boba ter dado errado. Quando a tela foi novamente exibida, continuava mostrando o mesmo número de horas.
Chartrukian sentiu um calafrio. Os SegSis da Criptografia tinham uma única responsabilidade: manter o TRANSLTR "limpo", ou seja, sem vírus.
Ele sabia que um tempo de execução de 15 horas só podia significar uma coisa: vírus. Um arquivo contaminado havia entrado no TRANSLTR e estava corrompendo sua programação. Chartrukian entrou automaticamente em acção: não importava mais se o laboratório de SegSis tinha ficado vazio ou se o monitor estivera desligado. Ele se concentrou no problema principal: o TRANSLTR. Pediu uma listagem de todos os arquivos enviados para o TRANSLTR nas últimas 48 horas. Começou a ler a lista.
Será que passou algum arquivo infectado?, pensava ele. Será que os filtros de segurança deixaram de perceber alguma coisa?
Como medida de segurança, todos os arquivos que eram enviados para o TRANSLTR deviam passar por aquilo que era conhecido como Gauntlet - uma série de poderosos portais codificados nos próprios circuitos, filtros de pacotes e programas de limpeza que analisavam cada um dos arquivos que chegavam à procura de vírus e sub-rotinas potencialmente perigosas. Qualquer arquivo que contivesse uma programação desconhecida para o Gauntlet era rejeitado e tinha que ser verificado manualmente. Ocasionalmente, o Gauntlet rejeitava arquivos absolutamente inócuos apenas porque continham alguma programação que os filtros nunca haviam encontrado. Nesses casos, o pessoal de SegSis fazia uma inspecção manual cuidadosa e, apenas depois disso, com a garantia de que o arquivo estivesse limpo, podiam passá-lo por fora do Gauntlet e enviá-lo directamente para o TRANSLTR. Os vírus de computador eram tão variados quanto os vírus orgânicos. Assim como seus congêneres, os vírus de computador tinham um objectivo: agregar-se a um sistema hospedeiro e replicar-se. No caso, o hóspede era o TRANSLTR.
Chartrukian ficava impressionado que a NSA ainda não tivesse tido nenhum problema com vírus. Gauntlet era um sentinela poderoso, mas, ainda assim, a NSA digeria, indistintamente, enormes quantidades de informação digital de sistemas de todas as partes do planeta. Espionar dados era, de certa forma, como fazer sexo com centenas de pessoas: com ou sem protecção, mais cedo ou mais tarde você iria pegar alguma coisa.
Ele terminou de examinar a lista de arquivos que estava na tela. Ficou mais confuso do que antes. Todos os arquivos pareciam estar perfeitos. Gauntlet não havia encontrado nada de diferente, o que significava que o arquivo sendo processado pelo TRANSLTR estava limpo.
Por que diabos está levando tanto tempo?, perguntou em voz alta, na sala vazia. Sentiu que estava começando a suar. Ficou pensando se deveria perturbar Strathmore com essas notícias.
Uma verificação antivírus, disse Chartrukian, com voz firme, tentando se acalmar. Tenho que fazer uma varredura completa contra vírus.
De qualquer maneira, ele sabia que essa seria a primeira coisa que Strathmore iria pedir. Olhando para a sala deserta, decidiu que aquilo era o melhor a fazer. Carregou e mandou executar o software de varredura contra vírus. Iria levar cerca de 15 minutos.
Por favor, me diga que não há nada, murmurou para si mesmo. Absolutamente nada. Diga para o papai aqui que não é nada demais.
Mas Chartrukian sentia que não podia ser nada. Seus instintos lhe diziam que algo muito estranho estava acontecendo dentro do gigante descodificador.
CAPÍTULO
10
- Ensei Tankado está morto? - Susan sentiu-se nauseada.-Você o matou? Achei que tinha dito que...
- Não encostamos um dedo nele - Strathmore respondeu num tom de voz calmo. - Ele morreu devido a um ataque cardíaco. O COMINT ligou hoje cedo, pela manhã. O computador deles encontrou o nome de Tankado num registro policial de Sevilha através da Interpol.
- Ataque cardíaco? - Susan parecia desconfiada. - Mas ele tinha só 30 anos.
- Trinta e dois - corrigiu Strathmore. - Tankado tinha um defeito congênito no coração.
- Nunca soube disso.
- Descobrimos durante os exames físicos, quando ele ingressou na NSA. Ele não gostava muito de ficar espalhando isso por aí.
Susan achava difícil aceitar a incrível coincidência de eventos.
- Um defeito congênito podia causar uma morte súbita, sem nenhuma indicação prévia? - Aquilo lhe parecia um pouco conveniente demais. Strathmore suspirou.
- Um coração fraco, combinado com o calor da Espanha... Sem esquecer o stress de estar chantageando a NSA.
Susan ficou em silêncio por alguns instantes. Mesmo considerando a situação, ela sentia uma pontada de dor pela perda de um brilhante colega. A voz grave de Strathmore interrompeu seus pensamentos.
- A única coisa boa em toda essa sucessão de problemas é que Tankado estava viajando sozinho. Há boas chances de que seu parceiro ainda não saiba que ele morreu. Recebemos o chamado porque o COMINT estava atento. As autoridades espanholas disseram que iriam reter a informação o máximo possível. - Strathmore olhou profundamente para Susan. - Temos que encontrar o parceiro de Tankado antes que ele descubra que Tankado morreu. Foi por isso que chamei você. Preciso de sua ajuda.
Agora Susan estava realmente confusa. Ela tinha a impressão de que a morte súbita e conveniente de Tankado havia resolvido todo o problema.
- Comandante, se as autoridades disseram que ele morreu de um ataque cardíaco, estamos limpos. O parceiro dele saberá que não fomos responsáveis - argumentou.
- Você realmente acha isso? Tankado chantageia a NSA e aparece morto alguns dias depois. Você acreditaria que não fomos responsáveis? Aposto como o parceiro dele não vai ver as coisas desta forma. O que quer que tenha acontecido, vamos parecer muito culpados. Poderia facilmente ter sido veneno, uma autópsia falsificada, muitas coisas. - Strathmore fez uma pausa e perguntou: - Qual foi mesmo a sua primeira reacção quando eu disse que Tankado havia morrido?
Ela olhou para baixo, pensativa.
- Achei que a NSA tivesse assassinado ele.
- Exactamente. Se a NSA consegue colocar cinco satélites Rhyolite em órbita geossíncrona sobre o Oriente Médio, acho razoável presumir que temos dinheiro suficiente para comprar alguns policiais espanhóis. - O comandante deixou seu ponto bem claro.
Susan suspirou. Ensei Tankado está morto. A NSA será responsabilizada.
- Podemos encontrar seu parceiro a tempo?
- Acho que sim. Temos uma boa pista. Tankado disse diversas vezes, em público, que estava trabalhando com um parceiro. Creio que sua intenção era desencorajar as empresas de software de tentar impedi-lo, matá-lo ou então roubar sua chave. Ele avisou que, se alguém jogasse sujo, seu parceiro publicaria a chave na rede, e todas as empresas passariam a competir por um software gratuito.
- Bem pensado - assentiu Susan.
Strathmore prosseguiu.
- Algumas vezes, também em público, Tankado se referiu a seu parceiro nominalmente. Ele o chamou de North Dakota.
- North Dakota? Deve ser um apelido, não?
- Provavelmente. Por via das dúvidas, entrei num site de buscas e pesquisei por North Dakota. Acabei me deparando com uma conta de e-mail. Inicialmente assumi que não fosse o North Dakota que estava procurando, mas ainda assim fui investigar, só para ter certeza. Fiquei muito surpreso ao descobrir que a conta estava cheia de e-mails de Ensei Tankado. E as mensagens faziam referência ao Fortaleza Digital e aos planos de Tankado de chantagear a NSA.
Susan olhou para Strathmore, céptica. Ela achava estranho que o comandante pudesse se deixar enganar tão facilmente.
- Mas, comandante, Tankado sabe perfeitamente bem que a NSA pode ler as mensagens transmitidas pela Internet. Ele jamais usaria e-mail para enviar informações secretas. É uma armadilha. Ensei Tankado lhe deu a pista para North Dakota. Ele sabia que você iria fazer uma pesquisa e, sejam quais forem as informações que ele andou enviando, certamente queria que você as encontrasse. É uma pista falsa - argumentou Susan.
- Bons instintos, excepto por alguns detalhes - retorquiu Strathmore. - Não achei nada quando pesquisei por North Dakota, então comecei a fazer outras buscas. A conta que eu encontrei estava sob uma variante do nome, NDAKOTA.
Susan mais uma vez sacudiu a cabeça.
- Trabalhar com variações é nosso procedimento-padrão. Tankado sabia que você iria tentar todas as possibilidades até encontrar algo. NDAKOTA é uma variante muito óbvia.
- Pode ser - disse Strathmore, enquanto escrevia algumas palavras num papel e o passava para Susan. - Mas veja isso.
Susan olhou para o papel, e então a linha de raciocínio do comandante ficou clara. Ele havia escrito o endereço de e-mail de North Dakota:
NDAKOTA@ara.anon.org
Foram as letras ARA, no endereço, que chamaram a atenção de Susan. ARA significava American Remailers Anonymous (Remailers Anônimos da América), um servidor de e-mails anônimos bem conhecido.
Os servidores de e-mails anônimos eram populares entre os usuários da Internet que gostavam de manter suas identidades secretas. Mediante o pagamento de uma pequena taxa, as empresas protegiam a privacidade dos usuários, agindo como um intermediário eletrônico para os e-mails. Era como ter uma caixa postal numerada: um usuário podia enviar e receber mensagens sem nunca revelar seu verdadeiro endereço ou nome. A empresa recebia e-mails endereçados para a conta anônima e então os redireccionava para a verdadeira conta do cliente. A empresa de e-mails anônimos possuía um contrato que a impedia de revelar a identidade ou localização de seus verdadeiros usuários.
- Isso não é uma prova - disse Strathmore. - Mas me parece bastante suspeito.
Susan concordou, um pouco menos céptica.
- Você acha, então, que Tankado não se importava se alguém estivesse procurando por North Dakota porque sua identidade e localização estariam protegidas pela ARA.
- Isso mesmo.
Susan analisou a questão.
- Em geral os usuários da ARA são americanos. Você acha que North Dakota poderia estar aqui, em algum lugar?
- Talvez. Usando um parceiro americano, Tankado teria mantido as duas chaves geograficamente separadas. Poderia ser uma boa estratégia.
Susan continuou pensativa. Não acreditava que Tankado fosse compartilhar sua chave com ninguém, a não ser um amigo íntimo. E, pelo que se lembrava, Tankado não tinha muitos amigos nos Estados Unidos.
- North Dakota - murmurou, enquanto sua mente criptográfica analisava possíveis significados para este nome. - Qual o conteúdo dos e-mails que ele retomou para Tankado?
- Não tenho idéia. Tudo o que temos são as mensagens que Tankado enviou. Por enquanto, a única coisa que conseguimos sobre North Dakota é um endereço anônimo.
- Alguma chance de ser apenas um disfarce? - questionou Susan.
- Em que sentido? - perguntou Strathmore.
- Bem, Tankado poderia estar mandando e-mails falsos para uma conta morta, esperando que nos déssemos ao trabalho de espioná-la. Desta forma, iríamos acreditar que ele estava protegido, e ele jamais teria que se arriscar a compartilhar sua chave. Assim, poderia muito bem estar trabalhando sozinho.
Strathmore sorriu, impressionado.
- Bela linha de pensamento, mas há um porém. Ele não estava usando nenhum de seus endereços habituais, nem os pessoais nem os profissionais. Ele se dava ao trabalho de ir até a Universidade de Doshisha e conectar-se ao main-frame da universidade. Tudo indica que ele tinha uma conta lá e conseguiu mantê-la em segredo. É uma conta bem protegida, e só consegui encontrá-la por acaso. - Strathmore parou por alguns instantes. - Então, se ele de facto queria que espionássemos seu e-mail, por que estaria usando uma conta secreta?
Susan franziu a testa.
- Você acredita que North Dakota exista de facto?
- Infelizmente, sim. E temos que encontrá-lo; mas é preciso agir discretamente. Se ele perceber que estamos tentando localizá-lo, está tudo acabado. Agora Susan sabia por que havia sido chamada.
- Deixe-me adivinhar: você quer que eu entre no banco de dados protegido da ARA para descobrir a identidade real de North Dakota?
Strathmore respondeu com um discreto sorriso.
- Susan, você acaba de ler meus pensamentos.
Susan era a melhor pessoa a chamar quando era necessário fazer "pesquisas discretas" na Internet. Há cerca de um ano, um oficial sênior da Casa Branca estava recebendo mensagens contendo ameaças de um endereço de e-mail anônimo. Pediram à NSA que localizasse o responsável. Ainda que a agência tivesse o poder de ordenar à empresa de envio de e-mails anônimos que revelasse a identidade do usuário, decidiu optar por um método mais subtil- um tracer.
Susan criou um programa que era, na prática, um localizador unidirecional disfarçado como um e-mail comum. Ela podia enviá-lo para o endereço falso do usuário, e a empresa de e-mails anônimos, ao executar o serviço para o qual fora contratada, iria encaminhar a mensagem para o endereço real do usuário. Assim que chegasse ao destino, o programa registraria sua localização na Internet e enviaria uma mensagem de volta para a NSA. Em seguida, o programa sumiria sem deixar qualquer vestígio. A partir do dia em que o tracer foi criado, do ponto de vista da NSA, os e-mails anônimos se tornaram apenas um ligeiro incômodo.
- Você pode encontrá-lo? - perguntou Strathmore.
- Claro. Por que você demorou tanto para me chamar?
- Na verdade, não havia pensado em chamá-la. Não queria que ninguém mais soubesse disso. Eu mesmo tentei enviar uma cópia de seu tracer, mas você escreveu aquela coisa em uma dessas novas linguagens híbridas, de forma que não consegui fazê-lo funcionar. Ele não parava de enviar dados sem sentido! Então tive que engolir o orgulho e pedir que você viesse.
Susan riu. Strathmore era um programador brilhante na área da Criptografia, mas seu repertório estava
limitado, basicamente, a algoritmos. Muitas vezes ele não estava a par de detalhes subtis da programação mais corriqueira. Além disso, Susan escrevera seu tracer em uma nova linguagem de programação híbrida, chamada LIMBO. Era compreensível que o comandante tivesse encontrado alguns problemas.
- Deixe que eu resolvo. - Virou-se, preparando-se para sair. - Estarei em meu terminal.
- Alguma idéia de quanto tempo isto pode levar?
- Bem, depende de quão eficiente a ARA é ao encaminhar suas mensagens.
Se ele estiver aqui nos EUA e usar um dos grandes provedores públicos, como a AOL ou a Compuserve, terei sua conta de cartão de crédito e um endereço de correspondência em menos de uma hora. Se estiver em uma universidade ou grande corporação, levará um pouco mais de tempo. - Ela forçou um sorriso, sentindo-se desconfortável. - O resto é com você.
Susan sabia que "o resto" seria uma equipe táctica em acção, cortando a energia da casa do suspeito e entrando pelas janelas com armas paralisantes. Provavelmente seus superiores diriam à equipe que se tratava de apreensão de drogas. Strathmore iria vasculhar os escombros pessoalmente para encontrar a chave de 64 caracteres e depois destruí-la. O Fortaleza Digital ficaria vagando para sempre pela Internet, trancado por toda a eternidade.
- Envie o tracer com todo o cuidado possível - acrescentou Strathmore, visivelmente preocupado. - Se North Dakota perceber que estamos atrás dele, entrará em pânico e sumirá do mapa com a chave.
- Atacar e fugir - disse Susan, tranqüilamente. Assim que o tracer chegar à conta de destino, irá desaparecer. Ele nunca saberá que estivemos por lá.
O comandante assentiu, deixando transparecer seu cansaço por trás do olhar contido.
- Obrigado.
Susan acenou levemente de volta. Sempre ficava impressionada como Strathmore, mesmo frente a um possível desastre, conseguia se manter impassível. Ela estava convencida de que essa habilidade havia definido os rumos da carreira dele, fazendo com que chegasse a um dos mais altos escalões do poder.
Enquanto caminhava até a porta, olhava fixamente para o TRANSLTR, lá embaixo. A existência de um algoritmo inquebrável ainda era um conceito difícil de digerir. Ela rezou para que pudessem encontrar North Dakota a tempo.
- Seja rápida e você poderá estar nas Smoky Mountains no início da noite - acrescentou Strathmore, em voz alta.
Susan congelou. Ela sabia que não havia mencionado sua viagem ao comandante. Sentiu algo estranho. A NSA está grampeando o meu telefone?
Strathmore levantou os braços, pedindo desculpas.
- David me disse, pela manhã, que vocês pretendiam viajar hoje. Ele comentou que você ficaria muito chateada se a viagem tivesse que ser adiada.
Susan se sentiu desnorteada.
- Você falou com David hoje pela manhã?
- Claro. - Strathmore mostrou-se surpreso com a reação dela. - Eu tinha que passar os detalhes para ele.
- Detalhes? Do quê?
- Da viagem dele. Eu enviei David à Espanha.
CAPÍTULO
11
Espanha. Eu enviei David à Espanha. As palavras do comandante quase doíam.
- David está na Espanha? - Susan não podia acreditar. - Você o mandou para a Espanha? - disse, irritada, quase gritando. - Por quê?
Strathmore estava perplexo. Não era comum que alguém se dirigisse assim a ele, muito menos sua principal criptógrafa. Olhou para Susan. Ela estava encrespada, como uma leoa defendendo sua cria.
- Susan, você falou com ele, não? David não lhe explicou nada?
Ela aparentemente estava em choque e mal conseguia pensar. Espanha? Foi por isso que David adiou nossa viagem para Stone Manor?
- Enviei um carro para pegá-lo hoje cedo. Ele disse que iria ligar pra você antes de sair. Lamento, mas achei que...
- Por que você mandaria alguém como David à Espanha?
Strathmore parou, olhou fixamente para ela e respondeu, como se fosse óbvio:
- Para pegar a outra chave.
- Que outra chave?
- A que estava com Tankado.
Susan se sentiu completamente perdida.
- Do que você está falando?
Strathmore respirou fundo e prosseguiu.
- Tankado certamente estava carregando sua cópia da chave ao morrer. A última coisa que eu queria era que ela ficasse vagando pelo necrotério de Sevilha.
- Então você mandou o David? - O chão sumia sob seus pés. Nada daquilo fazia o menor sentido. - Ele nem mesmo trabalha para você!
Strathmore não sabia como reagir. Definitivamente não estava acostumado a ser tratado daquela forma.
- Susan - disse ele, procurando manter a calma -, a idéia era exatamente esta. Eu precisava de...
A leoa soltou suas garras.
- Você tem 20 mil empregados sob seu comando! O que lhe dá o direito de mandar meu noivo?
- Precisava de um civil, alguém que estivesse desligado do governo. Se eu passasse pelos canais normais e alguém ouvisse falar a respeito...
- E David Becker é o único civil que você conhece?
- Não, claro que David não é o único! Mas, às seis da manhã, as coisas estavam acontecendo bem rápido e eu tinha pouco tempo. David fala espanhol, é inteligente, eu confio nele e achei que estaria lhe fazendo um favor!
- Um favor? - dardejou Susan. - Mandá-lo para a Espanha é considerado um favor?
- Sim! Estou lhe pagando dez mil dólares por um único dia de trabalho. Ele só vai pegar as coisas de Tankado e voltar para casa. Isso é um favor!
Susan ficou em silêncio. Então era isso. A coisa toda se resumia a dinheiro. Voltou no tempo, lembrando-se da promoção de David cinco meses atrás, quando o reitor da Universidade de Georgetown o convidara para ser diretor do Departamento de Idiomas. Ele explicou que as horas de aula seriam reduzidas e que haveria um aumento na papelada, mas também um substancial aumento de salário. Susan quis gritar: David, não aceite! Você vai se sentir péssimo. Já temos dinheiro demais, não importa qual de nós está ganhando mais! Mas aquele não era seu estilo. No final, acabou concordando com a decisão dele de aceitar o cargo. Quando dormiram, naquela noite, ela tentou se sentir feliz por ele, mas alguma coisa lhe dizia que aquilo seria um desastre. O tempo iria mostrar que estava certa - só não esperava estar tão certa assim.
- Você pagou dez mil dólares? Isso é um truque baixo!
Strathmore ficou furioso.
- Truque? Não foi truque algum! Eu nem mesmo contei a ele sobre o dinheiro. Pedi-lhe um favor pessoal, foi tudo, e ele consentiu em ir.
- É claro que consentiu! Você é meu chefe! É o vice-diretor da NSA! Ele não podia simplesmente dizer não!
