quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Começou a girar o corpo apontando a arma, mas já sabia que seria tarde demais.
Foi como se um raio atingisse seu corpo do alto do seu crânio às solas dos pés
quando o cotovelo do assassino encostou na sua nuca.
- Agora você é minha - disse uma voz.
Então, tudo ficou negro.
Do outro lado da igreja, na parede lateral esquerda, Langdon equilibrava-se em
um banco, estendendo o braço em impulsos, tentando alcançar a braçadeira. O
cordão estava a mais de três metros acima de sua cabeça. Braçadeiras como
aquela eram comuns nas igrejas, sempre colocadas no alto para evitar que fossem
tocadas. Langdon sabia que os padres usavam escadas de madeira chamadas
piuòli para alcançar as braçadeiras. O matador obviamente usara a escada da
igreja para içar sua vítima. Onde está o raio da escada? Langdon olhou para baixo,
procurando-a pelo chão. Tinha uma vaga lembrança de ter visto uma escada por
ali em algum lugar. Mas onde? Um segundo mais tarde, lembrou-se, desalentado,
onde a vira. Voltou-se para a fogueira. Lá estava a escada, sobre a pilha de
bancos, envolta em chamas.
Desesperado, olhando do alto, procurou por toda a igreja algo que o pudesse
ajudar a alcançar a braçadeira. E, de repente, ocorreu-lhe: onde estará Vittoria?
Ela desaparecera. Será que foi buscar ajuda? Gritou o nome dela, mas não obteve
resposta. E onde foi parar Olivetti?
Ao ouvir um urro de dor vindo de cima, Langdon achou que já era tarde demais.
Levantando os olhos de novo para a vítima que queimava lentamente, ele só
pensou em uma coisa. Água.
Muita água. Para apagar o fogo. Pelo menos para diminuir a altura das chamas.
- Preciso de água, de água! - berrou ele.
- Mais tarde - rosnou uma voz vinda do fundo da igreja.
Langdon girou, quase caindo do banco.
Em largas passadas pela nave lateral, vinha em sua direção um monstro sombrio
em forma de homem. Mesmo à luz da fogueira, seus olhos negros tinham um
brilho escuro. Langdon reconheceu na mão dele o revólver que saíra do bolso de
seu próprio casaco, o que Vittoria estivera segurando ao entrarem na igreja.
A repentina onda de pânico que o acometeu era uma mistura desconexa de muitos
medos. Seu primeiro instinto foi pensar em Vittoria. O que aquele animal teria
feito com ela? Estaria machucada? Ou algo pior? Naquele instante, o homem que
estava suspenso lá em cima começou a gritar mais alto. O cardeal ia morrer. Era
impossível ajudá-lo agora. Quando o Hassassin mirou o revólver no peito de
Langdon, o pânico novamente se apoderou dele, seus sentidos ficaram
sobrecarregados. E, quando o tiro partiu, seu reflexo foi pular de cabeça, os braços
estendidos para a frente, no mar de bancos da igreja.
Chocou-se com os bancos com mais força do que imaginara, rolando
imediatamente para o chão. O mármore recebeu o impacto do seu corpo com a
mesma gentileza do aço frio. Passos aproximaram-se pela direita. Langdon virou
o corpo para a frente da igreja e saiu agachado, oculto pelos bancos, tentando
salvar a própria vida.
Muito acima do chão da igreja, o cardeal Guidera vivia seus últimos torturantes
minutos de consciência. Ao baixar os olhos para seu corpo nu, viu a pele dos seus
pés formando bolhas e soltando-se. Estou no inferno, concluiu. Deus, por que me
abandonastes? Sabia que devia ser o inferno porque estava olhando para as letras
em seu peito de cabeça para baixo e, no entanto, como se por um sortilégio do
demônio, a palavra era perfeitamente legível.
CAPÍTULO 92
Três votações. E nada de Papa.
Dentro da Capela Sistina o cardeal Mortati começou a rezar por um milagre.
Mande-nos os candidatos!
O atraso já se prolongara demais. Um único candidato faltando, dava para
entender. Mas os quatro? Não deixava nenhuma opção. Naquelas condições, só
por um ato de Deus em pessoa obteriam a maioria de dois terços.
Quando as dobradiças da porta externa começaram a ranger e a porta se abriu,
Mortati e todo o Colégio dos Cardeais voltaram-se juntos para a entrada. Mortati
sabia que aquilo só poderia significar uma coisa. Pela lei, as portas da capela
somente podiam ser abertas por duas razões - para retirar do recinto os que se
encontrassem muito doentes ou para admitir os cardeais atrasados.
Os preferiti estão chegando!
O coração de Mortati alçou vôo, O conclave estava salvo.
Todavia, quando a porta se abriu, o murmúrio de espanto que ecoou pela capela
não foi de alegria. Mortati viu, incrédulo, o homem entrar na capela. Pela primeira
vez na história do Vaticano, um camerlengo atravessava o sagrado limiar do
conclave depois de selar as portas.
O que ele pensa que está fazendo?
O camerlengo encaminhou-se para o altar e posicionou-se para falar à platéia
estupefata.
- Signori - disse -, esperei o mais que pude. Existe algo que todos aqui têm o
direito de saber.
CAPÍTULO 93
Langdon avançava sem saber para onde ia. Sua única bússola eram seus reflexos,
afastando-o do perigo. Seus cotovelos e joelhos ardiam enquanto se esgueirava
entre os bancos, mas não parava. Algo lhe dizia para ir para a esquerda. Se
conseguir chegar à nave principal, posso correr para a saída. Mas isto seria
impossível. Há uma parede de fogo no meio da nave principal! Com a cabeça à
cata de opções, ele prosseguia cegamente. Os passos aproximavam-se mais
depressa, agora pela direita.
Quando aconteceu, Langdon não estava preparado. Calculara que houvesse mais
uns três metros de fileiras de bancos até a parte da frente da igreja. Calculara mal.
Inesperadamente, seu esconderijo terminou. Imobilizou-se um instante, meio
exposto na frente da igreja. Erguendo-se no nicho à sua esquerda, estava a
escultura que o levara ali. Esquecera-se completamente dela.
O Êxtase de Santa Teresa de Bernini surgia como uma espécie de natureza-morta
pornográfica: a santa deitada de costas, o tronco arqueado de prazer, a boca
entreaberta em um gemido e, acima dela, o anjo apontando sua lança de fogo.
Uma bala explodiu no banco por cima da cabeça de Langdon. Seu corpo
precipitou-se como o de um atleta quando é dada a largada. Impelido somente
pela adrenalina e sem ter muita consciência de seus atos, ele subitamente estava
correndo, curvado, a cabeça abaixada, atravessando a frente da igreja para a
direita.
Com as balas pipocando às suas costas, mergulhou de novo e deslizou sem
controle pelo piso de mármore até ir de encontro à grade de um nicho na parede
do lado direito.
Foi então que a viu. Caída no chão junto ao fundo da igreja. Vittoria! As pernas
nuas estavam torcidas sob o corpo, mas Langdon de alguma forma pressentiu que
ela estava respirando. E não tinha tempo para ajudá-la.
Imediatamente, o matador contornou as fileiras de bancos na extremidade
esquerda da igreja e avançou para ele, implacável. Em uma fração de segundo
Langdon percebeu que não tinha mais saída. O matador levantou a arma e
Langdon fez a única coisa que podia. Rolou o corpo por cima da grade para
dentro do nicho. Ao bater no chão do outro lado, as colunas de mármore da
balaustrada foram atingidas por uma saraivada de balas.
Langdon sentiu-se como um animal encurralado ao recuar para o fundo do recinto
semicircular. Diante dele, a única peça que ocupava aquele espaço parecia
ironicamente oportuna - um sarcófago isolado.
Talvez o meu, pensou. Até a tumba em si era apropriada: uma scàtola - um
pequeno e despojado ataúde de mármore. Um enterro de acordo com o orçamento.
O ataúde estava apoiado em dois blocos de mármore e Langdon examinou a
abertura entre eles tentando calcular se daria para passar por ali.
Passos ecoaram atrás dele.
Sem outra opção em vista, ele se comprimiu contra o chão e rastejou na direção
da tumba. Agarrando os dois suportes de mármore, um em cada mão, deu impulso
como se estivesse nadando de peito e puxou o tronco para dentro da abertura sob
o ataúde. O revólver do homem disparou.
Junto com o estrondo do tiro, Langdon experimentou uma sensação que nunca
tivera em sua vida, a de uma bala passando rente à sua carne. Ouviu o silvo do ar,
igual ao que se escuta depois de uma chicotada, quando a bala raspou sua pele e
depois penetrou no mármore levantando uma nuvem de pó. Com o sangue
brotando, arrastou-se pelo resto do espaço embaixo do ataúde. No final, levantouse
e correu para o outro lado.
Para um beco sem saída.
Langdon estava agora cara a cara com a parede do fundo do nicho, já convencido
de que o espaço exíguo atrás da tumba seria o lugar onde iria cair morto. E vai ser
logo, disse para si ao ver o cano da arma surgir na abertura sob o sarcófago. O
Hassassin segurava o revólver quase encostado no chão, mirando direto no meio
do tronco de Langdon.
Impossível errar.
Um resto de autopreservação apoderou-se do inconsciente de Langdon. Torceu o
corpo e virou-se de barriga, paralelamente ao ataúde. Com o rosto para baixo,
fincou as mãos no chão, o corte do vidro dos arquivos abrindo-se com uma
ferroada. Sem fazer caso da dor, empurrou o corpo para cima de modo
desajeitado, arqueando o estômago e afastando-o do chão no mesmo instante em
que o outro atirou. Dava para sentir a onda de choque das balas passando por
baixo dele e pulverizando o poroso mármore travertino atrás. Fechou os olhos.
Lutando contra a exaustão, Langdon rezou para que o tiroteio parasse.
E parou.
À trovoada de tiros seguiu-se o estalido seco de um tambor vazio.
Langdon abriu os olhos devagar, quase temendo que suas pálpebras fizessem
algum ruído. Com um enorme esforço, apesar da dor que o fazia tremer, ele
manteve a posição, arqueado como um gato. Não se atrevia nem a respirar. Os
tímpanos entorpecidos pelo barulho dos tiros, tentava escutar qualquer sinal que
lhe indicasse que o assassino se fora. Silêncio. Pensou em Vittoria, ansioso para ir
ajudá-la.
O som que se seguiu foi ensurdecedor. Animalesco. Um grito gutural de esforço.
O sarcófago acima da cabeça de Langdon inclinou-se apoiado em um dos lados. O
corpo de Langdon tombou e a peça de mármore pesando centenas de quilos
oscilou em sua direção. A gravidade superou o atrito e a tampa foi a primeira a
cair, escorregando de cima da tumba e despencando com grande estrépito ao lado
dele. O ataúde veio atrás, soltando-se de seus apoios e caindo emborcado em cima
de Langdon.
Quando o ataúde desceu, Langdon achou que ficaria sepultado no oco embaixo
dele ou seria esmagado por um dos seus lados. Encolhendo as pernas e a cabeça,
ele compactou o próprio corpo e ainda puxou os braços para junto do tronco.
Fechou os olhos na expectativa angustiante.
O ataúde de mármore bateu com força no chão, que sacudiu inteiro. A borda
superior assentara-se a milímetros do alto de sua cabeça, fazendo seus dentes
chacoalharem. Seu braço direito, que Langdon tivera a certeza de que seria
esmigalhado, estava miraculosamente intacto. Abriu os olhos e viu uma faixa de
luz. A borda direita do ataúde não chegara a encostar no chão e ainda estava em
parte apoiada sobre seus suportes. Olhando para cima, contudo, Langdon viu-se
literalmente encarando a morte.
O ocupante original da tumba estava pendurado acima dele, tendo aderido ao
fundo do sarcófago, como costuma acontecer com os corpos em decomposição. O
esqueleto esperou um instante, como um amante cauteloso, e então, crepitante,
pegajoso, sucumbiu à gravidade e despregou-se. O esqueleto precipitou-se para
abraçá-lo, em meio a uma chuva de pó e ossos pútridos que lhe cobriram os olhos
e a boca.
Antes que Langdon pudesse reagir, um braço penetrou na abertura debaixo do
ataúde, coleando por entre a ossada como uma serpente faminta. Tateou até
encontrar o pescoço de Langdon e comprimiu-o.
Langdon tentou lutar contra o punho de ferro que apertava sua garganta, mas
descobriu que a manga esquerda de seu paletó ficara presa sob a borda do ataúde.
Tinha somente um braço livre e o resultado da luta seria uma batalha perdida.
As pernas de Langdon dobraram-se no único espaço que havia, os pés procurando
apoiar-se no fundo do ataúde acima. Encontrando o apoio, encolheu-se e firmou
os pés. A mão em seu pescoço apertou mais forte; ele fechou os olhos e estendeu
as pernas como um aríete. O ataúde moveu-se ligeiramente para o lado, mas já foi
o suficiente.
Com um rangido áspero, o sarcófago deslizou de cima dos suportes e bateu no
chão. A borda de mármore caiu sobre o braço do homem, que soltou uma
exclamação abafada de dor. A mão largou o pescoço de Langdon, contorcendo-se
e sacudindo no escuro. Quando o homem finalmente conseguiu puxar o braço
para fora, o ataúde caiu com um baque definitivo de encontro ao chão liso de
mármore.
Escuridão completa. De novo. E silêncio.
Não houve batidas frustradas do lado de fora do sarcófago virado. Nenhuma
tentativa para levantá-lo.
Nada. Deitado no escuro no meio de uma pilha de ossos, Langdon procurou
desviar o rumo de seus pensamentos.
Vittoria. Será que você está viva?
Se ele soubesse a verdade, a terrível situação em que Vittoria se encontraria ao
acordar, teria desejado, para o próprio bem dela, que estivesse morta.
CAPÍTULO 94
Sentado na Capela Sistina junto com seus companheiros estarrecidos, o cardeal
Mortati tentava assimilar as palavras que escutava. Diante deles, iluminado
apenas pela luz das velas, o camerlengo acabara de contar uma história de
tamanho ódio e perfídia que Mortati, quando deu por si, estava tremendo. O
camerlengo falou de cardeais seqüestrados, cardeais marcados a fogo, cardeais
assassinados. Falou dos antigos Illuminati, um nome que trazia à memória medos
esquecidos, do ressurgimento deles e de seu juramento de vingança contra a
Igreja. Com a voz cheia de pesar, o camerlengo falou de seu último Papa, vítima
de envenenamento pelos Illuminati. E por fim, num sussurro, falou de uma nova
tecnologia mortal, a antimatéria, que ameaçava destruir toda a Cidade do Vaticano
em menos de duas horas.
Quando terminou, foi como se o próprio satã tivesse sugado todo o ar do
ambiente. Ninguém se mexia. As palavras do camerlengo pairavam na penumbra.
O único som que Mortati ouvia agora era o zumbido inusitado de uma câmera de
TV ao fundo, uma presença eletrônica que nenhum conclave na história jamais
tolerara, mas uma presença exigida pelo camerlengo. Para espanto completo dos
cardeais, o camerlengo entrara na Capela Sistina com dois repórteres da BBC -
um homem e uma mulher - e anunciara que eles transmitiriam seu
pronunciamento solene ao vivo para o mundo.
Agora, falando diretamente para a câmera, o camerlengo deu um passo à frente.
- Aos Illuminati - disse ele, a voz mais grave - e aos homens de ciência, deixem
que lhes diga uma coisa - e fez uma pausa. - Vocês ganharam a guerra.
O silêncio espalhara-se agora pelos recônditos mais profundos da capela. Mortati
ouvia a batida desesperada de seu próprio coração.
- As engrenagens estão em movimento há muito tempo - disse o camerlengo. -
Sua vitória foi inevitável.
Nunca antes isto ficou tão evidente quanto neste momento. A ciência é o novo
Deus.
O que ele está dizendo!, pensou Mortati. Será que enlouqueceu? O mundo inteiro
está escutando isso!
- Medicina, comunicações eletrônicas, viagens espaciais, manipulação genética,
estes são os milagres sobre os quais agora falamos às nossas crianças. Estes são os
milagres que alardeamos como prova de que a ciência nos trará as respostas. As
histórias antigas de concepções imaculadas e mares que se abrem não são mais
relevantes. Deus ficou obsoleto. A ciência venceu a batalha. Nós nos rendemos.
Um rumor de confusão e perplexidade agitou a capela.
- Mas a vitória da ciência - o camerlengo acrescentou, a voz se intensificando -
nos custou caro. Custou muito caro para cada um de nós.
Silêncio.
- A ciência pode ter aliviado os sofrimentos das doenças e dos trabalhos
enfadonhos e fatigantes, pode ter proporcionado uma série de aparelhos
engenhosos para nossa conveniência e distração, mas deixou-nos em um mundo
sem deslumbramento. Nossos crepúsculos foram reduzidos a comprimentos de
ondas e freqüências. As complexidades do universo foram desmembradas em
equações matemáticas. Até o nosso amor-próprio de seres humanos foi destruído.
A ciência proclama que o planeta Terra e seus habitantes são um cisco
insignificante no grande plano. Um acidente cósmico - e aqui o camerlengo fez
uma pausa. - Até a tecnologia que promete nos unir, ao contrário, só nos divide.
Cada um de nós está hoje eletronicamente conectado ao globo inteiro e,
entretanto, todos nos sentimos sós. Somos bombardeados pela violência, pela
divisão, pela desintegração e pela traição. O ceticismo passou a ser uma virtude.
O cinismo e a exigência de provas para tudo converteram-se em pensamento
esclarecido. Alguém ainda se admira que as pessoas hoje se sintam mais
deprimidas e derrotadas do que em qualquer outra ocasião da história do homem?
Será que existe alguma coisa que a ciência considere sagrada? A ciência procura
respostas usando fetos não-nascidos como material de pesquisa. A ciência até se
atreve a reorganizar nosso DNA. Despedaça o mundo de Deus em parcelas cada
vez menores em busca de significados e só encontra mais perguntas.
Mortati assistia a tudo cheio de assombro. O camerlengo falava de modo quase
hipnótico agora. Possuía um vigor físico nos movimentos e na voz que Mortati
jamais presenciara em um altar do Vaticano. Suas palavras vinham impregnadas
de convicção e de tristeza.
- A velha guerra entre a ciência e a religião está encerrada - disse o camerlengo. -
Vocês venceram. Mas não venceram honestamente. Não venceram fornecendo
respostas. Venceram redirecionando nossa sociedade de modo tão radical que as
verdades que outrora víamos como diretrizes agora parecem inaplicáveis. A
religião não tem capacidade para acompanhar isto. O crescimento científico é
exponencial. Alimenta-se de si mesmo como um vírus. Cada novo avanço abre
caminho para outros novos avanços. A humanidade levou milhares de anos para
evoluir da roda para o carro. E apenas décadas do carro para o espaço.
Atualmente, calculamos por semana o progresso científico. Estamos girando fora
de controle, O abismo entre nós se aprofunda sem parar e, à medida que a religião
vai ficando para trás, as pessoas se vêem em um vazio espiritual. Imploramos pelo
sentido das coisas. E, acreditem, imploramos de fato. Vemos OVNIS,
freqüentamos médiuns, buscamos contato com os espíritos, experiências
extracorpóreas, uso do poder mental - todas essas idéias excêntricas têm um
verniz científico, mas são descaradamente irracionais. São o grito desesperado da
alma moderna, solitária e atormentada, deformada por seu próprio esclarecimento
e por sua incapacidade de aceitar que haja sentido em qualquer coisa que seja
estranha à tecnologia.
Mortati reparou que, involuntariamente, se inclinara para a frente em seu assento.
Ele, os outros cardeais e gente do mundo inteiro estavam presos a cada palavra
daquele padre. O camerlengo falava sem empregar qualquer retórica ou
virulência. Não fazia referências à Bíblia ou a Jesus Cristo. Usava termos
modernos, sem enfeites, despojados. De certa forma, como se as palavras fluíssem
do próprio Deus, ele utilizava uma linguagem moderna para transmitir a
mensagem antiga. Naquela hora, Mortati entendeu uma das razões por que o
falecido Papa apreciava tanto aquele moço. Em um mundo de apatia, cinismo e
deificação tecnológica, homens como o camerlengo, realistas que sabiam falar às
nossas almas como ele acabara de fazer, eram a única esperança da Igreja.
O tom do camerlengo ficou mais veemente.
- A ciência, dizem vocês, vai nos salvar. A ciência, digo eu, nos destruiu. Desde o
tempo de Galileu, a Igreja vem tentando diminuir o ritmo da marcha implacável
da ciência, às vezes por meios equivocados, mas sempre com intenções benéficas.
Ainda assim, as tentações são grandes demais para o homem resistir. Previno-os,
olhem em torno de si. As promessas da ciência não foram mantidas. As promessas
de eficiência e simplicidade resultaram somente em poluição e caos. Somos uma
espécie despedaçada e frenética, seguindo um caminho que leva à destruição.
O camerlengo fez uma pausa prolongada e então olhou para a câmera com uma
expressão penetrante.
- Quem é esse deus-ciência? Quem é esse deus que oferece poder a seu povo, mas
nenhuma estrutura moral para lhe dizer como usar este poder? Que tipo de deus
dá fogo a uma criança, mas não a avisa sobre seus perigos? A linguagem da
ciência não vem com diretrizes sobre o bem e o mal. Os livros científicos
explicam-nos como criar uma reação nuclear, mas não têm nenhum capítulo
discutindo se é uma boa ou má idéia.
- À ciência, quero dizer o seguinte: a Igreja está cansada. Estamos exaustos de
tanto tentar ser uma diretriz para o mundo. Nossos recursos estão esgotados por
sermos a voz do equilíbrio enquanto vocês se atiram de cabeça em sua busca por
chips menores e lucros maiores. Nem perguntamos por que vocês não se
controlam, pois como poderiam? Seu mundo anda tão depressa que, se pararem
por um instante que seja para refletir sobre as implicações de seus atos, alguém
mais eficiente pode ultrapassá-los em um piscar de olhos. Por isso, vocês vão em
frente. Promovem o aumento das armas de destruição em massa, mas é o Papa
quem tem de viajar pelo mundo suplicando aos líderes que tenham prudência.
Clonam criaturas vivas, mas é a Igreja que tem de lembrar a necessidade de
considerarmos as implicações morais de nossos atos. Incentivam as pessoas a
interagir através de telefones, telas de vídeo e computadores, mas é a Igreja que
abre suas portas e nos lembra de comungar aqui, no mundo real, que é como se
deve fazer. Vocês até matam bebês que ainda não nasceram em nome de
pesquisas que salvarão vidas. Mais uma vez, cabe à Igreja comprovar a falácia de
tal raciocínio.
- E, o tempo todo, vocês proclamam que a Igreja é ignorante. Quem é mais
ignorante, porém? O homem que não sabe definir o raio que cai durante um
temporal ou o que não respeita seu poder admirável? Esta igreja está tentando
chegar a vocês. Está tentando chegar a todas as pessoas. E, todavia, quanto mais
tentamos, mais vocês nos repelem. Mostrem-nos uma prova da existência de
Deus, dizem vocês. E eu respondo, usem seus telescópios para olhar o céu e me
digam como é possível não haver um Deus! - O camerlengo tinha lágrimas nos
olhos. - Vocês perguntam com que Deus se parece, e eu, por minha vez, pergunto
também: de onde vem essa pergunta? A resposta é uma só, a resposta é a mesma.
Não vêem Deus em sua ciência? Como podem deixar de vê-Lo! Vocês
proclamam que a menor alteração na força da gravidade ou no peso de um átomo
teria convertido nosso universo em uma névoa sem vida em vez do magnífico mar
de corpos celestes que contemplamos, e ainda assim deixam de ver a mão de Deus
nisso? Será que é mesmo tão mais fácil acreditar que escolhemos a carta certa em
um baralho em que há bilhões delas? Será que estamos tão falidos espiritualmente
que preferimos acreditar numa impossibilidade matemática e não em um poder
maior do que nós?
- Se vocês acreditam em Deus ou não - disse o camerlengo, a voz mais grave e
carregada de deliberação -,têm de acreditar nisto: quando nós, como espécie,
abandonamos a confiança em um poder maior do que nós, abandonamos também
nossa noção da obrigatoriedade de prestar contas. A fé, todas as formas de fé, são
advertências de que existe algo que não podemos compreender, algo a que temos
de responder. Com fé, prestamos contas uns aos outros, a nós mesmos e a uma
verdade maior. A religião é falha, mas só porque o homem é falho. Se o mundo
exterior pudesse ver esta igreja como eu vejo, além do ritual de dentro dessas
paredes, veria um milagre moderno, uma fraternidade de almas imperfeitas e
simples, querendo apenas ser uma voz de compaixão em um mundo do qual se
está perdendo o controle.
O camerlengo fez um gesto para o Colégio dos Cardeais e a cinegrafista da BBC
instintivamente o acompanhou, focalizando a multidão de cardeais.
- Somos mesmo obsoletos? - perguntou o camerlengo? - Será que esses homens
são mesmo dinossauros? Será que eu também sou? Será que o mundo realmente
precisa de uma voz para os pobres, os fracos, os oprimidos, para as crianças que
ainda não nasceram? Será que realmente precisamos de almas como essas que,
apesar de imperfeitas, passam a vida nos implorando para seguirmos as diretrizes
da moralidade e não nos extraviarmos de nosso caminho?