- Você está certa - retrucou Strathmore. - E foi exactamente por isso que eu liguei para ele. Não podia me dar ao luxo de...
- O director por acaso sabe que você mandou um civil?
- Susan - Strathmore estava claramente medindo suas palavras, beirando o limite de sua paciência. - O director não está envolvido. Ele não sabe de nada a respeito disso.
Susan olhou para o comandante, perplexa. Como se aquela pessoa que estava ali, falando com ela, subitamente fosse um completo estranho. Ele havia mandado seu noivo - um professor universitário - em uma missão da NSA e, ainda por cima, não havia notificado o director sobre a maior crise na história da organização.
- Leland Fontaine não foi notificado?
O pavio de Strathmore havia chegado ao fim. Ele explodiu.
- Susan, chega. Agora ouça aqui! Eu chamei você porque precisava de uma aliada e não de um inquérito! Tive uma manhã infernal. Fiz o download do arquivo de Tankado na noite passada e fiquei sentado, ao lado da impressora, durante horas, esperando e rezando para que o TRANSLTR pudesse quebrar o código. Pela manhã tive que engolir minha honra e liguei para o director. Não preciso dizer o quão agradável esta ligação seria para mim: "Bom dia, senhor. Perdoe-me por tê-lo acordado. Ah, sim, estou ligando só para dizer que o TRANSLTR acaba de ficar obsoleto. É por conta de um algoritmo que minha equipe de criptógrafos altamente treinada e bem paga jamais chegou perto de programar." - Strathmore terminou a frase com um soco na mesa.
Susan ficou congelada, em completo silêncio. Em dez anos, vira o chefe perder a calma pouquíssimas vezes, mas nunca com ela.
Dez segundos depois, os dois continuavam em silêncio. Finalmente Strathmore sentou-se, e Susan ouviu sua respiração pesada voltar gradualmente ao normal. Quando ele finalmente falou, sua voz tinha um tom frio, calmo e controlado.
- Infelizmente - disse Strathmore, em voz baixa -, o director se encontra na América do Sul, em um encontro com o presidente da Colômbia. Como não haveria absolutamente nada que ele pudesse fazer de lá, eu tinha duas opções: pedir que cancelasse seu encontro e voltasse ou então lidar com isso por conta própria. - Seguiu-se outro longo silêncio. Strathmore finalmente olhou para Susan, visivelmente esgotado. Seu rosto se descontraiu, suavizando-se. - Susan, desculpe. Estou exausto. Tenho vivido um pesadelo desde ontem. Sei que você está irritada por causa do David. Não pretendia que você descobrisse desta forma, realmente achei que ele já houvesse lhe contado.
Susan sentiu-se culpada.
- Acho que também exagerei um pouco e peço desculpas. David foi uma boa escolha.
Strathmore concordou, distante.
- Ele estará de volta esta noite.
Susan pensou em todas as coisas pelas quais o comandante estava passando: a pressão de supervisionar o trabalho com o TRANSLTR, as longas jornadas sem nunca descansar e as infindáveis reuniões. Diziam que sua mulher, com quem era casado há 30 anos, estava querendo se separar. Além disso, agora surgia o Fortaleza Digital, a maior ameaça aos serviços de inteligência que a NSA já havia encontrado em sua história, e ele tinha que resolver tudo sozinho. Era razoável que parecesse estar prestes a ter um colapso nervoso.
- Considerando-se as circunstâncias, eu acho que você deveria chamar o director - disse Susan.
Strathmore sacudiu a cabeça, o suor escorrendo pela testa.
- Não estou disposto a colocar a segurança do director em perigo ou correr o risco de um vazamento de informações se tentar contactá-lo. É uma grande crise, mas não há nada que ele possa fazer.
Susan sabia que ele estava certo. Mesmo em momentos como aquele, Strathmore mantinha total clareza de pensamentos.
- Você já pensou em falar com o presidente?
- Sim, mas também concluí que não era uma boa idéia.
Susan havia chegado à mesma conclusão. Os oficiais seniores da NSA tinham o direito de lidar com emergências comprovadas no setor de inteligência sem conhecimento do executivo. A NSA era a única organização de inteligência dos Estados Unidos que tinha carta branca para agir e completa independência em relação à esfera federal. Strathmore muitas vezes se valia desse direito, pois preferia fazer suas "mágicas" sem a interferência de outros.
- Comandante - argumentou ela -, essa crise é grande demais para que você lide com ela sozinho. Você deveria colocar mais alguém a par do que está acontecendo.
- Susan, a existência do Fortaleza Digital tem enormes implicações em relação ao futuro de nossa organização. Não tenho a intenção de falar directamente com o presidente, passando por cima do director. Temos uma crise e estou lidando com ela. - Olhou fundo para Susan. - Eu sou o vice-diretor de operações. - Um sorriso apagado surgiu em sua face. - E, além disso, não estou sozinho. Conto com Susan Fletcher em minha equipe.
Susan lembrou-se por que respeitava tanto Strathmore. Durante 10 anos, nos momentos calmos ou nos difíceis, ele sempre havia traçado o caminho para ela. Com firmeza, sem hesitar. Era a sua dedicação que mais a impressionava, sua inabalável lealdade a seus princípios, seu país e seus ideais. O comandante Trevor Strathmore era um porto seguro em um mundo de decisões impossíveis.
- Você está no meu time, não está? - perguntou ele. Susan sorriu.
- Sim, senhor, estou 100% ao seu lado!
- Ótimo. Agora podemos voltar a trabalhar?
CAPÍTULO
12
David Becker já tinha estado em funerais antes e visto defuntos, mas havia algo de particularmente incômodo em relação a este. Não era um cadáver imaculadamente limpo e penteado deitado em um caixão revestido. Esse corpo havia sido despido e jogado, sem a menor cerimônia, em uma mesa de alumínio. Os olhos ainda não possuíam aquela expressão vazia, sem vida. Em vez disso, estavam virados para cima, olhando para o teto, congelados em uma expressão sinistra de terror e arrependimento.
- Dónde están sus efectos? - perguntou Becker, em castelhano fluente.
- Onde estão seus pertences?
- Allí - respondeu o tenente de dentes amarelados, apontando para um balcão onde estavam as roupas e outros objetos pessoais do morto.
- Es todo? Isso é tudo?
- Sí.
Becker pediu uma caixa de papelão para colocar as coisas. O tenente saiu rapidamente para procurar uma.
Era sábado à tarde e, oficialmente, o necrotério de Sevilha estava fechado. O jovem tenente havia deixado Becker entrar por ordens directas do chefe da Guardia de Sevilha - aparentemente o visitante americano tinha amigos influentes.
Becker vasculhou a pilha de roupas. Havia um passaporte, uma carteira e os óculos, que estavam enfiados em um dos sapatos. Também encontrou uma pequena mochila que a Guardia tinha recolhido no hotel onde o homem estava hospedado. As ordens de Becker eram claras: Não toque em nada. Não leia nada. Traga tudo de volta. Tudo. Não deixe nada de lado.
Ele olhou para a pilha e ficou imaginando o que a NSA queria com aquele monte de lixo.
O tenente voltou com uma pequena caixa, e Becker começou a colocar as roupas dentro dela.
O policial bateu na perna do cadáver.
- Quien es? Quem é ele?
- Não faço idéia.
- Parece chinês.
Japonês, pensou Becker.
- Pobre coitado. Ataque cardíaco, não foi?
Becker assentiu, sem prestar atenção.
- Foi o que me disseram.
- O sol de Sevilha pode ser cruel. Tenha cuidado ao andar por aí amanhã.
- Obrigado pelo conselho, mas voltarei para casa ainda hoje - disse Becker. O policial ficou surpreso.
- Mas você acabou de chegar!
- Eu sei, mas o sujeito que está pagando minha viagem tem pressa de receber essas coisas.
O tenente ficou ofendido de uma forma que só um espanhol poderia ficar.
- Você quer dizer que não vai conhecer Sevilha?
- Estive aqui alguns anos atrás e gosto da cidade. Adoraria ficar.
- Você já viu La Giralda?
Becker acenou que sim. Ele não chegara a subir na antiga torre moura, mas a visitara.
- E o Alcazar?
Becker balançou a cabeça outra vez, lembrando-se da noite estrelada em que tinha ouvido Paco de Lucia tocar seu violão flamenco nos jardins da fortaleza do século XV. Gostaria de já ter conhecido Susan naquela época.
- E, claro, há Cristóvão Colombo - gabou-se o policial. - Ele está enterrado em nossa catedral.
Becker olhou para ele.
- Mesmo? Achei que estivesse enterrado na República Dominicana.
- Ora, claro que não! Quem espalha essas besteiras por aí? O corpo de Colombo está aqui, na Espanha! Pensei ter ouvido você dizer que estudou na universidade.
Becker não lhe deu atenção.
- Devo ter perdido essa aula.
- A Igreja espanhola tem grande orgulho de suas relíquias!
A Igreja espanhola. Becker sabia que havia apenas uma Igreja na Espanha, a Igreja Católica Apostólica Romana. O catolicismo era mais forte lá do que no próprio Vaticano.
- É claro que não temos todo o seu corpo - acrescentou o tenente. - Solo el escroto.
Becker parou de empacotar as coisas e olhou com curiosidade para o homem. Solo el escroto? Procurou não fazer uma careta.
- Apenas o seu testículo?
- Sim. Quando a Igreja obtém os restos mortais de um grande homem, eles o consagram e depois distribuem as relíquias por diversas catedrais para que todos possam admirar seu esplendor - contou, orgulhoso.
- E vocês ficaram com o... - Becker reprimiu um riso.
- Oye! É uma parte muito importante! - retrucou o oficial. - Não é como se tivéssemos uma costela ou um dedo, como aquelas igrejas da Galícia! Você realmente deveria ficar em Sevilha e ver as relíquias.
Becker assentiu, por polidez.
- Talvez eu passe por lá quando estiver de partida.
- Mala suerte - respondeu o policial. - Que azar. A catedral estará fechada até a primeira missa de amanhã cedo.
- Então vou deixar para a próxima - Becker sorriu, pegando a caixa. - É melhor eu ir andando. Meu vôo está me esperando. - Deu uma última olhada ao redor.
- Você quer uma carona até o aeroporto? - perguntou o tenente. – Tenho uma moto Guzzi parada aí em
frente.
- Não, obrigado, posso pegar um táxi.
Na época da faculdade, Becker quase morreu dirigindo uma motocicleta. Por isso, não tinha a menor intenção de subir em outra moto, não importava quem estivesse ao volante.
- Como quiser - disse o outro, caminhando até a porta. - Vou apagar as luzes.
Becker colocou a caixa sob o braço. Peguei tudo mesmo? Olhou uma última vez para o corpo. Estava completamente nu, de costas sobre a mesa, sob uma luz fluorescente. Nada podia estar escondido. Becker se pegou olhando novamente para a estranha deformação nas mãos. Observou por alguns instantes, prestando atenção.
O policial apagou as luzes e a sala ficou escura.
- Espere um pouco - disse Becker. - Acenda as luzes de novo.
As luzes piscaram e se acenderam.
Ele deixou a caixa no chão e caminhou até o corpo. Agachou-se e apertou os olhos, fitando a mão esquerda do homem.
O policial também olhou.
- Bem feio, não?
Mas não era a deformidade que Becker olhava. Ele havia visto outra coisa.
Virou-se para o tenente e perguntou:
- Você tem certeza de que todos os pertences estão nesta caixa?
- Sim, só recolhemos isso - ele confirmou.
Becker ficou parado algum tempo, com as mãos nos quadris. Depois pegou a caixa no chão, levou-a de volta ao balcão e tirou que estava dentro. Examinou tudo cuidadosamente, revirando cada peça de roupa. Esvaziou os sapatos e bateu neles, como se tentasse remover uma pedrinha. Depois de repetir sua busca uma segunda vez, deu um passo para trás e ergueu as sobrancelhas.
- Algum problema? - perguntou o tenente.
- Sim, algo está faltando.
CAPÍTULO
13
Tokugen Numataka estava em seu luxuoso escritório de cobertura e olhava Tóquio estender-se a seu redor. Seus empregados e competidores o conheciam como akuta same - o "tubarão assassino". Durante três décadas foi o melhor na hora de prever os movimentos do mercado, fez as melhores ofertas e investiu mais pesado em propaganda e marketing do que todos os seus competidores japoneses. Agora estava prestes a se tornar um gigante também no mercado internacional.
Estava quase fechando o maior negócio de sua vida, algo que faria da Numatech Corp uma Microsoft do futuro. Seu sangue fervia com a adrenalina. Negócios eram guerra, e guerra era excitante.
Apesar das suspeitas iniciais, quando recebera o telefonema três dias atrás, ele agora sabia que era para valer. Havia sido abençoado com myouri - boa sorte. Era o escolhido dos deuses.
- Tenho uma cópia da chave do Fortaleza Digital - disse seu interlocutor, com sotaque americano. - Quer comprá-la?
Numataka quase caiu na gargalhada. Sabia que aquilo era alguma artimanha. A Numatech Corp havia feito ofertas generosas para obter o novo algoritmo de Ensei Tankado. Agora, um de seus competidores estava armando alguma jogada, tentando descobrir o valor da oferta.
- Você tem a chave? - disse Numataka, fazendo de conta que estava interessado.
- Sim. Meu nome é North Dakota.
Numataka segurou outra risada. Todos sabiam a respeito de North Dakota, pois Ensei Tankado havia falado à imprensa sobre seu parceiro secreto. Ter escolhido um parceiro foi um movimento inteligente da sua parte. Mesmo no Japão, as práticas de negócios haviam se tornado desonrosas. Tankado não estava seguro. Mas, da forma como ele preparara tudo, qualquer movimento em falso de alguma empresa excessivamente ambiciosa faria com que a chave fosse publicada na web, prejudicando todo o mercado.
Numataka olhou a fumaça de seu charuto Umami subindo no ar e resolveu levar adiante aquela charada patética.
- Então você quer vender sua chave? Mas que interessante. Posso saber o que Ensei Tankado pensa a respeito?
- Não tenho nenhuma lealdade ao Sr. Tankado. Ele foi tolo ao confiar em mim. Essa chave vale centenas de vezes mais do que ele está me pagando para mantê-la comigo.
- Lamento - disse Numataka. - A sua chave sozinha não vale nada. Quando Tankado descobrir o que você fez, ele irá publicar a cópia dele, e todo o mercado terá livre acesso ao código.
- Você irá receber as duas chaves - disse a voz. - Tanto a de Tankado quanto a minha.
Numataka cobriu o telefone e riu. Àquela altura não podia deixar de perguntar... - Quanto você está pedindo pelas duas chaves?
- Vinte milhões de dólares americanos.
Vinte milhões era quase exatamente o valor que Numataka havia oferecido. - Vinte milhões? - Ele engoliu em seco. - Isso é um ultraje!
- Eu vi o algoritmo. Posso assegurá-lo de que vale mais do que isso.
Não me diga, pensou Numataka. Vale dez vezes mais do que isso.
- Infelizmente - disse ele, cansando-se do jogo -, nós dois sabemos que Tankado jamais concordaria com isso. Pense nas repercussões legais que teria. Houve um silêncio profundo do outro lado da linha.
- E se Tankado não estivesse mais na jogada?
Numataka quis rir, mas notou uma estranha determinação naquela voz.
- Se Tankado não estivesse mais na jogada? - Numataka pensou um pouco. - Então eu e você fecharíamos negócio.
- Tornarei a ligar - disse a voz. A linha ficou muda.
CAPÍTULO
14
Becker olhou para o cadáver. Mesmo já tendo morrido há algumas horas, o japonês continuava com um tom avermelhado em seu rosto pelo excesso de sol. O resto do corpo era de um amarelo pálido, excepto uma pequena área onde havia um hematoma de uma tonalidade mais escura, exatamente sobre seu coração.
Provavelmente por conta de uma tentativa de ressuscitação ou massagem cardíaca, pensou Becker. Pena que não tenha funcionado.
Voltou a examinar as mãos do cadáver. Nunca vira nada igual antes. Cada uma tinha apenas três dedos, todos eles retorcidos. Mas Becker estava olhando uma outra coisa.
- Ora, ora, quem diria... - disse o tenente do outro lado da sala. - Ele é japonês, e não chinês.
Becker olhou para ele. O policial estava folheando o passaporte do defunto.
- Preferia que você não mexesse nisso - pediu Becker. Não toque em nada. Não leia nada.
- Ensei Tankado... nascido em Janeiro...
- Por favor - disse Becker, com polidez -, coloque-o de volta.
O policial olhou para o passaporte por mais alguns instantes e depois jogou-o de volta na pilha de pertences.
- Esse cara tem um visto classe 3. Ele poderia ficar por aqui durante alguns anos. Becker bateu na mão da vítima com uma caneta.
- Talvez vivesse aqui.
- Não pode ser. A chegada foi semana passada.
- Talvez estivesse de mudança para cá - sugeriu Becker secamente.
- É, pode ser. Foi um mau começo. Insolação e ataque cardíaco. Pobre coitado.
Becker ignorou o policial e continuou estudando a mão.
- Você tem certeza de que ele não estava usando nenhuma jóia quando morreu?
- Jóias? - O policial olhou para ele, espantado.
- É, venha ver isso.
O tenente atravessou o quarto. A pele da mão esquerda de Tankado estava queimada de sol, excepto em uma pequena faixa em torno do dedo menor. Becker apontou para aquela faixa.
- Você vê como a pele não está bronzeada aqui? É como se ele estivesse usando um anel.
O tenente parecia surpreso.
- Um anel? - Ficou confuso. Examinou o dedo do cadáver. - Meu Deus – ele disse, rindo. - Então a história era verdadeira?
Becker teve um mal pressentimento.
- Como assim?
- O senhor que ligou para a emergência. Era um turista canadense, acho eu. Ficava balbuciando coisas no pior espanhol que já ouvi.
- E ele disse que o Sr. Tankado estava usando um anel?
- Isso. - Puxou do bolso um cigarro, olhou para o cartaz de PROIBIDO FUMAR, mas acendeu-o assim mesmo. - Talvez eu devesse ter falado a respeito antes, mas o sujeito parecia ser um louco completo.
Becker continuou olhando para ele, pensativo. As palavras de Strathmore ecoavam em seus ouvidos: Quero tudo que estava com Ensei Tankado. Tudo. Não deixe nada para trás, nem mesmo um pequeno pedaço de papel.
- E onde está o tal anel agora? - perguntou Becker.
O oficial deu um tragada profunda no cigarro.
- É uma longa história.
Algo dizia a Becker que aquilo não era uma boa notícia.
- Vamos lá, sou todo ouvidos.
CAPÍTULO
15
Susan Fletcher sentou-se em frente a seu terminal de computador dentro do Nodo 3. O Nodo 3 era a sala privada dos criptógrafos, acusticamente vedada e um pouco acima do salão principal. Uma ampla divisória de vidro espelhado de cinco centímetros de espessura dava aos criptógrafos um panorama do Departamento de Criptografia, ao mesmo tempo que impedia a visão de quem estivesse de fora.
Nos fundos da vasta sala do Nodo 3 havia 12 terminais dispostos em um círculo perfeito. A disposição circular era para encorajar o intercâmbio intelectual entre os criptógrafos e para lembrá-los de que faziam parte de uma equipe maior. Algo como os Cavaleiros da Távola Redonda da Criptografia. Ironicamente, muitos segredos eram mantidos dentro do Nodo 3.
Apelidado de "Sala de Jogos': o Nodo 3 não tinha nada do ar ascético do restante da Criptografia. A sala
foi projectada para fazer com que todos se sentissem em casa. Tinha carpetes macios, sistema de som de alta qualidade, uma geladeira sempre cheia, uma pequena cozinha e uma cesta de basquete em miniatura. A NSA tinha uma filosofia clara em relação à Criptografia: não invista bilhões de dólares em um computador para quebrar códigos se você não puder atrair os melhores cérebros para usá-lo.
Susan tirou seus sapatos Salvatore Ferragamo e afundou os pés no carpete macio. Os funcionários do governo que recebiam altos salários eram encorajados a manter certa discrição quanto às suas posses. Em geral, isso não era problema para Susan, que estava feliz com seu modesto dúplex, seu sedan Volvo e suas roupas clássicas. Sapatos, contudo, eram outra história. Mesmo na época da faculdade ela economizava para comprar os melhores.
Sua tia uma vez lhe dissera: "Você nunca irá alcançar as estrelas se seus pés estiverem doendo. E, quando você chegar aonde quer, é melhor que esteja com uma boa aparência:' .
Susan alongou-se confortavelmente e então se concentrou na tarefa que tinha em mãos. Colocou na tela o seu tracer e preparou-se para configurá-lo. Deu uma olhada rápida no endereço de e-mail que Strathmore havia lhe dado:
NDAKOTA@ara.anon.org
O homem que se intitulava North Dakota tinha uma conta secreta, mas seu anonimato não iria durar muito. O tracer passaria pelo ARA, seria remetido para North Dakota e então mandaria de volta informações contendo o verdadeiro endereço desse homem na Internet.
Se tudo corresse bem, o programa iria localizar North Dakota rapidamente, e Strathmore poderia confiscar a chave. Bastaria então esperar por David. Quando ele encontrasse a chave de Tankado, ambas seriam destruídas. Assim, a pequena bomba-relógio de Tankado se tornaria inócua - um explosivo mortífero, mas sem detonador.
Susan conferiu novamente o endereço na folha de papel e digitou os dados necessários. Ela riu consigo mesma ao pensar que Strathmore tivera dificuldades para enviar o tracer. Aparentemente ele enviou o programa duas vezes e, nos dois casos, recebeu de volta o endereço de Tankado, em vez do endereço de North Dakota. Era um engano simples, pensou Susan: Strathmore provavelmente confundiu os campos de dados, e o tracer foi procurar a conta errada.
Susan terminou de configurar seu programa e apertou ENTER. O computador emitiu um bipe:
TRACER ENVIADO
Agora começava o jogo de espera.
Susan expirou longamente. Sentia-se culpada por ter sido dura com o comandante. Se havia alguém realmente preparado para cuidar dessa ameaça por conta própria, era Strathmore. De alguma forma ele sempre se saía bem quando desafiado.
Seis meses atrás, quando a EFF divulgou uma notícia de que um submarino da NSA estava espionando cabos telefônicos, Strathmore deixou vazar, com toda a tranqüilidade, uma história conflitante de que o submarino estava, na verdade, enterrando ilegalmente lixo radioactivo. A EFF e os ambientalistas passaram tanto tempo discutindo qual das versões era verdadeira que a mídia acabou se cansando da história e esqueceu o assunto.
Todas as jogadas de Strathmore eram cuidadosamente planejadas. Ele contava com a ajuda de seu computador quando estava criando e revisando seus planos. Assim como muitos outros que trabalhavam na NSA, ele usava um software desenvolvido pela própria agência chamado BrainStorm - uma forma sem riscos de desenvolver cenários hipotéticos dentro do ambiente seguro de um computador.
BrainStorm era um programa experimental que usava inteligência artificial para fazer aquilo que seus
criadores descreviam como "simulação de causa e efeito”: Ele foi idealizado originalmente para ser usado em campanhas políticas como uma forma de gerar modelagens, em tempo real, de um determinado ambiente político. Alimentado por enormes quantidades de dados, o programa criava uma rede de relacionamentos. Essa rede era um modelo hipotético de interacções entre as variáveis políticas, incluindo as figuras públicas de relevância naquele momento, suas equipes, seus vínculos pessoais umas com as outras, tópicos polêmicos e motivações dos indivíduos, com diferentes pesos atribuídos a variáveis como sexo, étnia, dinheiro e poder. O usuário poderia, então, especificar qualquer evento imaginário, e o BrainStorm iria predizer como este evento afectaria "o ambiente':
O comandante trabalhava sempre com o BrainStorm, mas não por motivos políticos. Usava-o como um dispositivo de TFM: Tempo, Fluxograma e Mapeamento. Nesse contexto, era um software preciso para delinear estratégias complexas e prever fraquezas. Susan suspeitava que, no computador de Strathmore, havia alguns estratagemas escondidos que poderiam mudar o mundo.
Sim, fui dura demais com ele. Seus pensamentos foram cortados pelo ruído suave das portas do Nodo 3 se abrindo. Strathmore entrou apressadamente.
- Susan, David acabou de ligar. Houve um imprevisto.
CAPÍTULO
16
- Um anel? - Susan parecia desconfiada.-Tankado estava usando um anel?
- Sim. Tivemos sorte por David ter notado. Ele foi realmente competente. - Mas você está atrás de uma chave e não de jóias.
- Claro, mas acho que são a mesma coisa - disse Strathmore.
Susan olhou para ele, sem entender.
- É uma longa história.
Ela apontou para o tracer que estava em sua tela.
- Bem, não vou a lugar algum.
Strathmore suspirou profundamente e começou a andar de um lado para o outro, enquanto explicava.
- Parece que havia testemunhas quando Tankado morreu. De acordo com o policial que estava no necrotério, um turista canadense ligou para a Guardia esta manhã, em pânico. Disse que um japonês estava tendo um ataque cardíaco no parque. Quando o policial chegou, chamou os para-médicos pelo rádio, mas Tankado já estava morto. Depois que o corpo foi levado para o necrotério, o policial tentou fazer com que o turista lhe contasse o que havia acontecido. Tudo o que o velho fez foi repetir algo sobre um anel que Tankado tinha lhe dado pouco antes de morrer.
Susan olhou para ele, céptica. - Tankado deu um anel?
- Sim. Na verdade, parece que ele quase enfiou o anel na cara desse senhor, como se estivesse implorando a ele que o guardasse. Creio que o velho pôde ver o anel bem de perto. - Strathmore parou de andar e se virou. - Ele disse que o anel era entalhado, que continha algum tipo de inscrição.
- Uma inscrição?
- De acordo com ele, não era inglês. Strathmore fez uma pausa e olhou para ela.
- Japonês?
Ele sacudiu a cabeça.
- Também foi a primeira coisa em que pensei. Mas, preste atenção nisso, o canadense disse que as letras não faziam sentido. Claro que os caracteres japoneses jamais seriam confundidos com nosso alfabeto latino. Ele disse que o que estava gravado se parecia com um gato se divertindo em uma máquina de escrever.
- Comandante, você não acredita realmente que...
Strathmore interrompeu-a.
- Susan, está na cara. Tankado gravou a chave do Fortaleza Digital em seu anel. O ouro é durável. Não importa se ele estivesse dormindo, tomando banho ou comendo, a chave estaria sempre com ele, pronta para ser divulgada a qualquer instante.
Susan continuava em dúvida.
- No dedo dele? Tão abertamente assim?
- E por que não? A Espanha não é exactamente um centro mundial de criptografia. Ninguém teria a menor idéia do que aquelas letras significavam. Além disso, se for uma chave-padrão de 64 bits, mesmo em plena luz do dia ninguém poderia ler e memorizar todos os caracteres.
Susan parecia perplexa.
- E Tankado deu esse anel a um completo estranho, pouco antes de morrer? Por quê?
- O que você acha? - Strathmore olhou fundo para ela.
Levou apenas um instante para que Susan compreendesse. Seus olhos se arregalaram.
- Faz sentido, não? - disse o comandante. - Tankado estava tentando se livrar do anel. Achou que nós o havíamos assassinado. Sentiu que estava morrendo e, logicamente, acreditou que fôssemos os responsáveis. O timing era muito perfeito para ser mera coincidência. Achou que tínhamos conseguido atingi-lo usando veneno ou alguma substância de ação lenta que provocasse uma parada cardíaca. Ele também sabia que só ousaríamos matá-lo se já tivéssemos encontrado North Dakota.
Susan sentiu um frio na espinha.
- Naturalmente - disse em voz baixa. - Tankado achou que havíamos neutralizado seu "seguro de vida' para que pudéssemos matá-lo também.
As coisas estavam perfeitamente claras para Susan. A morte de Tankado era tão conveniente para a NSA que, ao sofrer o ataque cardíaco, ele presumiu que a agência tinha tramado algo contra ele. Seu último instinto foi o de vingança. Ensei deu seu anel como um último esforço desesperado para tomar a chave pública. Agora, inacreditavelmente, algum turista canadense possuía, sem suspeitar, a chave para o mais poderoso algoritmo de encriptação da história.
Susan respirou fundo, depois perguntou:
- E onde está o canadense agora?-
- Este é o problema - Strathmore franziu o rosto.
- O policial não sabe onde ele está?
- Não sabemos ao certo. A história do canadense era tão absurda que o policial pensou que ele estivesse em estado de choque ou fosse meio maluco. Então colocou o turista na carona de sua motocicleta para levá-lo de volta ao hotel. Mas o canadense devia estar meio tonto porque não se segurou na moto e caiu assim que eles partiram. Pelo relatório, bateu com a cabeça no chão e quebrou o pulso.
- O quê? - espantou-se Susan.
- O policial queria levá-lo para um hospital, mas o turista estava furioso e disse que preferia andar de volta até o Canadá a subir de novo naquela motocicleta. Então tudo que o policial fez foi andar com ele até uma pequena clínica pública que ficava perto do parque e deixá-lo lá para ser tratado.
Susan mordeu os lábios.
- Suponho que não seja necessário perguntar para onde David está indo agora.
CAPÍTULO
17
David Becker atravessou o calçamento escaldante de tijolos da Plaza de España. A sua frente, El Ayuntamiento - o antigo prédio da Câmara - erguia-se por entre as árvores em uma área de 12 mil metros quadrados de azulejos azuis e brancos. Sua fachada trabalhada em espirais e entalhes mouriscos dava a impressão de que ele havia sido projectado com a intenção de ser um palácio, mais do que um prédio público. Apesar de seu histórico de golpes militares, incêndios e enforcamentos públicos, a maioria dos turistas ia até lá porque os panfletos locais indicavam que era ali que tinha sido filmado o quartel-general dos ingleses em Lawrence da Arábia. Tinha sido bem mais barato para a Columbia Pictures filmar na Espanha do que no Egipto, e a influência moura na arquitectura de Sevilha era forte o suficiente para convencer os espectadores de que estavam vendo um prédio situado no Cairo.
Becker ajustou seu Seiko para o horário local: 21hl0. Ainda era fim de tarde pelos padrões locais: um espanhol que se preze jamais iria jantar antes do pôr-do-sol, o que na Andaluzia dificilmente acontecia antes das 22h.
Mesmo no calor do início da noite, Becker atravessou o parque a passos largos e rápidos. Strathmore parecera ainda mais preocupado desta vez do que pela manhã. Suas novas ordens não deixavam nenhum espaço para interrogações: encontre o canadense, pegue o anel. Faça o que for necessário, mas pegue aquele anel.
Becker tentou imaginar o que poderia haver de tão importante em um anel entalhado. Mas Strathmore não deu nenhuma pista, e ele achou melhor não perguntar.
Era fácil encontrar a clínica. Ficava do outro lado da Avenida Isabela Católica, com o símbolo universal de uma cruz vermelha dentro de um círculo branco pintado no teto. O policial da Guardia havia deixado o canadense lá, horas atrás. Um pulso quebrado e uma batida na cabeça. Com certeza àquela altura o paciente já teria recebido alta. Becker estava torcendo para que a clínica tivesse guardado os dados de internação - alguma informação sobre onde o paciente poderia ser encontrado, um telefone ou algo assim. Com um pouco de sorte, Becker pensou que poderia achar o canadense, pegar o anel e retornar para casa sem maiores complicações. Strathmore lhe dissera para usar o dinheiro que havia recebido para comprar o anel, se fosse preciso.
- Depois, eu irei reembolsá-lo - garantiu o comandante. - Não é preciso - respondeu Becker.
Ele pretendia devolver tudo, de qualquer forma. Não tinha ido à Espanha por dinheiro, mas por Susan. O comandante Trevor Strathmore era o mentor e guardião de Susan, e ela lhe devia muito. Um passeio de um dia era o mínimo que Becker podia fazer.
Infelizmente, as coisas naquela manhã não haviam saído exactamente como David planejara. Ele achou que conseguiria falar com Susan pelo telefone para explicar-lhe tudo. Chegou a pensar em pedir ao piloto que chamasse Strathmore pelo rádio para que pudesse mandar uma mensagem para a namorada, mas não achou uma boa idéia envolver o vice-director em seus problemas amorosos.
Becker já havia tentado falar com Susan três vezes. Primeiro, enquanto estava no jacto, usando seu celular, que infelizmente estava fora de área. Depois, de um telefone público no aeroporto, e, finalmente, do necrotério. Susan não estava em casa, e David não sabia onde ela poderia estar. A secretária electrônica atendeu, mas ele não deixou mensagem. Não dava para dizer o que queria para uma máquina.
Quando se aproximou da avenida, viu uma cabine perto da entrada do parque. Correu até lá, pegou o fone e usou seu cartão para fazer a chamada. Houve uma longa pausa enquanto a chamada internacional se completava. Finalmente o telefone começou a tocar.
Vamos Susan, atenda.
Depois de cinco toques, a chamada foi atendida: "Oi. Você ligou para Susan Fletcher. Não estou em casa agora, mas se você deixar seu nome..:'
Becker ficou ouvindo a mensagem. Onde é que ela está? A esta altura, Susan já entrou em pânico. Ela teria ido a Stone Manor sem mim?, pensou. Ouviu o bipe do outro lado.
"Oi. Sou eu, David:' Parou, sem saber muito bem o que dizer. Uma das coisas que mais detestava em
secretárias eletrônicas era que, se você parasse muito tempo para pensar, elas cortavam sua chamada. "Desculpe por não ter ligado antes”, disse, bem a tempo. Pensou se deveria contar o que estava acontecendo, mas concluiu que não seria seguro. "Ligue para o comandante Strathmore. Ele irá lhe explicar tudo." O coração de Becker batia acelerado. Isso é absurdo, ele pensou. “Eu te amo” disse rapidamente e depois desligou.
Becker esperou que alguns carros passassem. Pensou que Susan provavelmente teria imaginado as piores coisas possíveis, porque ele raramente deixava de ligar quando prometia. Atravessou a avenida de quatro pistas. Entrar e sair, falou baixinho para si mesmo. Entrar e sair. Estava preocupado demais para notar um homem usando óculos de armação de metal que o observava do outro lado da rua.
CAPÍTULO
18
De pé em frente à enorme janela de blindex de seu escritório em Tóquio, Numataka admirava a vista enquanto dava longas baforadas em seu charuto, sorrindo para si mesmo. Quase não acreditava em sua sorte. Havia falado com o americano novamente, e, se tudo estivesse correndo de acordo com o cronograma, Ensei Tankado já teria sido eliminado e sua cópia da chave recuperada.
Era irônico, pensou Numataka, que ele fosse ficar com a chave de Ensei Tankado. Tokugen Numataka havia encontrado Tankado uma vez, há muitos anos. Recém-saído da universidade, o jovem programador foi procurar emprego na Numatech Corpo Mas Numataka não quis contratá-lo. Ele não duvidara de que Tankado era de facto brilhante, porém, na época, havia outras questões. Apesar das mudanças pelas quais o Japão estava passando, Numataka havia sido treinado segundo as regras da velha escola: vivia de acordo com o código de menboko - honra e aparências. Imperfeições não deveriam ser toleradas. Se ele contratasse um deformado, cobriria sua empresa de vergonha. Colocou de lado o currículo de Tankado sem pestanejar.
Numataka consultou novamente o relógio. O americano North Dakota já deveria ter ligado. Sentiu uma ponta de nervosismo. Esperava que nada tivesse saído errado.
Se as chaves fossem verdadeiras, conforme o prometido, iriam abrir o produto mais desejado da era da informática - um algoritmo de encriptação digital totalmente invulnerável. Numataka poderia embutir o algoritmo em chips VLSI à prova de engenharia reversa, selados com spray, e depois comercializá-los em massa para todo o mundo: fabricantes de computadores, governos, indústrias e, talvez, até os mercados mais sombrios...
Numataka sorriu. Parece que ele havia mais uma vez caído nas graças das shichigosan - as sete divindades da boa sorte. A Numatech Corp. estava prestes a controlar a única cópia da chave do Fortaleza Digital. Vinte milhões de dólares era muito dinheiro, mas, considerando-se o produto, era a barganha do século.
CAPÍTULO 19
- E se houver mais alguém atrás do anel? - perguntou Susan, aflita. - David pode estar correndo perigo?
Strathmore sacudiu a cabeça.
- Ninguém mais sabe que o anel existe. É por isso que eu mandei David.
Queria que as coisas permanecessem secretas. Espiões curiosos não costumam ficar seguindo pessoas que dão aulas de espanhol.
- Ele é professor universitário - corrigiu Susan, mas logo em seguida se arrependeu do comentário. Algumas vezes ela tinha a sensação de que, para o comandante, David parecia não ser bom o suficiente, e
que ele pensava, no fundo, que Susan poderia conseguir alguém melhor do que um mero professor.
- Comandante - ela disse, continuando o assunto -, se você deu instruções a David esta manhã usando o telefone do carro, alguém poderia ter interceptado a...
- Uma chance em um milhão - interrompeu Strathmore, com um tom de voz tranqüilizador. - Qualquer um que quisesse espionar a conversa precisaria estar bem próximo e saber exactamente o que estava procurando ouvir. - Colocou a mão no ombro dela. - Jamais teria enviado David se eu acreditasse que seria arriscado. - Ele sorriu. - Acredite em mim. Se houver qualquer sinal de perigo, envio uma equipe profissional.
As palavras de Strathmore foram pontuadas pelo som súbito de alguém batendo no vidro do Nodo 3. Ambos se viraram.
Phil Chartrukian, o técnico de SegSis, havia colado o rosto contra o vidro e estava batendo vigorosamente, enquanto fazia força para enxergar através do vidro espelhado. Estava muito agitado e dizia algo que não podia ser ouvido em razão do isolamento acústico. Parecia ter visto um fantasma.
- Que diabos Chartrukian está fazendo aqui? - Strathmore rosnou. – Ele deveria estar de folga hoje.
- Acho que temos um problema - disse Susan. - Ele provavelmente viu a tela do ExeMon.
- Mas que droga! - disse o comandante, exasperado. - Eu dei ordens directas ontem à noite para que o SegSis de plantão não viesse!
Susan não estava surpresa. Cancelar o plantão de um SegSis era completamente irregular, mas com certeza Strathmore queria privacidade total no domo. A última coisa de que ele precisava era um SegSis paranóico revirando as entranhas do Fortaleza Digital.
- Melhor abortarmos o TRANSLTR - disse Susan. - Podemos dar reset no ExeMon e dizer a Phil que ele está vendo coisas.
Strathmore cogitou a possibilidade, depois balançou negativamente a cabeça.
- Ainda não. O TRANSLTR está lidando com o código há 15 horas. Quero deixá-lo rodando pelo menos durante 24 horas.
Isso fazia sentido para Susan. O Fortaleza Digital era a primeira implementação já feita de uma função de mensagem clara circular. Talvez Tankado tivesse deixado escapar alguma coisa. Talvez o TRANSLTR pudesse quebrar o código em 24 horas. Ainda assim, Susan tinha suas dúvidas.
Chartrukian continuava a bater no vidro.
- Vamos inventar uma desculpa - disse ele em voz baixa. - Me dê cobertura. O comandante respirou fundo e então se dirigiu para as portas deslizantes de vidro. O mecanismo de abertura foi activado e elas se abriram. Chartrukian quase caiu dentro da sala.
- Comandante, senhor, eu... Desculpe interrompê-Io, mas o ExeMon... Eu executei uma varredura contra vírus e...
- Phil, acalme-se - disse o comandante, enquanto pousava a mão sobre o ombro de Chartrukian de forma tranqüilizadora. - Mais devagar. Qual o problema?
Ouvindo o tom de voz calmo de Strathmore, ninguém seria capaz de pensar que o mundo estava desabando ao seu redor. Ele deu um passo para o lado e fez sinal para que Chartrukian entrasse no santuário do Nodo 3. O SegSis entrou, hesitante, como um cão bem treinado que conhece seus limites.
Pela cara espantada de Chartrukian, era óbvio que ele nunca tinha visto a sala por dentro. Fosse qual fosse o motivo de seu pânico, este ficou momentaneamente esquecido. Ele observou, impressionado, o interior luxuoso, os terminais privativos, os sofás, as estantes, a iluminação indireta. Quando deu de cara com a rainha suprema da Criptografia, Susan Fletcher, rapidamente desviou seus olhos. Susan o deixava absolutamente intimidado. A mente dela funcionava em outro plano. Ela era fantasticamente bela, e tudo que ele dizia soava confuso quando ela estava por perto. A aparente displicência de Susan só tornava as coisas mais difíceis.
- Então, Phil, me diga, qual o problema? - repetiu Strathmore, abrindo a geladeira. - Quer beber algo?
- Não, é... não, obrigado, senhor. - Sua língua parecia estar grudada, e ele não tinha muita certeza se era bem-vindo ali ou não. - Senhor, creio que há um problema com o TRANSLTR.
Strathmore fechou a porta da geladeira e olhou para Chartrukian casualmente. -Ah, você está falando do ExeMon?
Chartrukian ficou atônito.
- Quer dizer que o senhor já viu?