Mortati percebeu que o camerlengo, conscientemente ou não, estava realizando
uma brilhante manobra. Ao mostrar os cardeais, estava personalizando a Igreja. A
Cidade do Vaticano não era mais uma construção, era feita de gente - gente como
o camerlengo, que passara a vida a serviço do bem.
- Esta noite, estamos à beira de um precipício - disse o camerlengo.
- Nenhum de nós pode se dar ao luxo da indiferença. Quer encarem toda essa
maldade como Satã, corrupção ou imoralidade, o fato é que as forças do mal estão
vivas e crescendo a cada dia. Não as ignorem. - O camerlengo baixou a voz a um
sussurro e a câmera se aproximou. - As forças são poderosas, mas não são
invencíveis, O bem pode prevalecer. Ouçam a voz de seus corações. Ouçam a voz
de Deus. Juntos, podemos recuar deste abismo.
E Mortati enfim compreendeu. Aquela era a razão. O conclave fora violado, mas
era o único jeito. O camerlengo fizera um dramático e desesperado pedido de
ajuda. Dirigira-se não só a seu inimigo como também a seus amigos. Estava
rogando a todos, amigos ou inimigos, que compreendessem e parassem com
aquela loucura. Com certeza, alguém que estivesse escutando perceberia a
insanidade daquela trama e tomaria uma atitude.
O camerlengo ajoelhou-se no altar.
- Rezem comigo.
O Colégio dos Cardeais caiu de joelhos para unir-se ao camerlengo em uma prece.
Lá fora, na Praça de São Pedro e em todos os países, o mundo aturdido ajoelhouse
junto com eles.
CAPÍTULO 95
O Hassassin deitou seu troféu inconsciente na traseira do furgão e levou uns
instantes examinando o corpo estendido. Não era tão bonita quanto as mulheres
que comprava, mas tinha um vigor animal que o excitava. O corpo era radioso,
orvalhado de transpiração. E cheirava a almíscar.
Parado ali saboreando sua recompensa, ele ignorava o braço que latejava. O
ferimento causado pela queda do sarcófago, embora doloroso, era insignificante.
Valia bem a compensação que se encontrava diante dele. Consolava-o pensar que
o americano que lhe fizera aquilo provavelmente estaria morto àquela altura.
Contemplando sua prisioneira inerte, o Hassassin visualizava o que o esperava.
Correu a palma da mão sob a blusa dela. Os seios pareciam perfeitos sob o sutiã.
Sim, sorriu. Você valeu muito a pena.
Lutando contra a vontade de possuí-la de imediato, ele fechou a porta, sentou-se
ao volante e desapareceu na noite.
Não havia necessidade de alertar a imprensa sobre aquela última morte: as
labaredas do incêndio fariam isso por ele.
No CERN, Sylvie estava sob o efeito atordoante da fala do camerlengo. Nunca
antes se sentira tão orgulhosa de ser católica e, ao mesmo tempo, tão
envergonhada de trabalhar no CERN. Ao sair do setor de lazer, reparou que a
atmosfera em cada uma das salas era sombria e desconcertada. Quando voltou
para o escritório de Kohler, as sete linhas de telefone estavam tocando. As
ligações dos meios de comunicação nunca eram encaminhadas direto para a sala
do diretor, portanto as chamadas só podiam ter um motivo.
Geld. Dinheiro.
A tecnologia da antimatéria já tinha pretendentes.
No Vaticano, Gunther Glick estava nas nuvens enquanto seguia o camerlengo na
saída da Capela Sistina.
Ele e Macri tinham acabado de fazer a transmissão ao vivo da década. E que
transmissão extraordinária.
O camerlengo fora fascinante.
Já no saguão, o camerlengo virara-se para Glick e Macri:
- Pedi à Guarda Suíça para reunir algumas fotografias para vocês, tanto dos
cardeais marcados a fogo quanto uma de Sua Santidade. Devo preveni-los de que
não são imagens agradáveis. Queimaduras medonhas, língua negra. Mas gostaria
que as divulgassem para o mundo.
Ele quer que eu divulgue uma foto exclusiva do Papa morto?
- O senhor quer mesmo? - perguntou Glick, procurando não demonstrar sua
animação.
O camerlengo balançou a cabeça.
- A Guarda Suíça também vai lhe fornecer uma gravação ao vivo do tubo de
antimatéria em contagem regressiva.
Glick estava pasmo.
- Os Illuminati estão prestes a descobrir - declarou o camerlengo - que jogara
pesado demais.
CAPÍTULO 96
Como um tema recorrente em uma sinfonia demoníaca, a sufocante escuridão
estava de volta.
Sem luz. Sem ar. Sem saída.
Langdon estava preso debaixo do sarcófago emborcado e sentia sua mente derivar
perigosamente para o limiar da sanidade. Tentando desviar seus pensamentos para
outro rumo além do espaço apertado em torno dele, forçava a sua cabeça a se
ocupar com algum processo lógico - matemática, música, qualquer coisa. Mas não
havia lugar para pensamentos calmantes. Não posso me mexer! Não posso
respirar!
A manga presa de seu paletó felizmente se soltara quando o ataúde caíra,
deixando-o com mobilidade nos dois braços. Mesmo assim, ao empurrar para
cima o teto de sua cela minúscula, esta permaneceu imóvel.
Teria sido melhor ficar com a manga presa, que talvez deixasse uma fresta para o
ar entrar.
Quando tentou empurrar outra vez, sua manga escorregou e revelou o brilho de
um velho amigo. Mickey.
A carinha esverdeada de desenho animado olhava-o, zombeteira.
Langdon examinou a escuridão tentando distinguir algum outro vestígio de
claridade, mas a borda do ataúde ajustava-se perfeitamente ao chão. Esses
desgraçados desses italianos perfeccionistas, praguejou ele; agora estava em
perigo por causa da mesma excelência artística que ensinava seus alunos a
reverenciar: acabamentos impecáveis, paralelos perfeitos e, claro, só o mármore
de Carrara mais resistente e sem falhas.
A precisão às vezes pode ser sufocante.
- Levante essa droga - disse em voz alta, empurrando com mais força através do
emaranhado de ossos. A tumba deslocou-se ligeiramente. Cerrando a mandíbula,
tentou levantá-la de novo. Tinha a impressão de estar suspendendo uma pedra
enorme, mas dessa vez o ataúde subiu alguns milímetros. Uma luminosidade
fugidia cercou-o e depois o ataúde tombou com um baque seco. Langdon ficou
arquejando no escuro.
Tentou usar as pernas como fizera antes, mas, com o ataúde inteiramente
encostado no chão, não havia espaço nem para esticar seus joelhos.
Invadiu-o um pânico claustrofóbico e Langdon foi assoberbado por imagens do
sarcófago encolhendo em torno dele. Pressionado pelo delírio, combateu a ilusão
com todos os restos de lógica intelectual que ainda possuía.
- Sarcófago - enunciou em voz alta, com o máximo de esterilidade acadêmica que
conseguiu arranjar. No entanto, até a erudição parecia estar contra ele. Sarcófago
vem do grego sarx, significando carne, e phagein, que quer dizer "comer' Estou
preso em uma caixa literalmente criada para “comer carne”.
As imagens de carne sendo devorada até o osso serviram apenas de sinistro
lembrete para o fato de que Langdon estava coberto de restos humanos. A
consciência disto deu-lhe náuseas e calafrios. Mas também lhe deu uma idéia.
Remexendo às cegas dentro do caixão, Langdon encontrou um pedaço de osso.
Uma costela, talvez? Não importava o que fosse. O que ele queria era uma cunha.
Se conseguisse levantar o caixão, nem que fosse uma pequena fresta, e enfiar o
fragmento de osso entre a borda e o chão, talvez a quantidade de ar fosse
suficiente para...
Com uma das mãos firmando o pedaço estreito de osso entre a borda e o chão, ele
estendeu a outra mão e empurrou. O ataúde não se moveu. Nem um pouco.
Langdon tentou de novo. Por um instante o ataúde pareceu tremer ligeiramente,
mas foi tudo.
O mau cheiro da decomposição e a falta de oxigênio já lhe tirando as forças, ele
percebeu que só tinha tempo para mais uma tentativa. E que precisaria dos dois
braços.
Reorganizou-se e colocou o pedaço alongado de osso de encontro à borda,
deslocou um pouco o tronco e escorou o osso firmemente com o ombro. Com
cuidado para não tirá-lo do lugar, levantou os dois braços. Sentiu o recinto
abafado começar a asfixiá-lo e uma onda de pânico intenso apoderou-se dele. Era
a segunda vez naquele dia que ficava preso em um local sem ar. Gritando, deu um
empurrão para cima num movimento de explosão. O ataúde ergueu- se por uma
fração de segundo. Foi o bastante. O pedaço de osso que prendera com o ombro
encaixou-se no espaço que se abriu. Quando o ataúde tombou de novo, o osso se
espatifou. Mas dava para ver que ainda havia uma escora. Um filete de luz
aparecia sob a borda.
Extenuado, Langdon soltou o corpo. Torcendo para que a sensação de
estrangulamento em sua garganta passasse, ele esperou. Entretanto, a sensação só
piorou. O ar que penetrava através da minúscula fresta parecia imperceptível.
Langdon pensava se daria para mantê-lo vivo. E, se desse, por quanto tempo? Se
ele desmaiasse, quem descobriria que estava ali?
Levantou o braço, que pesava como chumbo, e olhou o relógio outra vez: 10h12
da noite. Os dedos trêmulos, ajustou o relógio e deu sua última cartada. Torceu
um dos pequeninos ponteiros e apertou um botão.
À medida que a consciência se esvaía e as paredes da tumba o comprimiam, os
velhos medos o assaltaram.
Tentou imaginar que se encontrava em um campo aberto. A cena que lhe ocorreu,
porém, não ajudava em nada. O pesadelo que o assombrara desde pequeno voltou
com toda a força.
As flores aqui parecem pinturas, pensou a criança, sorridente, correndo pela
campina. Pena que seus pais não estavam ali também. Os dois tinham ficado
instalando o acampamento.
- Não vá muito longe - dissera sua mãe.
Ele fingiu não ter ouvido enquanto se afastava aos saltos pela mata.
Agora, atravessando aquele campo magnífico, o menino encontrou pedras
empilhadas.
Imaginou que fossem fundações de alguma casa de campo abandonada. Não se
aproximaria. Sabia que era melhor. Além disso, seus olhos tinham sido atraídos
para outra coisa: uma esplêndida orquídea selvagem, a flor mais rara e bonita de
New Hampshire. Só a vira nos livros.
Empolgado, aproximou-se da flor. Ajoelhou-se ao lado dela. O solo estava fofo,
mole. Viu que a flor havia encontrado um lugar muito fértil para germinar.
Brotara de um pedaço de madeira podre.
Entusiasmado pela idéia de levar aquela maravilha para casa, o menino estendeu o
braço, os dedos prestes a alcançar o caule da flor.
Que nem chegou a tocar.
Com um barulho assustador, a terra cedeu.
Nos segundos do vertiginoso terror da queda, ele achou que iria morrer. Preparouse
para o choque que lhe quebraria os ossos. Quando aconteceu, não houve dor.
Só maciez.
E frio.
Bateu na água profunda primeiro com a cabeça, mergulhando no estreito
negrume.
Rodopiando em saltos desorientados, tateou as paredes escorregadias que o
cercavam por todos os lados. De alguma forma, talvez por instinto, manteve-se na
superfície.
Luz.
Fraca. Lá no alto. A quilômetros de distância, parecia.
Seus braços curvavam-se e agarravam a água, procurando nas paredes do buraco
um ponto onde se agarrar. Só encontrava pedras lisas. Caíra através da tampa
apodrecida de um poço abandonado. Gritou pedindo socorro, mas seus gritos
reverberavam na cavidade apertada. Gritou várias vezes. Acima de sua cabeça, o
buraco de madeira arrebentada foi escurecendo.
Caiu a noite.
O tempo parecia deformar-se na escuridão. O corpo ficou dormente dentro da
água em que ele boiava, nas profundezas, chamando, gritando. Tinha visões
torturantes das paredes caindo e enterrando-o vivo. Seus braços ardiam de fadiga.
Algumas vezes achou que ouvia vozes. Gritou, mas sua voz não saía.., como nos
sonhos.
À medida que a noite passava, mais o poço se aprofundava. As paredes
aproximavam-se pouco a pouco. O menino apertava o corpo de encontro às
pedras, empurrando-as.
Esgotado, queria desistir. Entretanto, sentia a água sustentando-o, esfriando aos
poucos o ardor de seus medos até entorpecê-lo.
Quando a equipe de resgate chegou, encontraram-no quase inconsciente.
Mantivera-se à tona durante cinco horas. Dois dias depois, o Boston Globe
publicou uma matéria de primeira página cujo título era "O Pequeno Nadador que
Conseguiu”.
CAPÍTULO 97
O Hassassin sorriu quando entrou com seu furgão na colossal estrutura de pedra
junto ao rio Tibre. Carregou sua presa escada acima, cada vez mais alto pelo túnel
também de pedra, satisfeito por sua carga ser leve. Chegou à porta.
A Igreja da Iluminação, regozijou-se. A antiga sala de encontros dos Illuminati.
Quem imaginaria que ficava ali?
Lá dentro, deitou-a em um sofá macio. Em seguida, amarrou com habilidade os
braços dela atrás das costas e atou-lhe os pés. Sabia que aquilo por que ansiava
teria de esperar até que sua última tarefa estivesse terminada. Água.
Ainda assim, pensou, podia se permitir um momento. Ajoelhou-se junto a ela e
correu a mão por sua coxa.
Era macia. A mão subiu. Mais. Seus dedos escuros penetraram sob a bainha do
short dela. Mais.
Ele parou. Paciência, disse a si mesmo, sentindo-se excitado. Ainda há trabalho a
fazer.
Encaminhou-se para a alta sacada do aposento. A brisa da noite lentamente
esfriou seu ardor. Muito abaixo, o Tibre corria, vociferante. Levantou os olhos
para o domo de São Pedro, a pouco mais de um quilômetro dali, desnudo sob o
clarão das luzes da imprensa.
- Sua hora final - disse em voz alta, pensando nos milhares de muçulmanos
massacrados durante as Cruzadas. - À meia-noite, vão encontrar seu Deus.
Atrás dele, a mulher se mexeu. O Hassassin se virou. Ponderou se a deixaria
acordar. Ver o terror nos olhos das mulheres era o seu melhor afrodisíaco.
Optou pela prudência, pois seria melhor que ela ficasse inconsciente enquanto ele
estava fora. Embora estivesse amarrada e nunca fosse escapar, o Hassassin não
queria voltar e encontrá-la exausta de tanto lutar. Quero sua força preservada para
mim.
Levantou um pouco a cabeça dela, colocou a palma da mão na parte posterior de
seu pescoço e encontrou a depressão logo abaixo do crânio. Aquele meridiano era
um ponto de pressão que ele já usara inúmeras vezes. Com força esmagadora,
comprimiu o polegar contra a cartilagem macia e sentiu-a afundar. O corpo da
mulher afrouxou de imediato. Vinte minutos, pensou. Ela seria um final tentador
para um dia perfeito.
Depois que ela o servisse e ele a matasse, o Hassassin iria para a sacada assistir
aos fogos de artifício do Vaticano à meia-noite.
Água. Seria o último.
Retirando uma tocha da parede como já fizera três vezes antes, começou a
aquecer a ponta do objeto.
Quando estava em brasa, levou-o para a cela.
Dentro, um único homem estava em silêncio. Velho e solitário.
- Cardeal Baggia - sibilou o matador. - Já rezou?
Os olhos do italiano não demonstravam medo.
- Só pela sua alma.
CAPÍTULO 98
Os seis pompieri destacados para o incêndio de Santa Maria della Vittoria
apagaram a fogueira no meio da igreja com jatos de gás Halon. Água seria mais
barato, mas o vapor que produzia teria estragado os afrescos na igreja e o
Vaticano pagava caro aos pompieri romanos para a prestação de serviços com
rapidez e prudência em todas as construções de sua propriedade.
Os pompieri, pela natureza de seu trabalho, presenciavam tragédias quase
diariamente, mas a execução perpetrada dentro daquela igreja foi algo que
nenhum deles jamais esqueceria. Ao mesmo tempo crucificação, enforcamento e
queima na fogueira, a cena parecia ter saído de um pesadelo gótico.
Infelizmente, a imprensa, como de costume, chegara antes dos bombeiros. Já
tinham feito inúmeras gravações antes que os pompieri esvaziassem a igreja.
Quando enfim os bombeiros desceram a vítima e deitaram-na no chão, todos
sabiam de quem se tratava.
- Cardinale Guidera - murmurou um deles -, di Barcelona.
O homem estava nu. A metade inferior de seu corpo estava toda queimada,
escarlate e negra, o sangue escorrendo de rachaduras abertas nas coxas. Do joelho
para baixo, os ossos das pernas estavam expostos.
Um dos bombeiros vomitou. Outro teve de sair para tomar ar. O maior horror,
contudo, era o símbolo marcado a fogo no peito do cardeal. O chefe dos
bombeiros contornou o corpo, amedrontado. Lavoro del diavolo, dizia para si.
Feito pelo próprio diabo. E fez o sinal-da-cruz pela primeira vez desde a infância.
- Un' altro corpo! - gritou alguém. Um dos bombeiros encontrara outro corpo.
O chefe reconheceu imediatamente a segunda vítima. O austero comandante da
Guarda Suíça era um homem por quem poucos dos responsáveis pela manutenção
da lei e da ordem na cidade sentiam qualquer afeto. O chefe telefonou para o
Vaticano, mas todas as linhas estavam ocupadas. Sabia que não era necessário. A
Guarda Suíça receberia a notícia pela televisão em questão de minutos.
Enquanto avaliava os estragos e tentava reconstituir o que poderia ter acontecido
ali, o chefe viu um nicho crivado de furos de balas. Uma tumba estava virada no
chão, provavelmente caíra de cima de seus suportes durante alguma luta. O lugar
estava um caos. Isso é trabalho para a polícia e para a Santa Sé, pensou o chefe,
dando as costas para aquela confusão.
Assim que se virou, entretanto, ele parou. Ouviu um som que vinha de dentro do
ataúde. Um som que todo bombeiro tinha pavor de ouvir.
- Bomba! - bradou ele. - Tutti fuori!
Quando os membros do esquadrão antibombas desviraram o caixão, porém,
descobriram a origem do bipe eletrônico. Desnorteados, ficaram parados, olhando.
- Mèdico! - um deles finalmente gritou. - Mèdico!
CAPÍTULO 99
- Alguma notícia de Olivetti? - perguntou o camerlengo com aparência esgotada,
quando Rocher o acompanhava da Capela Sistina para o escritório do Papa.
- Não, signore. Temo que tenha acontecido o pior.
Quando chegaram ao escritório do Papa, a voz do camerlengo estava pesada.
- Capitão, acho que não há muito mais que eu possa fazer aqui esta noite. Receio
que já tenha feito até demais. Vou entrar neste escritório para rezar. Gostaria de
não ser incomodado. O resto está nas mãos de Deus.
- Sim, signore.
- Já é tarde, capitão. Encontre aquele tubo.
- Nossa busca prossegue. - Rocher hesitou. - Parece que a arma está muito bem
escondida.
O camerlengo teve um estremecimento, como se não conseguisse pensar no
assunto.
- É verdade. Às 11h15 exatamente, se a igreja ainda estiver em perigo, quero que
você retire daqui os cardeais. Estou colocando a segurança deles em suas mãos.
Peço apenas uma coisa: que esses homens possam sair deste lugar com dignidade.
Faça-os sair para a Praça de São Pedro para ficar lado a lado com o resto do
mundo. Não quero que a última imagem desta igreja seja a de um bando de velhos
assustados esgueirando-se por uma porta dos fundos.
- Muito bem. E o signore? Devo vir buscá-lo também à mesma hora?
- Não será preciso.
- Como assim?
- Vou sair quando tiver espírito para isso.
Rocher refletiu que talvez o camerlengo pretendesse afundar com o navio.
O camerlengo abriu a porta do escritório do Papa e entrou.
- Na verdade... - disse ele, virando-se. - Há uma coisa.
- Signore?
- Parece que há uma friagem neste escritório esta noite. Estou tremendo.
- O aquecimento elétrico está desligado. Permita que acenda a lareira para o
senhor.
O camerlengo deu um sorriso cansado.
- Obrigado, muito obrigado.
Rocher saiu do escritório do Papa deixando o camerlengo rezando à luz da lareira
diante de uma estatueta da Virgem Maria. Era uma cena soturna. Uma sombra
negra ajoelhada na luminosidade bruxuleante.
Quando Rocher cruzava o saguão, um guarda apareceu, correndo em sua direção.
Mesmo à luz de velas, Rocher reconheceu o tenente Chartrand. Jovem,
inexperiente e empenhado.
- Capitão - chamou Chartrand, segurando um telefone celular. - Acho que o
pronunciamento do camerlengo deu resultado. Há uma pessoa aqui ao telefone
que diz ter informações que podem nos ajudar. Ligou para uma das linhas
particulares do Vaticano. Não sei como ele conseguiu o número.
Rocher se deteve.
- O quê?
- Ele disse que só vai falar com o oficial superior.
- Alguma notícia de Olivetti?
- Não, senhor.
Ele apanhou o telefone.
- Aqui é o capitão Rocher. Sou o oficial superior no momento.
- Rocher - disse a voz. - Vou explicar a você quem sou eu. Depois, vou lhe dizer o
que tem de fazer.
Quando o interlocutor se calou e desligou, Rocher ficou estático. Agora sabia de
quem estava recebendo ordens.
No CERN, Sylvie Baudeloque tentava freneticamente dar conta de todos os
pedidos de licença que chegavam no correio de voz de Kohler. A linha particular
na mesa do diretor começou a tocar, sobressaltando-a. Ninguém tinha aquele
número. Ela atendeu.
- Sim?
- Senhorita Baudeloque? Aqui é o diretor Kohler. Entre em contato com meu
piloto. Meu jato tem de estar preparado para decolar em cinco minutos.
CAPÍTULO 100
Robert Langdon não sabia onde estava nem quanto tempo ficara inconsciente
quando abriu os olhos e deu com o interior de uma cúpula barroca coberta de
afrescos. Havia fumaça ondulando lá em cima. Algo cobria sua boca. Uma
máscara de oxigênio. Ele a puxou. Um cheiro horrível pairava no ambiente - de
carne queimada.
Langdon contraiu-se, a cabeça latejando. Tentou sentar-se. Um homem de branco
estava ajoelhado junto dele.
- Riposati! - disse o homem, fazendo Langdon voltar a se deitar. - Sono il
paramédico.
Langdon obedeceu, a cabeça girando como a fumaça no alto. Que diabos
aconteceu? Sensações tênues de pânico passavam rápidas por sua mente.
- Sórcio salvatore - disse o paramédico. - Ratinho salvador.
Langdon ficou ainda mais perdido. Ratinho salvador?
O homem apontou para o relógio do Mickey Mouse no pulso de Langdon. Os
pensamentos dele começaram a clarear. Lembrou-se ter preparado o alarme do
relógio. Olhando distraído para o mostrador, viu também a hora: 10h28.
Sentou-se de repente.
Então, tudo lhe voltou à memória.
Langdon estava perto do altar-mor com o chefe dos bombeiros e alguns dos seus
homens. Eles o bombardeavam de perguntas. Ele não escutava. Tinha suas
próprias perguntas. Seu corpo inteiro doía, mas ele sabia que precisava agir
depressa.
Um pompiero aproximou-se dele vindo do outro lado da igreja.
- Verifiquei de novo, senhor. Os únicos corpos que encontramos foram os do
cardeal Guidera e do comandante da Guarda Suíça. Não há nem sinal de uma
mulher aqui.
- Grazie - disse Langdon, entre aliviado e assustado. Sabia que vira Vittoria caída
no chão, inconsciente.
Agora, ela havia desaparecido. A única explicação para isso não era nada
reconfortante. O matador não fora nem um pouco sutil ao telefone. "Uma mulher
de fibra. Estou excitado. Talvez, antes que esta noite acabe, eu encontre você. E
quando isto acontecer..."
Langdon olhou em torno.
- Onde está a Guarda Suíça?
- Ainda não conseguimos entrar em contato com eles. As linhas telefônicas do
Vaticano estão todas ocupadas.
Langdon sentiu-se prostrado e sozinho. Olivetti estava morto. O cardeal morrera.
Vittoria sumira. Meia hora de sua vida desaparecera em um piscar de olhos.
Lá fora ouvia-se o alvoroço da imprensa. Desconfiava que as imagens da
horripilante morte do terceiro cardeal estariam no ar em breve, se é que já não
estavam. Langdon esperava que o camerlengo tivesse admitido o impasse e
começado a agir. Esvaziem a droga do Vaticano! Chega de esconde-esconde! Nós
perdemos!
Langdon então se conscientizou de que todos os elementos catalisadores que o
vinham mobilizando - ajudar a salvar a Cidade do Vaticano, resgatar os quatro
cardeais, ver de perto a fraternidade que ele estudara durante tantos anos - tinham
se evaporado de sua cabeça. A guerra estava perdida. Uma nova compulsão
acendera-se dentro dele. Simples. Inflexível. Primordial.
Encontrar Vittoria.