- Claro. Está rodando há cerca de 16 horas, se não me engano. Chartrukian não sabia bem o que dizer.
- Sim, senhor, 16 horas. Mas isso não é tudo, senhor. Eu executei uma varredura contra vírus e estou obtendo alguns resultados bem estranhos.
- É? - Strathmore parecia despreocupado. - Que tipo de resultados? Susan observava, impressionada com a habilidade do comandante. Chartrukian continuou, incerto.
- O TRANSLTR está processando algo muito avançado. Os filtros nunca encontraram nada parecido. Estou preocupado imaginando que o TRANSLTR tenha encontrado um novo tipo de vírus.
- Um novo vírus? - Strathmore riu, de forma quase condescendente. - Phil, realmente admiro sua preocupação. Mas Susan e eu estamos executando um novo tipo de diagnóstico, uma função de loop, coisa bem avançada. Eu teria alertado você, mas não sabia que estava no plantão de hoje.
O SegSis tentou encobrir o que havia acontecido da melhor forma possível. - Eu troquei com o novo técnico. Fiquei com o plantão de fim de semana dele. Strathmore olhou para ele, irônico.
- Curioso. Eu falei com ele ontem à noite. Eu lhe disse que não precisava vir hoje, mas ele não me contou nada sobre mudanças no plantão.
Chartrukian sentiu um nó na garganta. Houve um silêncio tenso.
- Bem - prosseguiu Strathmore com um leve suspiro. - Parece que, lamentavelmente, houve algum engano. - Colocou novamente a mão no ombro do SegSis e levou-o em direção à porta. - A boa notícia é que você pode voltar para casa. Eu e Susan ficaremos aqui durante todo o dia. Fique tranqüilo, vamos
tomar conta da casa. Vá e aproveite seu fim de semana.
Chartrukian não sabia como reagir.
- Comandante, eu realmente acredito que deveríamos checar o...
- Phil - repetiu Strathmore de forma um pouco mais enfática -, o TRANSLTR está ok. Se sua varredura encontrou algo estranho, é porque nós colocamos algo lá. Agora, se você nos dá licença... - Strathmore afastou-se, e o SegSis entendeu o recado: seu tempo havia terminado.
Diagnóstico, que nada!, murmurou Chartrukian enquanto voltava, furioso, para o laboratório de SegSis. Que diabos de função de loop é capaz de manter três milhões de processadores ocupados durante 16 horas? Ele estava indeciso sobre se deveria ou não chamar o supervisor de SegSis. Malditos criptógrafos, pensou. São simplesmente incapazes de entender o que é segurança!
O juramento que havia feito quando se juntou à equipe de Segurança de Sistemas estava passando em sua mente. Tinha se comprometido a usar seus conhecimentos, seu treinamento e seu instinto para proteger o investimento bilionário da NSA.
- Instinto - disse ele, em tom de desafio. Não é preciso ser adivinho para saber que isso não é diagnóstico algum!
Decidido, Chartrukian dirigiu-se a seu terminal e ativou o conjunto completo de software de diagnóstico de sistema do TRANSLTR.
- Seu filhote está com problemas, comandante - resmungou ele. - Você não confia em instintos? Pois então vou encontrar uma prova.
CAPÍTULO
20
La Clínica de Salud Pública na verdade era uma antiga escola primária que havia sido reformada, mas não lembrava em nada um hospital. Era um prédio longo, com apenas um andar, grandes janelas e brinquedos de playground enferrujados na parte de trás. Becker subiu pelas velhas escadarias.
Lá dentro estava escuro e barulhento. A sala de espera se resumia a uma linha de cadeiras dobráveis de metal dispostas ao longo da parede de um corredor comprido e estreito. Um cartaz de papelão, apoiado num cavalete, indicava OFICINA, com uma seta apontando para o fim do corredor.
Becker foi andando pelo corredor pouco iluminado. Parecia um cenário fantasmagórico que havia sido montado para um filme de terror de Hollywood. Sentiu um cheiro de urina no ar. As luzes no final do corredor estavam queimadas, e tudo que se podia ver nos últimos 10 ou 15 metros eram vultos indistintos: uma mulher sangrando, um casal de jovens chorando, uma pequena menina rezando. Becker chegou ao final do corredor. A porta à sua esquerda estava entreaberta, e ele entrou. A outra sala estava totalmente vazia.
Que óptimo, resmungou Becker, fechando a porta. Onde está a maldita recepção?
Ele ouviu vozes que vinham do corredor. Seguiu o som e chegou a uma porta de vidro translúcido, atrás da qual parecia estar havendo uma discussão. Relutantemente, Becker abriu a porta. Era a recepção. Um caos completo, como ele temia.
A fila tinha cerca de dez pessoas, todas empurrando e gritando. Becker sabia que poderia passar a noite inteira ali, esperando pela ficha do canadense. Havia apenas uma secretária atrás da mesa, ouvindo as reclamações dos pacientes irritados. Ele ficou parado algum tempo na entrada, avaliando as opções. Tinha uma idéia melhor.
- Con permisso! - gritou um atendente. Uma maca passou rapidamente. Becker abriu passagem e lhe perguntou:
- Dónde está el teléfono?
Sem diminuir o passo, o homem apontou para uma porta dupla e sumiu.
Becker caminhou na direcção indicada e empurrou as portas. Entrou numa sala enorme - um antigo ginásio. O chão tinha uma cor verde desbotada e parecia entrar e sair de foco sob as luzes fluorescentes. Na parede, uma cesta de basquete pendia precariamente de seu suporte. Havia umas poucas dezenas de pacientes espalhados pelo chão em leitos baixos. No canto mais distante, logo abaixo de um placar queimado, havia um velho telefone público. Becker torceu para que funcionasse.
Enquanto andava até o telefone, procurou uma moeda em seus bolsos. Encontrou 75 pesetas em moedas de cinco. Era o troco do táxi, o suficiente para duas chamadas locais. Ele sorriu educadamente para uma enfermeira que estava de saída e finalmente chegou ao telefone. Pegou o fone e discou para Informações. Poucos segundos depois, tinha obtido o número da recepção da clínica.
Fosse qual fosse o país, parecia haver uma verdade absoluta no que dizia respeito a recepcionistas: não podiam suportar o som de um telefone tocando sem que alguém atendesse. Nunca importava quantas pessoas estavam esperando para serem atendidas, a secretária sempre iria deixar de lado o que estivesse fazendo para responder à chamada.
Becker digitou o número. Em breve seria atendido e, com toda a certeza, não seria difícil localizar a ficha de um canadense com um pulso quebrado e uma concussão. Só deveria haver um caso assim naquele dia. Becker supunha que a secretária não fosse querer dar o nome e o endereço do canadense para um estranho ao telefone, mas ele tinha um plano.
O telefone começou a tocar. Ele calculou que cinco toques seriam o suficiente, mas foram necessários 19.
- Clínica de Salud Pública - disse, esbaforida, a secretária.
Becker falou em espanhol, com um forte sotaque franco-americano.
- Aqui é David Becker. Trabalho na embaixada do Canadá. Um cidadão canadense foi atendido por vocês hoje. Gostaria de obter suas informações pessoais para que a embaixada possa resolver as questões de pagamento.
- Óptimo - disse a mulher. - Enviarei as informações para a embaixada nesta segunda.
- Na verdade - insistiu Becker -, eu preciso delas neste instante.
- Impossível, estamos muito ocupados - retrucou a mulher.
Becker tentou falar da forma mais oficial possível.
- É um assunto urgente. Creio que o homem quebrou o pulso e machucou a cabeça. Ele foi tratado hoje pela manhã. Deve ser fácil encontrar sua ficha.
Becker acentuou seu sotaque: suficientemente claro para transmitir o que precisava, suficientemente confuso para ser irritante. As pessoas em geral se dispunham a quebrar as regras quando ficavam irritadas.
Contudo, em vez de quebrar as regras, a mulher amaldiçoou a arrogância dos canadenses e bateu o telefone em sua cara.
Becker fechou a cara e desligou. Bola fora. A perspectiva de esperar durante horas na fila não era nada animadora. O tempo continuava passando, e o canadense poderia estar em qualquer lugar. Talvez tivesse decidido voltar para o Canadá. Ou talvez tivesse vendido o anel. Becker não podia ficar esperando horas e horas na fila. Com uma determinação renovada, ele pegou o fone e discou o mesmo número outra vez. Encostou-se na parede, enquanto a chamada era completada, e olhou para o ginásio onde estava. O telefone tocou uma vez, duas, três...
Uma descarga de adrenalina percorreu seu corpo.
Colocando o fone de volta no gancho, olhou estupefato para o leito bem à sua frente. Ajeitado em uma pilha de velhos travesseiros, havia um senhor com o pulso direito recém-engessado.
CAPÍTULO
21
O americano que estava na linha privativa de Tokugen Numataka parecia muito ansioso.
- Sr. Numataka, tenho pouco tempo.
- Certo. Suponho que você tenha conseguido as duas chaves.
- Houve um pequeno atraso - respondeu o americano.
- Isso não é aceitável- bradou Numataka. - Você disse que elas estariam em meu poder até o fim do dia!
- Ainda tenho que resolver um problema.
- Tankado está morto?
- Sim - disse a voz. - O agente que enviei matou o Sr. Tankado, mas não conseguiu pegar a chave. Tankado conseguiu passá-la para outra pessoa pouco antes de morrer. Um turista.
- Vergonhoso! - gritou Numataka. - Então como você pode me prometer acesso exclusivo a...
- Fique calmo - o americano tranqüilizou-o. - Você terá os direitos exclusivos, eu lhe dou essa garantia. Assim que a chave que está faltando for encontrada, o Fortaleza Digital será seu.
- Mas a chave pode ter sido copiada!
- Qualquer um que tiver visto a chave será eliminado.
Houve um longo silêncio. Depois Numataka voltou a falar.
- Onde a chave está agora?
- Tudo que você precisa saber é que ela será encontrada.
- Como você pode estar tão certo?
- Porque não sou o único que está procurando por ela. A inteligência americana também ouviu falar dessa chave. Por motivos óbvios, eles não querem que o Fortaleza Digital venha a público. Enviaram um homem para procurá-la. Seu nome é David Becker.
- Como você sabe de tudo isso?
- Não importa.
Numataka fez outra pausa.
- E se o Sr. Becker encontrar a chave?
- Meu agente irá tomá-la dele.
- E depois?
- Você não precisa se preocupar com isso - disse o americano, frio.
- Quando o Sr. Becker encontrar a chave, receberá a recompensa que merece.
CAPÍTULO
22
David Becker aproximou-se do leito e inclinou-separa observar o senhor que estava dormindo. O pulso direito do homem, que tinha entre 60 e 70 anos, havia sido engessado. Seus cabelos brancos estavam repartidos cuidadosamente para o lado e, no centro de sua fronte, via-se um grande machucado que descia até o olho direito.
Uma pequena batida na cabeça?, pensou, lembrando-se das palavras do tenente. Becker examinou os dedos do homem. Não havia nenhum anel. Então encostou no braço dele, sacudindo-o levemente para acordá-lo.
- Senhor? Com licença... senhor?
O homem não se moveu. Becker tentou de novo, um pouco mais alto desta vez. - Senhor?
O homem se assustou.
- Qu'est-ce... quelle heure est... - Abriu os olhos lentamente, focalizando o rosto de Becker. Estava irritado por ter sido perturbado. - Qu' est-ce que vous voulez?
Óptimo, pensou Becker, um franco-canadense! Becker sorriu para ele e disse: - Posso falar com o senhor por um instante?
Apesar de Becker falar francês perfeitamente, ele preferiu se dirigir ao velho em inglês, o idioma que esperava que fosse menos familiar para ele. Convencer um estranho completo a entregar-lhe um anel de ouro podia ser complicado. Becker achou que deveria usar qualquer vantagem que tivesse.
Houve um longo silêncio enquanto o homem tentava se situar. Ele olhou em volta e levantou um dedo alongado para ajeitar o bigode branco e desalinhado.
Finalmente falou.
- O que você quer? - Seu inglês possuía um sotaque anasalado.
- Senhor - disse Becker, pronunciando exageradamente as palavras, como se estivesse falando com um surdo -, preciso lhe fazer algumas perguntas.
O homem olhou para ele com estranheza.
- Você tem algum problema?
Becker ficou aborrecido. O inglês do homem era impecável. Parou de falar no tom condescendente que tinha tentado usar.
- Perdoe-me por incomodá-lo, mas o senhor por acaso esteve na Plaza de España hoje?
Os olhos do homem estreitaram-se.
- Você é da Prefeitura?
- Não, na verdade eu...
- Secretaria de Turismo?
- Não, eu sou...
- Olhe, já sei por que você está aqui! - O velho começou a se remexer, tentando se sentar. - Eu não vou me deixar intimidar! Já disse isso uma vez e direi outras mil se for preciso! Pierre Cloucharde escreve sobre o mundo da forma que ele vive o mundo. Alguns guias de turismo poderiam varrer isso para baixo do tapete em troca de uma noite com tudo pago na cidade, mas o Montreal Times não está à venda! Me recuso!
- Perdoe-me, senhor. Não acho que o senhor tenha compreen...
- Merde alors! Claro que entendi! - Sacudiu um dedo ossudo na direção de Becker, sua voz ecoando pelo ginásio. - Você não é o primeiro! Tentaram o mesmo no Moulin Rouge, em Brown's Palace e no Golfino in Lagos! Mas quer saber o que foi publicado? A verdade! O pior filé Wellington que já comi! A banheira mais suja que já encontrei! E a praia mais cheia de pedregulhos em que já andei! É isso que meus leitores esperam!
Os pacientes em leitos próximos começaram a se virar para ver o que estava acontecendo. Becker olhou em volta, nervoso, para verificar se alguma enfermeira estava se aproximando. A última coisa de que precisava agora era ser colocado para fora.
Cloucharde estava furioso.
- Aquele imbecil que diz ser um policial trabalha para a sua cidade! Ele me fez subir naquela motocicleta! E olhe para mim agora! - Tentou levantar o pulso. - Me diga, quem vai escrever minha coluna agora?
- Senhor, eu...
- Nunca estive numa situação tão desconfortável em meus 43 anos de viagens! Olhe este lugar! Você sabia que minha coluna é publicada em mais de...
- Senhor! - Becker levantou as duas mãos, urgentemente pedindo uma trégua. - Não estou interessado em sua coluna. Eu sou do consulado canadense. Estou aqui para verificar se o senhor está bem!
Subitamente um silêncio profundo tomou conta do ginásio. O velho olhou para cima e examinou o intruso, desconfiado. Becker continuou, quase sussurrando:
- Estou aqui para saber se há algo que eu possa fazer para ajudá-lo. – Como trazer um ou dois comprimidos de Valium, talvez...
Após uma longa pausa, o canadense falou.
- Do consulado? - Seu tom de voz estava bem mais tranqüilo.
Becker assentiu.
- Então quer dizer que não é sobre minha coluna?
- Não, senhor.
Foi como se uma bolha gigantesca explodisse para Pierre Cloucharde. Ele se reclinou novamente na pilha de travesseiros. Parecia desapontado.
- Achei que você fosse da cidade, tentando me convencer a... - Ele ficou mudo e depois voltou a olhar para Becker. - Se não é sobre minha coluna, por que então você está aqui?
Essa era uma boa pergunta, pensou Becker, sonhando com as Smoky Mountains. - Apenas uma cortesia diplomática informal- mentiu.
O homem se espantou.
- Cortesia diplomática?
- Sim, senhor. Estou certo de que um homem de sua estatura está ciente de que o governo do Canadá trabalha duro para proteger seus cidadãos das indignidades sofridas nesses, ah, digamos assim, países menos refinados.
Os lábios finos de Cloucharde se abriram em um sorriso.
- Mas é claro, que boa surpresa.
- Você é um cidadão canadense, não é?
- Claro, claro. Que tolice a minha. Por favor, me desculpe. É que pessoas em minha posição são muitas vezes abordadas com interesses... bem, você entende. - Sim, Sr. Cloucharde, certamente. É o preço que se paga pela celebridade. - É verdade. - Cloucharde soltou um suspiro melodramático. Era um mártir involuntário obrigado a tolerar as massas. - Você pode acreditar em um lugar tão pavoroso quanto este? - Virou os olhos, percorrendo com o olhar o estranhíssimo ginásio. - É uma brincadeira de mau gosto. E resolveram que eu deveria permanecer aqui durante toda a noite.
Becker também olhou em volta.
- Eu sei. É terrível. Lamento que eu tenha levado tanto tempo para chegar até aqui.
Cloucharde continuava um pouco confuso.
- Mas eu nem sabia que você viria.
- Parece que você levou uma batida feia na cabeça. Está doendo? - perguntou Becker, mudando de assunto.
- Não, muito pouco. Eu sofri uma queda pela manhã. É o preço que se paga por tentar ser um bom samaritano. O que está doendo mesmo é o pulso. Que Guardia mais estúpida! Veja, é um absurdo! Colocar um homem da minha idade em uma motocicleta. Isso não é um procedimento adequado.
- Há algo que eu possa trazer para você?
Cloucharde pensou um pouco, feliz pela atenção que estava recebendo.
- Bem, na verdade... - Esticou o pescoço e virou a cabeça para um lado e para o outro. - Gostaria de mais um travesseiro, se não lhe der trabalho.
- Nem um pouco. - Becker pegou um travesseiro de um leito próximo e ajudou Cloucharde a se posicionar de forma mais confortável.
O velho soltou um suspiro de satisfação.
- Ah, bem melhor, obrigado.
Becker sorriu. Sentou-se na ponta da cama.
- Bem, se me permite, Sr. Cloucharde, gostaria de perguntar por que um homem como o senhor veio parar em um lugar desses. Há hospitais bem melhores em Sevilha.
Cloucharde fechou a cara.
- Aquele maldito policial me derrubou da motocicleta e me deixou sangrando no meio da rua. Tive que vir andando até aqui.
- Ele não se ofereceu para levá-lo a um local mais adequado?
- Naquela motocicleta? Não, obrigado!
- O que houve esta manhã, exactamente?
- Já contei tudo para o policial.
- Falei com ele e...
- Espero que você tenha dado uma bronca nele! - interrompeu Cloucharde.
- Fui extremamente severo. Meu escritório irá acompanhar o desenrolar deste caso.
- Espero sinceramente que sim.
- Senhor Cloucharde, eu gostaria de apresentar uma reclamação formal às autoridades municipais. - Becker continuou, sorridente, pegando uma caneta no bolso do blazer. - Você poderia ajudar? Um homem com sua reputação seria uma testemunha de grande valor.
Cloucharde parecia extasiado com a possibilidade de ver seu nome mencionado. Sentou-se.
- Sim, claro. Será um prazer.
Becker retirou do bolso um pequeno bloco de notas.
- Está bem, vamos começar com os eventos desta manhã. Conte-me sobre o acidente.
O velho suspirou.
- Foi realmente triste. Aquele pobre oriental caiu, de repente. Tentei ajudá-lo, mas não pude fazer nada.
- Você lhe aplicou uma massagem cardíaca?
Cloucharde pareceu envergonhado.
- Infelizmente não sei como fazer isso. Chamei uma ambulância.
Becker lembrou-se do machucado azulado no peito de Tankado.
- Então os para-médicos administraram uma massagem cardíaca nele?
- Deus, não! Não havia por quê. O homem já estava morto há tempos quando a ambulância finalmente chegou. Examinaram seu pulso e o levaram em uma maca, deixando-me com aquele policial desgraçado.
Isso é estranho, pensou Becker, imaginando de onde aquele hematoma teria surgido. Deixou isso de lado e voltou ao assunto principal.
- E o tal anel? - disse da forma mais casual possível.
- O tenente lhe falou sobre o anel? - Cloucharde se surpreendeu.
- Sim, falou.
Cloucharde parecia realmente surpreso.
- É mesmo? Não achei que ele tivesse acreditado em minha história. Foi tão rude, como se achasse que eu estivesse mentindo. Mas minha história era absolutamente exacta, é claro. Eu me orgulho de ser sempre fiel aos factos.
- Onde está o anel? - Becker tentou ir directo ao ponto.
Cloucharde, contudo, pareceu não ter ouvido. Tinha um olhar longínquo e vago. - Era um objecto estranho, na verdade. Todas aquelas letras... Não se pareciam com nenhum idioma que eu já tenha encontrado.
- Talvez fosse japonês?
- Não, definitivamente não.
- Você teve a chance de vê-lo de perto, então?
- Por Deus, sim! Quando eu me ajoelhei para tentar ajudá-lo, o homem não parava de enfiar o dedo na minha cara. Ele realmente queria me dar o anel. Foi estranho, horrível. Suas mãos eram disformes.
- E então você pegou o anel?
Cloucharde arregalou os olhos.
- Foi isso que o policial lhe disse, que eu peguei o anel? Becker se mexeu, pouco à vontade.
- Eu sabia que ele não estava ouvindo! É assim que os rumores começam!
Eu disse a ele que o japonês entregou o anel, mas não para mim! Jamais pegaria algo de uma pessoa morrendo! Santo Deus! Não gosto nem de pensar nisso! - explodiu Cloucharde.
Beker pressentiu que teria problemas.
- Quer dizer então que o anel não está com o senhor?
- Claro que não!
Sentiu uma dor na boca do estômago.
- Bem, quem ficou com ele, então?
- O alemão! O alemão está com o anel! - Cloucharde gritou, indignado. Becker sentiu-se como se alguém tivesse puxado o tapete debaixo de seus pés. - Alemão? Que alemão?
- O alemão que estava no parque. Eu contei ao policial sobre ele! Me recusei a ficar com o anel, mas aquele porco aceitou!
Becker deixou de lado a caneta e o papel. A charada havia terminado. Agora estava com problemas.
- Então há um alemão com o anel? E para onde ele foi?
- Não tenho a menor idéia. Corri para chamar a polícia e, quando voltei, ele já tinha ido embora.
- Você sabe quem ele era?
- Um turista qualquer.
- Você tem certeza?
- Minha vida inteira gira em torno dos turistas - retorquiu Cloucharde. – Posso reconhecer um à distância. Ele e sua amiga estavam passeando pelo parque. Becker estava ficando cada vez mais confuso.
- Uma amiga? Havia outra pessoa com o alemão?
- Uma acompanhante. Que linda ruiva. Meu Deus, como era bonita!
- Uma acompanhante? - Becker estava pasmo. - Quer dizer... uma prostituta?
- Sim, se você quiser usar essa palavra vulgar. - Cloucharde fez uma careta.
- Mas... O policial não me disse nada sobre...
- Claro que não! Eu não falei sobre a moça - disse Cloucharde, calando Becker com um gesto da mão que não estava engessada. - Não são criminosas, e é um absurdo que sejam perseguidas como se fossem bandidos comuns.
Becker continuava ligeiramente chocado.
- E havia mais alguém?
- Não, só nós três. Estava quente.
- E você tem certeza de que a mulher era uma prostituta?
- Toda certeza. Nenhuma mulher tão linda quanto aquela ficaria com um homem daqueles se não estivesse sendo bem paga! Mon Dieu! O homem era gordo, gordo, gordo! Um alemão grosseiro, flácido e irritante! - Cloucharde sentiu uma forte pontada quando mudou de posição, mas ignorou a dor e continuou tagarelando. - Aquele homem era uma besta: tinha mais de 100 quilos. E ficava grudado na pobre moça como se ela fosse sair correndo - o que, no lugar dela, eu certamente faria. Sinceramente! Ficava apalpando a mulher o tempo todo. Era ele que deveria ter caído morto, não aquele pobre oriental. -Cloucharde finalmente parou para respirar, e Becker aproveitou para intervir.
- Você sabe o nome dele?
Cloucharde pensou um pouco, depois sacudiu a cabeça.
- Não tenho idéia. - Fez outra careta de dor e recostou-se aos poucos em seus travesseiros.
Becker suspirou. O anel havia se evaporado bem na frente de seus olhos. O comandante Strathmore não iria gostar nem um pouco.
Cloucharde tocou levemente o machucado em sua cabeça. Sua disposição havia se enfraquecido e ele estava voltando a se sentir mal.
Becker tentou outra abordagem.
- Sr. Cloucharde, eu gostaria de obter um depoimento do alemão e da acompanhante dele também. O senhor tem alguma idéia no hotel onde possam estar hospedados?
Cloucharde fechou os olhos, perdendo as forças. Sua respiração estava se enfraquecendo.
- Qualquer coisa de que o senhor se lembre? - insistiu Becker. - O nome da moça, talvez?
Houve um longo silêncio. Cloucharde passou a mão no lado direito de sua testa. Parecia mais pálido agora.
- Eu... eu... não. Acho que eu não... - Sua voz estava trêmula.
- O senhor está bem? - Becker inclinou-se, chegando mais perto. Cloucharde acenou levemente.
- Sim, estou bem, só um pouco... talvez a excitação... - Depois não disse mais nada.
- Pense, senhor Cloucharde, é importante - insistiu Becker em voz baixa.
Cloucharde fez outra careta de dor.
- Não sei... a mulher... o homem a chamava de... - Fechou os olhos e gemeu.
- Qual era o nome?
- Eu realmente não me lembro. - Cloucharde estava perdendo as forças.
- Pense - disse Becker mais uma vez. - É importante que a ficha do consulado seja tão completa quanto possível. Precisarei de declarações das outras testemunhas para confirmar sua história. Qualquer informação que o senhor puder me dar para localizá-las...
Mas Cloucharde não estava mais ouvindo. Ele agora esfregava sua testa com o lençol.
- Lamento, talvez amanhã. - Parecia estar enjoado.
- Senhor Cloucharde, é importante que se lembre disso agora - disse Becker, percebendo no meio da frase
que estava falando alto demais. As pessoas nos outros leitos continuavam sentadas, observando o que estava acontecendo. Do outro lado da sala, uma enfermeira abriu a porta dupla e entrou, andando a passos firmes na direção deles.
- Qualquer coisa - Becker insistiu, tenso.
- O alemão chamava a mulher de...
Becker sacudiu levemente o canadense, tentando impedir que ele dormisse.
Cloucharde abriu os olhos por um instante.
- O nome era...
Vamos, meu amigo, não me deixe sozinho.
- Dew... - E depois fechou os olhos novamente. A enfermeira estava se aproximando rapidamente e parecia furiosa.
- Dew? - Becker sacudiu o braço de Cloucharde.
O velho resmungou.
- Ele a chamava de... - A voz de Cloucharde já soava distante, quase inaudível. A enfermeira estava a menos de três metros, gritando com Becker num espanhol zangado. David não lhe deu atenção. Tinha os olhos fixos nos lábios do canadense e o sacudiu uma última vez antes que ela chegasse.
A enfermeira agarrou David pelo ombro e fez com que ele ficasse em pé exactamente quando Cloucharde voltou a abrir levemente a boca. A única palavra que saiu não foi pronunciada, era mais como um suspiro suave, uma distante lembrança sensual.
- Dewdrop...
Puxando Becker, a enfermeira tentou tirá-lo dali.
Dewdrop? Gota de orvalho? Que diabo de nome é esse?, pensava Becker enquanto se livrava da mulher e se voltava uma última vez para Cloucharde.
- Dewdrop? Você tem certeza?
Mas Cloucharde já havia caído no sono.
CAPÍTULO
23
Susan estava sentada sozinha na luxuosa sala do Nado 3. Brincava distraída com uma xícara de chá de ervas enquanto esperava o retorno de seu tracer.
Como criptógrafa sênior, ela tinha o terminal com a melhor vista. Era na parte posterior do anel de computadores e ficava de frente para o salão da Criptografia. Da sua mesa, Susan tinha uma visão geral do Nodo 3. Podia ver também, do outro lado do vidro espelhado, o TRANSLTR bem no meio do salão.
Susan olhou para o relógio. Estava esperando havia quase uma hora. A Ametican Remailers Anonymous aparentemente estava bastante lenta em seu trabalho de encaminhar o e-mail para North Dakota. Suspirou profundamente. Apesar de seus esforços para se esquecer da conversa daquela manhã com David, as palavras não paravam de voltar à sua mente. Ela sabia que tinha sido dura com ele e rezava para que as coisas estivessem correndo bem na Espanha.
Seus pensamentos foram interrompidos pelo ruído sibilante das portas de vidro se abrindo. Ela olhou para a frente e viu o criptógrafo Greg Hale que acabara de entrar.
Greg Hale era alto e musculoso, com um cabelo louro cheio e uma cova profunda no queixo. Falava alto, era meio grosseiro e usava roupas sempre exageradamente chiques para a ocasião. Os outros criptógrafos haviam lhe dado o apelido de "Halita” por conta do mineral. Hale sempre presumiu que se tratasse de alguma pedra preciosa, fazendo um paralelo com seu intelecto superior e seu corpo musculoso. Caso seu ego permitisse que ele consultasse uma enciclopédia, teria descoberto que se tratava de uma formação
simples de NaCl, um resíduo de sal que se formava em alguns lugares quando a água do mar secava.
Como todos os criptógrafos da NSA, Hale ganhava muito bem. Mas era difícil para ele não alardear esse facto aos quatro ventos. Dirigia uma Lótus branca com tecto solar e um sistema de som capaz de arrasar quarteirões. Era um viciado em gadgets, e seu carro era uma espécie de salão de exposições. Nele, Hale tinha instalado um sistema computadorizado de posicionamento global (GPS), trancas de portas activadas por voz, um bloqueador de radar de cinco bandas e um telefone/fax celular, de forma a poder acessar sempre seus serviços de mensagens eletrônicas.
Greg Hale tinha sido resgatado de uma infância repleta de pequenos delitos pelo U.S. Marine Corps, o Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Foi lá que ele começou a estudar informática. Era um dos melhores programadores que os marines já tiveram e tinha tudo para seguir uma brilhante carreira militar. Porém, dois dias antes de completar sua terceira viagem a trabalho, seu futuro mudou. Hale matou acidentalmente um colega, em uma briga de bar. O tae-kwon-do, arte marcial coreana, mostrou-se uma eficaz forma de ataque, mais do que de defesa. Foi imediatamente retirado da activa.
Após um pequeno período na prisão, Hale começou a procurar emprego no sector privado como programador. Era sempre sincero a respeito do incidente durante o tempo em que serviu como fuzileiro naval e atraía potenciais empregadores oferecendo-lhes um mês de trabalho sem pagamento para provar do que era capaz. Não foram poucos os que aceitaram e, quando os chefes descobriam o que ele podia fazer com um computador, não o deixavam partir.
À medida que seus conhecimentos de programação foram crescendo, Hale começou a fazer contactos pela Internet em todo o mundo. Era um dos membros de um novo grupo de cyber-freaks que trocavam e-mails mais ou menos suspeitos com pessoas de vários países. Foi demitido de duas empresas por ter usado suas contas de trabalho para enviar fotos pornográficas para alguns amigos.
- O que você está fazendo aqui? - perguntou Hale, parado entre as portas e olhando para Susan. Ele obviamente esperava passar o resto do dia sozinho no Nodo 3.
Susan fez força para parecer indiferente.
- É sábado, Greg. Eu poderia lhe fazer a mesma pergunta. - Mas Susan sabia o que Hale estava fazendo lá. Ele era um grande viciado em computadores. Apesar da "regra" a respeito dos sábados de folga, ele muitas vezes entrava discretamente na Criptografia durante o fim de semana para usar o poderio computacional único da NSA para rodar algum novo programa em que estivesse trabalhando.
- Vim apenas dar uma olhada em umas linhas de código e ver meu e-mail - disse Hale. Ele olhou para ela, curioso. - O que foi mesmo que você disse que tinha vindo fazer aqui?
- Não disse nada - respondeu Susan.
Hale levantou uma sobrancelha.
- Ei, não precisa ficar na defensiva. Não temos segredos dentro do Nodo 3, se lembra? Um por todos e todos por um.
Susan bebericou seu chá de ervas, ignorando-o. Hale desistiu do assunto e dirigiu-se para a despensa. Essa era sempre sua primeira parada. Enquanto atravessava a sala, suspirou profundamente, mantendo os olhos fixos nas pernas de Susan, alongadas sob o terminal. Sem nem olhar, ela recolheu as pernas e continuou trabalhando. Hale deu um sorriso malicioso.
Susan já havia se acostumado com as investidas de Hale. A frase predilecta dele era algo como querer "interfacear com ela para verificar se o hardware era compatível", o que a deixava enjoada. Era orgulhosa demais para queixar-se com Strathmore a respeito de Hale. Era bem mais simples ignorá-lo.
Chegando à despensa, Hale abriu as portas de treliça violentamente. Pegou um Tupperware cheio de tofu que estava na geladeira e jogou alguns pedaços na boca. Depois debruçou-se sobre o fogão e alisou as calças Bellvienne cinzas e a camisa bem passada.
- Você vai ficar por aqui?
- A noite toda - respondeu Susan, friamente.
- Hmmm- murmurou ele, ainda com a boca cheia. - Nada como um final de sábado tranqüilo na Sala de Jogos, apenas nós dois.
- Apenas nós três - corrigiu Susan. - O comandante Strathmore está lá em cima. Talvez você queira sumir daqui antes que ele o veja.
Hale sorriu.
- Ele não parece se importar muito por você estar aqui. Acho que ele realmente gosta da sua companhia.
Susan se esforçou novamente para permanecer em silêncio. Hale riu para si mesmo e deixou de lado o tofu. Então pegou um vidro de azeite de oliva e bebeu alguns goles. Era um natureba radical e dizia que o azeite ajudava a limpar seu organismo. Quando não estava tentando empurrar suco de cenoura para o restante da equipe, fazia sermões sobre as virtudes da limpeza intestinal.
Colocou de volta o vidro de azeite e foi para seu computador, que ficava no extremo oposto ao de Susan. Mesmo com toda a distância que os separava, Susan podia sentir o cheiro da água-de-colônia que ele usava. Ela torceu o nariz.
- Boa colônia, Greg. Virou a garrafa?
Hale ligou seu terminal.
- Especialmente para você, querida.
Enquanto ele se sentava e esperava que o computador começasse a funcionar, um mau pensamento passou pela mente de Susan. E se Hale acessasse o ExeMon do TRANSLTR? Não havia nenhum motivo razoável para que ele fizesse isso, mas, de qualquer forma, Susan sabia que ele jamais iria engolir uma mentira qualquer sobre um diagnóstico que estava sendo executado no TRANSLTR durante 16 horas. Rale iria exigir que lhe dissessem a verdade, mas isso era algo que Susan não tinha a menor intenção de fazer. Ela não confiava em Greg. Ele não era o tipo de pessoa que deveria estar na NSA. Susan fora contra sua contratação desde o início, mas a agência não teve escolha. Rale foi produto de um controle de danos.
O fiasco do projeto Skipjack.
Quatro anos antes, num esforço coordenado para criar um único padrão de encriptação por chave pública, o Congresso norte-americano havia atribuído aos melhores matemáticos da nação - os da NSA - a tarefa de escrever um novo superalgoritmo. O plano era que o Congresso criasse uma lei que tornasse esse algoritmo um padrão nacional, aliviando, dessa forma, os problemas de incompatibilidade que as corporações estavam enfrentando por usarem diferentes algoritmos.
Claro que pedir à NSA que ajudasse a melhorar a encriptação por chave pública era mais ou menos o mesmo que pedir a um condenado para construir a própria forca. O TRANSLTR ainda não havia sido concebido, e um padrão de encriptação iria apenas difundir o uso de mensagens codificadas, tornando assim o difícil trabalho da NSA ainda mais difícil.
A EFF percebeu esse conflito de interesses e fez um forte lobby dizendo que a NSA iria criar um algoritmo de qualidade inferior, ou seja: algo que ela pudesse quebrar com alguma facilidade. Em resposta, o Congresso anunciou que, quando o algoritmo da NSA estivesse pronto, a fórmula seria publicada para ser examinada por outros matemáticos no mundo inteiro, a fim de assegurar sua qualidade.
Com natural relutância, a equipa de Critptografia da NSA, liderada pelo comandante Strathmore, criou um algoritmo batizado de Skipjack, que foi apresentado ao Congresso para aprovação. Matemáticos de todo o mundo testaram o algoritmo e se declararam unanimemente impressionados. Relataram que era poderoso, irrepreensível, e que seria um padrão de encriptação formidável. No entanto, três dias antes de o Congresso votar a aprovação quase certa do Skipjack, um jovem programador trabalhando nos Bell Laboratories, chamado Greg Rale, chocou o mundo ao anunciar que havia descoberto uma back door escondida no algoritmo.
A back door era constituída por algumas linhas astuciosas de código que o comandante Strathmore havia inserido no algoritmo. O acesso oculto foi criado de uma forma tão subtil que ninguém, excepto Greg
Hale, havia sido capaz de perceber. O acréscimo feito por Strathmore significava, na prática, que qual-quer código escrito usando-se o Skipjack poderia ser decifrado por meio de uma senha secreta conhecida apenas pela NSA. Strathmore chegou bem perto de transformar a proposta para um padrão de encriptação nacional no maior golpe que a inteligência da NSA já havia perpetrado. A agência teria a chave-mestra para qualquer código escrito nos Estados Unidos.
A comunidade de informática ficou furiosa. A EFF caiu sobre o escândalo como uma águia, criticando severamente o Congresso por sua ingenuidade e proclamando que a NSA era a maior ameaça ao mundo livre desde Hitler. O padrão de encriptação estava morto e enterrado.
Não foi uma surpresa muito grande quando a NSA contratou Greg Hale dois dias depois. Strathmore achou que era melhor tê-lo do lado de dentro, trabalhando para a NSA, do que do outro lado, trabalhando contra ela.
O comandante enfrentou o escândalo do Skipjack de frente. Defendeu suas acções de forma veemente perante o Congresso. Argumentou que o desejo do público em geral por mais privacidade ainda iria se voltar contra ele. Insistiu que a população precisava de alguém para cuidar do seu bem-estar. Precisava que a NSA continuasse quebrando códigos para manter a paz. Grupos como a EFF viam a coisa de outra forma. E vinham lutando contra Strathmore e a NSA desde então.
CAPÍTULO
24
David Becker estava em uma cabine telefônica do outro lado da rua onde ficava a Clínica de Salud Pública. Ele acabara de ser expulso de lá por ter perturbado o paciente número 104, o senhor Cloucharde.
As coisas se tornaram muito mais complicadas do que ele esperava. Seu pequeno favor para Strathmore - pegar alguns pertences pessoais - se transformou em uma alucinada caça ao tesouro atrás de um estranho anel.
Ele tinha acabado de ligar para Strathmore e lhe contado sobre o turista alemão. A notícia não foi muito bem recebida. Depois de pedir detalhes, Strathmore ficou em silêncio por um longo tempo.
- David - ele finalmente disse, num tom muito grave -, encontrar esse anel é uma questão de segurança nacional. Estou colocando o assunto nas suas mãos. Não falhe. - Depois o telefone ficou mudo.
David ficou parado na cabine e suspirou. Pegou a Guía Telefónica toda rasgada e começou a procurar nas páginas amarelas. Lá vamos nós, disse para si mesmo.
Havia apenas três serviços de escort listados no catálogo, e ele não tinha muitas informações com as quais trabalhar. Tudo que sabia era que a acompanhante do alemão tinha cabelos ruivos, o que era convenientemente raro na Espanha. Cloucharde, já meio delirante, havia se lembrado de que o nome da moça era Dewdrop. Becker continuava achando estranho: Dewdrop? Certamente não era seu nome de baptismo. Cloucharde devia ter-se enganado.
Becker discou o primeiro número da lista.
- Servicio Social de Sevilla - respondeu uma charmosa voz feminina. Becker acrescentou um forte sotaque alemão a seu espanhol e disse:
- HoIa. HabIas AIeman?
- Não. Mas falo inglês - respondeu a mulher.
Ele continuou com um inglês carregado de sotaque.
- Obrigado. Eu quererr saberr se a senhorra poderr ajudarr?
- O que o senhor deseja? - A mulher falava devagar, esforçando-se para ajudar seu potencial cliente. - Talvez o senhor queira uma acompanhante?
- Sim, porr favorr. Hoje minha irmão Klaus, ele estarr com garrota muito bonita. Cabelo vermelho.
Quererr o mesma. Parra amanhã, porr favorr.
- Seu irmão Klaus vem aqui? - A voz soou animada, como se fossem velhos amigos.
- Sim, ele serr muito gorda. Você lembrarr dele, non?
- Ele esteve aqui hoje, não foi?
Becker podia ouvir enquanto ela verificava os registros. Não haveria nenhum Klaus registrado, claro, mas Becker pensou que os clientes dificilmente usavam seus nomes verdadeiros.
- Humm, não... desculpe... Não vejo nada aqui. Qual o nome da garota com quem seu irmão estava?
- Ela ter cabelo vermelho - disse Becker, fugindo da pergunta.
- Cabelos vermelhos? - repetiu a mulher. Houve uma pausa. - Aqui é o Servicio Social de Sevilla. Você tem certeza de que seu irmão esteve aqui?
- Sim, eu terr certeza.
- Señor, não temos nenhuma ruiva. Temos apenas belas mulheres da Andaluzia. - Cabelo vermelho - repetiu Becker, sentindo-se meio idiota.
- Lamento, realmente não temos nenhuma ruiva, mas, se você...