Sentia um inesperado vazio dentro de si. Sempre ouvira falar que situações
intensas às vezes uniam mais duas pessoas do que décadas de convivência. Agora
acreditava naquilo. Com a ausência de Vittoria, experimentava algo que há anos
não sentia. Solidão. E o sentimento doloroso deu-lhe forças.
Afastando tudo o mais de sua mente, Langdon procurou concentrar-se. Rezava
para que o Hassassin cuidasse da obrigação antes do prazer. Senão, Langdon sabia
que seria tarde demais. Não, disse consigo, você tem tempo. O captor de Vittoria
ainda tinha trabalho a fazer. Precisava mostrar-se uma última vez antes de
desaparecer para sempre.
O último altar da ciência, pensou Langdon. O matador tinha uma derradeira tarefa
a cumprir. Terra. Ar. Fogo. Água.
Olhou para o relógio. Trinta minutos. Passou pelos bombeiros em direção ao
Êxtase de Santa Teresa. Dessa vez, diante do marco de Bernini, não tinha dúvidas
sobre o que estava procurando.
Que os anjos o guiem em sua busca sublime...
Acima da santa reclinada, diante de um fundo de chamas douradas, pairava o anjo
de Bernini. Na mão dele, uma lança pontiaguda de fogo. Langdon seguiu a
direção da lança, um arco que indicava o lado direito da igreja. Seus olhos deram
com a parede. Examinou o local para onde a lança apontava. Não havia nada ali.
Ele sabia, claro, que a lança apontava para um lugar muito além da parede da
igreja, no meio da noite de Roma.
- Que direção é aquela? - perguntou Langdon ao chefe dos bombeiros com
renovada determinação.
- Direção? - o chefe olhou, sem compreender bem, para onde Langdon apontava. -
Não estou bem certo. Oeste, acho.
- Que igrejas ficam naquela direção?
O chefe ficou ainda mais confuso.
- Há dezenas delas. Por quê?
Langdon fez uma careta. Claro que havia dezenas.
- Preciso de um mapa da cidade. Agora mesmo.
O chefe mandou alguém correndo ao caminhão dos bombeiros buscar um mapa.
Langdon virou-se para a estátua. Terra... Ar... Fogo... VITTORIA.
O marco final é o da Água, disse a si mesmo. A Água de Bernini. Estava em uma
daquelas igrejas lá fora. Uma agulha no palheiro. Vasculhou sua mente passando
em revista todas as obras de Bernini de que se lembrava. Preciso de um tributo à
Água!
Ocorreu-lhe a estátua Tritão de Bernini - o deus grego do mar. E lembrou-se de
que estava localizada na praça do lado de fora daquela mesma igreja e na direção
totalmente errada. Forçou-se a pensar. Que figura Bernini teria esculpido para
glorificar a água? Netuno e Apolo? Infelizmente, aquela estátua se encontrava no
Museu Victoria & Albert, de Londres.
- Signore? - um bombeiro chegou apressado trazendo um mapa.
Langdon agradeceu e abriu o mapa em cima do altar. Instantaneamente, percebeu
que fizera o pedido às pessoas certas. O mapa de Roma do Corpo de Bombeiros
era o mais detalhado que Langdon já encontrara.
- Onde estamos agora?
O homem mostrou.
- Junto à Piazza Barberini.
Langdon deu outra olhadela na lança do anjo para se orientar. O chefe calculara
certo. De acordo com o mapa, a lança apontava para oeste. Langdon traçou uma
linha reta no mapa a partir do lugar onde estavam rumo a oeste. E logo suas
esperanças se esvaíram. A cada centímetro que seu dedo percorria, encontrava
uma construção marcada com uma pequena cruz negra. Igrejas. A cidade estava
cheia delas. Por fim, o dedo de Langdon não encontrou mais igrejas e perdeu-se
nos subúrbios de Roma. Ele suspirou, desanimado, e afastou-se do mapa. Droga.
Observando Roma como um todo, seu olhar se deteve nas três igrejas onde os três
primeiros cardeais tinham sido mortos. A Capela Chigi, São Pedro, aqui...
Contemplando os três locais, Langdon reparou algo estranho em suas posições.
Imaginara que as igrejas estivessem espalhadas ao acaso pela cidade. Mas não
estavam, com toda a certeza. Por mais que lhe parecesse improvável, as três
igrejas estavam separadas sistematicamente, formando um enorme triângulo que
abrangia toda a cidade. Verificou de novo. Não estava imaginando coisas.
- Penna - pediu, sem levantar a cabeça.
Alguém lhe entregou uma caneta esferográfica.
Langdon fez um círculo sobre cada igreja. Seu pulso se acelerou. Conferiu sua
marcação. Um triângulo simétrico!
Seu primeiro pensamento foi a associação com o sinete da nota de um dólar
- O triângulo contendo o olho que tudo vê. Entretanto, aquilo não fazia sentido.
Ele marcara apenas três pontos. Deveria haver um total de quatro.
Então, onde diabos está a Água? Onde quer que colocasse o quarto ponto, o
triângulo seria destruído. A única opção para manter a simetria seria situar o
quarto ponto dentro do triângulo, no centro.
Olhou para o local no mapa. Nada. A idéia ainda assim o importunava. Os quatro
elementos da ciência eram considerados iguais. A água não era especial, não
havia justificativa para que ficasse no centro.
De qualquer maneira, seu instinto lhe dizia que o arranjo sistemático não podia ser
acidental. Não estou distinguindo o quadro completo. Havia somente uma
alternativa: os quatro pontos não formarem um triângulo e sim uma outra figura.
Langdon olhou para o mapa. Um quadrado, talvez? Embora o quadrado não
fizesse sentido simbolicamente, pelo menos era simétrico. Langdon apoiou o dedo
no mapa em um dos pontos que converteriam o triângulo em um quadrado. Viu
logo que um quadrado perfeito seria impossível. Os ângulos do triângulo original
eram oblíquos e criariam algo mais próximo de um quadrilátero torto.
Enquanto estudava os outros pontos possíveis em torno do triângulo, aconteceu
algo inesperado. Notou que a linha que desenhara antes para indicar a direção
assinalada pela lança do anjo passava precisamente por uma das possibilidades.
Estupefato, Langdon fez um círculo sobre aquele ponto. Tinha à sua frente agora
quatro pontos marcados a tinta no mapa, dispostos em um formato um tanto
desajeitado, parecendo uma pipa, o formato de um diamante.
Franziu o cenho. Os diamantes também não eram um símbolo dos Illuminati.
Refletiu um pouco. No entanto...
Por um instante, lembrou-se do célebre Diamante Illuminati. Mas a idéia era
ridícula. Descartou-a. Além do mais, o diamante era oblongo - como uma pipa - e
não seria um bom exemplo da impecável simetria pela qual os Illuminati eram
reverenciados.
Quando se curvou para examinar onde colocara o último marco, Langdon
surpreendeu-se ao constatar que o quarto ponto ficava bem no centro da famosa
Piazza Navona. Estava certo de que havia uma igreja importante na piazza, mas
seu dedo já passara por ela e, que soubesse, não continha nenhuma obra de
Bernini. A igreja chamava-se Santa Inês - ou Santa Agnes - em Agonia, uma santa
jovem e virgem que fora condenada a uma vida de escravidão sexual por recusarse
a renunciar à sua fé.
Deve haver alguma coisa naquela igreja! Langdon deu tratos à bola tentando
lembrar o interior da igreja.
Não tinha conhecimento de qualquer obra de Bernini lá dentro, muito menos
relacionada com água. A disposição dos pontos no mapa também o incomodava.
Um diamante. Era precisa demais para ser coincidência, mas não era precisa o
suficiente para fazer sentido. Uma pipa? Conjeturou se não teria escolhido o ponto
errado. O que é que está faltando?
Langdon levou uns trinta segundos para achar a resposta mas, quando achou,
exultou como nunca antes em toda a sua vida acadêmica.
A genialidade dos Illuminati, pelo jeito, era infinita.
A forma que via não era a de um diamante, não fora planejada para ser a de um
diamante. Os quatro pontos só formavam um diamante porque Langdon ligara
pontos adjacentes. Os Illuminati acreditavam em opostos! Ao ligar vértices
opostos com sua caneta, os dedos de Langdon tremiam. Ali no mapa à sua frente
havia uma enorme cruz. Uma cruz! Os quatro elementos da ciência estendidos
diante de seus olhos, cruzando a cidade de Roma de ponta a ponta.
Enquanto se extasiava com sua descoberta, um verso ressoou em sua mente como
um velho amigo de cara nova.
Através de Roma se estendem os místicos elementos.
'Cross Rome the mystic elements unfold.
'Cross Rome...
A névoa começou a se dissipar. A resposta estivera diante dele a noite inteira! O
poema Illuminati dizia-lhe como os altares da ciência estava dispostos. Em cruz!
'Cross Rome the mystic elements unfold!
Um astuto jogo de palavras. Langdon lera a palavra 'cross - cruz - como uma
abreviatura de across - através. Presumiu que se tratasse de uma licença poética
para manter a métrica do poema em inglês. Mas era muito mais do que isso, era
outra pista disfarçada!
A forma da cruz no mapa, constatou ele, era a extrema dualidade Illuminati, um
símbolo religioso formado por elementos da ciência. O Caminho da Iluminação
de Galileu era um tributo tanto à ciência quanto a Deus!
O resto das peças do quebra-cabeças encaixou-se prontamente.
Piazza Navona.
No centro da Piazza Navona, perto da igreja de Santa Inês em Agonia, Bernini
instalara uma de suas mais celebradas esculturas. Todas as pessoas que visitavam
Roma iam vê-la.
A Fonte dos Quatro Rios!
Um primoroso tributo à água, a Fonte dos Quatro Rios de Bernini glorificava os
quatro maiores rios conhecidos do Velho Mundo - o Nilo, o Ganges, o Danúbio e
o Prata.
Água, pensou Langdon, o marco final. Perfeito.
E ainda mais perfeito, lembrou ele, é que bem no alto da fonte de Bernini havia
um imenso obelisco.
Deixando para trás os bombeiros confusos, Langdon atravessou a igreja às pressas
em direção ao corpo sem vida de Olivetti.
10h31, pensou. Tenho tempo à beça. Pela primeira vez naquele dia sentia-se com
vantagem sobre o inimigo.
Ajoelhando-se ao lado de Olivetti, fora de visão atrás de alguns bancos da igreja,
Langdon apoderou-se discretamente da arma do comandante e de seu walkietalkie.
Teria de pedir socorro, mas não ali. O último altar da ciência tinha de
permanecer em segredo por enquanto. A imprensa e o Corpo de Bombeiros
correndo para a Piazza Navona com a sirene ligada não seriam de grande ajuda.
Sem dizer uma palavra, Langdon escapuliu pela porta e driblou a imprensa, que
agora entrava na igreja em tropel. Cruzou a Piazza Barberini. Nas sombras, ligou
o walkie-talkie. Tentou chamar a Cidade do Vaticano, mas só ouviu estática. Ou
ele estava fora de área ou o transmissor precisava de algum tipo de código de
autorização para o contato. Langdon mexeu nos complicados botões e controles
sem qualquer resultado. Deu-se conta de que seu plano de conseguir ajuda não iria
funcionar. Procurou em torno por um telefone público. Não havia nenhum. As
linhas do Vaticano estariam congestionadas, de qualquer forma.
Estava sozinho.
Com seu impulso inicial de confiança bastante abalado, Langdon parou um
momento para avaliar o estado deplorável em que se encontrava - coberto de
poeira de ossos, machucado, em uma exaustão que beirava o delírio e, ainda por
cima, faminto.
Olhou para a igreja lá atrás. Espirais de fumaça saíam da cúpula, iluminadas pelas
luzes da mídia e pelos caminhões dos bombeiros. Ponderou se deveria voltar e
pedir ajuda. O instinto, porém, lhe dizia que mais ajuda, sobretudo ajuda não
especializada, seria um risco. Se o Hassassin nos vê chegar... Pensou em Vittoria
e pressentiu que aquela seria a última oportunidade de enfrentar o homem que a
capturara.
Piazza Navona, refletiu, sabendo que poderia chegar lá com tempo de sobra e
ficar à espreita. Procurou um táxi, mas as ruas estavam quase desertas. Até os
motoristas de táxi, aparentemente, tinham largado tudo para ver televisão. A praça
ficava a pouco mais de um quilômetro de distância, mas Langdon não tinha a
intenção de gastar uma energia preciosa indo a pé. Olhou de novo para a igreja,
imaginando se poderia pegar algum veículo emprestado.
Um carro de bombeiros? Um furgão da imprensa? Tenha juízo, criatura. Com as
opções e os minutos se esgotando, Langdon tomou uma decisão. Tirou a arma do
bolso e teve uma atitude tão incompatível com seu caráter que achou que sua alma
devia estar possuída. Aproximou-se de um solitário Citroën sedã parado em um
sinal e apontou a arma para o motorista pela janela aberta.
- Fuori! - gritou.
O homem saiu do carro, trêmulo.
Langdon sentou-se depressa ao volante e acelerou.
CAPÍTULO 101
Gunther Glick sentou-se em um banco de uma cela do escritório da Guarda Suíça.
Rezava para todos os deuses que lhe passavam pela cabeça. Por favor, faça com
que NÃO seja um sonho. Tinha sido o furo de sua vida. A reportagem da vida de
qualquer um. Todos os repórteres, sem exceção, gostariam de ser Glick naquele
momento. Você não está sonhando, disse consigo. E é uma celebridade. Dan
Rather deve estar aos prantos neste instante.
Macri estava ao lado dele, um pouco atordoada. Glick compreendia. Além de
divulgarem com exclusividade o discurso do camerlengo, ela e Glick haviam
fornecido ao mundo fotografias impressionantes dos cardeais e do Papa - aquela
língua dele! -, assim como um vídeo com imagens ao vivo do tubo de antimatéria
em contagem regressiva. Incrível!
Claro que tudo acontecera sob os auspícios do camerlengo, portanto não era essa a
razão pela qual Glick e Macri estavam presos na Guarda Suíça. O que não tinha
agradado aos guardas fora aquele audacioso acréscimo de Glick à matéria. Glick
sabia que a conversa que havia noticiado não fora destinada a seus ouvidos, mas
tratava-se da maior oportunidade da sua vida. Mais um furo de reportagem de
Glick!
- O Samaritano da Décima Primeira Hora? - Macri resmungou, sentada ao lado
dele no banco, com cara de pouco caso.
Glick sorriu.
- Foi o máximo, não foi?
- O máximo da idiotice.
Ela está é com inveja, pensou Glick. Logo depois que o camerlengo terminou seu
discurso, Glick, mais uma vez e por pura sorte, viu-se no lugar certo e na hora
certa. Por acaso, tinha ouvido Rocher dando novas ordens a seus homens. Ao que
tudo indica, Rocher havia recebido uma ligação de uma pessoa não identificada
que tinha informações importantíssimas sobre a crise que estavam passando.
Rocher estava falando como se esse homem pudesse ajudá-los e orientava seus
guardas para se aprontarem para a chegada do visitante.
Embora a informação fosse nitidamente confidencial, Glick agiu como qualquer
repórter dedicado faria - sem nenhum respeito. Procurou um canto escuro, pediu a
Macri para ligar a câmera às escondidas e divulgou a notícia.
- Novidades surpreendentes na cidade de Deus - anunciou, apertando os olhos
para dar mais ênfase às palavras. E continuou informando que um convidado
misterioso estava chegando à Cidade do Vaticano para salvar a situação. O
Samaritano da Décima Primeira Hora, Glick assim o batizou - um nome perfeito
para um homem sem rosto que aparecia no último instante para fazer uma boa
ação. Outras redes de emissoras adotaram a alcunha do personagem, que soava
bem, e Glick foi mais uma vez imortalizado.
Sou o máximo, pensou. Peter Jennings deve ter acabado de se atirar de uma ponte.
É evidente que Glick não parou por aí. Com a atenção do mundo voltada para ele,
aproveitou para acrescentar gratuitamente um pouco da própria teoria
conspiratória.
O máximo. Simplesmente o máximo.
- Você acabou conosco - disse Macri. - Estragou tudo.
- Do que está falando? Fui perfeito!
Macri olhou para ele, incrédula.
- O ex-presidente George Bush? Um Illuminatus?
Glick sorriu. Nada podia ser mais evidente. George Bush era um comprovado
maçom de trigésimo terceiro grau e ocupava o mais alto posto da CIA quando a
agência encerrou as investigações sobre os Illuminati por falta de provas. E todos
aqueles discursos sobre "milhares de pontos de luz" e uma "Nova Ordem
Mundial" Claro que Bush era um dos Illuminati.
- E aquela parte sobre o CERN? - disse Macri em tom de reprovação.
- Amanhã, você vai encontrar uma fila bem comprida de advogados à sua porta.
- O CERN? Ora, pare com isso! Está tão na cara! Pense bem! Os Illuminati
desapareceram da face da Terra por volta de 1950, mais ou menos na mesma
ocasião em que o CERN foi fundado. O CERN é um paraíso para as pessoas mais
esclarecidas da Terra. Eles recebem toneladas de recursos financeiros de origem
privada e conseguiram construir uma arma com capacidade para destruir a Igreja
que, opa, eles não sabem onde foi parar?!
- E aí você espalha para o mundo inteiro que o CERN é a nova sede dos
Illuminati?
- É claro! As fraternidades não desaparecem assim sem mais nem menos. Os
Illuminati tinham de ir para algum lugar. E o CERN é o esconderijo perfeito. Não
estou dizendo que todo mundo no CERN seja Illuminati. Provavelmente, aquilo
funciona como uma colossal loja maçônica, onde a maioria é inocente, mas o
escalão superior...
- Já ouviu falar em difamação, Glick? Em responsabilidade civil?
- Já ouviu falar de jornalismo de verdade?
- Jornalismo? Você está inventando chifre em cabeça de burro! Eu devia ter
desligado a câmera! E que besteira foi aquela sobre o logotipo do CERN? Aquela
história de simbologia satânica? Perdeu o juízo?
Glick sorriu. A inveja de Macri estava toda à mostra. O logotipo do CERN foi a
sua proeza de maior brilhantismo. Desde o discurso do camerlengo, todas as
emissoras estavam falando sobre o CERN e a antimatéria. Alguns canais
mostravam o logotipo do CERN como tela de fundo. O logotipo parecia bastante
comum - dois círculos que se cruzam, representando dois aceleradores de
partículas, e cinco linhas tangenciais representando tubos de injeção de partículas.
O mundo inteiro não tirava os olhos desse logotipo, mas fora Glick, que também
tinha os seus conhecimentos sobre símbolos, quem primeiro havia reparado na
simbologia dos Illuminati ali camuflada.
- Você não é especialista em simbologia - reclamou Macri -, é apenas um repórter
com sorte. Devia ter deixado a simbologia por conta do tal sujeito de Harvard.
- O sujeito de Harvard deixou passar essa - respondeu Glick.
A expressão dos Illuminati neste logotipo é muito óbvia!
Glick estava rindo de alegria por dentro. Embora o CERN tivesse inúmeros
aceleradores, o logotipo mostrava apenas dois. Dois é o número da dualidade para
os Illuminati. E embora a maioria dos aceleradores tivesse apenas um tubo de
injeção, o logo mostrava cinco. Cinco é o número do pentagrama dos Illuminati.
Então veio o golpe de mestre, o mais brilhante de todos. Glick observou que no
logotipo estava desenhado o número "6" bem grande, formado por uma das linhas
e um dos círculos, e, se o logotipo fosse girado, apareceria outro número seis e
depois mais um. O logotipo tinha três números seis! 666! O número do demônio!
A marca da besta!
Glick era um gênio.
Macri estava a ponto de agredi-lo.
A inveja dela passaria, disso Glick tinha certeza, enquanto sua mente já se
desviava para outro pensamento. Se o CERN fosse mesmo a sede dos Illuminati,
seria lá o local onde eles guardavam o famoso Diamante Illuminati? Glick lera
sobre isso na Internet: “um diamante sem jaça, nascido dos antigos elementos com
tamanha perfeição que todos os que o viam ficavam extasiados”
Glick ficou imaginando se o paradeiro secreto do Diamante Illuminati poderia vir
a ser mais um mistério que ele desvendaria naquela noite.
CAPÍTULO 102
Piazza Navona, Fonte dos Quatro Rios.
As noites em Roma, como as do deserto, podem ser surpreendentemente frias,
mesmo depois de um dia quente. Langdon estava todo encolhido nos arredores da
Piazza Navona, apertando o paletó contra o corpo. Assim como o ruído do tráfego
à distância, uma cacofonia de reportagens ressoava por toda a cidade. Olhou o
relógio. Quinze minutos. Era bom ter alguns momentos para descansar.
A piazza estava deserta. A magistral fonte de Bernini agitava suas águas diante
dele, enfeitiçante, imponente. O tanque espumante lançava para cima uma névoa
mágica, iluminada por holofotes submersos.
Langdon captava uma gélida eletricidade no ar.
A característica mais impressionante da fonte era sua altura. A parte central
sozinha ultrapassava seis metros - uma montanha escarpada de mármore
travertino talhado em cavernas e grutas entre as quais a água se revolvia. Toda a
elevação era rodeada de símbolos pagãos. No alto, ficava um obelisco que
avançava mais 12 metros. Langdon acompanhou-o com o olhar. Na ponta do
obelisco, uma tênue silhueta desenhava-se no céu: um pombo solitário pousado
silenciosamente.
Uma cruz, pensou Langdon, ainda admirado com a disposição dos marcos através
de Roma. A Fonte dos Quatro Rios de Bernini era o último altar da ciência. Fazia
apenas algumas horas, Langdon estava dentro do Panteão, certo de que o
Caminho da Iluminação havia sido interrompido e de que ele jamais chegaria até
ali. Que grande tolice. Na verdade, o caminho inteiro estava intacto. Terra, Ar,
Fogo, Água. E Langdon o havia percorrido do começo ao fim.
Não exatamente até o fim, fez-se lembrar. O caminho tinha cinco pontos, não
quatro. Essa fonte, o quarto marco, de certa maneira apontava para o destino final,
o refúgio sagrado dos Illuminati: a Igreja da Iluminação. Ele conjeturava se o
esconderijo ainda existiria. Pensava se teria sido para lá que o Hassassin levara
Vittoria.
Langdon examinava as figuras da fonte em busca de alguma pista do caminho
para o esconderijo. Que os anjos o guiem em sua busca sublime. Quase que
imediatamente, porém, uma percepção inquietante ocupou seus pensamentos. Não
havia sequer um anjo nessa fonte. Nenhum anjo, pelo menos nenhum que se
avistasse de onde Langdon se encontrava, e nenhum que ele tivesse visto no
passado. A Fonte dos Quatro Rios era uma obra pagã. As esculturas eram todas
profanas - seres humanos, animais, até mesmo um deselegante tatu. Um anjo aqui
não passaria despercebido.
Seria o lugar errado? Meditou sobre a disposição em cruz dos quatro obeliscos.
Cerrou os punhos. Esta fonte é perfeita.
Ainda eram 10h46 da noite quando um furgão preto apareceu na ruela do lado
mais afastado da praça. Langdon não teria prestado maior atenção se o furgão não
estivesse com os faróis desligados. Como um tubarão rondando em uma baía
enluarada, o carro circulou em volta da praça.
Langdon pôs-se junto ao chão, agachado nas sombras da imensa escadaria que
leva à igreja de Santa Inês em Agonia.
Olhou em direção à praça, o pulso acelerado.
Depois de dar duas voltas completas, o furgão descreveu uma curva na direção da
fonte de Bernini. Parou junto ao tanque e deslocou-se paralelamente à borda até a
lateral do furgão ficar ao nível da fonte. Estacou de repente, a porta corrediça
somente alguns centímetros acima das águas revoltas.
A névoa erguia-se em turbilhões pelo ar.
Langdon teve um pressentimento ruim. Será que o Hassassin viera antes da hora?
Teria vindo em um furgão? Langdon imaginara o assassino escoltando sua última
vítima a pé pela praça, como tinha feito em São Pedro, o que permitiria que
Langdon atirasse a descoberto. Mas se o Hassassin tivesse chegado em um furgão,
as regras tinham acabado de mudar.
De repente, a porta lateral do furgão se abriu.
Sobre o piso do furgão, contorcido de dor, jazia um homem nu, o corpo enrolado
em muitos metros de pesadas correntes. Ele se debatia em vão em meio aos elos
de ferro. Um deles atravessava-lhe a boca como um freio de cavalo, sufocando
seus gritos de socorro. Foi então que Langdon viu uma segunda figura
movimentando-se no escuro atrás do prisioneiro, como se finalizasse os
preparativos.
Langdon sabia que tinha apenas segundos para agir.
Pegou a arma, tirou o paletó e jogou-o no chão. Não queria o estorvo adicional de
um paletó de lã, nem tinha intenção nenhuma de levar o Diagramma de Galileu
para perto da água. O documento ali ficaria em segurança e seco.
Langdon seguiu com cautela pela direita. Fez uma volta em torno da fonte e parou
de frente para o furgão. A imensa peça central da fonte impedia-lhe a visão.
Levantou-se e correu direto para o tanque. Contava que o barulho da água
abafasse o ruído de seus passos. Ao alcançar a fonte, passou por cima da borda e
caiu no tanque espumante.
A água lhe batia na altura da cintura e estava gelada. Langdon cerrou os dentes e
avançou com esforço. O fundo escorregadio era duplamente traiçoeiro devido a
uma camada de moedas jogadas para atrair sorte. Langdon percebeu que iria
precisar de mais do que boa sorte. À medida que a névoa o envolvia, ficou
imaginando se seria o frio ou o medo que fazia com que a arma lhe tremesse nas
mãos.