- O nome serr Dewdrop - disse Becker, sentindo-se ainda mais idiota.
O nome ridículo aparentemente não significava nada para a mulher. Ela se desculpou, disse que Becker talvez estivesse fazendo confusão com outra agência e desligou gentilmente.
Primeira tentativa.
Becker discou o próximo número. Atenderam rápido.
- Buenas noches, Mujeres España. Em que posso ajudá-lo?
Becker seguiu o mesmo roteiro, fazendo-se passar por um turista alemão disposto a pagar bem pela ruiva que havia ficado com seu irmão naquele dia.
Dessa vez a resposta veio em um alemão polido, mas, novamente, não havia ruivas.
- Keine Rotkopfe, lamento. - E desligou.
Segunda tentativa.
Becker olhou de novo para a lista telefônica. Só havia mais um número. Suas esperanças estavam chegando ao fim.
Discou.
- Escortes Belén - respondeu um homem com um tom de voz afável. Becker contou sua história outra vez.
- Si, sí, señor. Meu nome é señor Roldán. Temos duas ruivas muito charmosas. O coração de Becker se acelerou.
- Muito bonitas? - repetiu, usando seu sotaque alemão. - Cabelo vermelho? - Sim, qual é o nome de seu irmão? Irei lhe dizer quem foi sua acompanhante hoje, e veremos se ela está livre para você amanhã.
- Klaus Schmidt - Becker soltou um nome que ele havia visto em alguma antiga apostila.
Houve uma longa pausa.
- Bem, senhor, não estou encontrando nenhum Klaus Schmidt em nossos registros, mas talvez seu irmão tenha resolvido ser discreto... Um homem casado, talvez? - O homem soltou uma risada forçada do outro lado da linha.
- Ah, sim, Klaus casado. Mas ele serr muito gorrda. Sua esposa não dormir com ele. - Becker viu seus próprios olhos refletidos na cabine. Se Susan pudesse me ouvir agora, pensou. - Eu também ser gorrdo e estarr sozinho. Quererr dormir com ela. Pagarr muito bem.
Becker estava se saindo muito bem, considerando-se que não era um profissional, mas tinha ido longe demais. A prostituição era ilegal na Espanha, e o señor Roldán era um homem muito cuidadoso. Já havia sido flagrado por policiais da Guardia se fazendo passar por turistas. Quererr dormir com ela. Roldán sabia que era uma armadilha. Se fosse adiante, receberia uma pesada multa e, ainda por cima, seria forçado a fornecer uma de suas melhores escorts para o comissário de polícia, de graça, durante todo o fim de semana.
Quando Roldán tornou a falar, seu tom de voz já não era tão amistoso.
- Senhor, aqui é Escortes Belén. Posso perguntar com quem estou falando? - Aahh... Sigmund Schmidt - inventou Becker apressadamente.
- E onde conseguiu nosso número?
- La Guía Telefónica.
- Sim, senhor, estamos listados aí porque somos um serviço de escort.
- Sim, eu quererr escort. - Becker sentiu que havia algo de errado.
- Senhor, Escortes Belén é um serviço que agencia acompanhantes para homens de negócios em almoços e jantares. É por isso que estamos listados no catálogo. Nosso serviço é inteiramente legal. O que o senhor está procurando é uma prostituta. - A palavra escorregou de sua língua como se fosse uma doença asquerosa.
- Mas minha irmão...
- Senhor, se seu irmão passou o dia beijando uma garota no parque, não era uma das nossas. Temos regras escritas que regulam o contato entre clientes e acompanhantes.
- Mas...
- O senhor está nos confundindo com outra agência. Temos apenas duas ruivas, Imaculada e Rodo, e nenhuma delas dormiria com um homem em troca de dinheiro. Isso se chama prostituição, e é ilegal na Espanha.
Boa noite, senhor.
- Mas...
CLIQUE.
Becker xingou em voz baixa e colocou o telefone de volta no gancho. Tinha certeza de que Cloucharde dissera que o alemão tinha contratado a garota para todo o fim de semana.
Becker saiu da cabine telefônica na esquina da Calle Salado com Avenida Assunción. Apesar do trânsito, o aroma doce das laranjas de Sevilha estava no ar. Era início de noite - a hora mais romântica. Pensou em Susan. As palavras de Strathmore invadiram sua cabeça: Encontre o anel. Becker jogou-se, cansado e desanimado, em um banco e pensou sobre seu próximo movimento.
Que movimento?
CAPÍTULO
25
Dentro da Clínica de Salud Pública, o horário de visitas havia terminado. As luzes do ginásio foram desligadas. Pierre Cloucharde estava mergulhado em sono profundo. Não percebeu a figura que se curvou sobre ele. A agulha de uma seringa reluziu brevemente, antes de desaparecer dentro do tubo intravenoso colocado no pulso de Cloucharde. A seringa continha 30 centímetros cúbicos de fluido de limpeza roubado do carrinho de um servente. Um polegar forte empurrou o êmbolo para baixo, jogando o líquido azulado para dentro das veias do velho.
Cloucharde acordou por um breve momento. Teria gritado de dor se não houvesse alguém tapando sua boca. Ele estava preso em seu leito, imobilizado por um peso aparentemente infinito. Podia sentir um ardor subindo ao longo de seu braço, produzindo uma dor insuportável, espalhando-se pelo peito e, em seguida, como um milhão de fragmentos de vidro, atingindo seu cérebro. Cloucharde viu um flash brilhante de luz - e depois mais nada.
O visitante soltou-o e olhou, na escuridão, para o nome escrito no prontuário afixado ao leito da cama. Depois sumiu silenciosamente.
Na rua, o homem com óculos de armação de metal colocou a mão num pequeno dispositivo rectangular, do tamanho de um cartão de crédito, que carregava em seu cinto. Era o protótipo de um novo computador Monocle. Desenvolvido pela Marinha americana para ajudar técnicos a registrar dados importantes no espaço apertado dos submarinos, o computador em miniatura unia os últimos avanços da microtecnologia e um modem celular. Seu monitor visual era uma tela de cristal líquido, colocada directamente na lente esquerda de seus óculos. O Monocle pertencia a uma nova era da informática: o usuário podia, agora, olhar através de seus dados e, ao mesmo tempo, continuar interagindo com o mundo ao seu redor.
A grande novidade em relação ao Monocle, no entanto, não estava em sua tela miniaturizada, mas sim em seu sistema de entrada de dados. Um usuário podia digitar informações através de pequenos contactos afixados às pontas de seus dedos. Quando tocava os contatos em conjunto seqüencialmente, reproduzia uma escrita abreviada similar à estenografia usada nos tribunais. O computador, então, traduzia os códigos abreviados para o inglês.
O assassino apertou um pequeno botão, e a tela em seus óculos deu sinal de vida. Com as mãos discretamente colocadas ao lado do corpo, ele começou a fazer pequenos e rápidos movimentos combinados com os dedos. Uma mensagem apareceu à sua frente.
ALVO: P. CLOUCHARDE - ELIMINADO.
Sorriu. Transmitir notificações dos assassinatos era parte de sua missão. Mas incluir o nome das vítimas... isso, para o homem com óculos de armação de metal, era elegância. Seus dedos se moveram novamente, activando a conexão do modem celular.
MENSAGEM ENVIADA.
CAPÍTULO
26
Sentado no banco, Becker pensava sobre o que deveria fazer agora. Suas ligações para as agências de escort não deram em nada. O comandante, preocupado com as comunicações através de linhas públicas não seguras, havia pedido a David que não tornasse a ligar até encontrar o anel.
Becker pensou em procurar a polícia local e pedir ajuda. Talvez eles tivessem algum registro sobre uma prostituta de cabelos vermelhos. Contudo, as ordens de Strathmore haviam sido estritas também em relação a isto: Você é invisível. Ninguém deve saber que o anel existe.
Becker pensou se deveria visitar o bairro boêmio de Triana à procura da misteriosa mulher. Ou talvez devesse percorrer os restaurantes da cidade procurando um alemão obeso. Qualquer das alternativas lhe parecia uma completa perda de tempo.
As palavras de Strathmore continuavam martelando em sua cabeça: Uma questão de segurança nacional... você precisa encontrar o anel.
No fundo de sua mente, uma coisa dizia a Becker que ele estava deixando de lado algum dado crucial. Ainda assim, por mais que tentasse, não conseguia descobrir o que era. Sou um professor, droga, não um maldito agente secreto! Ele estava começando a questionar por que Strathmore não enviara um profissional.
Becker levantou-se e começou a andar sem destino pela Calle Delicias, avaliando suas opções. Olhava a calçada fora de foco enquanto andava. A noite estava caindo.
Dewdrop. Gota de orvalho.
Havia algo neste nome absurdo que ficava martelando na sua cabeça.
Dewdrop. A voz suave do señor Roldán, da Escortes Belén, ecoava bem lá no fundo: "Só temos duas ruivas... Duas ruivas, Imaculada e Rodo... Rodo... Rodo..."
Becker parou, tomado por uma idéia. E ainda me considero um especialista em línguas? Não acreditava que tinha deixado escapar essa.
Rodo era um dos nomes femininos mais populares na Espanha. Trazia todas as implicações adequadas a uma jovem católica - pureza, virgindade, beleza natural. As conotações de pureza eram todas derivadas do sentido literal do nome - gota de orvalho.
Dewdrop. Rodo havia traduzido seu nome para o único idioma que ela e seu cliente possuíam em comum, o inglês. Excitado, Becker correu para o telefone mais próximo.
Do outro lado da rua, um homem usando óculos de armação de metal o seguia, fora do alcance de sua vista.
CAPÍTULO
27
No salão da Criptografia as sombras estavam se alongando e se desfazendo. No tecto, a iluminação automática aumentava gradualmente para compensar. Susan ainda estava sentada à frente de seu terminal, esperando silenciosamente notícias de seu tracer. Estava levando mais tempo do que ela imaginara.
Sua mente flutuava entre pensamentos diversos. Sentia falta de David e queria que Greg Hale fosse embora. Greg não havia se mexido mais e, felizmente ficara quieto, concentrado em seja lá o que estivesse fazendo em seu terminal. Susan nem queria saber o que era, contanto que ele não acessasse o ExeMon. Coisa que ele obviamente não havia feito, do contrário teria soltado um palavrão ou coisa assim.
Susan estava bebericando a terceira xícara de chá quando finalmente seu terminal deu sinal de vida, emitindo um pequeno bipe. Seu pulso acelerou. Um ícone de um envelope apareceu piscando na tela anunciando a chegada de um e-mail. Susan olhou rapidamente para Hale, que continuava mergulhado em seu trabalho. Ela prendeu a respiração e clicou duas vezes sobre o envelope.
North Dakota, pensou, vamos ver quem é você.
Quando o e-mail se abriu, continha uma única linha, que Susan leu e releu.
JANTAR NO ALFREDO? ÀS 20h?
Do outro lado da sala, Hale segurou uma risada. Susan olhou para o cabeçalho da mensagem.
DE: GHA.LE@cripto.nsa.gov
Ela sentiu um impulso de raiva, mas reprimiu-o. Apagou a mensagem.
- Não tem graça, Greg.
- Ei, o carpaccio deles é óptimo! - disse Hale, sorrindo. - E então? Depois podíamos...
- Esquece.
- Convencida.
Hale suspirou e voltou a olhar para seu terminal. Esta era a tentativa número 89 com Susan Fletcher. A brilhante criptógrafa era uma frustração constante para ele. Diversas vezes ele já havia fantasiado transar com ela: prensá-la contra a carcaça curvada do TRANSLTR e transar ali mesmo, apoiados na sua casca de cerâmica preta. Mas Susan não queria nada com ele. Na cabeça de Greg, as coisas eram ainda piores porque ela estava apaixonada por um professor universitário que trabalhava horas a fio para ganhar uma miséria. Seria uma pena se Susan fosse diluir seus genes superiores procriando com um otário,
especialmente quando tinha à sua disposição alguém tão fantástico quanto ele. Teríamos filhos perfeitos, pensava Hale.
- Em que você está trabalhando? - perguntou, tentando outra abordagem. Susan não respondeu.
- Como é bom trabalhar em equipe com você. Posso ao menos dar uma olhada? - Rale levantou-se e começou a andar na direção de Susan.
Ela sentiu que a curiosidade dele poderia causar sérios problemas naquele dia. Tomou uma decisão rápida.
- É um diagnóstico - disse, retomando à mentira contada pelo comandante. Rale parou no meio do caminho.
- Um diagnóstico? - retrucou, em tom de dúvida. - Você não está realmente perdendo seu sábado com um diagnóstico em vez de estar se divertindo com seu professorzinho?
- O nome dele é David.
- Que seja.
Susan olhou firme para ele.
- Você não tem nada melhor para fazer?
- Você está tentando se livrar de mim? - retrucou Rale.
- Na verdade, sim.
- Nossa, Sue, estou abalado.
Susan olhou para ele com raiva. Odiava ser chamada de Sue. Nada contra o apelido, mas Rale era o único a usá-lo.
- Por que não me sento e ajudo você? - tentou Greg. Ele voltou a andar na direção dela. - Sou bom com programas de diagnóstico. Além disso, estou bem curioso para ver o que este em particular tem de tão interessante para fazer a poderosa Susan Fletcher vir trabalhar num sábado.
Susan sentiu a adrenalina se espalhando por seu corpo. Olhou para o tracer em sua tela e pensou que não podia deixar que Rale o visse, pois ele faria perguntas demais.
- Está tudo sob controle, Greg.
Mas Rale continuava se aproximando, e Susan tinha que agir rápido. Ele estava a apenas alguns metros de distância quando ela se levantou, fechando a passagem. O cheiro de colônia empesteava o ar. Ela o olhou bem nos olhos.
- Já disse que não.
Rale ficou intrigado por esse súbito ímpeto de privacidade. Decidiu brincar e deu um passo à frente. Greg não estava pronto para o próximo acto.
Com absoluta calma, Susan estendeu o indicador e o colocou contra seu peito musculoso, bloqueando o caminho.
Greg parou, surpreso, e recuou. Susan parecia estar levando a coisa toda muito a sério: ela nunca o havia tocado antes. Não era exactamente o tipo de toque que ele tinha em mente para um primeiro contacto, mas já era um começo. Ele a olhou com curiosidade por alguns instantes, depois voltou para seu terminal. Sentou-se novamente, mas uma coisa estava bem clara em sua mente: a adorável Susan Fletcher estava trabalhando em algo muito importante, e não era diagnóstico algum.
CAPÍTULO
28
O señor Roldán estava sentado em sua mesa, na Escortes Belén, feliz por ter se esquivado tão habilmente da mais recente e patética tentativa da Guardia de apanhá-lo em uma armadilha. Francamente, fazer com
que um policial ligasse, fingindo ser alemão e pedindo uma acompanhante para passar a noite - aquilo só podia ser chamado de armadilha. O que eles iriam inventar depois dessa?
O telefone à sua frente tocou. O señor Roldán pegou o fone com ar confiante. - Buenas noches, Escortes Belén.
- Buenas noches - disse em espanhol a voz de um homem, falando muito rápido. Soava meio anasalado, como se estivesse um pouco resfriado. - Gostaria de saber se esse número é de um hotel.
- Não, senhor. Que número o senhor discou? - O seiíor Roldán não iria cair em nenhum outro truque naquela noite.
- 34-62-10 - disse a voz.
Roldán ficou pensativo. A voz lhe soava vagamente familiar. Tentou localizar de onde seria o sotaque. Burgos, talvez.
- Você discou o número certo - disse Roldán, apreensivo -, mas aqui é um serviço de escort.
Houve uma pausa na linha.
- Ah... Entendo. Desculpe. Alguém anotou este número, e eu achei que poderia ser um hotel. Estou de passagem, vindo de Burgos. Bem, perdoe-me por incomodá-lo. Boa...
- Espere! - O señor Roldán não podia deixar passar uma oportunidade, ele era um vendedor por natureza. Seria uma indicação? Um novo cliente vindo do norte? Ele não podia deixar que uma pequena paranóia estragasse uma venda em potencial.
- Amigo - disse Roldán apressadamente, no tom de voz tipicamente animado dos vendedores -, achei que tinha reconhecido um leve acento de Burgos em você. Eu sou de Valência. O que o trouxe a Sevilha?
- Vendo jóias. Pérolas de Mallorca.
- Mallorca! Mas que óptimo! Você deve viajar muito. A voz tossiu do outro lado.
- Sim, viajo bastante.
- Está em Sevilha a negócios? - Roldán tentou puxar conversa. Esse cara com certeza não era da Guardia. Era um cliente com C maiúsculo. - Deixe-me adivinhar: foi um amigo que lhe deu nosso número? Ele disse para nos ligar quando estivesse em Sevilha é isso?
- Não, não é bem isso. - A voz estava claramente constrangida.
- Não seja tímido, señor. Somos um serviço de escort, não há do que se envergonhar. Temos garotas adoráveis que lhe farão companhia durante um jantar... é só isso. Quem lhe deu nosso número? Talvez seja um de nossos clientes assíduos. Posso lhe oferecer um preço camarada.
A voz pareceu um pouco agitada.
- Bem... Para ser sincero não me deram esse número. Eu o encontrei dentro de um passaporte e estou tentando localizar o seu dono.
O entusiasmo de Roldán se esvaziou. Este homem não era um cliente, no final das contas.
- Você encontrou o número, é isso?
- Sim, achei o passaporte de alguém no parque hoje. Seu número estava em um pedaço de papel dentro dele. Achei que talvez fosse o hotel onde o dono do passaporte estava hospedado e queria lhe devolver o documento. Mas foi um engano. Vou deixá-lo em um posto da polícia quando eu estiver indo embora.
- Perdoe-me - interrompeu Roldán nervosamente. - Posso lhe propor uma solução mais simples? - Roldán orgulhava-se de ser muito discreto em seus negócios e sabia que visitas à Guardia tinham uma tendência a transformar seus clientes em ex-clientes. – Veja, como nosso número está dentro do passaporte, o dono provavelmente é um de nossos clientes. Talvez possamos resolver isso de outra forma e evitar que o senhor perca seu tempo indo à polícia.
- Não sei. Acho que eu provavelmente deveria apenas... - A voz hesitou.
- Não seja precipitado, amigo. Tenho um pouco de vergonha em admitir isso, mas a polícia aqui de Sevilha não é sempre tão eficiente quanto a polícia do norte de nosso país. Podem levar vários dias até
que o passaporte seja devolvido a seu dono. Se você me disser o nome que está no documento, darei um jeito de devolver o passaporte imediatamente.
- Bem, talvez... Suponho que não haja nenhum problema... - Roldán ouviu o som de algumas folhas sendo viradas, e depois a voz retomou. - É um nome alemão. Não sei se consigo pronunciar isso... Gusta... Gustafson?
Roldán não reconheceu o nome, mas tinha clientes vindos de todas as partes do mundo, e eles nunca davam seus nomes reais.
- Como ele é? Como é a foto? Talvez eu consiga reconhecê-lo.
- Pela foto... Ele tem um rosto redondo, parece ser bem gordo.
Roldán sabia quem era. Lembrava-se claramente daquela cara obesa. Era o homem com Rodo. Estranho, pensou ele. Era a segunda ligação a respeito do alemão naquela noite.
- Ah, o Sr. Gustafson? - Roldán soltou uma risada forçada. - Claro, eu o conheço bem. Se você me trouxer o passaporte, farei com que ele o receba em seguida.
- Estou no centro, sem carro - interrompeu o homem. - Talvez você pudesse vir pegá-lo?
- Na verdade - esquivou-se Roldán -, não posso sair no momento. Mas não é muito longe, se você...
- Desculpe, mas já é tarde para ficar andando por aí. Creio que há uma delegacia da Guardia aqui perto. Vou deixar o passaporte lá, e, quando você encontrar o Sr. Gustafson, pode dizer a ele onde está o passaporte.
- Não, espere! - disse Roldán, quase gritando. - Realmente não há necessidade de envolver a polícia nisso. Você disse que está no centro, certo? Conhece o Hotel Alfonso XIII? É um dos melhores da cidade.
- Sim, conheço o Alfonso XIII, fica aqui perto.
- Fantástico! O Sr. Gustafson está hospedado lá esta noite. Provavelmente poderá encontrá-lo no hotel agora.
A voz hesitou outra vez.
- Entendo. Bem, eu... Está bom, não me custa nada passar lá.
- Óptimo! Ele está jantando com uma de nossas escorts no restaurante do hotel. - Roldán sabia que os dois provavelmente estariam na cama àquelas alturas, mas precisava ser cuidadoso para não ofender a sensibilidade refinada do homem com quem falava no telefone. - Basta deixar o passaporte com o recepcionista. O nome dele é Manuel. Diga que fui eu que lhe pedi para ir até lá. Peça que entregue o passaporte a Rodo, a acompanhante do Sr. Gustafson esta noite. Ela devolverá o passaporte. Se desejar, deixe seu nome e endereço dentro, talvez o Sr. Gustafson queira lhe agradecer.
- Boa idéia. Alfonso XIII. Está certo, deixarei o passaporte lá esta noite. Agradeço sua ajuda.
Becker desligou o telefone. Alfonso XIII, sorriu. Basta saber como perguntar. Pouco depois uma figura silenciosa seguia Becker ao longo da Calle Delicias enquanto caía a noite na Andaluzia.
CAPÍTULO
29
Ainda irritada por conta da conversa com Hale, Susan olhou para fora através do painel de vidro do Nodo 3. O salão da Criptografia estava vazio. Hale ficara novamente silencioso, concentrado. Ela gostaria que ele se fosse.
Pensou se deveria chamar Strathmore. O comandante iria simplesmente colocá-lo para fora - afinal, era um sábado. Susan sabia, contudo, que, se Strathmore mandasse Hale se retirar, ele iria suspeitar de algo. Quando saísse, começaria a ligar para outros criptógrafos para saber o que estava acontecendo. Susan achou melhor deixá-lo quieto no canto dele. Hale acabaria indo embora mais cedo ou mais tarde.
Um algoritmo impossível de ser quebrado. Ela voltou a pensar no Fortaleza Digital. Era muito impressionante que um algoritmo assim realmente pudesse ser criado. Ao mesmo tempo, a prova estava bem na frente dela, já que o TRANSLTR parecia ser completamente inútil contra ele.
Susan pensou em Strathmore, suportando com dignidade o peso dessa situação penosa, fazendo o que fosse necessário, absolutamente destemido em face do desastre.
Susan algumas vezes via um pouco de David em Strathmore. Ambos compartilhavam algumas qualidades: tenacidade, dedicação, inteligência. Algumas vezes Susan pensava que Strathmore ficaria perdido sem ela. A pureza de sua paixão pela criptografia parecia ser um elo emocional vital para Strathmore, deslocando-o do mar de confusões políticas e fazendo com que se lembrasse do início de sua carreira como "quebrador de códigos".
Susan também dependia em parte de Strathmore. Ele lhe oferecia protecção em um mundo de homens sedentos por poder e cuidava da carreira dela, protegendo-a e, como dizia em tom de brincadeira, tornando todos os seus sonhos realidade. Havia alguma verdade nisso, ela pensou. Apesar de não ter sido intencional, o comandante foi o responsável por seu primeiro encontro com David Becker na NSA. Susan sentiu saudades de David, e seus olhos automaticamente se voltaram para o porta-retrato ao lado de seu teclado com uma foto do namorado. Seus pensamentos foram interrompidos pelo som das portas automáticas se abrindo. Strathmore entrou.
- Susan, alguma novidade? - O comandante viu Greg Hale e parou no mesmo instante. - Ora, boa tarde, Sr. Hale. - Franziu a testa, com um olhar interrogativo - Em pleno sábado! A que devemos a honra?
Hale sorriu inocentemente.
- Estou só terminando algumas tarefas que ficaram pendentes.
- Entendo - respondeu Strathmore, enquanto avaliava suas opções. Pouco depois, pareceu ter decidido que ele também não iria criar confusão com Hale. Virou-se para Susan e disse, secamente:
- Srta. Fletcher, poderia falar com você um instante? Lá fora?
Susan hesitou.
- Ahn... Sim, senhor. - Ela olhou rapidamente para seu monitor, depois para Greg, do outro lado da sala, e disse: - Só um momento.
Pressionou rapidamente uma seqüência de teclas, ativando um programa chamado ScreenLock. Era um utilitário instalado em todos os terminais do Nodo 3 para garantir a privacidade dos usuários. Como os terminais ficavam ligados permanentemente, o ScreenLock permitia que os criptógrafos saíssem a qualquer momento de suas estações de trabalho sabendo que ninguém iria mexer em seus arquivos. Susan digitou seu código pessoal de cinco dígitos e sua tela ficou preta. Até que o código correcto fosse digitado, o terminal permaneceria assim.
Ela calçou seus sapatos e seguiu o comandante para fora da sala.
- Que diabos ele está fazendo aqui? - perguntou Strathmore assim que saíram do Nodo 3.
- O de sempre - respondeu Susan. - Nada.
Strathmore parecia preocupado.
- Ele disse alguma coisa sobre o TRANSLTR?
- Não. Mas, se ele acessar o ExeMon e vir que está registrando 17 horas, terá algo a dizer.
Strathmore pensou.
- Não há motivos para ele acessar o programa.
Susan olhou para o comandante.
- Você quer mandá-lo embora?
- Não. Vamos deixá-lo em paz. - Strathmore olhou na direção da sala de SegSis. - Chartrukian já foi embora?
- Não sei. Não o vi mais.
- Droga - resmungou Strathmore. - Isso está virando um circo. - Passou a mão pela barba rala que havia crescido em seu rosto nas últimas 36 horas.
- Alguma novidade do tracer? Estou me sentindo inútil.
- Até agora nada. Notícias de David?
Strathmore balançou a cabeça.
- Pedi que ele não me ligasse até que estivesse com o anel.
- Por que não? E se ele precisar de ajuda? - Susan pareceu surpresa. Strathmore olhou-a, indiferente.
- Não posso ajudá-lo daqui, ele vai ter que resolver as coisas sozinho. Além disso, prefiro não falar em linhas não-seguras só para garantir que não há ninguém monitorando a conversa.
Susan arregalou os olhos, preocupada.
- O que isso quer dizer?
Strathmore fez uma cara simpática, desculpando-se, e deu um sorriso tranqüilizador.
- David está bem. Estou apenas sendo precavido.
A uns 10 metros de distância, ocultado pelo vidro espelhado do Nodo 3, Greg Hale estava de pé em frente ao terminal de Susan. A tela estava preta. Hale olhou para o comandante e para Susan e depois pegou sua carteira. Tirou dela um pequeno cartão e leu o que estava escrito.
Após olhar outra vez para fora, para ter certeza de que Strathmore e Susan continuavam conversando, ele digitou cuidadosamente cinco caracteres no teclado de Susan. Um segundo depois o monitor deu sinal de vida.
É isso aí, ele sorriu, maliciosamente.
Roubar os códigos pessoais do Nodo 3 havia sido simples. Naquela sala, cada um dos terminais possuía um teclado idêntico e removível. Hale simplesmente levou o seu para casa uma noite e instalou um chip que registrava cada tecla pressionada no teclado. Depois, chegou mais cedo, trocou seu teclado modificado pelo de outra pessoa e esperou. No final do dia, trocava os teclados de volta e verificava os dados registrados pelo chip. Apesar de haver dezenas de milhares de teclas pressionadas, encontrar o código era simples. A primeira coisa que cada criptógrafo fazia pela manhã era digitar o código pessoal que desbloqueava seu terminal. Isso, é claro, tornou o trabalho de Hale trivial: o código pessoal sempre aparecia como os cinco primeiros caracteres da lista.
Não deixava de ser irônico, pensou Hale, enquanto olhava para o monitor de Susan. Ele havia roubado os códigos só por diversão, mas agora estava feliz por ter feito isso. O programa na tela de Susan parecia importante.
Hale olhou para ele por algum tempo. Estava escrito em LIMBO, que não era uma de suas especialidades. Bastava olhar para o código, contudo, para saber uma coisa: aquilo não era uma rotina de diagnóstico. Na verdade, ele entendia apenas duas palavras, mas já bastava.
TRACER: PROCURANDO...
- Um tracer? - disse em voz alta. - Procurando o quê? - Hale sentiu-se desconfortável. Sentou-se e pensou um pouco sobre o que havia na tela de Susan. Então decidiu o que fazer.
Hale entendia o suficiente sobre a linguagem de programação LIMBO para saber que ela se baseava fortemente em duas outras linguagens, C e Pascal. Essas duas ele conhecia bem. Após olhar mais uma vez para ter certeza de que Strathmore e Susan continuavam conversando lá fora, decidiu improvisar. Digitou alguns comandos modificados de Pascal e apertou ENTER. A tela de status do programa respondeu exatamente como ele havia esperado.
TRACER: CANCELAR?
Rapidamente digitou: SIM.
VOCÊ TEM CERTEZA?
Novamente: SIM.
O computador emitiu um bipe e mostrou a mensagem:
TRACER CANCELADO
Hale sorriu. O terminal acabara de enviar uma mensagem dizendo para o tracer de Susan que se auto destruísse naquele momento. Seja lá o que for que ela estivesse procurando, teria que esperar.
Preocupado em não deixar nenhum rastro, Hale navegou com destreza pelo arquivo de registro de actividade do sistema de Susan e removeu todos os comandos que ele havia acabado de digitar. Em seguida, digitou novamente o código pessoal de Susan.
O monitor ficou preto.
Quando Susan Fletcher retomou para o Nodo 3, Greg Hale estava sentado silenciosamente em seu terminal.
CAPÍTULO
30
O Alfonso XIII era um pequeno hotel de quatro estrelas próximo à Puerta de Jerez, circundado por uma cerca de ferro e canteiros de lilases. David subiu pelas escadarias de mármore. Quando levantou a mão para abrir a porta, esta abriu-se inesperadamente, e um porteiro fez sinal para que entrasse.
- Bagagem, señor? Posso ajudá-lo?
- Não, obrigado. Preciso falar com o recepcionista.
O porteiro pareceu magoado, como se algo naquele encontro de dois segundos não houvesse sido satisfatório.
- Por aqui, señor. - Levou Becker em direção ao saguão, apontou na direção da recepção e retornou a seu posto.
O saguão era primoroso, pequeno e elegantemente decorado. A Idade de Ouro da Espanha já havia terminado há tempos, mas, durante algumas décadas, em meados do século XVII, aquela pequena nação havia governado o mundo. A sala era uma lembrança orgulhosa daqueles tempos - armaduras, brasões militares e um antigo baú para lingotes de ouro que eram trazidos do Novo Mundo.
Pairando atrás do balcão onde estava escrito CONSER]E um homem de aparência impecável sorria tão entusiasticamente que parecia ter esperado toda a sua vida apenas para ajudá-lo.
- En qué puedo servirlo, señor? Em que posso ajudá-lo? - Falava de forma afectada e olhava Becker de alto a baixo.
Becker respondeu em espanhol.
- Preciso falar com Manuel.
A face bronzeada do homem abriu-se num sorriso ainda maior.
- Sí, sí, señor. Eu sou Manuel. O que deseja?
- O señor Roldán, da Escortes Belén me disse que você poderia...
O recepcionista fez sinal para que Becker se calasse e olhou nervosamente pelo saguão.
- Por que não conversamos aqui ao lado? - Ele direcionou Becker para o final do balcão. - Agora, em que posso ajudá-lo? - prosseguiu, praticamente sussurrando.
Becker começou tudo de novo, em um tom de voz mais baixo.
- Preciso falar com uma das acompanhantes dele e acredito que ela esteja jantando aqui. Chama-se Rodo.
O recepcionista soltou um suspiro, como se estivesse apaixonado.
- Aaaah, Rodo, que coisa mais linda.
- Preciso vê-la imediatamente.
- Mas, señor, ela está com um cliente.
Becker assentiu.
- É importante. - Uma questão de segurança nacional.
O recepcionista sacudiu a cabeça.
- Impossível. Talvez se você deixasse uma...
- Vou levar apenas um instante. Ela está no restaurante?
O recepcionista sacudiu a cabeça.
- Nosso restaurante fechou há meia hora. Creio que Rodo e seu acompanhante já se retiraram por esta noite. Se você quiser deixar uma mensagem, posso entregá-la pela manhã. - Mostrou o escaninho atrás dele, contendo fileiras numeradas de caixas de mensagem.
- Talvez então eu pudesse apenas ligar para o quarto e...
- Lamento - disse o homem, sua polidez desaparecendo rapidamente. – O Alfonso XIII possui políticas rígidas em relação à privacidade de seus clientes.
Becker não tinha a menor intenção de esperar dez horas até que um gordo e uma prostituta aparecessem para tomar o café da manhã.
- Entendo - disse. - Lamento perturbá-lo. - Virou-se e andou de volta para o saguão. Dirigiu-se directamente para uma escrivaninha de cerejeira de tampo corrediço que chamara sua atenção quando entrou. Nela havia um grande número de cartões-postais e de papel de carta do Alfonso XIII, assim como canetas e envelopes. Becker selou uma folha de papel em branco dentro de um envelope e escreveu uma palavra na frente do mesmo.
ROCÍO.
Depois retomou ao recepcionista.
- Perdoe-me por incomodá-lo novamente - disse Becker, aproximando-se constrangido. - Estou sendo um pouco tolo, devo admitir. Esperava poder dizer a Rodo, pessoalmente, o quanto apreciei o tempo que passamos juntos recentemente. Mas vou ter que partir esta noite, então vou apenas deixar este bilhete para ela. - E deixou o envelope sobre o balcão.
O recepcionista olhou para o envelope e sussurrou pesarosamente para si mesmo: Outro heterossexual desesperadamente apaixonado. Que desperdício. Olhou para cima e sorriu.
- Sim, claro, senhor...?
- Buisán - disse Becker. - Miguel Buisán.
- Claro. Fique tranqüilo que Rodo receberá a mensagem pela manhã.
- Obrigado. - Becker sorriu e virou-se na direção da saída.
O recepcionista, após olhar discretamente para a bunda de David, pegou o envelope que estava sobre o balcão e virou-se para os escaninhos numerados atrás dele. Ele tinha acabado de colocar o envelope em um deles quando Becker voltou-se com uma última pergunta.
- Onde é que eu poderia encontrar um táxi?
O recepcionista virou-se e respondeu. Mas Becker não estava prestando atenção na resposta. O timing havia sido perfeito. A mão do recepcionista acabava de sair do escaninho da suíte 301.
Becker agradeceu e foi saindo lentamente, enquanto procurava o elevador. Entrar e sair, repetiu para si mesmo.
CAPÍTULO
31
Susan retornou ao Nodo 3. Depois da conversa com Strathmore, ela ficou ainda mais preocupada com a segurança de David. Não parava de imaginar coisas terríveis.
- Então, o que é que Strathmore queria? Uma noite romântica a sós com a chefe da Criptografia? - exclamou Hale de seu terminal.
Susan ignorou o comentário e sentou-se diante do terminal. Digitou seu código pessoal e olhou para a tela. O programa tracer foi exibido. Ainda não havia retomado nenhuma informação sobre North Dakota.
Droga, pensou Susan. Por que está demorando tanto?
- Você me parece tensa - disse Hale, inocentemente. - Algum problema com seu diagnóstico?
- Nada sério - respondeu ela. Mas Susan tinha suas dúvidas. O tracer estava demorando muito mais do que o esperado. Ficou pensando se tinha cometido algum erro no programa. Começou a analisar as longas linhas de código LIMBO na tela, procurando alguma coisa que pudesse estar atrasando a operação.
Do outro lado da sala, Hale a observava com ar arrogante.
- Eu estava querendo te perguntar uma coisa. O que você acha daquele algoritmo inquebrável que Ensei Tankado disse estar escrevendo?
O estômago de Susan deu um nó.
- Algoritmo inquebrável? - tentou controlar-se. - Não sei... Acho que li alguma coisa a respeito.
- É uma alegação impressionante.
- Com certeza - respondeu Susan, pensando por que Hale havia abordado esse assunto subitamente. - Pessoalmente, não acredito muito nisso. Todo mundo sabe que um algoritmo inquebrável é uma impossibilidade matemática.
Hale sorriu.
- É... o Princípio de Bergofsky.
- Isso e um pouco de senso comum também - completou ela.
- Mas... Quem sabe? - Hale soltou um suspiro exagerado. - Há mais coisas entre o céu e a Terra do que pode supor a nossa vã filosofia.
- O que você disse?
- Shakespeare - retrucou Hale. - Hamlet.
- Você leu muito enquanto estava na prisão?
Hale sorriu ironicamente.
- Falando sério, Susan, você alguma vez já pensou que seja realmente possível que Tankado tenha escrito um algo ritmo inquebrável?
Aquela conversa estava se tornando incômoda.
- Nós não conseguimos, não é?
- Talvez Tankado seja melhor do que nós.
- Talvez - disse Susan, aparentando indiferença.
- Tankado e eu trocamos alguns e-mails - prosseguiu Hale, como quem não quer nada. - Você sabia disso?
Susan parou e olhou para ele, tentando ocultar sua surpresa.
- É mesmo?
- Sim. Depois que descobri a farsa do algoritmo Skipjack, ele me escreveu dizendo que éramos irmãos na luta global pela privacidade digital.
Susan mal podia conter seu espanto. Então Hale conhece Tankado pessoalmente! Fez o melhor que pôde para parecer desinteressada.
Hale continuou.
- Ele me felicitou por ter provado que o Skipjack tinha uma back door, dizendo que aquilo era um golpe contra os direitos civis à privacidade. Você tem que admitir, Susan, que esconder um acesso de programador no Skipjack foi uma jogada suja, que permitiria à NSA ler todos os e-mails circulando pelo mundo. Na minha opinião, Strathmore e seu truque mereceram ser expostos.
- Greg - contestou Susan, lutando contra sua irritação -, aquele acesso secreto estava lá para que a NSA pudesse descodificar e-mails que ameaçassem a segurança dos Estados Unidos.
- É mesmo? - respondeu Hale, sarcástico. - Bisbilhotar a vida dos cidadãos comuns seria apenas um efeito colateral bem-vindo?
- Não ficamos bisbilhotando os cidadãos comuns, você sabe disso. O FBI pode grampear telefones, mas isso não significa que escutem todas as chamadas.
- Se tivessem pessoal suficiente, escutariam.
Susan ignorou a observação.
- Os governos devem ter o direito de levantar informações para se defender de ameaças ao bem comum.
- Meu Deus! Você soa como se tivesse sofrido uma lavagem cerebral de Strathmore. Você sabe muito bem que o FBI não pode escutar qualquer conversa que queira - eles precisam de um mandado. Um padrão de encriptação adulterado daria à NSA o poder de monitorar as comunicações de qualquer um, a qualquer momento, em qualquer lugar.
- Sim, e deveríamos poder fazer isso! -A voz de Susan tornou-se mais agressiva. - Se você não tivesse descoberto o acesso de programador no Skipjack, poderíamos desencriptar qualquer código, em vez de nos limitarmos apenas aos que o TRANSLTR consegue desencriptar a tempo.
- Se eu não tivesse encontrado o acesso - argumentou Hale -, alguma outra pessoa teria. Eu salvei a reputação de vocês por ter descoberto aquilo na época. Imagine quais seriam as conseqüências se o Skipjack estivesse em uso quando alguém descobrisse o furo!
- De qualquer forma - Susan retrucou -, agora temos que lidar com uma EFF paranóica que acha que colocamos acessos secretos em todos os nossos algoritmos.
- Mas não é exatamente o que fazemos? - perguntou Hale, com ironia. Susan lançou-lhe um olhar gélido.
- Tudo bem - disse ele, esfriando os ânimos -, de qualquer maneira a questão já foi resolvida. Vocês construíram o TRANSLTR e agora possuem uma fonte instantânea de informações. Podem ler o que quiserem, quando quiserem e ninguém vai perguntar nada. Vocês venceram.
- Você quer dizer nós vencemos, não? Até onde me lembro, você trabalha para a NSA.
- Não por muito tempo - Hale respondeu, presunçoso.
- Não me faça promessas...
- Estou falando sério. Alguma hora vou cair fora daqui.
- Vou ficar arrasada.
Naquele momento, Susan percebeu que desejava culpar Hale por tudo que estava dando errado. Queria culpá-lo pelo Fortaleza Digital, por seus problemas com David, pelo fato de que não estava no chalé nas montanhas... Nada disso era culpa dele, contudo. Seu único problema real era ser desagradável. Susan precisava ser mais forte, condescendente. Era sua responsabilidade, como chefe da Criptografia, manter a paz, conduzir, educar. Hale ainda era jovem e inocente.
Susan olhou novamente para ele. Era uma pena, pensou, que Hale tivesse o talento necessário para ser uma peça importante para a Criptografia, mas, ao mesmo tempo, ainda não tivesse entendido a magnitude do trabalho que a NSA realizava.
- Greg, estou muito stressada hoje - disse ela, com um tom de voz sereno. - Fico irritada quando você fala da NSA como se fôssemos voyeurs munidos de alta tecnologia. Esta organização foi fundada com um propósito: tornar mais eficaz a segurança da nação. Algumas vezes é preciso perturbar a paz de todos para
garantir que vamos descobrir as laranjas podres em meio às boas. Acho que muitos cidadãos ficariam felizes em sacrificar um pouco de sua privacidade para saber que os "vilões" não podem agir livremente.