Conseguiu chegar ao interior da fonte e circundou-a pela esquerda de onde estava.
Caminhava com dificuldade, mantendo-se encoberto pelas figuras de mármore.
Escondido atrás de uma imensa escultura em forma de cavalo, Langdon parou
para espreitar. O furgão encontrava-se a pouco mais de cinco metros.
O Hassassin estava agachado no assoalho do furgão, as mãos sobre o cardeal
enrolado nas correntes, prestes a empurrá-lo porta afora para dentro da fonte.
Com água pela cintura, Robert Langdon levantou a arma e saiu da névoa,
sentindo-se como uma espécie de caubói aquático pronto para gravar uma cena
final.
- Não se mexa - disse, a voz mais firme que a arma.
O Hassassin ergueu os olhos. Por um instante pareceu confuso, como se tivesse
visto um fantasma.
Depois, os lábios se apertaram em um sorriso maldoso. Pôs os braços para cima
em sinal de obediência e respondeu:
- Assim seja.
- Para fora do furgão.
- Você está um pouco molhado.
- E você chegou cedo.
- Estou louco para voltar para a minha presa.
Langdon apontou-lhe a arma.
- Não vou hesitar em atirar.
- Já hesitou.
Langdon sentiu a pressão do dedo no gatilho. O cardeal já não se mexia. Parecia
exausto, à beira da morte.
- Solte-o.
- Esqueça-o. Você veio por causa da mulher. Não finja que não.
Langdon fez um grande esforço naquela hora para não terminar tudo de uma vez.
- Onde ela está?
- Em um lugar seguro. Esperando que eu volte.
Está viva. Langdon sentiu um fio de esperança.
- Na Igreja da Iluminação?
O assassino sorriu.
- Jamais vai descobrir onde é.
Era difícil de acreditar. O esconderijo ainda está de pé. Apontou a arma.
- Onde?
- O lugar é um mistério há séculos. Eu mesmo só vim a saber dele há pouco.
Prefiro a morte a trair este segredo.
- Vou conseguir encontrá-lo sem você.
- Uma idéia bem arrogante.
Langdon gesticulou na direção da fonte.
- Cheguei até aqui.
- Como muitos outros. A etapa final é a mais difícil.
Langdon foi-se aproximando, os pés instáveis sob a água. O Hassassin parecia
extraordinariamente calmo agachado no fundo do furgão, os braços erguidos
sobre a cabeça. Langdon apontou direto para o peito dele, ponderando se deveria
simplesmente atirar e acabar logo com o assunto. Não. Ele sabe onde está
Vittoria. Sabe onde está a antimatéria. Preciso obter essas informações!
Da escuridão do furgão, o Hassassin observava o agressor. Não pôde deixar de
achar graça e ao mesmo tempo sentir uma certa pena dele. O americano era
corajoso, isto ele já comprovara. Mas também não tinha muita prática. O que
também havia sido comprovado. Heroísmo sem experiência era suicídio. Havia
regras de sobrevivência. Regras antigas. E o americano estava quebrando todas
elas.
Você tinha uma vantagem, o elemento surpresa. E desperdiçou-a. O americano
estava indeciso, provavelmente esperando reforços ou talvez um ato falho do
assassino que deixasse escapar informações decisivas.
Nunca faça um interrogatório antes de neutralizar a vítima. Um inimigo
encurralado é um inimigo mortífero.
De novo, o americano estava falando. Sondando. Manipulando.
O assassino estava a ponto de cair na gargalhada. Este não é um dos seus filmes
de Hollywood, nada de longas discussões com a arma na mão antes do tiro final.
Este é o final. Agora.
Sem desgrudar os olhos do outro, o assassino foi estendendo as mãos bem
devagar até encontrar o que procurava no teto do furgão. Olhando direto para
frente, agarrou o objeto.
E fez a sua jogada.
O movimento foi absolutamente inesperado. Por um instante, Langdon achou que
as leis da física haviam deixado de existir. O assassino pareceu pairar no ar
enquanto suas pernas se desdobravam em um salto, as botas atingindo um lado do
cardeal, empurrando seu corpo carregado de correntes para fora. O cardeal
afundou, espalhando água para todo lado.
Com a água escorrendo-lhe pelo rosto, Langdon compreendeu tarde demais o que
tinha acontecido. O assassino tinha agarrado uma das barras da estrutura do
furgão e a usara como ponto de apoio para balançar o corpo. Agora, vinha em sua
direção, os pés na frente, em meio à chuva de respingos d'água.
Langdon puxou o gatilho e o silenciador cuspiu fogo. A bala explodiu na bota
esquerda do Hassassin, atravessando-a na altura do dedo grande. No mesmo
segundo, Langdon sentiu as solas das duas botas do Hassassin no seu peito,
atirando-o para trás com um chute violento.
Os dois homens caíram espadanando água e sangue.
Quando o líquido gelado engoliu o corpo de Langdon, a primeira coisa que sentiu
foi dor. O instinto de sobrevivência veio depois. Notou que não segurava mais a
arma. Ela tinha caído. Mergulhou, tateando o fundo lamacento. A mão tocou em
metal. Um punhado de moedas. Deixou-as cair. Abriu os olhos e explorou o
tanque iluminado. As águas agitavam-se ao redor de Langdon como se ele
estivesse em uma Jacuzzi gelada.
Apesar do instinto de subir para respirar, o medo fez com que permanecesse no
fundo. Mexia-se o tempo todo. Não fazia a menor idéia de onde viria o próximo
golpe. Precisava encontrar a arma!
Desesperadamente, suas mãos procuravam às apalpadelas.
Você está em vantagem agora, disse consigo. Está em seu elemento. Mesmo
vestido com uma camisa de gola rolê ensopada, era um nadador ágil. A água é o
seu elemento.
Quando, pela segunda vez, os dedos de Langdon tocaram metal, acreditou que a
sorte havia mudado de lado. O objeto que segurava não era um punhado de
moedas. Agarrou-o e tentou puxá-lo para si, mas, ao fazê-lo, sentiu o próprio
corpo deslizando pela água. O objeto estava preso.
Langdon percebeu, antes mesmo de alcançar o corpo contorcido do cardeal, que
havia agarrado parte da corrente de metal que o mantinha submerso. Ele hesitou
por um momento, imobilizado com a visão apavorante do rosto que o encarava do
fundo da fonte.
Espantado por ainda encontrar vida nos olhos do homem, Langdon estende as
mãos para baixo e segurou com força as correntes, tentando levantá-lo até a
superfície. O corpo movimentou-se devagar, como uma âncora. Langdon puxou
com mais força. Quando a cabeça do cardeal irrompeu da água, ele aspirou o ar
umas poucas vezes, desesperado. Então, com grande ímpeto, o corpo girou, o que
fez com que Langdon perdesse a pega da corrente escorregadia. Como uma pedra,
Baggia foi de novo para o fundo e desapareceu por baixo da espuma da água.
Langdon mergulhou, olhos abertos na água turva. Encontrou o cardeal.
Dessa vez, quando Langdon o agarrou, as correntes na altura do peito de Baggia
deslocaram-se e revelaram mais uma crueldade: a palavra marcada em sua carne
com ferro em brasa.
WATER
Uma fração de segundo depois, Langdon avistou duas botas. De uma delas,
jorrava sangue.
CAPÍTULO 103
Como jogador de pólo aquático, Robert Langdon já sofrera mais ataques debaixo
d'água do que merecia. A selvageria competitiva que impera sob a superfície de
uma piscina de pólo aquático, longe dos olhos dos árbitros, pode ser comparada à
das mais grosseiras competições de luta livre. Langdon já tinha sido chutado,
arranhado, retido e até mesmo, uma vez, mordido por um zagueiro frustrado, de
quem procurara se desviar durante o jogo todo.
Agora, porém, lutando nas águas gélidas da fonte de Bernini, Langdon reconhecia
estar a anos-luz da piscina de Harvard. Aquele não era um jogo por pontos, mas
pela própria vida. Era a segunda vez que os dois estavam lutando. Sem árbitros.
Sem revanche. Os braços que lhe forçavam a cabeça de encontro ao fundo
exerciam tamanha pressão que não deixavam dúvidas sobre sua intenção de
matar.
Num gesto instintivo, Langdon girou o corpo igual a um torpedo. Livrar-se da
pega! Mas o atacante, aproveitando-se da vantagem que nenhum jogador de pólo
aquático jamais teve, a de estar com os pés firmes no chão, girou-o de volta.
Langdon se contorceu, tentando apoiar os pés. O Hassassin parecia estar
afrouxando a pressão em um dos braços, mas apesar disso continuava segurando
firme.
Langdon convenceu-se de que não iria conseguir subir à superfície. Fez, então, a
única coisa que lhe passou pela cabeça. Parou de fazer força para subir. Se não dá
para ir para o norte, vá para leste.
Juntando as últimas forças que lhe restavam, bateu as pernas como um golfinho e
movimentou os braços por baixo do corpo em uma desajeitada braçada de estilo
borboleta. Seu corpo avançou para frente.
A repentina mudança de direção pegou o Hassassin desprevenido, O movimento
lateral de Langdon empurrou os braços do outro para os lados, prejudicando-lhe o
equilíbrio. Ao sentir uma leve diminuição de pressão, Langdon bateu as pernas de
novo. A sensação foi como se um cabo de reboque se partisse.
De repente, Langdon estava livre. Expirou o que lhe restava de ar nos pulmões e,
num arranco, foi para a superfície. Respirar uma única vez foi tudo o que
conseguiu. Com uma força arrasadora, o Hassassin estava de novo em cima dele,
as palmas das mãos nos ombros de Langdon, todo o peso do seu corpo sobre o
adversário. Langdon tentou levantar-se, mas uma perna do Hassassin projetou-se
para a frente, derrubando-o.
E ele afundou outra vez.
Os músculos de Langdon queimavam enquanto tentava desvencilhar-se. Dessa
vez, todas as investidas foram em vão. Através da água borbulhante, Langdon
vasculhava o fundo atrás da arma. Tudo estava embaçado, as borbulhas cada vez
mais densas. Uma luz ofuscante bateu-lhe no rosto quando o assassino o
empurrou para baixo, na direção de um refletor instalado no fundo. Langdon
esticou os braços e agarrou a caixa do refletor. Estava quente. Langdon fez força
para arrancá-la, mas estava fixada por meio de dobradiças, girou em sua mão e ele
perdeu o apoio.
O Hassassin empurrou-o mais ainda para baixo.
Foi então que Langdon o viu. Fincado nas moedas, bem na frente de seus olhos. O
cilindro estreito, preto.
O silenciador da arma de Olivetti! Langdon se esticou, mas quando seus dedos
seguraram o cilindro não sentiu o contato com metal, mas com plástico. Ao puxálo,
uma mangueira flexível veio molemente em sua direção como se fosse uma
cobra. Tinha uns 60 centímetros e as bolhas de ar jorrando de uma das pontas.
Langdon não tinha encontrado arma nenhuma. Era um dos muitos spumanti,
inocentes aparelhos de fazer bolhas de ar, instalados na fonte.
Bem perto dali, o cardeal Baggia sentia a alma deixando-lhe o corpo. Embora
tivesse se preparado a vida inteira para aquele momento, jamais imaginara que seu
fim seria desse jeito. Seu corpo sofria intensamente - havia sido queimado,
machucado e mantido submerso sob um peso intolerável. Lembrou- se de que o
próprio sofrimento não era nada se comparado com o de Jesus.
Ele morreu pelos meus pecados...
Baggia escutava os golpes da luta violenta que se desenrolava por perto. Era
demais pensar que quem o tinha capturado estava também quase terminando com
outra vida, a do homem de olhos bondosos que tentara socorrê-lo.
Quando a dor aumentou, Baggia mirou, através da água, o céu escuro que
encobria tudo. Por um momento, pensou ter visto estrelas.
Era chegada a hora.
Libertando-se de todo medo e dúvida, abriu a boca e expeliu o que seria o último
sopro de sua vida. Observou seu próprio espírito gorgolejar na direção do céu em
um jorro de bolhas de ar transparentes. Então, em uma reação involuntária,
respirou. A água penetrou como finos punhais de gelo em seus flancos. A dor
durou apenas alguns segundos.
Depois, veio a paz.
O Hassassin ignorava o pé que doía, concentrado apenas em afogar o americano,
que agora mantinha imobilizado sob o peso do seu corpo, no meio da água
turbulenta. Destruí-lo por completo. Apertou com mais força ainda, sabendo que
desta vez Robert Langdon não sobreviveria. Conforme havia previsto, sua vítima
mostrava cada vez menos reação.
De repente, o corpo de Langdon ficou rígido. Começou a tremer loucamente. Sim,
pensou o Hassassin. Os tremores.
Quando a água afinal chega aos pulmões. Os tremores, sabia, iriam durar uns
cinco segundos.
Duraram seis.
Então, exatamente como o Hassassin havia calculado, o corpo da vítima de
repente ficou flácido. Como um imenso balão que perdesse o ar, Robert Langdon
relaxou. Estava morto. O Hassassin ainda o segurou por mais uns trinta segundos,
para que a água inundasse todo o tecido pulmonar. Aos poucos, sentiu que o
corpo de Langdon afundava por conta própria. Afinal, o Hassassin o soltou.
A imprensa encontraria uma dupla surpresa na Fonte dos Quatro Rios.
Tabban!, praguejou o Hassassin, saindo da fonte e examinando o dedo do pé que
sangrava sem parar. A ponta da bota estava arrebentada e a extremidade do dedo
grande havia sido arrancada. Furioso consigo mesmo pelo descuido, rasgou a
bainha da calça e enfiou o tecido pelo buraco da bota, comprimindo-o contra a
ferida. A dor subiu-lhe pela perna. Ibn al-kalb!
Cerrou os punhos de dor e empurrou o pano com mais força. O sangramento foi
diminuindo até restar apenas um filete de sangue.
Tirando seus pensamentos da dor e voltando-os para o prazer, o Hassassin entrou
no furgão. O trabalho em Roma estava terminado. Sabia muito bem o que lhe
aliviaria o incômodo. Vittoria Vetra estava amarrada e à sua espera. O Hassassin,
mesmo com frio e ensopado, sentiu-se sexualmente excitado.
Fiz por onde merecer meu prêmio.
Do outro lado da cidade, Vittoria acordou toda dolorida. Estava deitada de costas.
Todos os músculos estavam duros como pedra. Tensos. Retesados. Os braços
doíam. Tentou se mexer, mas sentiu espasmos nos ombros. Levou poucos
segundos para compreender que suas mãos estavam amarradas nas costas. A
primeira reação foi de confusão. Estou sonhando? Mas, quando quis levantar a
cabeça, a dor lancinante na base do crânio avisou-a de que estava totalmente
acordada.
A confusão inicial deu lugar ao medo, e ela examinou o lugar.
Encontrava-se em uma sala despojada, grande e bem mobiliada, iluminada por
tochas acesas e com paredes de pedra. Uma espécie de antigo salão de reuniões.
Havia bancos antiquados dispostos em círculo mais adiante.
Vittoria sentiu uma brisa, agora fria, percorrer-lhe a pele. Não longe de onde
estava, um conjunto de portas duplas abria-se para uma sacada. Através das
brechas da balaustrada, Vittoria podia jurar ter visto o Vaticano.
CAPÍTULO 104
Robert Langdon jazia deitado sobre uma camada de moedas no fundo da Fonte
dos Quatro Rios, a mangueira de plástico ainda na boca. O ar que era bombeado
através do tubo dos spumanti para fazer a fonte borbulhar vinha poluído e sua
garganta ardia. Não podia reclamar, porém. Afinal, estava vivo.
Não tinha certeza se sua imitação de um afogado fora convincente, mas, tendo
passado a vida inteira em contato com a água, Langdon já ouvira muitas
descrições de afogamentos. Fizera o melhor que podia. Quase no final, teve de
expirar todo o ar dos pulmões e parar de respirar para que a massa muscular
levasse seu corpo para o fundo.
Por sorte, o Hassassin engolira a história e o soltara.
Agora, deitado no fundo da fonte, Langdon esperou o quanto pôde. Estava prestes
a morrer asfixiado. Tentou adivinhar se o Hassassin ainda estaria lá fora. Aspirou
o ar queimado que vinha do tubo, entregou os pontos e atravessou nadando o
fundo da fonte até encontrar a elevação da parte central. Bem devagar, subiu
acompanhando-a e emergindo sem ser visto nas sombras projetadas na água pelas
imensas figuras de mármore.
O furgão tinha ido embora.
Era tudo o que Langdon precisava ver. Respirou bem fundo, enchendo os pulmões
de ar, e voltou para o local onde o cardeal Baggia afundara. Langdon sabia que o
homem já estaria inconsciente e que as chances de sobrevivência eram mínimas,
mas tinha de tentar. Quando encontrou o corpo, abriu as pernas sobre ele e apoiou
bem os pés, abaixou as mãos e agarrou as correntes que envolviam o cardeal.
Então, Langdon puxou. Quando o cardeal saiu da água, Langdon viu que os olhos
dele já estavam revirados para cima, salientes. Não era um bom sinal.
Não havia respiração nem pulso.
Sabendo que jamais conseguiria levantar o corpo e fazê-lo passar pela borda do
tanque da fonte, Langdon puxou o cardeal Baggia pela água até uma concavidade
sob a elevação central. Ali era mais raso e havia uma espécie de saliência
inclinada. Langdon arrastou o corpo nu para cima da saliência o mais que lhe foi
possível. E pôs-se a trabalhar.
Comprimiu o peito coberto de correntes do cardeal e bombeou a água para fora
dos seus pulmões. Depois aplicou a ressuscitação cardiopulmonar, fazendo a
contagem com todo o cuidado, cheio de determinação e resistindo ao instinto de
soprar com força demais ou depressa demais. Durante três minutos, Langdon
tentou reanimar o cardeal. Passados cinco minutos, reconheceu que não havia
mais nada a fazer.
Il preferito. O homem que teria sido Papa. Morto diante dele.
De algum modo, mesmo naquelas circunstâncias, caído no escuro sobre a pedra
meio submersa, o cardeal Baggia ainda mantinha um ar de serena dignidade. A
água agitava-se mansamente sobre o seu peito, parecendo arrependida, como se
pedisse perdão por ter sido a assassina final, como se quisesse purificar a ferida da
queimadura que tinha o seu nome.
Delicadamente, Langdon passou a mão no rosto do homem e fechou-lhe os olhos.
Ao fazê-lo, sentiu dentro de si um estremecimento e lágrimas de exaustão
inundaram seus olhos. Espantou-se com isto. E, pela primeira vez em anos,
Langdon chorou.
CAPÍTULO 105
A nebulosa sensação de esgotamento emocional foi se dissipando aos poucos à
medida que Langdon, andando dentro da água, se afastava do cardeal morto e
voltava para o trecho mais fundo. Extenuado e só, ele pensava que fosse desmaiar
no meio da fonte. Mas, em vez disso, sentiu uma nova compulsão ir crescendo em
seu íntimo. Incontestável. Veemente. Seus músculos se retesaram com uma súbita
firmeza. A mente, ignorando a tristeza do coração, pôs de lado os acontecimentos
passados para dar lugar à única e arriscada tarefa que tinha pela frente.
Encontrar o refúgio dos Illuminati. Ajudar Vittoria.
Virando-se para o centro montanhoso da fonte de Bernini, Langdon reuniu suas
esperanças e lançou-se na busca do último marco dos Illuminati. Tinha certeza de
que em algum lugar, no meio das massas contorcidas de figuras, estava a pista que
indicaria o refúgio. Enquanto vasculhava a fonte, entretanto, suas esperanças
esvaíram-se rapidamente. As palavras do segno pareciam vir, zombeteiras, do
burburinho das águas que o rodeavam. Que os anjos o guiem em sua busca
sublime. Langdon olhava para as figuras à sua frente. A fonte é pagã! Não há
nenhum anjo em lugar algum!
Depois de terminar sem resultado a busca na parte central, seu olhar
instintivamente subiu pela altiva coluna de pedra. Quatro marcos, pensou,
espalhados por Roma em uma cruz gigantesca.
Examinou os hieróglifos que cobriam o obelisco e ficou imaginando se haveria
uma pista escondida nos símbolos egípcios. Rejeitou a idéia imediatamente. Os
hieróglifos eram anteriores a Bernini em muitos séculos e só tinham sido
decifrados depois da descoberta da Pedra de Rosetta. Ainda assim, Langdon
arriscou, quem sabe Bernini teria esculpido ali mais um símbolo? Um símbolo
que passasse despercebido no meio dos hieróglifos?
Sentindo uma centelha de esperança, Langdon caminhou ao redor da fonte, mais
uma vez analisando as quatro fachadas do obelisco. Levou uns dois minutos e,
quando chegou ao final da última face, suas esperanças desapareceram. Nada nos
hieróglifos se destacava como sendo qualquer tipo de acréscimo. E muito menos
havia anjos.
Langdon verificou o relógio. Onze horas em ponto. Não saberia dizer se o tempo
estava voando ou andando devagar. Imagens de Vittoria e do Hassassin
começaram a obcecá-lo enquanto circundava a fonte, impaciente, a frustração
crescendo a cada volta inútil. Abatido e exausto, Langdon estava a ponto de cair.
Levantou a cabeça para gritar para a noite.
O som ficou preso na sua garganta.
Langdon estava olhando direto para o topo do obelisco. O objeto empoleirado era
um que vira antes sem dar qualquer importância. Dessa vez, porém, ele o fez
parar. Não era um anjo. Longe disso. Na verdade, não o havia percebido como
parte da fonte de Bernini. Pensou que estivesse vivo, que fosse mais um dos
pequenos animais que ciscavam nas ruas da cidade, encarapitado em cima da
torre.
Um pombo.
Langdon apertou os olhos na direção do vulto, a visão embaçada pela névoa
luminosa à volta. Era um pombo, não era? Via nitidamente o contorno da cabeça e
do bico contra um aglomerado de estrelas. No entanto, o pássaro não se movera
desde a chegada de Langdon na praça, mesmo com todo aquele alvoroço em
baixo. Estava exatamente na mesma posição. Empoleirado no alto do obelisco,
mirando tranqüilamente o oeste da cidade.
Langdon olhou fixo para ele por um momento e depois mergulhou a mão na
fonte, agarrou um punhado de moedas e arremessou-as para cima. Bateram com
um ruído seco contra a parte superior do obelisco de granito. O pássaro não se
mexeu. Tentou de novo. Dessa vez, uma das moedas atingiu o alvo. Um leve som
de metal contra metal ecoou pela praça.
O maldito pombo era de bronze.
Você está procurando um anjo, não um pombo, lembrou-o uma voz em sua
cabeça. Tarde demais. Langdon já fizera a associação. Percebeu que a ave não era
propriamente um pombo comum.
Era uma pomba.
Sem se dar conta dos próprios atos, Langdon saiu espalhando água para o centro
da fonte e começou a escalar a montanha de mármore travertino, subindo em
imensos braços e cabeças, cada vez mais alto. A meio caminho da base do
obelisco conseguiu vencer a camada de névoa que encobria todo o tanque e ver
melhor a cabeça do pássaro.
Não tinha dúvida. Era uma pomba. A enganadora coloração escura do pássaro era
resultado da poluição de Roma, que manchava o tom original do bronze. E o
significado ficou claro para ele. Vira, horas antes, um par de pombas no Panteão.
Um par de pombas não representa nenhum símbolo. Essa pomba, porém, estava
só.
A pomba solitária é o símbolo pagão do Anjo da Paz.
A descoberta praticamente transportou Langdon pelo resto do percurso para o
obelisco. Bernini escolhera um símbolo pagão para o anjo de forma a poder
disfarçá-lo em uma fonte pagã. Que os anjos o guiem em sua busca sublime. A
pomba é o anjo! Langdon não poderia conceber pouso mais sublime para o último
marco dos Illuminati do que no alto desse obelisco.
O pássaro apontava para oeste. Langdon tentou acompanhar sua mirada, mas não
conseguia enxergar por cima dos prédios. Subiu mais. Uma citação de São
Gregório de Nyssa veio-lhe à mente: Quando o espírito é iluminado, toma a
magnífica forma de uma pomba.
Langdon subiu rumo ao céu. Rumo à pomba. Quase voando. Alcançou a
plataforma que servia de base para o obelisco, de onde não poderia subir mais.
Mas bastou uma olhada ao redor para saber que isso não seria necessário. Roma
se estendia diante dele. A vista era deslumbrante.
À esquerda, a iluminação caótica dos carros da imprensa em torno de São Pedro.
À direita, a cúpula envolta em fumaça de Santa Maria delia Vittoria. Em frente, à
distância, a Piazza del Popolo. Abaixo dele, o quarto e último marco. Uma cruz
gigantesca de obeliscos.
Trêmulo, Langdon olhou para a pomba lá em cima. Virou-se para a direção
correta e depois abaixou os olhos para a linha do horizonte.
Em um instante, viu tudo.
Tão óbvio. Tão claro. Tão tortuosamente simples.
Observando-o agora, Langdon achava quase inacreditável que o refúgio dos
Illuminati tivesse permanecido secreto por tantos anos. Tinha a impressão de que
a cidade toda desaparecia aos poucos em torno da monstruosa estrutura de pedra
do outro lado do rio, diante dele. Um dos muitos prédios famosos de Roma.
Ficava às margens do rio Tibre, próximo, em diagonal, ao Vaticano. A geometria
da construção era perfeita - um castelo circular construído dentro de uma fortaleza
quadrada e, do lado de fora dos muros, rodeando toda a estrutura, um parque em
forma de pentagrama.
As antigas muralhas de pedra diante de Langdon recebiam uma iluminação suave
vinda de holofotes, com um efeito espetacular. No alto do castelo, o colossal anjo
de bronze. O anjo apontava sua espada para baixo, para o centro exato do prédio.
E, como se não bastasse, levando única e exclusivamente para a entrada principal
do castelo, havia a célebre Ponte dos Anjos, uma impressionante via de acesso,
ornamentada com 12 majestosos anjos esculpidos por ninguém menos que o
próprio Bernini.
Em uma última revelação sensacional, Langdon concluiu que a cruz de obeliscos
de Bernini, que abarcava toda a cidade, também marcava a fortaleza da forma
mais condizente com os princípios dos Illuminati: o braço central da cruz passava
diretamente pelo meio da ponte do castelo, dividindo-a em duas metades
idênticas.
Langdon pegou o paletó de lã, segurando-o afastado do corpo que pingava. Entrou
no carro roubado e apertou o acelerador com o sapato encharcado, saindo a toda
velocidade pela noite.
CAPÍTULO 106
Eram 11h07. O carro de Langdon corria pela noite romana.
Descendo a Lungotevere Tor di Nona, paralela ao rio, Langdon via seu destino
avolumando-se à direita como uma grande montanha.
Castel Sant'Angelo. Castelo do Anjo.
Sem indicação prévia, o acesso à estreita Ponte dos Anjos - a Ponte Sant'Angelo -
surgiu de repente.
Langdon enfiou o pé no freio e deu uma guinada. Conseguiu, mas a ponte estava
fechada com barreiras.
Ele derrapou uns três metros e bateu em uma porção de pequeninas colunas de
cimento que lhe barravam o caminho. Langdon cambaleou para a frente e o motor
do carro afogou, falhando e estremecendo. Não sabia que a Ponte dos Anjos, para
ser preservada, agora se convertera em área exclusiva para pedestres.
Desconcertado, Langdon saltou do carro amassado desejando ter escolhido um
dos outros acessos.
Tremia de frio, a roupa molhada da água da fonte. Vestiu o casaco de tweed em
cima da camisa úmida, contente com o forro duplo que o fabricante colocava nos
casacos. O fólio do Diagramma continuaria seco. À sua frente, erguia-se a
fortaleza feita de pedra. Enfraquecido, doido, Langdon saiu correndo, as passadas
pouco firmes.
Dos seus dois lados, como uma escolta enfileirada, o cortejo de anjos de Bernini
ia ficando para trás, fechando o percurso e encaminhando-o para seu destino final.
Que os anjos o guiem em sua busca sublime. O castelo aumentava conforme ele
avançava, montanha impossível de escalar, inatingível, ainda mais intimidador do
que São Pedro lhe parecera. Correu para lá em meio aos vapores da noite, vendo o
anjo descomunal brandindo a espada no alto do núcleo circularda cidadela. O
castelo parecia deserto.
Langdon sabia que, no decorrer dos séculos, a construção fora usada pelo
Vaticano como tumba, fortaleza, esconderijo do Papa, prisão para inimigos da
Igreja e museu. Pelo jeito, o castelo tivera igualmente outros inquilinos - os
Illuminati. De certa forma, até que fazia um sentido sinistro. Apesar de ser
propriedade do Vaticano, o castelo só era utilizado esporadicamente e Bernini
realizara diversas reformas ali ao longo dos anos. Hoje acredita-se que ele seria
um labirinto de entradas secretas, passagens e câmaras escondidas. Langdon tinha
certeza de que o anjo e o parque pentagonal que o cercava eram também trabalho
de Bernini.
Ao chegar às descomunais portas duplas da entrada, Langdon empurrou-as o mais
que pôde. Como era de se esperar, as portas não se moveram. Possuíam duas
aldravas de ferro penduradas na altura do rosto de uma pessoa. Langdon não fez
caso delas. Recuou alguns passos, examinando a parede externa até em cima.
Aquelas muralhas tinham resistido a exércitos de bérberes, pagãos e mouros.
Achou que suas probabilidades de penetrar ali à força eram exíguas.
Vittoria, pensou Langdon, será que você está aí dentro?
Langdon contornou a parede externa. Deve haver outra entrada!
Rodeando a segunda muralha a oeste, chegou ofegante a um pequeno
estacionamento próximo à Lungotevere Casteilo. Nessa muralha encontrou uma
segunda entrada para o castelo, uma espécie de ponte levadiça, suspensa e
trancada. Langdon olhou para cima outra vez.
As únicas luzes no castelo eram as dos holofotes externos que iluminavam a
fachada. Todas as diminutas janelas no interior estavam às escuras. Os olhos de
Langdon foram subindo. No ponto mais alto da torre central, 30 metros acima,
precisamente sob a espada do anjo, projetava-se uma sacada isolada. O parapeito
de mármore reluzia ligeiramente, como se o aposento adjacente estivesse
iluminado por uma tocha acesa. Langdon parou, com um calafrio súbito em seu
corpo encharcado. Uma sombra? Ele esperou, tenso. E viu a sombra outra vez!
Um arrepio percorreu sua espinha. Há alguém lá em cima!
- Vittoria! - gritou, incapaz de se conter, mas sua voz foi engolida pelo rugir do rio
Tibre atrás dele.
Andou em círculos, perguntando-se onde estaria a maldita Guarda Suíça. Será que
tinham ouvido sua transmissão?
Do outro lado do estacionamento havia um grande caminhão de alguma emissora
parado. Langdon correu para ele. Um homem barrigudo com fones de ouvido na
cabeça estava sentado na cabine ajustando seu equipamento. Langdon bateu com
a mão na lateral do caminhão. O homem deu um pulo, viu as roupas molhadas de
Langdon e arrancou os fones da cabeça.
- Qual o problema, companheiro? - tinha um sotaque australiano.
- Preciso usar seu telefone - Langdon estava frenético.
O homem deu de ombros.
- Não tem sinal. Estou tentando há horas. Os circuitos estão todos congestionados.
Langdon praguejou em voz alta.
- Viu alguém entrar aí? - e apontou para a ponte levadiça.
- Para falar a verdade, vi, sim. Um furgão preto saiu e entrou uma porção de vezes
esta noite.
Langdon sentiu um peso na boca do estômago.
- Sortudo desgraçado - disse o australiano, olhando para a torre e fazendo uma
careta para sua vista obstruída do Vaticano. - Aposto que a visão de lá é perfeita.
Não consegui passar pelo tráfego em São Pedro, por isso estou transmitindo
daqui.
Langdon não estava escutando. Procurava opções.
- O que é que você acha? - perguntou o australiano. - Será que o Samaritano da
Décima Primeira Hora é para valer?
Langdon virou-se.
- O quê?
- Não ouviu? O capitão da Guarda Suíça recebeu um telefonema de alguém que
diz ter informações de primeira. O cara está vindo para cá de avião. Só sei é que,
se ele conseguir salvar a pátria, lá se vão os nossos índices!
O homem deu uma risada.
Langdon não compreendia. Um bom samaritano ia chegar de avião para ajudar? E
sabia onde estava a antimatéria? Então, por que não dizia logo para a Guarda
Suíça? Por que estava vindo em pessoa? Era tudo muito esquisito, mas Langdon
não dispunha de tempo para tentar decifrar a questão.
- Ei - disse o australiano, observando o rosto de Langdon mais atentamente -, você
não é o sujeito que vi na televisão? O que tentou salvar aquele cardeal na Praça de
São Pedro?
Langdon não respondeu. Sua atenção fixara-se em um aparelho preso no teto do
caminhão - uma antena parabólica com uma haste dobrável. Olhou de novo para o
castelo. A muralha externa tinha uns 15 metros e altura. A fortaleza interior era
ainda mais alta. Uma dupla defesa. Não daria para alcançar a parte de cima dali,
mas talvez, se passasse do primeiro muro...
Langdon girou nos calcanhares e apontou para o braço da antena.
- Até que altura aquilo vai?
O homem ficou meio desconcertado.
- Quinze metros. Por quê?
- Tire o caminhão daí. Estacione junto ao muro. Preciso de ajuda.
- Que história é essa?
Langdon explicou.
O australiano arregalou os olhos.
- Ficou maluco? Aquilo ali é uma extensão telescópica de 200 mil dólares. Não é
uma escada!
- Quer seus índices? Tenho informações que vão fazer você ganhar o dia.
Langdon estava desesperado.
- Informações que também valem essa nota toda?
Langdon disse a ele o que revelaria em troca do favor.
Noventa segundos mais tarde, Robert Langdon encontrava-se agarrado à ponta de
um braço de antena parabólica, balançando na brisa a 15 metros do solo.
Inclinando-se, segurou a beirada da primeira muralha, arrastou-se para cima da
parede e pulou para dentro do bastião mais baixo do castelo.
- Agora mantenha sua promessa! - gritou lá de baixo o australiano. - Onde ele
está?
Langdon sentiu-se culpado por revelar essa informação, mas trato era trato. Além
do mais, o Hassassin provavelmente daria a informação à imprensa de qualquer
maneira.
- Piazza Navona - gritou Langdon. - Ele está dentro da fonte.
O australiano recolheu sua antena parabólica e foi atrás do maior furo de sua
carreira.
Em uma câmara de pedra acima da cidade, o Hassassin tirou as botas encharcadas
e enfaixou o dedo do pé ferido. Doía muito, mas não tanto que o impedisse de se
divertir.
Dirigiu-se para seu prêmio.
Ela estava em um canto do aposento, deitada em um divã primitivo, as mãos
atadas atrás do corpo e amordaçada. O Hassassin encaminhou-se para ela. A
mulher estava acordada. Isso o agradou.
Surpreendentemente, viu fogo em seus olhos em vez de medo.
O medo virá.
CAPÍTULO 107
Robert Langdon percorreu rapidamente a muralha externa do castelo, satisfeito
por poder contar com a iluminação dos holofotes. O pátio abaixo dele parecia um
museu das guerras da Antiguidade - catapultas, pilhas de balas de canhão feitas de
mármore e um arsenal de terríveis artefatos.
Partes do castelo eram abertas aos turistas durante o dia, e o pátio fora
parcialmente restaurado e devolvido ao seu estado original.
Do outro lado do pátio encontrava-se o núcleo central da fortaleza. A cidadela
circular elevava-se mais de trinta metros até o anjo de bronze que a encimava. Na
sacada do alto ainda havia luz. Langdon queria chamar, mas achou melhor não o
fazer. Teria de encontrar uma forma de entrar.
Olhou o relógio.
11h12 da noite.
Descendo depressa a rampa de pedra que contornava o interior do muro, Langdon
chegou ao pátio. De volta ao nível do chão, oculto pelas sombras, circundou a
fortaleza no sentido dos ponteiros do relógio.
Passou por três pórticos, todos hermeticamente fechados. Como o Hassassin
entrou? E Langdon prosseguiu. Passou por duas entradas modernas, ambas
trancadas por fora com cadeados. Não foi por aqui. E continuou a correr.
Já rodeara quase todo o prédio quando viu um caminho de cascalho cruzando o
pátio. Numa das extremidades do caminho, na parede externa do castelo, viu a
ponte levadiça que levava à saída. Na outra extremidade, o caminho desaparecia
dentro da fortaleza. Parecia dar em uma espécie de túnel - uma abertura para o
núcleo central. Il traforo! Langdon lera sobre o traforo desse castelo, uma
gigantesca rampa em espiral que circulava dentro do forte, usada pelos
comandantes para ir a cavalo da base ao topo com mais rapidez. O Hassassin
entrou de carro! O portão de ferro do túnel estava aberto, levantado, indicando por
onde Langdon deveria seguir. Ele se sentia quase exultante ao correr para o túnel.
Quando se aproximou da abertura, porém, seu entusiasmo arrefeceu.
O túnel descia em espiral.
O caminho não era aquele. Aquele trecho do traforo, pelo jeito, ia para as
masmorras, não para cima.
Parado junto ao poço escuro que penetrava fundo na terra, ele hesitou, levantando
os olhos mais uma vez para a sacada. Seria capaz de jurar que vira algum
movimento ali. Decida-se! Sem outra opção, entrou no túnel.
Lá em cima, o Hassassin debruçava-se sobre sua presa. Correu a mão pelo braço
dela. A pele era macia como seda. A expectativa de explorar os tesouros do corpo
daquela mulher o inebriava. De quantas maneiras poderia violentá-la?
Sabia que merecia a mulher. Servira bem a Janus. Ela era um espólio de guerra e,
quando terminasse, a empurraria do divã e a obrigaria a ficar de joelhos. E a
mulher o serviria de novo. A submissão extrema.
Então, no momento em que ele atingisse o clímax, cortaria a garganta dela.
Ghayat assa'adah, como diziam. O prazer extremo.
Mais tarde, saboreando sua glória, ficaria na sacada para apreciar o apogeu do
triunfo dos Illuminati, uma vingança desejada por tantos durante tanto tempo.
O túnel tornou-se mais escuro. Langdon descia sem parar.
Depois de uma volta completa sob a terra, a luz se fora por completo. O piso
nivelou-se e Langdon diminuiu o ritmo, pressentindo, pelo eco de seus passos,
que entrara em uma grande câmara. Na sua frente, em meio às trevas, julgou ter
vislumbrado ligeiros lampejos, vagos reflexos luminosos. Avançou, estendendo a
mão. Encontrou superfícies lisas. Vidro e metais cromados. Era um veículo.
Tateou a superfície, encontrou uma porta e a abriu.
A luz interna do veículo acendeu-se. Langdon deu um passo atrás e reconheceu o
furgão preto.
Uma onda de aversão o fez parar um instante, mas logo ele entrou, revirando tudo
na esperança de encontrar uma arma para substituir a que perdera na fonte. Não
encontrou nenhuma. Achou, contudo, o telefone celular de Vittoria. Quebrado,
sem condições de uso. Ao vê-lo, sentiu medo.
Rezou para não ter chegado tarde demais.
Acendeu os faróis do furgão. O ambiente iluminou-se, sombras severas
projetaram-se em uma câmara simples. Langdon deduziu que o local talvez já
tivesse sido usado para guardar cavalos e munição. Era, além disso, um beco sem
saída.
Vim pelo caminho errado!
Angustiado, saltou do furgão e examinou as paredes ao redor. Nenhuma porta
nem portão.
Lembrou-se do anjo acima da entrada do túnel e pensou se teria sido uma
coincidência. Não!
Ouviu de novo as palavras do matador na fonte. Ela está na Igreja da Iluminação,
esperando a minha volta. Langdon não chegara tão longe para falhar no final. Seu
coração batia com força. A frustração e o ódio estavam começando a prejudicar
seus sentidos.
Quando viu sangue no chão, seu primeiro pensamento foi para Vittoria. Todavia,
acompanhando as manchas de sangue, percebeu que eram pegadas. Os passos
eram grandes. Os borrões vermelhos eram produzidos apenas pelo pé esquerdo. O
Hassassin!
Langdon seguiu as pegadas, que iam na direção de um ângulo do aposento, sua
sombra espalhada se tornando menos nítida a cada passo. À medida que se
aproximava da parede, ficava mais intrigado. As marcas de sangue pareciam ir
diretamente para aquele canto e depois sumiam.
Ao chegar perto da quina, mal pôde acreditar no que viu. Ali, o bloco de granito
do piso não era quadrado como os outros. Langdon encontrava-se diante de mais
um sinalizador. O bloco fora esculpido na forma de um perfeito pentagrama, com
uma extremidade apontando para o canto.
Engenhosamente disfarçada por paredes superpostas, uma estreita fenda na pedra
servia de saída. Langdon esgueirou-se por ela. Saiu em um corredor. Mais
adiante, viu os restos da vedação de madeira que antes estivera fechando aquele
túnel.
Além, havia luz.
Langdon correu. Passou por cima dos pedaços de madeira em direção à luz. O
corredor logo chegou a outra câmara, maior do que a anterior. Ali, uma única
tocha acesa reluzia, presa na parede. Langdon estava em um setor do castelo onde
não havia luz elétrica, um setor que nenhum turista jamais veria.
A sala teria sido assustadora mesmo à luz do dia, mas a tocha tornava-a mais
horripilante ainda.
Havia lá dezenas de minúsculas celas de prisão, as barras de ferro da maioria já
carcomidas pela ferrugem.
Uma das celas maiores, porém, permanecia intacta e, no chão, Langdon viu algo
que quase fez seu coração parar. Batinas negras e faixas de seda vermelha
espalhadas. Foi aqui que ele prendeu os cardeais!
Junto à cela, na parede, um batente de porta feito de ferro. A porta estava
escancarada e, além dela, dava para ver uma espécie de passagem. Ele correu para
lá, mas parou antes. A trilha de sangue não seguia pela passagem. Ao ver as
palavras que haviam sido esculpidas na arcada, entendeu por quê.
Il Passetto.
Ficou atônito. Ouvira falar daquele túnel muitas vezes sem saber exatamente onde
seria a entrada. Il Passetto - a Pequena Passagem, ou Corredor - era um túnel
estreito de 1.200 metros construído entre o Castelo Sant'Angelo e o Vaticano.
Fora usado por vários Papas para escapar em segurança durante cercos ao
Vaticano, bem como por alguns Papas menos piedosos para visitar secretamente
suas amantes ou supervisionar as torturas infligidas a seus inimigos. Atualmente,
as duas extremidades do túnel estavam supostamente trancadas com cadeados da
maior segurança cujas chaves deviam ser guardadas em algum cofre do Vaticano.
Langdon desconfiava que sabia agora como os Illuminati tinham entrado e saído
do Vaticano. Deu por si tentando adivinhar quem teria traído a Igreja e entregado
as chaves aos inimigos.
Olivetti? Alguém da Guarda Suíça? Nada disso importava mais. O sangue no
chão levava ao lado oposto da prisão. Langdon seguiu-o. Surgiu um portão
enferrujado coberto de correntes. O cadeado fora retirado e o portão estava aberto.
Depois dele, havia uma subida íngreme por escadas em espiral. O chão naquele
ponto também fora marcado com um bloco em forma de pentagrama. Langdon
olhou para o bloco, trêmulo, pensando se Bernini em pessoa teria segurado o
cinzel que talhara aquela peça. Acima, a arcada fora enfeitada com um diminuto
querubim esculpido. Era tudo.
A trilha de sangue subia as escadas.
Antes de subir, Langdon ponderou que iria precisar de uma arma, qualquer uma.
Encontrou um pedaço de barra de ferro de mais ou menos um metro junto a uma
das celas. Tinha uma ponta aguda, despedaçada.
Apesar de absurdamente pesado, era o melhor que poderia conseguir. Esperava
que o elemento surpresa, combinado com o ferimento do Hassassin, fossem
suficientes para equilibrar a balança a seu favor. Mais do que tudo, entretanto,
esperava que não fosse tarde demais.
Os degraus da escada em espiral estavam gastos e inclinavam-se muito para cima.
Langdon subiu, atento a qualquer som. Nenhum. Conforme subia, a luz que vinha
da prisão ia aos poucos ficando fraca. Logo, a escuridão tornou-se completa e foi
preciso manter uma das mãos na parede. Imaginava o fantasma de Galileu
naqueles mesmos degraus, ansioso para partilhar suas visões do céu com outros
homens de ciência e de fé.
Ainda se sentia em estado de choque a respeito da localização do refúgio dos
Illuminati. A sala de encontros dos Illuminati era dentro de um prédio que
pertencia ao Vaticano. Seguramente, enquanto os guardas do Vaticano saíam para
revistar as casas e os porões de cientistas conhecidos, os Illuminati se reuniam ali,
bem debaixo do nariz da Igreja. Tudo parecia de repente tão perfeito. Bernini,
como o arquiteto que chefiara as reformas, teria acesso ilimitado àquela estrutura,
reformando-a de acordo com suas próprias especificações sem ter de explicar
nada a ninguém. Quantas entradas secretas Bernini teria acrescentado ao prédio?
Quantos embelezamentos sutis para apontar o caminho?
A Igreja da Iluminação. Langdon estava perto dela.
Quando as escadas começaram a se estreitar, Langdon sentiu o corredor se
fechando em torno dele. As sombras da história sussurravam no escuro, mas ele
foi em frente. Ao divisar uma faixa horizontal de luz, percebeu que estava alguns
degraus abaixo de um patamar, onde o brilho da tocha passava sob a soleira de
uma porta em frente dele. Silenciosamente, subiu mais.
Não sabia em que lugar do castelo se encontrava naquele momento, mas sabia que
subira o bastante para estar perto do ponto mais alto. Imaginou o anjo colossal no
topo do castelo e calculou que deveria estar justamente acima daquele ponto.
Olhe por mim, anjo, pensou, empunhando a barra de ferro. Então, sem ruído,
estendeu a mão para a porta.
No divã, os braços de Vittoria doíam. Ao acordar e descobrir que estavam
amarrados atrás de suas costas, achou que conseguiria relaxar o corpo e soltar as
mãos. Mas o tempo se esgotara.
A besta-fera estava de volta. Agora, ele estava de pé junto dela, o peito nu largo e
robusto, cheio de cicatrizes das batalhas que lutara. Os olhos pareciam duas
fendas negras analisando o corpo dela. Vittoria pressentiu que naquele momento
ele imaginava as façanhas que estava prestes a realizar. Devagar, como para
escarnecer dela, o Hassassin tirou o cinto molhado e deixou-o cair no chão.
Vittoria sentiu uma repulsa horrível. Fechou os olhos. Quando os reabriu, o
Hassassin estava segurando um canivete. Fez a lâmina saltar com um estalo bem
na frente do seu rosto.
Vittoria viu o próprio rosto aterrorizado refletido no aço da lâmina.
O Hassassin virou a lâmina e correu a parte de trás pela barriga dela. O metal
gelado deu-lhe arrepios. Com um olhar de desdém, ele deslizou a lâmina por
dentro do cós do short cáqui. Ela prendeu a respiração. Ele moveu a lâmina de um
lado para outro, lentamente, perigosamente mais baixo. Então, curvou-se para ela,
o hálito quente em seu ouvido, e sussurrou:
- Foi com esta lâmina que arranquei o olho de seu pai.
Naquele instante, Vittoria descobriu que era capaz de matar.
O Hassassin virou de novo a lâmina e começou a cortar o tecido do short. De
repente, parou e levantou a cabeça. Havia mais alguém na sala.
- Afaste-se dela - uma voz profunda soou raivosa da porta.
Vittoria não podia enxergar quem falara, mas reconheceu a voz. Robert!
Ele está vivo!
O Hassassin tinha a expressão de quem vê um fantasma.
- Senhor Langdon, o senhor deve ter um anjo da guarda.
CAPÍTULO 108
Na fração de segundo de que dispôs para avaliar o ambiente, Langdon percebeu
que se encontrava em um lugar sagrado. Os ornatos na sala oblonga, apesar de
velhos e desbotados, estavam repletos de uma simbologia conhecida. Azulejos em
forma de pentagrama, afrescos representando os planetas. Pombas. Pirâmides.
A Igreja da Iluminação. Pura e simplesmente. Ele chegara.
Na sua frente, emoldurado pela abertura da sacada, estava o Hassassin. Tinha o
peito nu e junto dele, deitada e amarrada mas bem viva, estava Vittoria. Langdon
sentiu um grande alívio ao vê-la. Por um instante, seus olhos se encontraram e
uma torrente de emoções fluiu entre os dois - gratidão, desespero e pena.
- Quer dizer que nos encontramos de novo - disse o Hassassin. Viu a barra de
ferro na mão de Langdon e deu uma risada alta. - E desta vez é com isso que vem
atrás de mim?
- Solte-a.
O Hassassin encostou a faca no pescoço de Vittoria.
- Vou matá-la.
Langdon não duvidava de que ele fosse capaz de tal coisa.
Forçou-se a falar em um tom calmo.
- Imagino que ela gostaria muito disso, considerando-se a alternativa.
O Hassassin sorriu ao ouvir o insulto.
- Tem razão. Ela tem muito a oferecer. Seria um desperdício.
Langdon deu um passo à frente, segurando com firmeza a barra enferrujada, e
mirou o Hassassin com a ponta quebrada. O corte em sua mão ardeu fortemente.
- Deixe-a ir.
Por um momento, o Hassassin deu a impressão de estar refletindo a respeito.
Suspirando, descaiu os ombros. Era nitidamente um gesto de rendição e, no
entanto, naquele instante exato, o braço do homem acelerou-se de modo
inesperado. Os músculos escuros formaram um borrão e a lâmina veio reluzindo
pelo ar na direção do peito de Langdon.
Se foi instinto ou exaustão o que na hora vergou os joelhos de Langdon, ele não
soube, mas o canivete passou rente à sua orelha esquerda e caiu no chão com um
ruído metálico. O Hassassin, imperturbável, sorriu para Langdon, que se
ajoelhara, segurando a barra de ferro. O matador deixou Vittoria e encaminhou-se
para seu adversário como um leão que avança para a presa.
Langdon levantou-se apressado erguendo outra vez a barra - a camisa e a calça
molhadas tolhendo-lhe os movimentos. O Hassassin, seminu, movia-se com mais
rapidez, a ferida no pé aparentemente em nada o atrapalhava. Aquele homem
devia estar acostumado à dor. Pela primeira vez na vida Langdon desejou estar
segurando um revólver muito grande.
O Hassassin rodeou-o devagar, com ar divertido, sempre fora de alcance, tentando
se aproximar da faca no chão. Langdon pôs-se no meio do caminho. Então, o
matador voltou para perto de Vittoria. Mais uma vez, Langdon interpôs-se.
- Ainda há tempo - arriscou Langdon. - Diga onde está a antimatéria. O Vaticano
pode lhe pagar mais do que os Illuminati jamais fariam.
- Você é ingênuo.
Langdon dava estocadas com a barra. O Hassassin desviava-se. Langdon
contornou um banco segurando a arma diante de si, tentando encurralar o outro na
sala oval. Esta sala desgraçada não tem cantos!
Curiosamente, o Hassassin não se mostrava interessado em atacar ou fugir. Fazia
apenas o jogo de Langdon. Esperando, com frieza.
Esperando o quê? O matador continuava se deslocando em círculo, um mestre na
arte de se posicionar.
Era como um interminável jogo de xadrez. A arma na mão de Langdon ia ficando
pesada e logo ele achou que sabia o que o Hassassin esperava. Ele está me
cansando. E está dando certo. Uma onda de fadiga invadiu-o, a adrenalina sozinha
não bastando para mantê-lo alerta. Tinha de tomar uma iniciativa qualquer.
O matador pareceu adivinhar os pensamentos de Langdon e mudou de posição
outra vez, como se tencionasse levá-lo para junto da mesa que ficava no centro do
aposento. Langdon reparou que havia alguma coisa em cima da mesa. Algo que
reluziu à luz da tocha. Uma arma? Langdon manteve os olhos fixos no Hassassin
e manobrou para chegar antes dele perto da mesa. Quando o outro lançou um
olhar inocente, prolongado, para a mesa, Langdon tentou não engolir a isca. Mas o
instinto prevaleceu.
Relanceou os olhos para lá. E fez- se o estrago.
Não se tratava de arma nenhuma. O que viu momentaneamente o fascinou. Sobre
a mesa havia uma arca primitiva de cobre coberto de pátina. Tinha a forma de um
pentágono. A tampa estava aberta. Arrumados dentro dela em cinco
compartimentos acolchoados estavam cinco ferros de marcar, grandes
instrumentos com fortes cabos de madeira. Langdon já sabia o que diziam.
ILLUMINATI, EARTH, AIR, FIRE, WATER.
Virou rápido a cabeça de volta, temendo que o Hassassin fosse aproveitar para
atacar. Mas ele não o fez.
Esperava, quase como se aquele jogo o descansasse. Langdon esforçou-se para
recuperar a concentração e o contato visual com seu oponente, arremetendo com o
cano. A imagem da arca, porém, não lhe saía da cabeça. Embora a visão dos
próprios ferros de marcar fosse quase hipnótica - poucos estudiosos dos Illuminati
sequer acreditavam que tais objetos existissem -, ele notou que havia algo mais na
arca que lhe despertara um mau presságio. Quando o Hassassin fez uma nova
manobra, Langdon lançou outro olhar para baixo.
Deus meu!
Dentro da arca, os cinco ferros estavam dispostos em cinco compartimentos em
torno da borda exterior.
No centro, porém, havia outro compartimento. Vazio, naquele momento, mas
claramente o lugar onde era guardado mais um ferro, muito maior do que os
outros e todo quadrado.
O ataque veio como um raio.
O Hassassin precipitou-se sobre ele como uma ave de rapina. Langdon, cuja
concentração fora magistralmente desviada, tentou revidar, mas a barra de ferro
pesava como um tronco de árvore em suas mãos. Deu um golpe devagar demais.
O Hassassin esquivou-se. Quando Langdon tentou puxar a barra de novo para si,
as mãos do outro projetaram-se para a frente e agarraram-na. O homem tinha
muita força nas mãos, o braço ferido não parecia afetá-lo mais. Os dois lutaram
violentamente. Langdon sentiu o outro arrancar-lhe a barra e, ao mesmo tempo,
uma dor lancinante na palma da mão. No instante seguinte, Langdon encarava a
ponta quebrada da barra de ferro. O caçador virara caça.
A sensação era a de ser atingido por um ciclone. O Hassassin rodeava-o, sorrindo,
encurralando-o contra a parede.
- Como é mesmo aquele ditado? - zombava ele. - Aquele sobre a curiosidade e o
gato?
Langdon mal conseguia se concentrar. Amaldiçoou seu descuido enquanto o
adversário se aproximava mais. Nada fazia sentido. Uma sexta marca Illuminati?
Frustrado, falou sem pensar:
- Nunca li nada sobre uma sexta marca dos Illuminati!
- Acho que deve ter lido, sim. - O matador deu uma risadinha, fazendo Langdon
se deslocar ao longo da parede oval.
Langdon estava perdido. Seguramente, nunca soubera da existência dela. Havia
cinco marcas Illuminati.
Recuou, procurando na sala alguma coisa que lhe pudesse servir de arma.
- Uma união perfeita de antigos elementos - disse o Hassassin. - A marca final é a
mais brilhante de todas. É uma pena, mas acho que você nunca a verá.
Langdon receava que deixasse de ver muita coisa dentro de pouco tempo.
Continuou a recuar, buscando uma opção de defesa na sala.
- E você já viu essa marca final? - perguntou Langdon, tentando ganhar tempo.
- Pode ser que algum dia eles me dêem essa honra. Conforme eu provar meu
valor. - E deu uma estocada em Langdon, como se aquilo fosse um jogo animado.
Langdon deslizou para trás mais uma vez. Tinha a sensação de que o Hassassin
conduzia-o ao longo da parede para um ponto desconhecido. Para onde? Não
podia se permitir olhar o que havia atrás.
- E essa marca - perguntou -, onde está ela?
- Não está aqui. Janus é aparentemente o único que a usa.
- Janus? - Langdon não reconheceu o nome.
- O líder Illuminati. Vai chegar em breve.
- Ele está vindo para cá?
- Para fazer a última marcação.
Langdon lançou um olhar assustado para Vittoria. Ela parecia estranhamente
calma, os olhos fechados para o mundo a seu redor, os pulmões bombeando o ar
devagar, fundo. Seria ela a vítima final? Seria ele?
- Que presunção - desdenhou o Hassassin, acompanhando o olhar de Langdon. -
Vocês dois não são nada.
Vão morrer, claro, isto é certo. Mas a vítima final de que falo é um inimigo
verdadeiramente perigoso.
Langdon tentou dar sentido às palavras do Hassassin. Um inimigo perigoso? Os
cardeais mais importantes estavam mortos, O Papa estava morto. Os Illuminati
tinham acabado com todos eles. Langdon encontrou a resposta no vácuo dos olhos
do Hassassin.
O camerlengo.
O camerlengo Ventresca fora o único homem que funcionara como um farol de
esperança para o mundo através de todas aquelas atribulações. O camerlengo
fizera mais naquela noite para condenar os Illuminati do que décadas de teorias
conspiratórias. Tudo indicava que pagaria um preço por isto. Era ele o alvo final
dos Illuminati.
- Você nunca chegará até ele - Langdon desafiou-o.
- Eu, não - replicou o Hassassin, obrigando Langdon a recuar mais contra a
parede. - Essa honra está reservada para o próprio Janus.
- O líder dos Illuminati em pessoa pretende marcar a fogo o camerlengo?
- O poder tem seus privilégios.
- Ninguém vai conseguir entrar no Vaticano agora!
O Hassassin observou, com ar pretensioso:
- A não ser que ele tenha um encontro marcado.
Langdon custou a entender. A única pessoa esperada no Vaticano naquele
momento era o tal personagem que a imprensa estava chamando de Samaritano da
Décima Primeira Hora, a pessoa que Rocher dissera ter informações que poderiam
salvar...
Deus do Céu!
O homem riu um riso afetado, claramente se divertindo com o choque de
Langdon.
- Também me perguntei como Janus conseguiria entrar. Então, quando vinha para
cá, ouvi no rádio do carro a notícia sobre o Samaritano da Décima Primeira Hora.
- Ele sorriu. - O Vaticano vai receber Janus de braços abertos.
Langdon quase perdeu o equilíbrio. Janus é o Samaritano! Tratava-se de um
disfarce impensável. O líder dos Illuminati teria uma escolta real até os aposentos
do camerlengo. Mas como Janus enganou Rocher?
Ou será que Rocher está de alguma forma envolvido? Langdon sentiu um calafrio.
Desde que quase morrera asfixiado nos arquivos secretos deixara de confiar
inteiramente em Rocher.
O Hassassin deu uma espetadela súbita, acertando o lado do corpo de Langdon.
Ele saltou para trás, cheio de raiva.
- Janus não vai sair vivo de lá!
O outro deu de ombros.
- Existem causas pelas quais vale a pena morrer.
O assassino falava sério. Janus iria à Cidade do Vaticano em uma missão suicida?
Era uma questão de honra? Em segundos, a mente de Langdon reconstruiu todo o
aterrorizante processo. O ciclo da trama dos Illuminati estava se fechando. O
sacerdote que os Illuminati tinham inadvertidamente levado ao poder ao matarem
o Papa surgia como um adversário de peso. Em um ato final de desafio, o líder
dos Illuminati iria destruí-lo.
Inesperadamente, a parede atrás de Langdon desapareceu. Uma lufada de ar frio
envolveu-o e ele recuou cambaleando dentro da noite. A sacada! Agora sabia o
que o Hassassin tinha em mente.
Langdon sentiu logo o precipício às suas costas - uma queda de 30 metros no
pátio abaixo. Tinha visto ao entrar. O Hassassin não perdeu tempo. Com um
impulso vigoroso, investiu. A lança improvisada mirou o tronco de Langdon. Ele
se desviou e a ponta passou rente, pegando somente sua camisa. Outra vez, a
ponta da barra de ferro veio para cima dele. Langdon deslizou mais para trás,
quase encostado na balaustrada. Certo de que o golpe seguinte o mataria, tentou o
absurdo. Girando para o lado, estendeu a mão e agarrou a barra, sentindo uma
ferroada de dor na palma ferida. Mas não a largou.
O Hassassin não se abalou. Os dois puxaram durante um momento, cada um para
um lado, face a face, o hálito fétido do Hassassin junto às narinas de Langdon. A
barra começou a escorregar, o Hassassin era muito forte. Num último gesto de
desespero, Langdon esticou a perna, arriscando perigosamente seu equilíbrio,
tentando pisar no dedo ferido do pé do Hassassin. Mas o homem era um
profissional e sabia como proteger seu ponto fraco.
Langdon dera sua cartada final. E sabia que perdera a mão.
Os braços do Hassassin explodiram para cima, fazendo Langdon ir de encontro à
grade da sacada. Só havia o espaço vazio atrás dele agora, já que a grade chegava
apenas à altura de suas nádegas. O Hassassin segurou a barra na horizontal e
pressionou-a contra o peito de Langdon. As costas dele arquearam-se no espaço.
- Ma'assalamah - zombou o Hassassin. - Adeus.
Com um olhar impiedoso, deu o empurrão final. O centro de gravidade de
Langdon deslocou-se e seus pés levantaram-se do chão. Apelando para a última
esperança de sobrevivência, Langdon agarrou-se à grade quando seu corpo virou e
passou por cima dela. A mão esquerda escapuliu, mas a direita se manteve. Ficou
pendurado de cabeça para baixo, preso pelas pernas e por uma das mãos, fazendo
força para não se soltar.
E viu o Hassassin assomar no alto com a barra erguida acima da cabeça,
preparando-se para descê-la em sua direção. Quando a barra começou a se
acelerar, Langdon teve uma visão. Talvez fosse a iminência da morte ou
simplesmente o medo cego, mas naquele momento uma aura cercou o vulto do
Hassassin. Um clarão fulgurante foi aumentando por trás dele vindo do nada,
como uma bola de fogo chegando.
No meio do movimento de ataque, ele largou a barra e gritou de dor.
A barra de ferro passou por Langdon e desceu retinindo na escuridão. O matador
virou-se e Langdon viu a enorme queimadura da tocha nas costas dele. Langdon
puxou o corpo para cima e viu Vittoria, os olhos dardejantes, agora enfrentando o
Hassassin.
Ela agitava a tocha diante de si, a vingança em seu rosto resplandecendo nas
chamas. Como ela escapara, Langdon não sabia nem queria saber. Ele subiu pela
grade para voltar para a sacada.
A batalha não duraria muito. O Hassassin era um oponente mortal. Com um urro
furioso, ele arremeteu contra ela. Ela tentou se esquivar, mas ele segurou a tocha e
estava prestes a tirá-la da mão dela. Langdon não esperou. Pulou da grade da
sacada e lançou o punho fechado na queimadura das costas do homem.
O berro dele pareceu ecoar até o Vaticano.
O homem se imobilizou um instante, as costas curvadas em agonia. Soltou a tocha
e Vittoria então a comprimiu com toda a força no rosto de seu inimigo. A carne
queimada chiou, o olho esquerdo dele crepitou. O homem deu outro urro, levando
as duas mãos ao rosto.
- Olho por olho - disse Vittoria, a voz sibilante.
E, dessa vez, girou a tocha como um bastão que, quando atingiu o alvo, fez o
homem recuar vacilando de encontro à grade da sacada. Langdon e Vittoria
correram ao mesmo tempo para ele, ambos levantando-o e empurrando. O corpo
do Hassassin tombou de costas por cima da grade e mergulhou na noite. Não
houve mais gritos. O único som foi o de sua espinha dorsal se partindo quando ele
caiu de braços abertos em cima de uma pilha de balas de canhão no pátio.
Langdon virou-se e olhou para Vittoria, perplexo. As cordas ainda pendiam,
frouxas, da sua cintura e dos ombros. Os olhos relampejavam, ameaçadores.
- Houdini fazia ioga.
CAPÍTULO 109
Enquanto isso, na Praça de São Pedro,a barreira formada pelos homens da Guarda
Suíça gritava ordens e tentava fazer a multidão recuar para uma distância segura.
Não adiantava. A massa de gente era densa demais e, pelo jeito, estava muito mais
interessada na catástrofe iminente do Vaticano do que na própria segurança. Os
telões da imprensa instalados na praça transmitiam ao vivo a contagem regressiva
da bomba de antimatéria - em imagem direta do monitor de segurança da Guarda
Suíça -, com os cumprimentos do camerlengo. Infelizmente, a imagem do
contador em nada contribuía para afastar o povo. As pessoas olhavam para a
gotinha minúscula de líquido em suspensão no tubo e aparentemente concluíam
que não era tão ameaçadora quanto haviam pensado. Também podiam ver agora
os números no contador - faltavam pouco menos de 45 minutos para a detonação.
Tempo mais do que suficiente para ficar ali e observar tudo.
Mesmo assim, a Guarda Suíça era unânime em admitir que a corajosa decisão do
camerlengo de contar a verdade ao mundo e em seguida fornecer à imprensa a
prova visual da traição dos Illuminati tinha sido uma hábil manobra. Os Illuminati
com certeza esperavam que o Vaticano adotasse sua atitude reticente habitual
diante das adversidades. Isso não acontecera naquela noite. O camerlengo Carlo
Ventresca provara ser um adversário respeitável.
Dentro da Capela Sistina, o cardeal Mortati ia ficando inquieto. Passava de 11h15.
Muitos cardeais continuavam a rezar, mas outros haviam se agrupado perto da
saída, visivelmente aflitos com a hora. Alguns começaram a bater na porta com os
punhos.
Do outro lado da porta, o tenente Chartrand ouvia as batidas e não sabia o que
fazer. Verificou seu relógio. Estava na hora. O capitão Rocher dera ordens
rigorosas, determinando que não deixasse os cardeais saírem enquanto ele não
mandasse. As batidas na porta se intensificaram e Chartrand sentiu-se
embaraçado. Será que o capitão simplesmente se esquecera? Ele vinha agindo de
modo muito estranho desde o misterioso telefonema.
Chartrand tirou seu walkie-talkie.
- Capitão? Aqui é Chartrand. Já passou da hora. Devo abrir a Sistina?
- A porta permanece fechada. Acho que já lhe dei essa ordem.
- Sim, senhor, é que...
- Nosso visitante deve estar chegando. Leve alguns homens para cima e vigiem a
porta do escritório do Papa. O camerlengo não pode sair de lá sob hipótese
alguma.
- Como disse, senhor?
- O que é que não está compreendendo, tenente?
- Não foi nada, senhor, estou a caminho.
Lá em cima, no escritório do Papa, o camerlengo contemplava o fogo em
silenciosa meditação. Dê-me forças, meu Deus. Faça um milagre. Atiçou as
chamas da lareira, pensando se sobreviveria àquela noite.
CAPÍTULO 110
Onze horas e vinte e três minutos.
Vittoria estava na sacada do Castelo Sant'Angelo, ainda trêmula, o olhar na cidade
de Roma, os olhos úmidos de lágrimas. Queria muito abraçar Robert Langdon,
mas não podia. Seu corpo parecia anestesiado, reajustando-se, acomodando o que
ocorrera. O homem que matara seu pai jazia lá embaixo, morto, e ela quase se
tornara também uma vítima dele.
Quando a mão de Langdon tocou o ombro dela, a infusão de calor mágicamente
desfez aquela sensação enregelante. Seu corpo estremeceu de volta para a vida. A
névoa se levantou e ela se virou. Robert encontrava-se em um estado lastimável,
molhado, o cabelo todo emaranhado - era evidente que passara por um verdadeiro
purgatório para vir salvá-la.
- Obrigada... - ela murmurou.
Ele deu um sorriso cansado e lembrou-lhe que era ela quem merecia os
agradecimentos. Sua habilidade para praticamente deslocar os ombros acabara de
salvar ambos. Vittoria enxugou os olhos. Gostaria de ter ficado ali para sempre
com ele, mas a trégua seria breve.
- Temos de sair daqui - disse Langdon.
A mente de Vittoria estava em outro lugar. Ela olhava na direção do Vaticano. O
menor país do mundo encontrava-se a uma proximidade perturbadora, imerso na
luz branca dos refletores da imprensa. Para espanto seu, grande parte da Praça de
São Pedro ainda estava cheia de gente! A Guarda Suíça aparentemente só
conseguira isolar uns cinqüenta metros - a área diretamente fronteira à basílica -, o
que constituía menos de um terço da praça. A área restante da praça estava
compactada com os que estavam a uma distância segura pressionando para ver
melhor e encurralando os outros na parte de dentro. Estão perto demais! Pensou
Vittoria. Perto demais!
- Vou voltar para lá - disse Langdon, categórico.
Vittoria virou-se para ele, incrédula.
- Para o Vaticano?
Langdon contou-lhe sobre o Samaritano e que se tratava de um ardil. O líder dos
Illuminati, um homem chamado Janus, chegaria em pessoa para marcar a fogo o
camerlengo. Um gesto de dominação final dos Illuminati.
- Ninguém no Vaticano sabe - disse Langdon. - Não tenho como fazer contato
com eles e esse sujeito deve chegar a qualquer minuto. Preciso avisar os guardas
antes que o deixem entrar.
- Mas você não vai conseguir passar por essa multidão!
A voz de Langdon soou confiante.
- Há um jeito. Confie em mim.
Vittoria pressentiu mais uma vez que o historiador sabia de algo que ela
desconhecia.
- Também vou.
- Não. Por que nos arriscarmos os dois...
- Tenho de encontrar um modo de tirar aquela gente dali! Estão correndo grave
perigo.
No mesmo instante, a sacada começou a tremer. Um rugido ensurdecedor abalou
todo o castelo. Em seguida, uma luz branca vinda da Praça de São Pedro cegouos.
Vittoria só pensou em uma coisa. Oh, Deus! A antimatéria aniquilou-se antes
da hora!
Em vez de um estrondo, porém, uma ruidosa saudação ergueu-se do povo.
Vittoria apertou os olhos contra a luz. Uma barreira de luz de refletores vinha da
praça e, ao que parecia, agora apontava para eles! Todos se voltavam na direção
deles, apontando e chamando. O ronco ficou mais alto. A atmosfera na praça de
repente dava a impressão de estar mais alegre.
Langdon estava desnorteado.
- Que diabos...
Um rugido ecoou pelo céu.
Por trás da torre, sem aviso, surgiu o helicóptero do Papa. Trovejou uns 15 metros
acima da cabeça deles, indo em linha reta para a Cidade do Vaticano. Quando
passou, brilhando à luz dos refletores, o castelo tremeu. As luzes acompanharam o
percurso do helicóptero, deixando Langdon e Vittoria de novo no escuro.
Vittoria teve a sensação desconfortável de estarem atrasados ao ver o enorme
aparelho deter-se acima da Praça de São Pedro. Levantando uma nuvem de
poeira, o helicóptero desceu no trecho vazio da praça, entre a multidão e a
basílica, tocando o solo na base das escadarias da basílica.
- Falando sobre entrar no Vaticano... - disse Vittoria.
Destacando-se contra o fundo de mármore branco, viu ao longe a figura diminuta
de uma pessoa sair do Vaticano e dirigir-se para o helicóptero. Nunca teria
reconhecido quem era se não fosse pela boina vermelha na cabeça.
- Recebido com tapete vermelho. É Rocher.
Langdon deu um soco na grade.
- Alguém tem de avisar a eles! - e fez meia volta para sair.
Vittoria segurou o braço dele.
- Espere!
Acabara de ver algo mais, algo em que se recusava a acreditar. Com os dedos
trêmulos, apontou para o helicóptero. Mesmo à distância, não havia engano
possível. Descendo pela prancha de desembarque vinha uma outra figura, que se
movia de maneira tão peculiar que só poderia ser um homem. Embora estivesse
sentado, ele acelerou pela praça aberta sem esforço e a uma velocidade
surpreendente.
Um rei sentado em um trono elétrico.
Era Maximilian Kohler.
CAPÍTULO 111
Kohler estava enojado com a opulência do saguão do Belvedere. Só revestimento
de ouro do teto daria para financiar um ano de pesquisas sobre o câncer. Rocher
subiu com ele uma rampa, conduzindo-o por um caminho tortuoso ao Palácio
Apostólico.
- Não tem elevador? - perguntou Kohler.
- Estamos sem luz. - Rocher mostrou as velas acesas em torno deles no edifício
escuro. - É parte de nossa estratégia de busca.
- Estratégia que certamente falhou.
Rocher concordou.
Kohler teve outro ataque de tosse e ocorreu-lhe que talvez fosse um dos últimos
de sua vida. Não era um pensamento de todo desagradável.
Ao chegarem ao andar de cima e entrarem no corredor que levava ao escritório do
Papa, quatro guardas suíços correram na direção deles com ar preocupado.
- Capitão, o que estão fazendo aqui em cima? Pensei que esse senhor tivesse
informações que...
- Ele só vai falar com o camerlengo.
Os guardas recuaram, desconfiados.
- Avise ao camerlengo - disse Rocher, em tom enérgico - que o diretor do CERN,
Maximilian Kohler, está aqui para vê-lo. Imediatamente.
- Sim, senhor!
Um dos guardas saiu apressado para o escritório do camerlengo. Os outros
mantiveram suas posições.
Observavam Rocher com ar constrangido.
- Só um momento, capitão. Vamos anunciar seu visitante.
Kohler, porém, não se deteve. Deu uma guinada repentina e manobrou sua
cadeira, contornando os sentinelas.
Os guardas giraram e saíram trotando ao lado dele.
- Fermati! Senhor! Pare!
Kohler sentia aversão por eles. Nem a força de segurança mais elitista do mundo
estava imune à pena que todos sentiam pelos aleijados. Se Kohler fosse um
homem saudável, os guardas o teriam segurado. Os aleijados são impotentes,
pensou Kohler. Ou o mundo acredita que eles são.
Kohler sabia que dispunha de pouco tempo para levar a cabo o que tinha vindo
fazer. Sabia também que poderia morrer ali naquela noite. Ficou surpreso ao
constatar quão pouco se importava. A morte era um preço que estava pronto para
pagar. Suportara coisas demais em sua vida para que seu trabalho fosse destruído
por alguém como o camerlengo Ventresca.
- Signore! - gritaram os guardas, correndo na frente e formando uma fila de lado a
lado do corredor. - O senhor tem de parar! - Um deles puxou uma arma e apontoua
para Kohler.
Kohler parou.
Rocher interpôs-se, contrito.
- Senhor Kohler, por favor. Só vai levar um momento. Ninguém entra no
escritório do Papa sem ser anunciado.
Kohler viu nos olhos de Rocher que não tinha escolha a não ser esperar. Muito
bem, pensou, vamos esperar.
Os guardas, por maldade talvez, tinham feito Kohler parar junto a um espelho de
moldura dourada que ia do teto ao chão. A visão de sua figura disforme causavalhe
repulsa. A velha raiva mais uma vez veio à tona. Fortalecia-o. Estava no meio
do inimigo naquele momento. Aquelas eram as pessoas que o haviam privado de
sua dignidade. Eram elas mesmas. Por causa delas, nunca sentira o corpo de uma
mulher, nunca se levantara para receber um prêmio. Qual é a verdade que essa
gente possui? Que provas, malditos sejam? Um livro de fábulas antigas?
Promessas de milagres que estão por vir? A ciência produz milagres todos os dias!
Contemplou seus olhos de pedra. Esta noite pode ser que eu morra nas mãos da
religião, pensou. Mas não será a primeira vez.
E voltou aos seus 11 anos. Deitado em sua cama na mansão de seus pais em
Frankfurt, os lençóis que o envolviam, feitos com o melhor linho da Europa,
estavam empapados de suor. O jovem Max sentia o corpo em fogo, uma dor
inimaginável torturando-o. Ajoelhados ao lado de sua cama, de onde não saíam já
fazia três dias, estavam seu pai e sua mãe. Ambos rezavam.
Nas sombras do quarto encontravam-se três dos melhores médicos de Frankfurt.
- Insisto que pensem melhor! - disse um dos médicos. - Olhem para o menino! A
febre está aumentando. Ele está com dores terríveis. E corre risco de vida!
Max, todavia, sabia o que sua mãe responderia antes mesmo que ela abrisse a
boca.
- Gott wird ihn beschuetzen.
Sim, pensou Max. Deus vai me proteger. A convicção na voz de sua mãe deu- lhe
forças. Deus vai me proteger.
Uma hora mais tarde, Max sentia dores tamanhas, como se seu corpo estivesse
sendo esmagado por um carro. Sequer conseguia respirar para gritar.
- Seu filho está sofrendo demais - disse outro médico. - Deixe-me ao menos
aliviar as dores dele. Tenho na minha mala uma injeção simples de...
- Ruhe, bitte! - O pai de Max fez o médico calar-se sem ao menos abrir os olhos,
continuando a rezar.
- Papai, por favor! - Max queria gritar. - Deixe que ele faça a dor parar!
- Mas suas palavras perderam-se em um espasmo de tosse.
Uma hora depois, a dor tinha piorado ainda mais.
- Seu filho pode ficar paralítico - advertiu um dos médicos. - E até morrer! Temos
remédios que podem ajudar!
Frau e Herr Kohler não permitiram. Não acreditavam em remédios. Quem eram
eles para interferir nos planos divinos? Rezaram com maior intensidade. Afinal, se
Deus os abençoara com aquele menino, por que Deus o levaria embora? Sua mãe
sussurrou-lhe que fosse forte. Explicou que Deus o estava testando como na
história de Abraão na Bíblia, um teste de fé.
Max tentava ter fé, mas as dores eram excruciantes.
- Não agüento ver isso! - disse afinal um dos médicos, saindo às pressas do
quarto.
Ao amanhecer, Max estava semiconsciente. Todos os seus músculos contraíam-se
em espasmos de agonia. Onde está Jesus? Delirava. Ele não me ama? Max sentia
a vida esvaindo-se de seu corpo.
Sua mãe adormecera ao lado da cama, as mãos ainda entrelaçadas em cima dele.
O pai estava junto à janela, do outro lado do quarto, vendo o dia clarear. Parecia
estar em transe. Max escutava o murmúrio de suas súplicas incessantes por
misericórdia.
Nesse momento Max divisou a figura pairando acima dele. Um anjo? Ele não
enxergava direito. Seus olhos estavam muito inchados. A figura cochichou em seu
ouvido, mas não era a voz de um anjo. Max reconheceu a voz de um dos médicos,
o que estava sentado em um canto havia dois dias, sem desistir, rogando aos pais
de Max que o deixassem administrar na criança um novo remédio vindo da
Inglaterra.
- Nunca vou me perdoar - sussurrou o médico - se não fizer isso. - E, com
delicadeza, pegou o braço frágil do menino. - Gostaria de tê-lo feito mais cedo.
Max sentiu uma pequenina espetadela no braço, que mal distinguiu em meio a
tanta dor.
O médico então guardou suas coisas em silêncio. Antes de sair, pousou a mão na
testa de Max.
- Isto vai salvar sua vida. Tenho muita fé no poder da medicina.
Poucos minutos depois, Max sentiu como se uma espécie de espírito mágico
fluísse em suas veias. O calor espalhou-se por seu corpo e amorteceu a dor.
Finalmente, pela primeira vez em dias, Max dormiu.
Quando a febre cedeu, seu pai e sua mãe proclamaram que era um milagre de
Deus. Mas, quando ficou evidente que o filho estava aleijado, ficaram
melancólicos. Levaram-no à igreja em uma cadeira de rodas e pediram que um
padre os aconselhasse.
- Foi apenas pela graça de Deus - disse o padre - que esse menino sobreviveu.
Max escutava sem dizer nada.
- Mas nosso filho não anda mais! - chorava Frau Kohler.
O padre sacudiu a cabeça, com ar triste.
- Sim. Parece que Deus o puniu por não ter fé suficiente.
- Senhor Kohler? - era o guarda suíço que correra na frente quem falava.
- O camerlengo disse que concederá uma audiência ao senhor.
Kohler resmungou algo, acelerando de novo pelo corredor afora.
- Ele está surpreso com a sua visita - disse o guarda.
- Estou certo que sim - Kohler respondeu, prosseguindo. - Gostaria de vê-lo a sós.
- Impossível - disse o guarda. - Ninguém...
- Tenente - falou Rocher, ríspido -, a reunião será como o senhor Kohler deseja.
O guarda olhou fixo para ele, incrédulo.
Do lado de fora do escritório do Papa, Rocher autorizou seus guardas a tomarem
as precauções de praxe antes de deixar Kohler entrar. O detector de metais manual
perdeu toda a utilidade com os inúmeros aparelhos eletrônicos instalados na
cadeira de rodas de Kohler. Os guardas o revistaram, mas sua deficiência
evidentemente os encabulou e não o fizeram como deveriam. Não encontraram o
revólver escondido sob a cadeira. Nem o outro objeto, aquele que, Kohler sabia,
fecharia de modo inesquecível a seqüência de acontecimentos daquela noite.
Quando Kohler entrou no escritório do Papa, o camerlengo Ventresca estava
sozinho, ajoelhado, rezando ao lado do fogo quase extinto da lareira. Não abriu os
olhos.
- Senhor Kohler - disse o camerlengo. - O senhor veio para me transformar em um
mártir?
CAPÍTULO 112
O túnel estreito chamado il Passetto estendia-se em linha reta diante de Langdon e
Vittoria enquanto os dois corriam rumo à Cidade do Vaticano. A tocha na mão de
Langdon só produzia claridade para que enxergassem uns poucos metros adiante.
As paredes eram muito próximas e o teto era baixo. Havia um cheiro desagradável
de umidade no ar. Langdon avançava depressa pela escuridão com Vittoria
seguindo-o de perto.
O túnel inclinava-se de modo acentuado ao sair do Castelo Sant'Angelo,
prosseguindo em sentido ascendente por dentro da parte inferior de um bastião de
pedra semelhante a um aqueduto romano. Ali, o túnel se estabilizava e continuava
seu percurso secreto na direção da Cidade do Vaticano.
No caminho, os pensamentos sucediam-se como um caleidoscópio de imagens
confusas na cabeça de Langdon - Kohler, Janus, o Hassassin, Rocher, uma sexta
marca? Você já ouviu falar da sexta marca, dissera o matador. A mais brilhante de
todas. Langdon tinha certeza de que não ouvira. Nem nas teorias conspiratórias
havia qualquer referência a uma sexta marca, real ou imaginária. Sabia de boatos
sobre barras de ouro e sobre um diamante Illuminati sem qualquer jaça, mas
nunca ouvira menção alguma a uma sexta marca.
- Kohler não pode ser Janus! - afirmou Vittoria, correndo pelo túnel atrás de
Langdon. - É impossível!
Impossível era uma palavra que Langdon deixara de usar naquela noite.
- Não sei - gritou ele para trás, sem parar. - Kohler tinha um ressentimento sério e
também exerce uma grande influência.
- Esta crise fez o CERN parecer monstruoso! Max nunca faria nada para
prejudicar a reputação do CERN!
Por um lado, Langdon sabia que o CERN ficara desacreditado naquela noite
devido à insistência dos Illuminati em fazer daquilo tudo um espetáculo público.
Por outro, ponderava o quanto de fato o CERN teria sido prejudicado. As críticas
da Igreja não eram novidade para o CERN. Na verdade, quanto mais Langdon
pensava a respeito, mais achava que a crise iria na realidade beneficiar o CERN.
Se o negócio era publicidade, a antimatéria ganhara o grande prêmio da loteria
naquela noite. No planeta inteiro só se falava dela.
- Sabe o que dizia o promotor P. T. Barnum? - disse Langdon por cima do ombro.
- "Não me importo que falem mal de mim, contanto que escrevam meu nome
certo!" Aposto como já deve ter uma fila de gente interessada em obter a licença
da tecnologia da antimatéria. E depois que virem o que ela é capaz de fazer à
meia-noite de hoje...
- Não tem lógica - disse Vittoria. - Fazer publicidade de avanços tecnológicos não
é mostrar seu poder destrutivo! Isto é terrível para a antimatéria, acredite!
A tocha de Langdon estava quase no fim.
- Então deve ser mais simples do que isso. Talvez Kohler tenha apostado que o
Vaticano manteria segredo sobre a antimatéria para não fortalecer os Illuminati.
Kohler esperava que o Vaticano se comportasse com a sua reserva de costume
sobre a ameaça, mas o camerlengo mudou as regras.
Vittoria ficou calada enquanto prosseguiam.
Aos poucos, as coisas foram fazendo mais sentido para Langdon.
- É isso! Kohler não contava com a reação do camerlengo. O camerlengo quebrou
a tradição de segredo do Vaticano e foi a público falar da crise. Ele foi
tremendamente franco. Chegou a pôr a antimatéria na TV! Foi uma reação
brilhante, Kohler jamais a esperava. E a ironia de tudo é que o tiro dos Illuminati
saiu pela culatra. Sem querer, produziu um novo líder da Igreja na pessoa do
camerlengo. E agora Kohler está chegando para matá-lo!
- Max é um canalha - declarou Vittoria -, mas não é um assassino. E nunca estaria
envolvido no assassinato do meu pai.
Na mente de Langdon, foi a própria voz de Kohler que respondeu:
Leonardo era considerado perigoso por muitos puristas do CERN. Unir ciência e
Deus é a suprema heresia científica.
- Talvez Kohler tenha descoberto sobre o projeto da antimatéria há semanas e não
tenha ficado satisfeito com as implicações religiosas.
- E matado meu pai por causa disso? Ridículo! Além do mais, Max Kohler não
sabia que o projeto existia.
- Enquanto você estava fora, talvez seu pai tenha sucumbido e consultado Kohler,
pedindo orientação.
Você mesma disse que seu pai estava preocupado com as implicações morais de
criar uma substância tão mortal.
- Pedir orientação moral a Maximilian Kohler? - desdenhou Vittoria. - Acho que
não!
O túnel desviava-se ligeiramente para oeste. Quanto mais depressa corriam, mais
fraca se tornava a luz da tocha. Langdon começou a temer que ficasse totalmente
escuro, como se tivessem apagado a luz. Trevas totais.
- Além disso, por que Kohler teria se incomodado em ligar para você hoje de
manhã cedo para pedir ajuda se ele próprio estivesse por trás de tudo?
Langdon já tinha considerado a possibilidade.
- Ao ligar para mim, Kohler estava cobrindo suas bases. Daí em diante, ninguém
poderia acusá-lo de omissão em um momento de crise. Provavelmente não
contava que fôssemos tão longe.
A idéia de ter sido "usado" por Kohler irritou Langdon. Seu envolvimento dera
credibilidade aos Illuminati.
Suas qualificações e seus trabalhos publicados haviam sido citados a noite inteira
pela imprensa e, por mais ridículo que fosse, a presença de um professor de
Harvard na Cidade do Vaticano de certa forma afastara a possibilidade de que
toda aquela situação pudesse ser um delírio paranóide, também convencendo os
céticos do mundo todo de que a fraternidade dos Illuminati não era apenas um
fato histórico, mas uma força a ser levada em conta.
- Aquele repórter da BBC - disse Langdon - acha que o CERN é o novo refúgio
dos Illuminati.
- O quê! -Vittoria tropeçou atrás dele. Pôs-se de pé e alcançou-o. - Ele disse isso?!
- No ar. Comparou o CERN às lojas maçônicas. Uma organização inocente
abrigando a fraternidade dos Illuminati dentro dela.
- Meu Deus, isso vai destruir o CERN.
Langdon não tinha tanta certeza. De qualquer maneira, a teoria agora parecia mais
coerente. O CERN era o supremo paraíso científico, onde viviam cientistas de
mais de dez países. Aparentemente, dispunham de inesgotável financiamento
privado. E Maximilian Kohler era o diretor.
Kohler é Janus.
- Se Kohler não está envolvido - argumentou Langdon -, o que veio fazer aqui?
- Provavelmente tentar impedir que essa loucura continue. Demonstrar apoio.
Talvez ele esteja realmente agindo como o Samaritano! Pode ter descoberto quem
sabia sobre o projeto da antimatéria e veio trazer informações.
- O matador disse que ele viria para marcar o camerlengo a fogo.
- Preste atenção no que está dizendo! Isto seria uma missão suicida. Max jamais
sairia vivo daqui.
Langdon refletiu. Talvez seja esta a questão.
Os contornos de um portão de ferro delinearam-se à frente bloqueando-lhes a
passagem. O coração de Langdon quase parou. Quando se aproximaram,
entretanto, encontraram o velho cadeado solto. O portão podia ser aberto à
vontade.
Langdon suspirou aliviado, percebendo, como já desconfiava, que o velho túnel
fora usado. Recentemente. Naquele mesmo dia. Agora não tinha dúvidas de que
quatro cardeais aterrorizados haviam sido conduzidos por ali secretamente horas
antes.
Continuaram a correr. Dava para ouvir agora o som do caos à esquerda. Era a
Praça de São Pedro. Estavam chegando.
Passaram por outro portão, este mais pesado e também destrancado. O barulho na
Praça de São Pedro diminuiu de intensidade atrás deles e Langdon calculou que
tinham ultrapassado o muro externo da Cidade do Vaticano. Perguntava-se onde
terminaria aquela antiga passagem. Nos jardins? Na basílica? Na residência do
Papa?
Então, inesperadamente, o túnel chegou ao fim.
A incômoda porta que lhes obstruía o caminho era uma grossa muralha de ferro
rebitado. Mesmo à luz bruxuleante da tocha, agora em seus últimos lampejos,
dava para ver que a porta era inteiriça - sem maçaneta, sem puxadores, sem
buraco de fechadura, sem dobradiças. Sem jeito de entrar.
Sentiu uma onda de pânico. Em linguagem de arquiteto, aquele raro tipo de porta
era chamado de senza chiave: uma passagem de sentido único, usada para fins de
segurança, só operável de um dos lados - do outro lado, no caso. As esperanças de
Langdon apagaram-se junto com a tocha em sua mão.
Olhou para o relógio. Mickey brilhava no escuro. 11h29.
Com um grito de frustração, Langdon atirou longe a tocha e começou a esmurrar a
porta.
CAPÍTULO 113
Algo estava errado.
O tenente Chartrand encontrava-se do lado de fora do escritório do Papa e, pela
postura constrangida do soldado que montava guarda com ele, percebia que
ambos partilhavam a mesma ansiedade. O encontro particular que estavam
protegendo, dissera Rocher, poderia salvar o Vaticano da destruição. Portanto,
Chartrand não compreendia por que motivo seu instinto de preservação estava tão
aguçado. E por que Rocher estaria agindo de modo tão estranho?
Decididamente, algo estava errado.
O capitão Rocher encontrava-se à direita de Chartrand, olhando fixo para a frente,
seu olhar arguto estranhamente distante. Chartrand mal reconhecia o capitão.
Rocher nem parecia o mesmo naquela última hora. As decisões dele não faziam
sentido.
Alguém tinha de estar presente lá dentro durante este encontro, pensou Chartrand.
Escutara Maximilian Kohler trancar a porta depois de entrar. Por que Rocher
permitira aquilo?
Mas havia muito mais coisas incomodando Chartrand. Os cardeais. Os cardeais
ainda estavam trancados na Capela Sistina. Isso era uma insanidade total. O
camerlengo queria que eles tivessem saído 15 minutos antes! Rocher passara por
cima da decisão e não informara o camerlengo. Chartrand demonstrara
preocupação e Rocher quase arrancara a cabeça dele. A cadeia de comando nunca
era questionada na Guarda Suíça, e agora quem mandava era Rocher.
Meia hora, pensou Rocher, discretamente verificando seu cronômetro suíço à luz
mortiça do candelabro que iluminava o saguão. Por favor, apressem-se.
Chartrand gostaria de poder escutar o que estava acontecendo do outro lado das
portas. Ainda assim, sabia que ninguém melhor do que o camerlengo para lidar
com aquela crise. O homem passara por provas duríssimas naquela noite sem
esmorecer. Enfrentara o problema de cabeça erguida - verdadeiro, franco,
brilhando, um exemplo para todos. Chartrand estava sentindo orgulho de ser
católico. Os Illuminati tinham cometido um engano ao desafiarem o camerlengo
Ventresca.
Naquele momento, porém, os pensamentos de Chartrand foram abalados por um
som inesperado. Batidas.
Vinham do fundo do corredor. As batidas soavam distantes e abafadas, mas
incessantes. Rocher levantou a cabeça. O capitão fez um sinal para Chartrand.
Chartrand compreendeu, ligou sua lanterna e foi investigar.
As batidas soavam mais desesperadas agora. Chartrand percorreu 30 metros do
corredor até um cruzamento. O barulho parecia vir de algum ponto depois da
curva, além da Sala Clementina. Chartrand estava perplexo. Só havia um aposento
ali - a biblioteca particular do Papa, que estava trancada desde a morte de Sua
Santidade. Não podia haver ninguém lá!
Chartrand entrou depressa no segundo corredor, dobrou mais uma esquina e
correu para a porta da biblioteca. O pórtico de madeira era diminuto, mas surgia
no escuro como uma austera sentinela. As batidas vinham de dentro. Chartrand
hesitou. Nunca estivera antes na biblioteca particular. Poucos tinham estado.
Ninguém tinha autorização para entrar ali a não ser acompanhado pelo próprio
Papa. Tateando, encontrou a maçaneta e virou-a. Como previra, a porta estava
trancada. Encostou a orelha na porta. As batidas ficaram mais altas. Então, ouviu
mais alguma coisa. Vozes! Alguém chamando!
Não distinguia as palavras, mas notava o pânico nos gritos. Alguém estaria preso
na biblioteca? Será que a Guarda Suíça não evacuara completamente o prédio?
Chartrand estava indeciso, sem saber se deveria voltar e consultar Rocher. Ora,
ele que se danasse. Chartrand fora treinado para tomar decisões e era o que faria
agora. Tirou a arma da cintura e deu um único tiro no trinco. A madeira estourou
e a porta se abriu.
Lá dentro, Chartrand só viu escuridão. Apontou a lanterna. A sala era retangular -
tapetes orientais, altas estantes de carvalho cheias de livros, um sofá de couro e
uma lareira de mármore. Chartrand ouvira histórias sobre aquele lugar - três mil
livros antigos lado a lado com centenas de revistas e jornais modernos, qualquer
coisa que Sua Santidade solicitasse. A mesa baixa de centro estava coberta de
publicações especializadas sobre ciência e política.
As batidas estavam mais nítidas agora. Chartrand dirigiu o foco da lanterna para o
lado oposto, de onde vinha o som. Na parede do fundo, além do conjunto de sofá
e cadeiras, havia uma enorme porta de aço. De aparência tão impenetrável quanto
a de um cofre. Tinha quatro fechaduras colossais. O que estava escrito em letras
pequeninas bem no centro da porta tirou o fôlego de Chartrand.
IL PASSETTO
Chartrand estava boquiaberto. A saída secreta do Papa! Já escutara comentários
sobre o Passetto, é claro, e até ouvira falar que antigamente existia uma entrada
ali, pela biblioteca, mas não se usava o túnel havia séculos! Quem poderia estar
do outro lado?
O rapaz pegou a lanterna e bateu com ela na porta. Soou uma exclamação abafada
de alegria do outro lado.
As batidas cessaram e as vozes gritaram mais alto. Chartrand não distinguia
direito as palavras através da barreira.
- Kohler... mentira... camerlengo...
- Quem está aí? - gritou Chartrand.
- .. .ert Langdon... Vittoria Ve...
Chartrand compreendeu, mas não assimilou logo o que ouviu. Pensei que
estivessem mortos!
- .. . a porta - gritaram as vozes. - Abra...!
Chartrand olhou para a porta de aço e achou que seria preciso usar dinamite para
abri-la.
- Impossível! - gritou de volta. - Grossa demais!
- . . .encontro . . .impedir . . .erlengo... perigo...
A despeito de seu treinamento sobre os riscos do pânico, o guarda foi acometido
por uma onda de medo ao ouvir as últimas palavras. Será que compreendera
direito? Com o coração acelerado, virou-se para voltar correndo para o escritório.
Ao fazê-lo, porém, estacou. Seu olhar parou em algo na porta - algo mais
impressionante ainda do que a mensagem que vinha do outro lado. Presas em
todos os buracos das enormes fechaduras da porta havia chaves. As chaves
estavam ali? Como? Ele piscava, estático, sem acreditar. As chaves daquela porta
supostamente deveriam estar guardadas em algum cofre! Aquela passagem nunca
era usada - não nos últimos séculos!
Chartrand pousou sua lanterna no chão. Virou a primeira chave. O mecanismo
estava enferrujado e duro, mas ainda funcionava. Alguém o abrira recentemente.
Abriu a segunda fechadura. E a seguinte. Quando a última lingüeta se soltou, ele
puxou a porta. O bloco de aço abriu-se com um rangido. Ele pegou a lanterna e
dirigiu-a para a entrada.
Robert Langdon e Vittoria Vetra tinham o aspecto de duas aparições ao entrarem
cambaleantes na biblioteca. Ambos estavam em frangalhos e cansados, mas bem
vivos.
- O que houve? - perguntou Chartrand. - O que está acontecendo? De onde vocês
vieram?
- Onde está Max Kohler? - perguntou Langdon.
Chartrand apontou.
- Em um encontro particular com o camer...
Langdon e Vittoria passaram por ele e correram para a porta da biblioteca.
Chartrand, por instinto, levantou o revólver para as costas deles. Mas logo
abaixou a arma e foi atrás dos dois. Rocher provavelmente os ouviu se
aproximando porque, quando chegaram à porta do escritório do Papa, ele se
posicionara com as pernas afastadas e apontava-lhes o revólver.
-Alto!
- O camerlengo está em perigo! - berrou Langdon, levantando os braços e
parando. - Abra a porta! Max Kohler vai matar o camerlengo!
Rocher parecia zangado.
- Abra a porta! - disse Vittoria. - Depressa!
Mas era tarde demais.
De dentro do escritório do Papa veio um grito pavoroso. Era o camerlengo.
CAPÍTULO 114
O confronto durou apenas alguns segundos.
O camerlengo Ventresca ainda estava gritando quando Chartrand passou por
Rocher e arrebentou a porta do escritório do Papa com um tiro. Os guardas
entraram correndo, com Langdon e Vittoria atrás deles.
A cena com que se depararam era estarrecedora.
O aposento só contava com a iluminação de velas e do fogo quase apagado da
lareira. Kohler estava perto da lareira, de pé, desajeitado, junto à sua cadeira de
rodas. Brandia uma pistola, apontada para o camerlengo, que jazia no chão a seus
pés, contorcendo-se de dor. A batina do camerlengo estava rasgada e seu peito nu
fora marcado a fogo. Langdon, do outro lado da sala, não conseguiu distinguir o
símbolo, mas um grande ferro de marcar quadrado encontrava-se no chão perto de
Kohler. O metal ainda estava em brasa.
Dois guardas suíços agiram sem vacilar. Abriram fogo. As balas penetraram no
peito de Kohler, jogando-o para trás. Kohler caiu em sua cadeira de rodas, o
sangue jorrando. O revólver resvalou pelo chão.
Langdon, aturdido, não passou da porta.
Vittoria ficou paralisada.
- Max... - murmurou.
O camerlengo, ainda se revirando no chão, rolou o corpo na direção de Rocher e,
tendo no rosto a expressão de terror exaltado dos primeiros caçadores de bruxas,
apontou o dedo indicador para Rocher e berrou uma única palavra:
- ILLUMINATUS!
- Seu canalha - disse Rocher, correndo para ele. - Seu canalha hipócrita...
Dessa vez foi Chartrand quem reagiu por instinto, metendo três balas nas costas
de Rocher. O rosto do capitão bateu primeiro no piso de azulejos e ele escorregou
inerte em seu próprio sangue. Chartrand e os guardas correram então para o
camerlengo, que se contraía todo, com dores atrozes.
Os guardas soltaram exclamações horrorizadas ao verem o símbolo marcado no
peito do camerlengo. O segundo guarda viu a marca de cabeça para baixo e
recuou cambaleante, cheio de medo. Chartrand, igualmente perturbado pelo
símbolo, puxou a batina rasgada do camerlengo para cima da queimadura,
escondendo-o.
Langdon teve a sensação de estar delirando ao cruzar o aposento. Em meio à
bruma de insanidade e violência, ele tentava entender o que estava presenciando.
Um cientista aleijado, num gesto final de autoridade simbólica, voara até a Cidade
do Vaticano para marcar a fogo o personagem mais eminente da Igreja. Há coisas
pelas quais vale a pena morrer, dissera o Hassassin. Langdon se perguntava como
um deficiente físico poderia ter dominado o camerlengo. Mas Kohler estava
armado. Não importava como o fizera! Kohler cumprira sua missão!
Langdon aproximou-se da cena medonha. O camerlengo já estava sendo assistido
e Langdon foi atraído pelo ferro fumegante caído perto da cadeira de Kohler. A
sexta marca? Quanto mais olhava, menos compreendia. A marca parecia ser um
quadrado perfeito, bastante grande e seguramente viera do sagrado compartimento
central da arca que estava no refúgio dos Illuminati. A sexta marca, dissera o
Hassassin. A mais brilhante de todas.
Langdon ajoelhou-se ao lado de Kohler e estendeu a mão para pegar o objeto. O
metal ainda irradiava calor. Segurou o cabo de madeira e levantou-o. Não sabia o
que esperava ver, mas decerto não era isso.
Olhou fixamente para a peça durante um longo e confuso momento. Nada fazia
sentido. Por que os guardas tinham gritado, apavorados, ao ver a marca? Era um
quadrado de rabiscos incompreensíveis. A mais brilhante de todas? Era simétrica,
dava para notar ao girá-la na mão, mas era um deboche.
Ao sentir a mão de alguém em seu ombro, Langdon ergueu a cabeça, pensando
que era Vittoria.
A mão, porém, estava coberta de sangue. Pertencia a Maximilian Kohler, que a
estendia de sua cadeira de rodas.
Langdon deixou cair o ferro de marcar e levantou-se apressadamente. Kohler
ainda estava vivo!
O corpo afundado na cadeira, o diretor agonizava mas ainda estava respirando,
embora com dificuldade, arquejante. Seus olhos encontraram os de Langdon com
a mesma expressão dura que o recebera no CERN horas antes. Parecia ainda mais
severa na hora da morte, com a aversão e a animosidade vindo à tona.
O corpo do cientista ainda se agitava em leves convulsões e Langdon achou que
ele estava tentando se mexer. Todos na sala se concentravam no camerlengo
naquele momento. Langdon quis chamar alguém, mas não foi capaz de reagir.
Fascinava-o a intensidade que emanava de Kohler nos segundos finais de sua
vida, O diretor, com esforço, trêmulo, levantou o braço e tirou um pequeno objeto
do braço de sua cadeira.
Do tamanho de uma caixa de fósforos. Segurou-o no ar, oscilante. Langdon
chegou a pensar que Kohler tivesse uma arma. Mas era outra coisa.
- Em... tregue... - a voz não passava de um sussurro entrecortado. - Em... tregue
isto... à imprensa.
Kohler tombou, imóvel, e o aparelho caiu em seu colo.
Abalado, Langdon olhou para o aparelho. Era eletrônico. As palavras SONY
RUVI estavam impressas na frente. Tratava-se de uma dessas pequenas câmeras
de vídeo em miniatura que cabem na palma da mão.
Que audácia desse sujeito, pensou. Kohler provavelmente gravara alguma
mensagem suicida e queria que a imprensa a divulgasse - sem dúvida algum
sermão sobre a importância da ciência e os malefícios da religião. Langdon
decidiu que já fizera demais pela causa daquele homem naquela noite. Antes que
Chartrand visse a pequenina câmera, Langdon enfiou-a no bolso mais fundo de
seu paletó. A mensagem final de Kohler que vá para o inferno!
Foi a voz do camerlengo que quebrou o silêncio. Ele tentava se sentar.
- Os cardeais - disse ele a Chartrand, ofegante.
- Ainda estão na Capela Sistina! - exclamou Chartrand. - O capitão Rocher
ordenou...
- Faça-os sair agora. Todos.
Chartrand despachou às pressas um dos outros guardas para soltar os cardeais.
O camerlengo fez uma careta de dor.
- O helicóptero.., aí na frente... para me levar para um hospital.
CAPÍTULO 115
Na praça em torno dele era tão grande que a barulheira abafava o som de seus
rotores ligados. Aquela não era certamente uma daquelas vigílias solenes à luz de
velas. Não sabia como ainda não havia acontecido um tumulto pior.
Faltavam menos de 25 minutos para a meia-noite e as pessoas ainda estavam
amontoadas lá, umas rezando, outras chorando pela Igreja, algumas gritando
obscenidades e proclamando que era isso mesmo o que a Igreja merecia, outras
entoando versículos apocalípticos da Bíblia.
A cabeça do piloto latejava mais quando os focos de luz das emissoras passavam
pelo seu pára-brisa, ofuscando-o. Apertava os olhos para a massa turbulenta.
Cartazes e faixas eram agitados pela multidão.
A ANTIMATERIA É O ANTICRISTO!
CIENTISTAS- SATANISTAS,
ONDE ESTÁ SEU DEUS AGORA?
O piloto gemia, a cabeça piorando. Ponderava se deveria cobrir o pára-brisa com a
proteção de vinil para não ver nada, mas achava que iria levantar vôo em questão
de minutos. O tenente Chartrand acabara de falar com ele pelo rádio dando
notícias graves. O camerlengo fora atacado por Maximilian Kohler e estava
seriamente ferido. Chartrand, o americano e a mulher iriam sair com o
camerlengo para que ele fosse levado a um hospital.
O piloto sentia-se pessoalmente responsável pelo ataque. Censurava-se por não ter
agido com mais audácia. Pouco antes, ao pegar Kohler no aeroporto, percebera
algo estranho nos olhos mortos do cientista. Não sabia definir, mas não gostara
nada. Não que isso importasse. Rocher era quem mandava e ele insistira que era
aquele sujeito. Pelo jeito, enganara-se.
Um novo clamor ergueu-se da multidão. O piloto levantou os olhos e viu uma fila
de cardeais indo solenemente do Vaticano para a Praça de São Pedro. O alívio dos
cardeais por saírem da zona de risco era rapidamente superado pelas expressões
de espanto diante do espetáculo que se desenrolava fora da igreja.
O alarido intensificou-se mais ainda. A cabeça do piloto latejava. Precisava de
uma aspirina. Talvez de três.
Não gostava de voar depois de tomar remédios, mas a aspirina seria decerto
menos debilitante do que aquela dor de cabeça furiosa. Pegou o estojo de
primeiros-socorros, guardado junto com diversos mapas e manuais em uma caixa
presa entre os dois bancos dianteiros. Quando tentou abri-lo, porém, estava
trancado. Olhou em torno procurando a chave e finalmente desistiu. Aquela não
era mesmo a sua noite de sorte. Voltou a massagear as têmporas.
Dentro da basílica às escuras, Langdon, Vittoria e os dois guardas avançavam,
ofegantes, para a saída principal. Sem conseguirem encontrar nada mais
adequado, os quatro transportavam o camerlengo ferido em cima de uma mesa
estreita, o corpo inerte equilibrado entre eles como em uma maca. Lá fora, o ruído
distante da aglomeração humana tornou-se audível. O camerlengo encontrava-se à
beira da inconsciência.
O tempo estava se esgotando.
CAPÍTULO 116
Eram 11h39 quando Langdon saiu com os outros da Basílica de São Pedro. Uma
claridade ofuscante atingiu-o. A iluminação da imprensa refletia-se na brancura
do mármore como a luz do sol na tundra coberta de neve. Langdon apertou os
olhos, procurando refugiar-se atrás das enormes colunas da fachada, mas a luz
vinha de todas as direções. Na sua frente, uma coleção de enormes telas de vídeo
destacava-se acima da multidão.
Do alto da magnífica escadaria que se projetava para a praça, Langdon sentiu-se
um ator relutante no maior palco do mundo. Em algum ponto além das luzes
ofuscantes, ouviu um motor de helicóptero ligado e o rumor de milhares de vozes.
À esquerda, a procissão dos cardeais continuava seguindo para a praça.
Todos pararam, visivelmente pesarosos com a cena que naquele momento se
desenrolava nas escadarias.
- Com cuidado, agora - recomendou Chartrand, concentrado, quando o grupo
começou a descer as escadas a caminho do helicóptero.
Langdon tinha a sensação de que se moviam debaixo d'água. Seus braços doíam
com o peso do camerlengo e da mesa. Perguntava a si mesmo se poderia haver
momento mais constrangedor do que aquele. E logo teve a resposta. Os dois
repórteres da BBC, que deviam estar atravessando a praça para voltar à área da
imprensa, tinham mudado de idéia ao ouvir o vozerio das pessoas. Glick e Macri
vinham correndo na direção deles, a câmera de Macri funcionando. Lá vêm os
abutres, pensou Langdon.
- Alt! - gritou Chartrand. - Para trás!
Mas os repórteres não se detiveram. Langdon calculou que as outras emissoras
levariam uns seis segundos para também começar a transmitir aquela cena ao
vivo. Estava errado. Levaram dois. Como se unidas por uma espécie de
consciência universal, todas as telas na piazza interromperam a transmissão das
imagens da bomba de antimatéria e das opiniões de seus especialistas em
Vaticano e passaram a mostrar a mesma coisa - uma seqüência oscilante das
escadarias da basílica. Agora, para qualquer ponto que se olhasse, via-se o corpo
inerte do camerlengo em dose colorido.
Isto não está certo!, pensou Langdon, com vontade de descer as escadas e intervir,
mas sem poder. Não teria ajudado nada, porém. Se foi a algazarra do povo ou o ar
frio da noite a causa de tudo o que se seguiu, Langdon jamais saberia, mas o fato
é que, naquele momento, o inconcebível aconteceu.
Como se o camerlengo acordasse de um pesadelo, seus olhos se abriram de
repente e ele se sentou ao mesmo tempo. Tomados inteiramente de surpresa,
Langdon e os outros atrapalharam-se com o deslocamento do peso. A parte da
frente da mesa tombou e o camerlengo começou a deslizar. Eles tentaram
recuperar o equilíbrio colocando a mesa no chão, mas já era tarde demais. O
camerlengo escorregou para a frente. Inacreditavelmente, ele não caiu. Seus pés
apoiaram-se no mármore, ele oscilou um pouco e depois se aprumou. Permaneceu
parado um instante, meio desorientado, e então, antes que alguém pudesse
impedir, precipitou-se escada abaixo, as passadas incertas, na direção de Macri.
- Não! - Langdon gritou.
Chartrand correu, tentando segurar o camerlengo, que, entretanto, se virou para
ele dizendo com ar desvairado, enlouquecido:
- Largue-me!
Chartrand deu um pulo para trás.
A cena foi de mal a pior. A batina rasgada do camerlengo, que Chartrand apenas
puxara para cima de seu peito, abriu-se e começou a cair. Por um segundo,
Langdon pensou que a roupa fosse agüentar, mas o segundo passou. A batina se
rompeu, descendo pelos ombros dele até a cintura.
A exclamação que veio da multidão pareceu percorrer o mundo inteiro e voltar em
um instante. As câmeras rodaram, os flashes espocaram. Nas telas de televisão de
todos os lugares projetou-se a imagem do peito do camerlengo marcado a fogo,
ampliado e em horríveis detalhes. Algumas telas chegaram a congelar a imagem e
girá-la 180 graus.
A suprema vitória dos Illuminati.
Langdon viu a marca nas telas de televisão. Apesar de ser a impressão produzida
pelo ferro quadrado que tivera nas mãos pouco antes, o símbolo agora fazia
sentido. Completo. O poder impressionante da marca atingiu-o com o impacto de
um trem.
Direção. Langdon esquecera a primeira regra da simbologia. Quando é que um
quadrado não é um quadrado? Também esquecera que os ferros de marcar, assim
como os carimbos de borracha, nunca se parecem com a marca que produzem.
São invertidos. Langdon olhara para o negativo da marca!
À medida que aumentava o caos na praça, uma velha citação dos Illuminati ecoou
em sua mente com um novo significado: "Um diamante sem jaça, nascido dos
antigos elementos com tamanha perfeição, que todos os que o viam ficavam
extasiados."
Agora sabia que o mito era verdadeiro.
Terra, Ar, Fogo, Água.
O diamante Illuminati.
CAPÍTULO 117
Robert Langdon não duvidava que o caos e a histeria que se alastraram pela Praça
de São Pedro naquela ocasião tivessem suplantado tudo o que o Vaticano já vira.
Nenhuma batalha, crucificação, peregrinação ou visão mística - nada na história
de dois mil anos do santuário poderia se igualar às dimensões e à dramaticidade
daquele momento.
Enquanto a tragédia se desenrolava, Langdon sentia-se estranhamente distante,
como se pairasse ali ao lado de Vittoria no alto da escadaria. A ação pareceu
distender-se como uma deformação do tempo, toda aquela insanidade passando
cada vez mais devagar.
O camerlengo marcado a fogo, delirando para o mundo inteiro ver.
O diamante Illuminati revelado em toda a sua diabólica engenhosidade.
A contagem regressiva do relógio da antimatéria registrando os últimos 20
minutos da história do Vaticano.
O drama, porém, estava apenas começando.
O camerlengo, como se estivesse vivendo um transe pós-traumático, mostrou-se
repentinamente cheio de vigor, possuído por demônios. Balbuciava, murmurava
coisas para espíritos invisíveis, olhando para o céu e levantando os braços para
Deus.
- Fale! - gritou ele para os céus. - Sim, estou escutando!
E Langdon compreendeu. Foi como se um peso caísse dentro dele.
Vittoria também compreendera. Ficou pálida.
- Ele está em estado de choque - disse. - Está tendo alucinações. Acha que está
falando com Deus.
Alguém tem de impedir que isso continue, pensou Langdon. Era um final
lamentável, embaraçoso. Levem esse homem para um hospital!
Ao pé da escadaria, Chinita Macri instalara-se em um ponto ideal e estava
filmando tudo. As imagens apareciam instantaneamente nas enormes telas atrás
dela na praça, como filmes intermináveis de cinema ao ar livre, mostrando a
mesma tragédia angustiante.
A cena toda tinha um tom épico. O camerlengo, a batina rasgada, a marca da
queimadura no peito, parecia uma espécie de paladino ferido que tivesse
ultrapassado todos os círculos do inferno por aquele momento de revelação. Ele
bradava para os céus.
- Ti sento, Dio! Estou ouvindo, Deus!
Chartrand recuou, o rosto cheio de temor.
Um silêncio espalhou-se pela multidão, instantâneo, absoluto. E foi como se o
planeta inteiro mergulhasse no mesmo silêncio. Todas as pessoas ficaram rígidas
diante de suas televisões, prendendo a respiração em conjunto.
O camerlengo parou nas escadas, diante do mundo, e abriu os braços. Igual a
Cristo, despido e machucado. Levantou os braços e, olhando para cima,
exclamou:
- Grazie! Grazie, Dio!
Nenhum ruído rompeu o silêncio.
- Grazie, Dio! - repetiu o camerlengo. Como a luz do sol passando através de
nuvens de tempestade, uma expressão de alegria indizível de repente iluminou o
rosto dele. - Grazie, Dio!
Obrigado, Deus? Langdon assistia à cena, sem compreender.
O camerlengo mostrava-se radiante agora, a misteriosa transformação já
completa. Ainda olhava para o céu, sacudindo a cabeça, arrebatado. Gritou para o
céu.
- "Sobre esta pedra edificarei minha igreja!"
Langdon conhecia a frase, mas não entendia por que o camerlengo a pronunciara.
O camerlengo voltou-se para o povo e gritou outra vez para dentro da noite.
- "Sobre esta pedra edificarei minha igreja!" - E, com os braços erguidos, riu alto,
repetindo uma vez mais: - Grazie, Dio! Grazie!
O homem indiscutivelmente enlouquecera.
O mundo assistia, hipnotizado.
O clímax de tudo aquilo, entretanto, foi algo que ninguém esperava.
Com um exultante brado final, o camerlengo deu meia-volta e disparou para
dentro da Basílica de São Pedro.
CAPÍTULO 118
11h42.
Langdon nunca imaginou que fosse um dia fazer parte de uma comitiva frenética
como a que se lançou atrás do camerlengo, muito menos que fosse ele a sair na
frente. Era ele quem estava mais próximo da porta e acabou agindo por O
camerlengo vai morrer aqui, pensou Langdon, correndo para o interior escuro da
basílica.
- Camerlengo! Pare!
A escuridão com que Langdon se deparou era absoluta. Suas pupilas estavam
contraídas por causa da claridade do lado de fora e seu campo de visão limitavase
a alguns metros. Ele parou. Em algum ponto lá dentro ouviu o farfalhar do
tecido da batina do camerlengo, que corria às cegas para o fundo da basílica.
Vittoria e os guardas vieram logo atrás. As lanternas foram acesas, mas as luzes já
estavam fracas e não bastavam para alcançar as profundezas do templo. Os fachos
de luz iam e vinham, mostrando apenas colunas e o chão vazio. Não se via o
camerlengo em parte alguma.
- Camerlengo! - gritou Chartrand, com medo na voz. - Espere! Signore!
Um tumulto na porta atrás deles fez todos se virarem. O volumoso vulto de
Chinita Macri assomou na entrada. Uma luz vermelha brilhando na câmera
apoiada no ombro dela revelava que ainda estava transmitindo tudo. Glick vinha
correndo atrás, microfone na mão, gritando-lhe que fosse mais devagar.
Aqueles dois eram inacreditáveis. Não é hora disso, pensou Langdon.
- Fora! - exclamou Chartrand. - Isto não é para os seus olhos!
Mas Macri e Glick não pararam.
- Chinita! - a voz de Glick soava amedrontada. - Isto é suicídio! Vou voltar!
Macri não fez caso dele. Apertou um botão em sua câmera. O projetor em cima
dela acendeu-se, ofuscando todos.
Langdon protegeu o rosto com a mão e abaixou a cabeça, zonzo. Droga! Quando
a levantou, porém, a igreja estava iluminada uns 30 metros em torno deles.
A voz do camerlengo ecoou em algum ponto distante:
- "Sobre esta pedra edificarei minha igreja!"
Macri direcionou sua câmera para o som. Lá longe, na área cinzenta além do
alcance da luz do projetor, viu-se ondular um tecido escuro, revelando uma forma
conhecida que corria pela nave principal.
Seguiu-se um instante fugaz de hesitação enquanto todos os olhos acompanhavam
a imagem bizarra. Depois, rompeu-se o dique. Chartrand passou por Langdon e
lançou-se no encalço do camerlengo. Langdon foi logo atrás. Depois, os guardas e
Vittoria.
Macri fechava a retaguarda iluminando o caminho de todos e transmitindo a
caçada sepulcral para o mundo. Glick praguejava em voz alta enquanto a
acompanhava a contragosto, assustado.
A nave central da Basílica de São Pedro, calculara certa vez o tenente Chartrand,
era mais comprida do que um campo de futebol. Naquela noite dava a impressão
de ser o dobro. Correndo atrás do camerlengo, o guarda se perguntava para onde
ele estaria indo. O homem estava em choque, seguramente, abalado pelo trauma
físico e por ter presenciado aquele massacre terrível no escritório do Papa.
Mais além, depois do trecho iluminado pelo projetor da BBC, a voz do
camerlengo soava jubilosa:
- "Sobre esta pedra edificarei minha igreja!"
Chartrand sabia que ele estava citando a Bíblia - Mateus, 16:18, se não se
enganava. Sobre esta pedra edificarei minha igreja. Uma inspiração quase cruel de
tão inadequada - a igreja em questão estava prestes a ser destruída. O camerlengo
com certeza enlouquecera.
Ou ele?
Por um momento, a alma de Chartrand alçou vôo. Sempre tinha considerado as
visões celestes e as divinas mensagens como ilusões, o produto de mentes
excessivamente zelosas que ouviam o que desejavam ouvir. Deus não interagia
diretamente!
Logo em seguida, contudo, como se o próprio Espírito Santo descesse para
persuadi-lo de Seu poder, Chartrand teve uma visão.
Uns 50 metros à frente, no centro da igreja, um fantasma apareceu, um vulto
diáfano, reluzente. A figura pálida era a do camerlengo seminu. O espectro
parecia transparente, irradiando luz. Chartrand estacou, com um aperto no
estômago. O camerlengo está brilhando! O corpo passou a reluzir mais ainda.
Então, começou a afundar, mais e mais, até desaparecer, como por um passe de
mágica, no chão escuro.
Langdon também vira o fantasma. E, por uma fração de segundo, também pensou
ter tido uma visão mágica. No entanto, ao passar pelo aturdido Chartrand em
direção ao ponto onde o camerlengo desaparecera, percebeu o que havia
acontecido. O camerlengo chegara ao Nicho dos Pálios - a câmara rebaixada e
iluminada por 99 lamparinas de óleo. As lamparinas dentro do nicho iluminaramno
como um fantasma, de baixo para cima. Depois, quando o camerlengo desceu
as escadas no meio da luz das lamparinas, pareceu desaparecer sob o chão.
Langdon chegou ofegante à borda do recinto rebaixado. Olhou para baixo, para as
escadas. No fundo, sob a luminosidade amarelada das lamparinas de óleo, viu o
camerlengo atravessar a câmara de mármore rumo às portas de vidro que levavam
ao aposento onde fica a famosa arca dourada.
O que ele está fazendo, perguntou-se Langdon. Será que acha que a arca
dourada...
O camerlengo escancarou as portas e entrou. Entretanto, não tomou conhecimento
da arca dourada, passando direto por ela. Mais ou menos um metro e meio depois
da arca, caiu de joelhos e começou a tentar levantar uma grade de ferro presa no
chão.
Langdon assistia a tudo estarrecido, percebendo aonde o camerlengo queria ir.
Deus do céu, não! E desceu depressa as escadas ao encontro dele.
- Padre! Não!
Assim que Langdon abriu as portas de vidro e correu para o camerlengo, este
suspendeu a grade de ferro, que, ao girar nas dobradiças, caiu, abrindo-se com um
estrondo ensurdecedor e revelando uma abertura estreita com uma escada quase a
prumo. Quando o camerlengo já se encaminhava para a abertura, Langdon
segurou seus ombros nus e puxou-o de volta. A pele estava escorregadia de suor,
mas Langdon conseguiu detê-lo.
O camerlengo virou-se rapidamente para ele, espantado.
- O que está fazendo!
Langdon surpreendeu-se quando seus olhos se encontraram. O camerlengo não
tinha mais aquela expressão de quem está em transe. Estava alerta, cheio de lúcida
determinação. O aspecto da queimadura em seu peito era aflitivo.
- Padre - instou Langdon com toda a calma possível -, o senhor não pode entrar aí.
Temos de sair da basílica.
- Meu filho - disse o camerlengo, a voz extraordinariamente sensata -, acabei de
receber uma mensagem. Eu sei que...
- Camerlengo! - Chartrand e os outros tinham chegado. Desceram correndo as
escadas sob a luz da câmera de Macri.
Quando Chartrand viu a grade aberta no chão, seu rosto se encheu de medo. Fez o
sinal-da-cruz e lançou um olhar agradecido a Langdon por ter impedido o
camerlengo. Langdon compreendeu. Lera o suficiente sobre a arquitetura do
Vaticano para saber o que havia depois da grade. Era o local mais sagrado da
cristandade. Terra Santa. Solo sagrado. Alguns chamavam-no de Necrópole.
Outros, de Catacumbas.
Segundo os relatos dos poucos religiosos que ao longo do tempo haviam descido
ali, a Necrópole era um labirinto escuro de criptas subterrâneas que poderia
engolir um visitante se ele se perdesse. Não era um bom lugar para correr atrás do
camerlengo.
- Signore - suplicou Chartrand -, o senhor está em estado de choque. Temos de
sair daqui. Não pode descer aí. É suicídio.
O camerlengo pareceu estóico de repente. Estendeu o braço e pousou a mão com
serenidade no braço de Chartrand.
- Obrigado por sua preocupação e seus préstimos. Não sei como lhe dizer. Nem
tenho como lhe dizer o quanto o compreendo. Mas tive uma revelação. Sei onde
está a antimatéria.
Todos olhavam para ele, estáticos.
O camerlengo voltou-se para o grupo.
- "Sobre esta pedra edificarei minha igreja." Esta foi a mensagem. O significado é
claro.
Langdon ainda não Conseguia compreender a convicção do camerlengo de que
falara com Deus e muito menos de que decifrara a mensagem divina. Sobre esta
pedra edificarei minha igreja? As palavras que Jesus proferira ao escolher Pedro
como seu primeiro apóstolo. O que tinham a ver com a situação?
Macri aproximou-se para conseguir um ângulo melhor. Glick estava mudo, como
quem tomou um grande susto.
O camerlengo falava rapidamente, explicando.
- Os Illuminati colocaram seu instrumento de destruição na própria pedra angular
desta igreja. Nas suas fundações. - Fez um gesto para as escadas abaixo.
- Na pedra sobre a qual esta igreja foi construída. E eu sei onde essa pedra está.
Langdon achava que chegara a hora de subjugar o camerlengo e sair dali.
Por mais que parecesse lúcido, o padre não estava dizendo coisa com coisa. Uma
pedra? A pedra angular das fundações? Aqueles degraus não levavam às
fundações, mas à Necrópole!
- A citação é uma metáfora, senhor. Não existe uma pedra de verdade!
O rosto do camerlengo ficou estranhamente triste.
- Existe uma pedra, sim, filho - e apontou para a abertura. - Pietro é la pietra.
Langdon congelou. Tudo ficou claro.
A austera simplicidade daquilo deu-lhe arrepios. Ali, de pé com os outros,
olhando para a longa escada que descia, percebeu que havia de fato uma pedra
enterrada nas trevas sob aquela igreja.

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