Hale permaneceu em silêncio.
- Mais cedo ou mais tarde - continuou ela -, os cidadãos dessa nação terão que decidir em quem confiar. Há muitas coisas boas por aí, mas há também muitas coisas ruins misturadas. Alguém precisa ter acesso a tudo isso para poder separar aquilo que está certo do que está errado. Esse é o nosso trabalho. É o nosso dever. Não importa o que cada um de nós deseje, há um frágil portal separando a democracia da anarquia. A NSA é a guardiã desse portal.
Hale assentiu, pensativo.
- Quis custodiet ipsos custodes?
Susan olhou para ele, sem entender.
- Latim. Das Sátiras, de Juvenal. Significa "Quem guardará os guardiões?".
- Não entendo. Como assim, "guardar os guardiões"?
- Sim. Se nós agimos como guardiões da sociedade, então quem irá nos vigiar para ter certeza de que não somos perigosos?
Susan balançou a cabeça, sem saber o que dizer.
Hale sorriu.
- É assim que Tankado assinava todas as suas mensagens para mim. Era sua máxima favorita.
CAPÍTULO
32
David Becker estava no corredor do terceiro andar, do lado de fora do apartamento 301. Ele olhava para a porta ricamente ornamentada e entalhada, procurando a campainha. Uma questão de segurança nacional.
Becker notou que havia movimento do outro lado da porta. Ouviu pessoas falando em voz baixa. Ele bateu. Uma voz grave respondeu em alemão.
-Ja?
Becker permaneceu em silêncio.
-Ja?
A porta se entreabriu e o rosto arredondado do alemão apareceu na fresta. Becker sorriu educadamente. Não sabia o nome do homem.
- Deutscher, ja? - perguntou ele. - Alemão, certo?
O homem concordou, cauteloso. Becker prosseguiu, em alemão fluente.
- Posso falar com você por um instante?
- O que você quer? - indagou o homem, estranhando aquela situação. Becker percebeu que devia ter se preparado melhor antes de bater na porta de um estranho. Procurou as palavras certas.
- Você possui algo de que preciso.
Aparentemente, essas não eram as palavras certas. O alemão olhou fixamente para ele.
- Ein Ring. Du hast einen Ring. Você possui um anel- disse Becker.
- Vá embora - grunhiu o alemão. Começou a fechar a porta.
Sem pensar, Becker colocou o pé na abertura, impedindo que a porta se fechasse. Ele logo lamentou ter feito isso.
O alemão arregalou os olhos, possesso.
- Was tust du? O que você está fazendo? - perguntou.
Becker sabia que tinha passado dos limites. Olhou nervosamente para os dois lados do corredor. Ele já havia sido expulso da clínica e não queria que isso acontecesse de novo.
- Nimm deinen Fuss weg! - gritou o alemão. - Tire seu pé daí!
Becker olhou rapidamente para os dedos gorduchos do alemão, procurando o anel. Nada. Cheguei tão perto, pensou.
- Ein Ring!- repetiu Becker, mas o alemão bateu a porta na sua cara.
David Becker permaneceu um longo tempo parado no corredor luxuosamente decorado. A réplica de um quadro de Salvador Dalí estava pendurada perto dele. Muito adequado, pensou Becker. Surrealismo. Estou preso em um sonho surreal. Havia acordado naquela manhã em sua própria cama, mas, por algum motivo peculiar, tinha ido parar na Espanha e agora estava tentando entrar à força no quarto de hotel de um estranho em busca de um anel "mágico".
A lembrança da voz seca de Strathmore o trouxe de volta à realidade. Você precisa encontrar aquele anel.
Becker respirou fundo e silenciou a voz em sua mente. Tudo o que queria era voltar para casa. Olhou de novo para a porta do 301. Seu tíquete para casa estava bem ali, do outro lado. Tudo o que precisava fazer era ir até lá e pegar o anel.
Inspirou e expirou longamente, tentando relaxar. Então dirigiu-se novamente para o 301 e bateu com firmeza na porta. Era hora de jogar pesado.
O alemão escancarou a porta e estava prestes a reclamar, mas Becker foi mais rápido. Puxou o cartão do clube de squash de Maryland e vociferou:
- Polizei! - Forçou a passagem, entrou no quarto e acendeu as luzes.
O alemão virou-se, em estado de choque.
- Was machst...
- Silêncio! - Becker voltou a falar em inglês. - Você está com uma prostituta aqui? - perguntou, enquanto olhava ao redor, à procura da mulher. Era o quarto de hotel mais suntuoso que já havia visto. Havia rosas, champanhe e uma grande cama com um dossel. Rodo não estava ali, mas notou que a porta do banheiro estava fechada.
- Prostitutiert? - O alemão olhou preocupado na direção do banheiro. Ele era maior do que Becker havia imaginado. Sua papada tripla se juntava ao peito cabeludo e depois seu contorno rotundo se ampliava ainda mais na barriga fenomenal. Estava usando um roupão branco do Alfonso XIII e a faixa mal conseguia contornar toda a sua cintura.
Becker encarou o gigante com o olhar mais ameaçador que conseguiu fazer. - Qual o seu nome?
O alemão entrou em pânico.
- O que você quer?
- Estou em uma operação conjunta com o Departamento de Relações Turísticas da Guardia de Sevilha. Há uma prostituta aqui?
O alemão não parava de olhar nervosamente para a porta do banheiro. Ele hesitou, mas finalmente admitiu.
- Ja.
- Você sabia que essa actividade é ilegal na Espanha?
- Não, não sabia - mentiu o outro. - Vou mandá-la embora agora mesmo.
- Lamento, mas é tarde demais para isso - disse Becker, em tom autoritário.
Andou pelo quarto, como via os detectives fazerem nos filmes.
- Tenho uma proposta
- Ein Vorschlag? guaguejou o alemão. - Uma proposta?
- Sim. Posso levá-lo para a delegacia agora mesmo... - Becker fez uma pausa dramática e estalou os dedos.
- Ou? - perguntou o alemão, nervoso.
- Ou podemos fazer um acordo.
- Que tipo de acordo? - O alemão tinha ouvido muitas histórias sobre a corrupção na Guardia Civil espanhola.
- Você tem algo que eu quero - disse Becker.
- Sim, claro! - disse o alemão, mais animado agora e dando um sorriso forçado. - Foi até seu armário pegar a carteira. - Quanto?
Becker lançou-lhe um olhar indignado.
- Você está tentando subornar um oficial da lei?
- Oh! Não, de forma alguma, apenas pensei que... - O alemão rapidamente pôs sua carteira de lado. - Eu... eu... - O homem estava totalmente fora de si. Jogou-se em um canto da cama e entrelaçou as mãos olhando para baixo. A cama gemeu sob seu peso. - Eu lamento.
Becker tirou uma rosa do vaso que estava no centro do quarto e cheirou-a, displicente, antes de deixá-la cair no chão. Virou-se subitamente e disparou. - O que você pode me dizer sobre o assassinato?
O alemão ficou branco.
- Mord? Assassinato?
- Sim, sim, lembra-se? O oriental, hoje pela manhã? No parque? Foi um assassinato: Ermordung. - Becker amava o termo alemão para assassinato: Ermordung. Era de arrepiar.
- Ermordung? Ele... ele foi...?
-Sim.
- Mas isso não é possível- disse o alemão, com falta de ar. - Eu estava lá. Ele teve um ataque cardíaco. Eu vi. Não havia sangue, nenhuma bala.
Becker balançou a cabeça, complacente.
- As coisas nem sempre são o que parecem.
O alemão ficou ainda mais pálido.
Becker sorriu internamente. Sua mentira havia surtido efeito. O pobre homem estava branco e suava em profusão.
- O que... o que você quer? - balbuciou. - Não sei de nada.
Becker começou do início.
- O homem que foi assassinado usava um anel de ouro. Preciso do anel.
- N-não está comigo.
Becker suspirou, condescendente, e fez um gesto na direção do banheiro. - E Rodo? Dewdrop?
O homem, que já estava branco, ficou azul.
- Você conhece Dewdrop? - Limpou o suor que escorria por sua testa, molhando as mangas do roupão. Estava prestes a dizer algo quando a porta do banheiro se abriu.
Os dois olharam na mesma direção.
Rodo Eva Granada estava de pé junto à porta. Uma visão e tanto. Seus cabelos ruivos eram longos e lisos. A pele era lisa e bronzeada, os olhos castanhos e a face longilínea. Também usava um roupão do hotel. A faixa estava perfeitamente apertada, ressaltando seus belos quadris. A parte superior do roupão se abria em um longo decote, revelando a pele bronzeada e deixando entrever os seios. Saiu do banheiro inteiramente segura de si.
- Posso ajudá-lo? - perguntou, num inglês imperfeito.
Becker, do outro lado do quarto, olhou para aquela mulher estonteante, mas sequer piscou. Apenas disse, friamente:
- Preciso do anel.
- Quem é você? - ela perguntou.
Becker voltou a falar espanhol, com um sotaque perfeito da Andaluzia.
- Guardia Civil.
Ela riu.
- Impossível- respondeu, em espanhol.
Becker sentiu um nó na garganta. Rodo claramente era mais dura na queda do que seu cliente.
- Impossível? - repetiu ele, mantendo a calma. - Quer ir até a delegacia para que eu possa provar?
Rodo sorriu maliciosamente.
- Prefiro não aceitar a oferta, pois não gostaria de constrangê-lo. Agora me diga, quem é você?
Becker decidiu continuar na mesma linha.
- Trabalho para a Guardia de Sevilha.
Rodo moveu-se, provocante, em sua direção.
- Conheço todos os policiais da cidade. São meus melhores clientes. Becker sentiu aquele olhar cortante atravessá-lo. Repensou sua estratégia. - Faço parte de uma força tarefa especial para turistas. Me dê o anel, ou terei que levá-la até o distrito e...
- E o quê? - perguntou ela, levantando uma das sobrancelhas, zombeteira, os olhos fixos em Becker.
Ele ficou em silêncio. Havia passado do ponto, e agora o plano estava se voltando contra ele. Por que ela não está acreditando em minha história?
Rodo aproximou-se ainda mais.
- Olhe, não sei quem você é nem o que você quer, mas, se não sair deste quarto agora, vou chamar a segurança do hotel, e a verdadeira Guardia irá prendê-lo por se fazer passar por um policial.
Becker sabia que Strathmore poderia tirá-lo da cadeia em cinco minutos, mas no seu último telefonema havia ficado bem claro que ele deveria lidar com o assunto de forma extremamente discreta. Ser preso não fazia parte dos planos.
Rodo parou bem perto de Becker. Continuava olhando fixamente para ele.
- Está bem - disse Becker, com um suspiro, dando-se por derrotado. Deixou de lado seu perfeito sotaque de Sevilha e disse: - Não estou trabalhando para a polícia de Sevilha. Uma organização do governo dos Estados Unidos me enviou para localizar o anel. É tudo que posso dizer. Me autorizaram a pagar uma boa
soma por ele.
Houve um longo silêncio.
Rodo deixou as palavras de Becker suspensas no ar por alguns instantes antes de dizer, com um sorriso malicioso:
- Ora, ora, não foi tão difícil assim, não é? - sentou-se em uma cadeira e cruzou as pernas. - Quanto você pode pagar?
Becker sentiu-se aliviado. Ele não perdeu tempo e foi directo ao assunto.
- Cinco mil dólares americanos. - Era metade do valor que levava com ele, mas provavelmente umas dez vezes mais do que o anel valia de facto.
Rodo ergueu as sobrancelhas.
- Isso é muito dinheiro.
- Sim. Podemos chegar a um acordo?
Rodo balançou a cabeça.
- Gostaria de poder dizer que sim.
- Dez mil dólares? - Becker apressou-se em dizer. - É tudo que tenho.
- Nossa! - ela sorriu. - Americanos realmente não sabem negociar. Você não iria durar um dia no mercado local.
- Dinheiro vivo, agora - disse Becker, pegando o envelope em seu bolso. Só quero ir para casa.
Rodo sacudiu a cabeça.
- Não posso.
- Por que não? - respondeu Becker, rispidamente.
- O anel não está mais comigo - disse ela, se desculpando.
CAPÍTULO
33
Em seu escritório, Tokugen Numataka andava de um lado para o outro, como um animal enjaulado. Ainda não tinha recebido notícias de seu contacto, North Dakota. Malditos americanos! Não têm a menor noção de pontualidade!
Ele mesmo teria ligado de volta para North Dakota, mas não sabia seu número. Numataka odiava fazer negócios dessa forma, quando outra pessoa estava no controle.
Desde o início Numataka tinha suspeitado de que as chamadas de North Dakota podiam ser falsas. Talvez fosse um competidor japonês se divertindo com ele, fazendo-o de tolo. Estava novamente pensando nisso. Numataka concluiu que precisava de mais informações.
Saiu apressadamente de seu escritório e entrou no primeiro corredor à esquerda. Seus funcionários se curvavam em sinal de reverência quando passava. Numataka tinha plena consciência de que não faziam isso porque gostavam dele: a reverência era uma cortesia meramente formal, e os funcionários a fariam mesmo para o mais temível chefe.
Numataka foi directo para a principal mesa telefônica da empresa. Todas as chamadas eram repassadas por uma única telefonista através de uma Corenco 2000, uma central de 12 linhas. A operadora estava ocupada, mas levantou-se e fez uma mesura assim que viu Numataka entrar.
- Sente-se - ordenou. - Recebi uma chamada às 4h45 em minha linha pessoal hoje. Você pode me dizer qual a origem? - Numataka se arrependera por não ter feito isso antes.
A telefonista respondeu, nervosa.
- Não temos um identificador de chamadas nesta máquina, senhor. Mas posso falar com a companhia telefônica. Tenho certeza de que podem ajudar.
Numataka não tinha dúvida de que poderiam ajudar. Nesta era digital, a privacidade havia se tornado uma coisa do passado - tudo estava registrado em algum lugar. As companhias telefônicas podiam dizer exatamente quem havia ligado e quanto tempo a chamada tinha durado.
- Fale com eles e depois me diga o que descobriu - ordenou.
CAPÍTULO
34
Susan estava sozinha no Nodo 3, ainda esperando pelo resultado de seu tracer. Hale havia decidido tomar um pouco de ar do lado de fora, o que a deixava feliz. Estranhamente, contudo, a solidão do Nodo 3 não a reconfortava. Susan ainda estava pensando no que havia descoberto sobre Tankado e Hale.
Quem guardará os guardiões?, repetia para si mesma. Quis custodiet ipsos custodes. As palavras giravam em sua mente. Susan forçou-se a pensar em outra coisa. Lembrou-se de David. Ela continuava preocupada com seu bem-estar e ainda achava estranho que ele estivesse na Espanha. Quanto mais cedo encontrassem as chaves e terminassem com isso, melhor.
Susan havia perdido a conta de quanto tempo tinha ficado sentada ali, esperando o resultado do tracer. Duas horas? Três? Olhou para fora, para o salão deserto da Criptografia, e torceu para seu terminal emitir algum som. Mas havia apenas silêncio. O sol daquele final de verão já se pusera, e a iluminação automática se acendera na sala e no domo. Susan sentiu que o tempo estava se esgotando.
Olhou para o tracer em sua tela, pensativa. Vamos lá. Você já teve tempo suficiente. Ela clicou o mouse para activar a janela de status do tracer. Há quanto tempo você já está activo?
Assim como a tela do ExeMon do TRANSLTR, a janela de status do tracer mostrava, em horas e minutos, há quanto tempo o programa estava sendo executado. Susan esperava ver uma contagem de uma ou duas horas, pelo menos. Em vez disso, viu uma mensagem totalmente diferente que fez seu sangue gelar nas veias.
TRACER CANCELADO
Cancelado?, ela disse em voz alta, perplexa. Por quê?
Num acesso de pânico, Susan olhou desnorteada para seu programa procurando qualquer comando que pudesse ter provocado o cancelamento do tracer. Sua busca foi em vão. Parecia que o próprio tracer interrompera sua execução. Para Susan, isso só podia significar uma coisa: seu tracer tinha um bug, um erro de programação.
Susan considerava que os bugs eram a coisa mais irritante na programação de computadores. Como os computadores seguem ordens minuciosas de operação, qualquer erro mínimo geralmente traz enormes conseqüências. Pequenos erros - como, por exemplo, quando um programador digita uma vírgula em vez de um ponto - podem fazer sistemas inteiros parar. Susan sempre achou engraçada a origem da palavra bug, que significa, literalmente, insecto.
O termo originou-se do primeiro computador do mundo, o Mark I, COllStruído em 1944 em um laboratório da Universidade de Harvard. Ocupava uma sala inteira e era um labirinto de cabos conectando válvulas e circuitos electromecânicos. Quando estava em operação, surgiu um erro persistente, e ninguém conseguia descobrir a causa. Após horas de pesquisas, um assistente de laboratório finalmente solucionou o problema. Aparentemente uma mariposa havia pousado em uma das placas do computador e, tendo morrido pelo choque elétrico, criou um curto-circuito. A partir de então, os erros de computador passaram a ser freqüentemente chamados de bugs.
Não tenho tempo para isso, praguejou Susan.
Encontrar um bug em um programa é um processo que pode levar dias.
Milhares de linhas de código de programação precisam ser investigadas para encontrar um erro minúsculo - quase como inspecionar uma enciclopédia à procura de um erro de digitação.
Sua única escolha era enviar o tracer novamente. Ela sabia, contudo, que o tracer provavelmente iria se deparar com o mesmo erro e abortar a operação novamente. Encontrar e corrigir o erro levaria tempo, e tempo era algo que ela e o comandante não tinham.
Contudo, enquanto Susan olhava para o tracer, pensando que erro ela poderia ter cometido, percebeu que havia alguma coisa que não fazia sentido. Ela tinha usado exactamente a mesma versão do tracer um mês atrás sem nenhum problema. Como seria possível que surgisse um erro do nada?
Lembrou-se de um comentário que Strathmore havia feito antes. Eu mesmo tentei enviar seu tracer, mas ele não parava de retornar dados sem sentido.
Não parava de retornar dados, Susan pensou. Como aquilo era possível? Que dados ele estava retornando?
Se Strathmore havia recebido dados de volta do tracer, então o programa estava funcionando. Os dados não faziam sentido, presumiu Susan, porque o comandante havia digitado chaves de pesquisa incorrectas. Ainda assim, o tracer estaria funcionando.
Susan repensou a questão e concluiu que havia uma explicação alternativa para o tracer ter abortado. Erros de programação não eram a única coisa capaz de interromper um programa em andamento. Algumas vezes havia forças externas em acção, como variações na energia, problemas em placas de circuito ou no cabeamento. Como o hardware do Nodo 3 era muito avançado, ela sequer tinha levado essas hipóteses em conta.
Levantou-se e andou rapidamente na direção de uma grande prateleira cheia de manuais técnicos. Pegou um fichário rotulado de SYS-Op e percorreu o índice. Achou o que queria, voltou para seu terminal com o manual e digitou alguns comandos. Então esperou enquanto o computador vasculhava a lista dos comandos executados nas últimas três horas. Ela esperava que a pesquisa indicasse algum tipo de interrupção externa, como um comando de cancelamento gerado por alguma falha elétrica ou um chip defeituoso.
O terminal de Susan emitiu um bipe. Seu pulso se acelerou. Olhou para a tela, ansiosa.
CODIGO DE ERRO 22
Susan sentiu suas esperanças aumentarem. Aquilo era uma boa notícia. O facto de que a pesquisa havia retornado um código de erro significava que o tracer estava funcionando bem. Aparentemente havia sido abortado por uma anomalia externa que dificilmente se repetiria.
CODIGO DE ERRO 22. Susan vasculhou a memória tentando lembrar o que aquele erro significava. As falhas de hardware eram tão raras no Nodo 3 que ela não conseguia se lembrar dos códigos numéricos.
Ela abriu o manual de SYS-Op e começou a ler a lista de erros.
19: PARTIÇÃO DE DISCO RÍGIDO CORROMPIDA
20: FLUTUAÇÃO DE ENERGIA
21: FALHA DE MEMÓRIA
Quando chegou no número 22, parou e ficou olhando, estática, para o manual. Perplexa, conferiu mais uma vez a tela.
CÓDIGO DE ERRO 22
Susan voltou a olhar para o manual de SYS-OP. O que via não fazia sentido. O manual dizia apenas:
22: CANCELAMENTO MANUAL
CAPÍTULO
35
Becker olhou para Rodo, atônito.
- O anel não está com você?
- Não - respondeu ela, os cabelos ruivos caindo sobre os ombros.
Becker desejou que fosse mentira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário