quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Apesar do esforço cardíaco, a circulação sanguínea que chegava ao
cérebro não foi suficiente, provocando, entre outros efeitos, o referido
desmaio ou perda de consciência, de que não haveria regresso. -
Morreu...
O centurião pronunciou aquela última palavra com uma certa
piedade. Como se o desaparecimento do Justiçado tivesse representado
alguma coisa para ele... Na realidade, como disse, a morte clínica do
Nazareno só se daria uns segundos mais tarde. Porém, isto não o podia
saber Longino.
O Mestre não tardaria a entrar na morte biológica. Suspenso dos
cravos dos pulsos, o ventre aparecia muito inchado. O tórax ficara
metido para dentro e os músculos peitorais – que não tinham parado de
oscilar e de ter convulsões – jaziam rígidos, desmaiados. Entre os ramos
e espinhos da coroa notava-se já, cada vez mais acentuado, um círculo
violáceo em volta do nariz deformado.
As têmporas, semiocultas pelo cabelo, estavam encovadas e a orelha
direita, um pouco visível, tinha-se retraído. A pele, situada
imediatamente por cima da barba, enrugou-se e o globo ocular foi-se
obscurecendo, como se o cobrisse uma espécie de
* Este sinal” bem conhecido dos médicos, que pode anteceder a
morte, apresenta geralmente no olho direito uma opacidade da
esclerótica um pouco mais pálida que a do esquerdo. Quase sempre se
regista esta mancha ocular, primeiro num olho e depois no outro. (N. Do
M.)
teia viscosa. Pelas feridas dos cravos – especialmente na do pé
direito – continuava emanando sangue, ainda que a coloração fosse já
muito mais rosada. (No momento do falecimento a volemia passara a
barreira dos cinquenta por cento. Ou seja, Cristo tinha derramado mais
de metade do seu volume sanguíneo.)
Justamente naquele momento registou-se o relaxamento dos
esfíncteres, que juntaram ao já tétrico aspecto de Jesus o cheiro fétido
de excrementos quase líquidos e amarelentos, que escorreram pelas
faces internas das pernas.
Hesitei no momento de utilizar o circuito teletermográfico. No
entanto, apesar do meu atordoamento, cumpri o estabelecido pelo
Projecto. Daquele último e rápido exame pôde deduzir-se, por exemplo,
que a acumulação de sangue nos membros inferiores – apesar da ruptura
de uma das artérias do pé direito – tinha sido considerável. Poucos
segundos depois da morte, a temperatura dos membros inferiores, como
consequência da sobrecarga sanguínea, era de um grau centígrado acima
do normal.
Ao observar os tecidos superficiais verificou-se também que o
agudo e decisivo processo de tetanização utilizara as pernas e coxas do
Nazareno doze minutos depois da sua elevação e encravamento na
árvore. Isto confirmava as minhas impressões sobre os esforços
titânicos que o Rabi da Galileia teve de fazer sempre que lutava por um
hausto de ar.
Ao faltarem os hipotéticos pontos de apoio dos cravos dos pés,
como disse, foi a musculatura superior (ombros, antebraços e músculos
intercostais) que arcou com o gasto energético. Porém, estas fibras verse-
iam bloqueadas também pela tetanização poucos minutos depois: aos
dezoito, os deltóides, vasos externos dos braços e supinadores,
palmares maiores, cubitais e ancóneos dos antebraços. Aos vinte
minutos, aproximadamente, ficaram anulados os grandes peitorais e a
poderosa rede muscular da zona superior da espádua: os trapézios.
Esta quase congelação da formidável musculatura do Galileu
precipitou a Sua morte, ao sinal principal e horrível da asfixia. Entre os
muitos défices circulatórios, ventilatórios, renais e do sistema nervoso
central que confluíram e O empurraram para o fim, Cavalo de Tróia
considerou sempre que a causa básica do óbito (se é que a esta morte se
pode dar o qualificativo de natural) do Mestre foi a asfixia. Pelas
catorze horas e cinquenta e cinco minutos, o cérebro de Jesus entrou
em coma Depasé, com as trágicas consequências que isto significa...
As áreas das perfurações dos carpos e pés projectavam um azul
intenso sinal evidente do importante processo inflamatório que tinham
padecido e, consequentemente, de uma maior temperatura. Quando
situei o laser no olho de Jesus, a dilatação da pupila ofereceu
unicamente uma mancha escura, sinal claro de uma perda de visão. A
temperatura das estreitas zonas periféricas da córnea, no entanto,
ainda conservavam calor e foi possível registar uns breves anéis azuis.
O cristalino, finalmente, ganhara opacidade e a íris estava
assimétrica. Na realidade, pouco mais se podia fazer. O general Curtiss
lutou para que os técnicos aperfeiçoassem o sistema de ressonância
magnética nuclear, que nos teria permitido fazer o rastreio dos
movimentos atómicos de algumas zonas-chave do cérebro do Nazareno,
mas os trabalhos não chegaram a tempo.
Tristemente, Aquele Homem, que eu começara a admirar e querer,
estava morto. Apesar de todo o meu treino, ao tirar os crótalos deixeime
cair no duro chão do Gólgota. A melancolia foi germinando no mais
íntimo da minha alma e senti que uma parte de mim mesmo se ia com
aquele ser.
Uma melancolia sem horizontes que sei, se afastará do meu
angustiado coração quando a morte encerrar definitivamente a minha
pobre existência. Entretanto, como naquele dia junto das cruzes,
continuo a chorar.
Nem Eliseu nem ninguém do Projecto jamais o soube. A partir do
fatídico momento da morte de Jesus, algo ficou destruído no mais fundo
do meu ser. As minhas últimas horas na Palestina quase não tiveram
sentido.
Cumpri o que fora programado por Cavalo de Tróia, mas quase como
um autómato. E o pior é que nunca consegui recompor-me... Pelas catorze
horas, cinquenta e sete minutos e trinta segundos – justamente quando o
coração do Nazareno parou para sempre – aconteceu o inesperado. Com
uma sincronização que ainda me aterra e que só pode ter uma explicação,
aquela lua gigantesca começou a mover-se. E com a mesma lentidão com
que encobrira o Sol, assim se foi deslocando para oriente, devolvendonos
a transparente luminosidade daquela sexta-feira.
O meu companheiro no módulo apressou-se a confirmar o que eu
estava a ver. Pouco a pouco, sem pressa, como que a deixar-se ver o
objecto dirigiu-se para levante, desaparecendo atrás do monte das
Oliveiras. Aquele singular amanhecer foi acolhido com vivos sinais de
alegria e assombro pelos legionários e pelo pequeno grupo de mulheres e
saduceus que continuavam junto do penhasco. O mesmo aconteceu na
cidade.
Os seus habitantes consideraram esta libertação do Sol como um
sinal de bom augúrio. Foi então, enquanto o gigantesco disco deixava o
seu estacionário, afastando-se, que o centurião, voltando-se para a cruz,
de onde o Mestre pendia, bateu na couraça que lhe protegia o tórax, com
o punho direito e, apoiando esta atitude de saudação, sentenciou: -
Certamente era um homem íntegro!... Deve ter sido realmente o Filho de
Deus...
Os soldados, inquietos, pediram instruções ao optio e ao oficial. Mas
nem Arsenius nem Longino souberam que fazer.
Muito simplesmente, como medida de segurança, reforçaram a
guarda. Aqueles homens, ao actuarem assim tinham a intuição de alguma
coisa. E não se enganavam... Ao desaparecer a penumbra, a luz do Sol
iluminou os crucificados, desvendando todo o horror dos corpos
dessangrados, grotescamente contorcidos e cobertos de areia. Os
zelotas continuavam inconscientes e assim continuaram – felizmente
para eles – até chegarem os três novos legionários...
A pele do Galileu, apesar da grossa película de pó que aderira às
feridas, cabelo, coágulos e manchas de sangue, depressa começaria a
sobressair com a típica tonalidade marmórea dos cadáveres. O cheiro
das fezes tornava insuportável a permanência junto da cruz e os
infantes que não estavam de guarda retiraram-se para a beira do
patiôulo. A situação passou a ser um pouco melhor quando, mal voltando a
nascer o Sol, o vento recomeçou a soprar de leste, embora mais fraco
que nas horas anteriores.
É agora, com a perspectiva do tempo, que para mim faço uma
pergunta que então nem me passou pela cabeça. Teve alguma coisa a ver
a presença daquele formidável objecto com a estranha quietude que
sobreveio ao mesmo tempo que as trevas e com o posterior regresso do
vento? O cientista não tem resposta mas o homem intuitivo que também
trago em mim diz-me que sim...
Notei um natural alarme entre as mulheres e em João e no irmão de
Jesus. A absoluta imobilidade do Mestre começava a inquietá-los. O meu
estado de ânimo era tão fraco que me voltei de costas, não desejando
cruzar o meu olhar com o do jovem Zebedeu. Então, para ocidente, notei
uma curiosa agitação entre os bandos de pássaros que geralmente
tinham ninho nos muros da cidade. Apesar do vento, tinham levantado
voo, dispersando-se em total desordem. Encolhi os ombros.
Contudo, quase ao mesmo tempo, uma confusa barreira me fez
voltar a cabeça para a muralha. O que vi deixou-me perplexo.
Pela Porta de Efraim começara a sair um tropel de cães, latindo
queixosamente. Eu sabia que havia cães em Jerusalém, mas nunca pensei
que fossem tantos. Pareciam nervosos, muito excitados e,
principalmente, assustados. Como se alguma coisa ou alguém os tivesse
posto em fuga repentinamente. Mas o quê ou quem?
Longino e eu entreolhámo-nos sem compreender, igualmente
alarmados. Que estava a acontecer em Jerusalém?
Os cães atravessaram o caminho em frente do penhasco, em
direcção aos campos de norte e de noroeste. Alguns, arquejantes, e
farejando o terreno sem cessar treparam ao alto do Gólgota, mas foram
rapidamente expulsos pelos legionários. Poucos segundos depois, uma
comunicação do berço causou-me um estremecimento, explicando em
parte o anómalo comportamento dos animais: os sensores de bordo
tinham começado a detectar uma série de gases, com elevado teor de
enxofre, bem como um leve aumento da temperatura ao nível do solo.
Eliseu não tinha a certeza mas era possível que se aproximasse um
movimento sísmico. Aquela hipótese, sim, podia esclarecer em parte a
inquietude das aves e dos cães! (Os animais, e também o homem, ainda
que em menor proporção, têm capacidade para inalar os gases que
frequentemente antecedem o desencadeamento de um terramoto. Ao
registarem-se as primeiras perturbações no interior da Terra, os gases
são expulsos através das estreitas fendas do solo e os animais podem
inalá-los.
Estes segregam imediatamente nos seus cérebros um volume de
serotoninas muito superior ao normal e as citadas hormonas
desencadeiam os mecanismos da excitabilidade do indivíduo. No caso dos
cães, tinham fugido, retirando-se das perigosas áreas de edifícios de
Jerusalém.) No entanto, os dois sismógrafos Teledyne e Geotech,
instalados por Cavalo de Tróia para medir o terramoto a que alude o
evangelista Mateus no seu texto sagrado (27, 51) – e do qual eu,
sinceramente, me esquecera por completo – não registavam qualquer
sinal. Ambos, especialmente desenhados pelos especialistas do Centro
Nacional de Terramotos e Meteorologia de Tóquio – e nos quais
colaborou decisivamente o professor Nagamune, chefe de Informação
de Prognósticos de Terramotos -, foram colocados pelos técnicos em
dois dos suportes ou trens de aterragem do berço. No delicado processo
de miniaturização e adaptação à nossa nave, um dos aparelhos foi
convertido em sismógrafo horizontal e o segundo em vertical.
Os pesados pêndulos foram substituídos por feixes de luz laser,
capazes de registar as ondas dos sismos profundos (até setecentos e
vinte quilómetros) e, naturalmente, as provenientes de movimentos
intermédios ou superficiais, com uma profundidade limite de sete
quilómetros abaixo da superfície. No horizontal – especialmente
programado para os movimentos de vaivém ou de rolo do terreno – o
espelho tradicional que serve como registo fotográfico tinha sido
eliminado. Os impulsos do laser eram codificados imediatamente num
papel especial, podendo ampliar as vibrações mais de cem mil vezes.
Quanto ao pêndulo Iaser de conformação vertical, preparado para os
movimentos de compressão, estava em contacto com um papel térmico e
um registo tradicional de fita magnética. Foi pouco depois – pelas quinze
horas e um minuto
- que sentimos o primeiro abalo. Recordo um pequeno pormenor que,
nos primeiros décimos de segundo, mais contribuiu ainda para aumentar a
minha confusão. Um dos legionários, por ordem do optio, agarrara com
ambas as mãos a vasilha envolvida na malha de corda e preparava-se para
despejar parte da água nas chamas da fogueira. E assim fez. Mas no
instante em que deitava o líquido no fogo, o primeiro estremeção do
terreno desequilibrou-se e o jorro de água foi cair no rosto de um
companheiro que estava sentado muito perto da fogueira.
O legionário caiu em cima da rocha e também o cântaro que se
partiu em pedaços.
A oscilação do solo originou imediatamente que os soldados que
estavam sentados se pusessem de pé e, atordoados, nem tiveram tempo
de olhar uns para os outros. Embora nas verificações posteriores se
considerasse que a primeira onda sísmica teve apenas uma duração de
dezasseis segundos, a deslocação horizontal dos estratos – em forma de
vaivém – trazia consigo força suficiente para derrubar vários infantes.
No meu caso, o que mais me incomodou naqueles segundos iniciais foi
o aflitivo enjoo que comecei a sentir. Era como se uma força invisível me
estivesse a agitar o cérebro...
Ao sentirem o estremeção, as mulheres começaram a gritar, vítimas
do mesmo pânico que nos invadia a todos.
Mas, subitamente, da mesma maneira como chegara, desapareceu.
Longino e o subalterno, pálidos como a pele de Jesus esperaram uns
segundos. Os seus olhares estavam postos nas extremidades superiores
das cruzes. Mas as stipes, ao cessar o tremor, tinham ficado tão
Imóveis como antes do sismo. E o oficial, com muito bom critério,
dirigiu-se aos seus homens, gritando-lhes:
- Para baixo!... Vamos todos para baixo! A patrulha, incluindo as
sentinelas obedeceu imediatamente precipitando-se para a fenda de
acesso ao Gólgota. Na fuga precipitada do patíbulo, alguns dos soldados
esqueceram os escudos e capacetes. Quando o oficial se preparava para
descer pelo caminho parou e rodando nos
calcanhares, foi até à fogueira, apagando-a com pisadelas.
Naquele momento, o meu coração encolheu-se de medo: um bramido
surdo e longínquo começou a levantar-se de oriente. Quase
imediatamente se fez sentir o segundo e mais vigoroso abalo.
Todo o penhasco tremeu e oscilou – não estou muito certo se foi
apenas um destes movimentos ou os dois ao mesmo tempo – e senti-me
violentamente deslocado, caindo sobre a vibrante superfície do Calvário.
(É curioso mas, ao ver e sentir aquelas vibrações da rocha veio-me à
memória a cena dos espasmos da carne da vaca recém-sacrificada...) Do
solo, impotente para me levantar, vi como o centurião tinha caído
também e como a cruzes acusavam a segunda réplica com uma espécie de
matraquear rapidíssimo, que fez tremer os corpos dos judeus. Uma das
stipes situada atrás dos crucificados – a que se encontrava ligeiramente
mclinada – bamboleou como um junco agitado pelo vento, acabando por
tombar.
O pânico e o enjoo sufocante foram tais que – apesar de o
necessitar – não soube ou não pude gritar nem pronunciar palavra. Caído
de barriga para baixo e aferrado às irregularidades da rocha, só fui
capaz de formular um pensamento: sobreviver! As sucessivas convulsões
do terreno feriam-me incessantemente, chegando mesmo, a atirar-me ao
ar a vários centímetros do solo.
Hoje, depois da amarga experiência, recordo muito bem como as
pedras soltas do penhasco saltavam como bolas de borracha, se
deslocavam horizontalmente como projécteis e chocavam violentamente
contra as bases das cruzes e contra o meu corpo e o do oficial.
Submerso num pavor incontrolável e irracional, aqueles segundos não
tiveram tempo nem medida. Foram, simplesmente, eternos. O trovão que
parecia nascer de cada centímetro quadrado do solo e a agitação violenta
da Natureza tiveram, no entanto, uma duração relativamente curta:
quarenta e sete segundos, de acordo com os instrumentos do módulo.
Para mim, aqueles quarenta e sete segundos pareceram-me séculos...
Ao cabo daquele tempo, tudo voltou a serenar. E um silêncio de
morte caiu sobre a penha e os seus arredores. Quando consegui
levantar-me tive de me apoiar na vara de Moisés.
Agora era o estômago que me dava voltas, com uma angustiante
vontade de vomitar. Um suor frio encheu-me o corpo quase ao mesmo
tempo. Sei hoje que parte daquele mal-estar era consequência do medo...
Longino permaneceu uns instantes de joelhos, com o olhar fixo no solo da
rocha, como se esperasse por um terceiro abalo. Mas não se repetiria.
Ao constatar que o novo abalo não chegaria, o oficial levantou-se,
fazendo-me um gesto com o braço para que o seguisse. Creio que nunca
obedeci tão cegamente a uma pessoa. Poucos segundos depois, o
centurião e eu não corríamos, voávamos pela fenda do Calvário, saindo
para campo aberto e juntando-nos ao pelotão.
Quase todas as mulheres estavam caídas por terra, gemendo e
soltando uns gritos que acabaram por me eriçar os cabelos.
João e Jude, tão aterrados como os outros, não sabiam se correr
para a campina, se voltar à cidade. Mas, pouco a pouco, à medida que o
terramoto se ia distanciando na memória, os ânimos começaram a
recompor-se e impôs-se a sensatez. Pelo menos do lado dos oficiais
romanos e do jovem Zebedeu. A trágica realidade dos crucificados –
esquecida durante os abalos – apresentou-se logo aos olhos dos amigos e
familiares do Mestre. Mas, antes de continuar, quero narrar um facto
altamente misterioso detectado pelo módulo.
Segundo os dados recolhidos nos registos permanentes ou
sismogramas do berço, os dois abalos tinham somado um total de
sessenta e três segundos. A primeira onda muito mais fraca que a
segunda, correspondia ao tipo L, também chamadas longas ou
superficiais. Os sismógrafos detectaram um predomínio da variante
Love, mais de acordo com a natureza uniforme dos estratos superficiais
daquela zona geológica. A velocidade calculada foi de 3,3 quilómetros por
segundo. No entanto, neste primeiro sismo – cuja magnitude não foi
excessivamente importante: 4,1 na escala de Richter – os aparelhos não
receberam como teria sido de esperar, as séries de coleios das ondas P
ou primárias nem o ziguezaguear posterior das ondas S, mais lentas que
as P 1.
Ante o espanto geral, apenas surgiram as ondulantes, lentas e
superficiais Love (que de amorosas nada tiveram). No segundo abalo, em
contrapartida, apareceram as ondas P e S e, por último, as L. Os
cientistas, à vista dos dados acumulados pelos sismógrafos,
classificaram este segundo e mais intenso sismo na magnitude de 6,8z.
Até aqui, quase tudo normal dentro do que é e pressupõe um
* A energia libertada num terramoto desloca-se pela rocha sob a
forma de onda. A referida rocha actua como um corpo elástico. As
partículas individuais dos estratos rochosos vibram de um lado ao outro
com grande rapidez, à medida que se transmite o movimento ondulatório.
Ainda que os seus padrões sejam extremamente complexos,
constantemente modificados pelas propriedades de reflexão difracção,
refracção e dispersão das ondas, foram divididas internacionalmente em
três grandes grupos: Onda P ou primária, de impulso”, compressional, ou
longitudinal,, que viaja pelo interior da Terra a grande velocidade (entre
6 e 11,3 quilómetros por segundo), sendo a primeira a chegar à estação
registadora. Transmite-se como as ondas sonoras, por compressão e
expansão alternadas do volume da rocha ao longo da direcção de
percurso das ondas. Pode atravessar sólidos, líquidos e gases. Onda S” ou
secundária”, de sacudida,, de esforço cortante”, udistorcionais ou
transversais”. Formam um corpo de onda mais lento que as p, andando
entre 3 5 e 7,5 quilómetros por segundo. São as segundas a chegar aos
sismógrafos. Viajam também através do interior da Terra, sendo
transmitidas – tal como as ondas de luz – por vibrações perpendiculares
à trajectória em que viajam as ondas nas rochas. A sua velocidade é
proporcional à rigidez do material que atravessam, não podendo
atravessar os líquidos.
Por último, as ondas L”, também conhecidas por longas, ou
superficiais,. São lentas – cerca de 3,5 quilómetros por segundo -,
variando a sua deslocação com a elasticidade da rocha. Tem uma
natureza ondulatória, movendo-se fundamentalmente por baixo da
superfície terrestre. São conhecidos dois tipos principais: as ondas
Love, em sólidos uniformes, e as Raleigh em sólidos não uniformes. (N.
Do M.) 2 Como base puramente comparativa, o famoso terramoto de
Lisboa de 1755, cuja magnitude foi avaliada em nove, provocou uma onda
sísmica ou maremoto denominada tsunami,, que destruiu a capital
portuguesa e os seus arredores, provocando sessenta mil mortos. Tratase
do sismo mais forte da história moderna.
Até o lago Lomond, na Escócia, oscilou por causa do abalo.
(N. Do M.)
quadro sísmico, com excepção da já mencionada ausência das ondas
de impulso e das secundárias,. Porém, o espanto dos homens de Cavalo de
Tróia chegou ao limite quando, muito depois do
segundo abalo e dos correspondentes feixes de ondas, todo o
módulo estremeceu e rangeu pela terceira vez. Nesta altura, no entanto,
os sismógrafos tinham já emudecido. O que fez vibrar o berço – segundo
os dados dos instrumentos de bordo – foi uma onda expansiva! E o mais
inacreditável é que aquela onda expansiva viajando à razão de trezentos
metros por segundo – tinha o seu nascimento na mesma área onde os
especialistas em sismologia tinham localizado o epicentro do terramoto:
a uns setecentos e cinquenta quilómetros a sul-sudeste de Jerusalém,
em pleno deserto, muito perto do actual limite entre a Jordânia e Arábia
e ao sul da actual povoação de Sakaka.
Quando se concluíram as verificações, o general Curtiss e todos nós
vimo-nos ultrapassados pelos resultados: aquele tipo de onda expansiva e
parte das ondas sísmicas obedeciam aos efeitos de uma explosão nuclear
subterrânea. Sinceramente, ficámos mudos com a surpresa... Ao facto
inquestionável da escassa sismicidade da Palestina – muito inferior às da
Grécia, Itália e Espanha, para estabelecer algumas comparações (no
período compreendido entre 1901 e 1955, por exemplo, registaram-se
em Israel e zonas limítrofes do Libano e da Síria actuais, um total de
trezes sismos . Segundo Karnik, que tornou públicos os dados em 1971,
destes, dez foram de uma magnitude compreendida entre 4,1 e 5,1,
sempre segundo a escala de Richter.
Dois oscilaram entre 5,2 e 5,6 e apenas um roçou os 6,2 graus de
intensidade) – tivemos que acrescentar este novo e inesperado factor.
Se já era improvável que um sismo coincidisse quase com a morte de
Jesus de Nazaré, o problema agudizou-se quando os instrumentos
captaram a enigmática explosão nuclear subterrânea. (Não quero, nem
devo alongar-me mais neste fascinante acontecimento pela simples razão
de que, justamente, foi mais um dos motivos que levou Cavalo de Tróia a
programar e executar a segunda grande viagem.)
Dez ou quinze minutos depois do sismo, Longino e os soldados
regressaram ao alto do Gólgota, recomeçando a guarda dos crucificados.
Minutos antes, o jovem João tinha-se aproximado do centurião,
interrogando-o acerca da sorte do Mestre. Ao vê-lo mover a cabeça
negativamente e baixar os olhos, o apóstolo compreendeu que nada havia
a fazer. Mas no seu coração já não havia lágrimas e, simplesmente,
* 1 Um dos testemunhos mais antigos de que se dispõe na
actualidade sobre os sismos em Israel procede de Flávio Josefo. No seu
livro I, capítulo XIV da Guerra dos Judeus, e com o título As ciladas de
Cleópatra contra Herodes e da guerra de Herodes contra os Árabes e
um muito grande tremor de terra que então aconteceu, o historiador diz:
... perseguindo Herodes, o Grande, os inimigos, sucedeu-lhe por vontade
de Deus outra desdita, pelos sete anos do seu reinado, e no tempo em
que fervia a guerra de Accio, porque no começo da Primavera houve um
tremor de terra, em que morreu muito gado e pereceram trinta mil
homens, ficando a salvo e ileso todo o seu exército por estar no campo.”
O terramoto aconteceu portanto, pelo ano 35 antes de Cristo,
justamente sessenta e quatro ou sessenta e cinco anos antes do sismo
que os Evangelhos mencionam. (N. Do M.)
limitou-se a pedir às mulheres que se fossem daquele lugar. No meio
de uma explosão de dor, a maior parte do grupo – que acreditava
firmemente que Jesus faria um milagre e se salvaria
- obedeceu ao Zebedeu, retirando-se na companhia de Jude para
casa de Elias Marcos, quartel-general dos mais chegados ao Mestre
desde a definitiva dispersão de David Zebedeu e seus correios, perante
a chegada dos levitas do Templo. Mas tentei não me antecipar aos
acontecimentos, cingindo-me à mais rigorosa ordem cronológica dos
factos.
João continuou à sombra do Gólgota, na companhia de quatro ou
cinco hebreias que se negavam a regressar a Jerusalém.
Enquanto subia novamente ao cimo do penhasco, reparei nos
saduceus. O pânico tinha-os paralisado. Pensei que, uma vez consumada a
morte do odiado impostor, se retirariam. Como estava enganado...
Quando Jude e as mulheres se afastaram pelo poeirento caminho,
Longino e Arsenius, que com vários homens verificavam os danos e
estabilidade das cruzes, tiveram novo sobressalto. A Porta de Efraim
começara a vomitar um rio de gente enlouquecida e vociferante que,
segundo parecia, fugia da cidade. Ante a terrível possibilidade de novo
sismo, milhares de cidadãos e peregrinos, que os dois abalos tinham
surpreendido em Jerusalém, decidiram pelo imediato abandono das vielas
da Cidade Santa, em busca de terreno aberto.
Centenas de homens, mulheres e crianças – muitos carregando
pesados volumes e puxando por cavalgaduras e conduzindo rebanhos –
começaram a desfilar apressada e ininterruptamente em frente do
Calvário, rumo às lombas próximas de Gareb. Os soldados interromperam
a sua inspecção, reforçando a guarda periférica do penhasco. Mas, para
dizer a verdade aqueles rostos desencorajados pelo medo nem sequer
repararam em Jesus e nos zelotas. O seu verdadeiro problema era
escapar, fugir o mais depressa possível dos muros da cidade. Pouco antes
do pôr do Sol, quando, por fim, tive oportunidade de entrar em
Jerusalém, fiz perguntas quanto aos possíveis danos causados pelos dois
abalos. Segundo Elias Marcos e José de Arimateia, os sismos tinham
provocado muito mais medo que destroços materiais. As edificações,
quase todas de um ou dois pisos e de materiais leves, tinham aguentado
os sacões. Deram-se alguns pequenos desmoronamentos mas, felizmente,
os feridos não eram muitos nem com gravidade.
Um dos factos que provocaria uma infinidade de comentários –
chegando a ser registado, até pelos evangelistas – foi a ruptura de um
dos dois grandes véus ou cortinas postos em frente do Debir, ou lugar
santíssimo (também chamado oráculo), do Hekal, ou lugar santo, que
precedia o primeiro. Encontrando-se ambos no interior do Santuário, foime
impossível verificar os rumores, ainda que todas as notícias –
transmitidas pelos hebreus em voz baixa e com uma alta carga de
superstição – façam referência ao primeiro e mais importante: o que
fechava a passagem para a sempre misteriosa quadra cúbica de nove
metros de lado, considerada a morada de Deus, e onde se erguiam os
dois querubins de quatro metros e meio de altura, belamente esculpidos
* Das dimensões deste grande véu nos dá ideia o seguinte dado do
escrito rabínico Middot (III, 8): Se o véu do Templo foi
manchado tem de ser lançado num banho que precisa da presença de
trezentos sacerdotes. (N. Do M.)
em madeira de oliveira e cobertos de ouro. Quanto eu teria dado
para poder entrar no referido recinto e examinar o interior da arca da
aliança, depositada no centro do pavimento e sob as asas abertas dos
anjos. Porém, isto era um sonho impossível... Quando a patrulha se
convenceu de que a multidão só tentava pôr-se a salvo e que nem sequer
se detinha à sua passagem pelos juízes, o oficial e os seus infantes
recomeçaram a inspecção do patíbulo, tentando fazer o inventário dos
possíveis danos causados pelo terramoto.
Juntei-me a eles, concentrando a minha atenção nos crucificados.
As stipes tinham suportado bem as convulsões das rochas, salvo a
voltada para ocidente e atrás dos condenados.
Os legionários firmaram-na de novo. Ao terminarem o que se tinha
responsabilizado por apanhar os pedaços do cântaro de água reparou em
qualquer coisa e chamou a atenção de Longino.
A poucos passos das cruzes, na direcção sul, o penhasco estava
aberto. Tratava-se de uma fenda não muito larga – de uns vinte e cinco
centímetros – mas bastante funda. Talvez de dois metros ou mais. No
entanto nenhum dos soldados pôde garantir se aquela fenda estava já ali
antes do sismo ou se, pelo contrário, acabava de se abrir. Nem o
centurião nem os outros romanos lhe concederam muita importância.
E cada um voltou ao seu trabalho. Pelo meu lado, também não podia
garantir que a fenda no alto do Gólgota fosse consequência do abalo. O
que é certo, sim, é que a pequena fenda não seguia a direcção da
estratificação natural do promontório. Pelo contrário: cortava a
superfície da rocha transversalmente.
Pelas quinze horas e trinta e cinco minutos a saída de hebreus da
cidade começou a diminuir consideravelmente. A calma foi-se
restabelecendo e aquelas gentes, acampadas nas cercanias de
Jerusalém, começaram a deambular, indecisas, e perseguindo-se
mutuamente com perguntas. Considero que o paulatino regresso das aves
às muralhas do Templo e da cidade contribuiu decisivamente para
serenar os ânimos. Muitos receberam com alvoroço este regresso em
massa das pombas e andorinhas a Jerusalém e ganharam coragem para
atravessar novamente a Porta de Efraim. O centurião, Arsenius, os seus
homens e eu próprio respirámos também com alívio quando, de repente,
um punhado daquelas pombas cinzento-azuladas fez uma paragem no voo,
pousando nos madeiros transversais das cruzes.
Que triste e significativa me pareceu aquela imagem! Três ou quatro
pacíficas aves descansavam no patibulum de Jesus de Nazaré, voltando a
voar uns segundos mais tarde.
O regresso da multidão espantada a Jerusalém foi muito mais
tranquilo. Nesta altura chegaram a parar diante do patíbulo, observando
em silêncio ou interrogando os saduceus. Estes aproveitaram a
oportunidade para anunciar aos quatro ventos que o Galileu tinha morrido
e que quase com toda a certeza, o responsável por aquele terramoto era
Jesus, aliado de Belzebu... A maioria não prestou muita atenção a tais
patranhas, mas alguns – arrastados pela veemência dos sacerdotes
voltaram a insultar o Mestre, engrossando o número dos curiosos que
continuava à beira da grande rocha.
A atenção do oficial e dos legionários viu-se subitamente desviada
pela chegada ao patíbulo de três soldados vindos da Fortaleza Antónia.
De pois de saudarem Longino explicaram-lhe o motivo da sua presença na
rocha: traziam ordens expressas do procurador para darem o golpe de
misericórdia nos condenados e levar os corpos para a vala comum aberta
no vale da Geena, ao sul da cidade.
O oficial interrogou os legionários quanto à razão que levara Pilatos
a tomar uma decisão aparentemente tão precipitada. Segundo
explicaram, pouco antes do sismo, um grupo de homens do Sinédrio tinha
visitado novamente o governador, expondo-lhe o que eles denominavam o
desejo do povo de Jerusalém ou seja, que os corpos dos executados
fossem despregados antes do pôr do Sol, tal como ordenava a Lei, já que
aquele era o dia da Preparação. Pilatos – cujo estado de ânimo se
encontrava fortemente impressionado pelas trevas – acedeu, dando as
devidas ordens a Civilis para que enviasse alguns homens.
Longino não dissimulou a sua estranheza. Se os mensageiros, em vez
de serem legionários, tivessem sido judeus do Sinédrio provavelmente
não teria aceitado. No fundo, os costumes judeus não lhe davam
cuidados. Por um lado, a mudança de planos aborrecia-o profundamente.
Mal tinham passado duas horas e meia depois que se tinham iniciado os
trabalhos de levantamento e encravamento dos zelotas e já lhe exigiam
a não menos trabalhosa e desagradável tarefa de os desencravar e
transportar para a sepultura comum dos criminosos...
Claro que, por outro lado, a contra-ordem também apresentava um
certo atractivo. Se as operações se fizessem com rapidez, não
passariam aquela noite ao relento, expostos a novas tormentas nem ao
rigor da vigilância. E assim, dispostos a terminar com o caso, o oficial e
Arsenius ordenaram a descida dos zelotas e do Galileu. Longino avisou os
recém-chegados de que Jesus já tinha morrido. Os três legionários, que
vinham munidos de bastões, idênticos aos que eu vira usar no
apaleamento do soldado romano, ocuparam posições. Dois na frente de
Dimas e o terceiro à direita do segundo guerrilheiro, também, como os
seus companheiros, a um escasso meio metro das extremidades
inferiores de Gistas.
Um quarto legionário, de espada na mão, completou o quadro,
postando-se em frente da perna esquerda do zelota mais velho. Não
houve sinal algum. Os quatro romanos firmaram bem as sandálias na dura
crosta da rocha e, brandindo os bastões e a espada, deram quatro
golpes, tremendos e secos, nas pernas dos infelizes. O estalar das tôlas
estilhaçadas por altura do terço inferior foi seguido por uma série de
curtas e violentas convulsões.
Os zelotas tinham sido despertados pela dor. Provavelmente, as
pancadas tinham afectado também o peróneo porque, imediatamente, as
pernas se inflamaram e os corpos, sem terem sequer o árduo consolo do
apoio dos cravos dos pés, descaíram uns centímetros, enquanto os
desgraçados, entre gritos, abriam as bocas desesperadamente, em pleno
e irreversível processo da asfixia. Gistas, nesta ocasião, tinha apanhado
a pior parte. A espada do soldado cortara-lhe a perna. Em questão de
segundos o choque traumático e uma possível embolia aceleraram a
morte por asfixia.
Às quinze horas e quarenta e cinco minutos ambos deixavam de
existir.
Apesar da advertência do centurião, um dos soldados encarregado
de acabar com os condenados, colocou-se por baixo do cadáver do
Mestre, examinando-O atentamente. A verdade é que, nem Longino nem
o resto da tropa se aperceberam das intenções do infante. A maior
parte dos romanos esforçava-se nos preparativos para a descida dos
justiçados.
Suponho que procurando livrar-se de qualquer responsabilidade, o
romano deitou mão a um pilum e, sem pensar duas vezes, espetou o
flanco direito do Mestre, enterrando a lança quinze a vinte centímetros.
Mas o corpo do Nazareno, como era de esperar, não teve reacção. O
soldado, convencido do falecimento do Prisioneiro, procurou retirar a
arma.
No entanto, a ponta em flecha do pilum esbarrou ou enganchou-se
nos tecidos, resistindo. À segunda tentativa, o flanco cedeu e o ferro
ensanguentado ficou livre. Pela ferida, de uns quatro centímetros e meio
de comprimento, saíram mansamente uns dez centímetros cúbicos de
sangue e, a seguir, uma pequena quantidade de um líquido seroso.
Ao aproximar-me e examinar a lançada notei que tinha entrado
entre a quinta e a sexta costelas, com uma trajectória logicamente
ascendente e que, presumivelmente, trespassara o plano muscular
intercostal, as pleuras parietal e visceral, o pulmão e o pericárdio,
entrando em cheio na aurícula direita. Esta zona do coração conserva
precisamente uma certa quantidade de sangue líquido, uma vez ocorrido
o óbito. Em minha opinião, foi este o sangue que se derramou. Quanto a
água que João, o Evangelista, diz ter visto, e que surgiu imediatamente
depois do derrame sanguíneo, é muito possível que se tratasse do
referido humor de carácter seroso que enche a cavidade existente
entre as túnicas das pleuras pulmonares. (A visceral, como se sabe,
adere intimamente ao pulmão e a parietal forra as paredes do tórax; por
baixo, cobre o pulmão e o diafragma excepto no centro. Por dentro
protege a face mediastínica e por fora a face interna das costelas.)
Quando a lança rasgou estas pleuras, o referido líquido, ao variar a
pressão, acabou por sair, derramando-se imediatamente depois do
sangue. À sua maneira, o jovem João dissera a verdade... Mas as
afrontas ao corpo de Cristo não tinham terminado.
Tendo passado a escuridão e o vento forte, as moscas e os insectos
caíram sobre os corpos dos crucificados, convertendo as feridas em
coroas negruscas e palpitantes. Com uma grande experiência neste tipo
de execuções, o carrasco encarregado dos encravamentos sugeriu ao
oficial que se iniciasse a operação da descida pelo condenado que tinha
morrido há mais tempo. Longino concordou. Também ele sabia que a
rigidez cadavérica não tardaria a começar, dificultando os trabalhos do
transporte para Geena.
Era simplesmente assombroso. Naqueles momentos – quase às
quatro da tarde – nenhum dos discípulos ou amigos do Mestre viera ainda
pedir o corpo do Rabi. A ideia do centurião, tal como o dera a entender o
procurador, era retirar os corpos das cruzes e transportá-los para a
vala comum. João, que seguia atentamente os movimentos dos soldados,
não saíra das proximidades do patíbulo.
Atendeu durante breves minutos um dos correios de David Zebedeu
– informando-o do falecimento do Mestre – e, uma vez afastado o
mensageiro, continuou junto do cabeço, visivelmente desmoralizado.
Quando o oficial romano se postou por baixo da cruz de Jesus,
vigiando os preparativos da descida, reparou imediatamente na nova e
grande ferida do flanco. O sangue começara a formar grossos grumos no
franjado lábio inferior da ferida. Compreendeu imediatamente que o
cadáver fora lanceado e, com grande irritação, voltou-se para os seus
homens repreendendo-os pela desobediência. Mas ninguém disse nada.
Sem perda de tempo, o carrasco começou a manipular a cabeça do
cravo que atravessava o pé direito do Mestre, enquanto outro soldado
encostava a escada de mão atrás da stipe, preparando novamente a
comprida soga que tinham utilizado nos levantamentos. Com precisão
estudada, o legionário aprisionou a base do cravo a mãos ambas,
fazendo-o oscilar para cima e para baixo.
Sabiamente, o responsável pelo encravamento tinha deixado a
cabeça a uns dez centímetros acima da pele. Desta forma, dispunha de
espaço suficiente para o manejar. Poucos segundos depois, com um forte
puxão, a ponta metálica estava fora da madeira e a extremidade inferior
do Galileu relaxou-se totalmente, oscilando ligeiramente no vazio.
O infante agarrou então o calcanhar com a mão esquerda,
arrancando o cravo com a direita. Ao desenterrá-lo do peito do pé, o
sangue brotou novamente, formando uma enorme rosa avermelhada em
volta da ferida.
Antes de se postar diante do pé esquerdo, o carrasco certificou-se
se o seu companheiro, no alto da escada, tinha atado a corda ao
patibulum. Esperou até que rematasse a laçada central e, em seguida,
repetiu a extracção do segundo çravo.
Também aqui não se registou problema algum. O corpo do Mestre
pendia já, inerme, escorrendo sangue pelas pontas dos pés. Os dedos
grandes, encontravam-se visivelmente separados dos outros, muito
forçados para o eixo central do cadáver. Boa parte do volume sanguíneo
acumulado nas pernas, e que ficara relativamente estancado pelos
próprios cravos, ao desaparecer o efeito hemostático começou a fluir,
convertendo aquela parte da rocha num extenso charco em que os
legionários escorregaram várias vezes.
Livres já os pés, mais dois soldados se aferraram a ambos os lados
da árvore e um terceiro e um quarto legionários, saltando para os
ombros daqueles, dispuseram-se a repetir a operação do levantamento
do madeiro transversal. Suspenso das operações não me apercebi de que
a minúscula representação do Sinédrio se vira aumentada por outro
grupo de sacerdotes recém-chegados à base do Gólgota. Aqueles
sacerdotes preparavam-se para protagonizar outro lamentável
acontecimento...
Em uníssono, os infantes postados por baixo de cada uma das pontas
do patibulum e o que agarrava a corda do alto da escada fizeram força
elevando o lenho até à afiada ponta da stipe ficar fora do orifício
central do madeiro.
Naquele preciso instante, o soldado da escada deu um grito,
avisando os que controlavam a corda em baixo e atrás da cruz que
podiam ir afrouxando. E assim fizeram. Jesus e o madeiro foram
baixando lentamente, palmo a palmo. Uns centímetros antes de os pés
tocarem na rocha, de modo que o cadáver chegou ao solo totalmente
horizontal. Ao recuar, esbarrei sem querer com alguém. Quando ia
desculpar-me, deparei com o ancião José de Arimateia, que era
acompanhado por outro judeu de pequena estatura, cerca de um metro e
cinquenta.
José alegrou-se ao ver-me. Esboçou um triste sorriso e apresentoume
o seu companheiro: Nicodemo, como ele membro do Conselho do
Sinédrio e da chamada nobreza laica de Jerusalém.
Os dois homens, com uma coragem que, na minha humilde opinião,
nunca foi devidamente valorizada, traziam uma ordem assinada pelo
próprio Pôncio Pilatos, autorizando a transladação do cadáver do
Nazareno para um túmulo privado. José, conhecendo a triste sorte
sempre reservada aos justiçados – cujos corpos eram geralmente
devorados pelas ratazanas e animais selvagens na vala de Geena -,
apressara-se a visitar o procurador, suplicando-lhe a custódia do
Mestre. Pelo que se via, este tipo de petições não era raro. Muitos dos
familiares e amigos dos executados tinham por costume recorrer à
máxima autoridade romana e, a troco de dinheiro ou de ofertas,
conseguiam os seus propósitos. José levara uma grande quantia ao
Pretório.
Mas, quando Pilatos teve conhecimento das intenções do seu velho
amigo, recusou o dinheiro, assinando imediatamente a autorização.
Mau foi José e Nicodemo terem chegado ao patíbulo pouco depois
dos seus fanáticos companheiros do Sinédrio...
O centurião desenrolou o papiro e, depois de ler atentamente o
texto, concordou, dando a sua autorização.
Mas a inesperada presença dos membros demitidos do Conselho de
Justiça Judeu junto das cruzes mobilizou imediatamente os saduceus.
Os sacerdotes viram perfeitamente como José entregava o rolo ao
oficial e suspeitaram que os discípulos do Galileu procuravam apossar-se
do cadáver. Entretanto, o carrasco conseguira desencravar o pulso
esquerdo de Jesus. E quando se preparava para fazer o mesmo com o
último cravo, uma súbita gritaria o deteve. A patrulha e todos nós vimos
então como alguns dos juízes, vermelhos de ira, se precipitavam para o
alto do Gólgota, exigindo o direito de dispor dos corpos dos três
justiçados.
Longino fez um sinal aos seus homens e os quinze legionários, com
Arsenius na primeira fila, cobriram o rebordo oriental da penha,
cortando a passagem aos furiosos sacerdotes. Estes, ao chegarem ao
final da fenda que dava acesso ao promontório, pararam de repente,
estupefactos perante os reflexos das ameaçadoras espadas. Mas, longe
de recuarem, enfrentaram a escolta, exigindo o corpo do Mestre.
Parte dos curiosos que se tinham unido aos juízes, instigados e
encorajados por estes, gritaram também, insultando os romanos e
arremessando pedras. Os amotinados, enraivecidos, começaram a
avançar para o Calvário. Mas o centurião, desembainhando a espada, pôsse
à cabeça dos legionários e deu ordem de carregar. Em formação
cerrada, os romanos começaram a avançar com passo firme e resoluto
para os judeus que tinham trepado até ao penhasco. Os seus rostos
tensos, exprimindo uma raiva mal contida, fizeram-me tremer: pareciam
estar dispostos a tudo. Mas os sacerdotes, compreendendo o perigo,
deram meia volta, fugindo em atropelo. Um ou dois, na sua precipitação,
rolaram pelo caminho, sendo espezinhados sem piedade pela patrulha,
que, em fila, corria já em direcção aos hebreus furiosos.
A carga não tardou a surtir efeito. Quando o populacho viu os
soldados de espadas ao alto, dispostos a massacrá-los se fosse preciso,
recuaram, dispersando em todas as direcções.
Uma vez restabelecida a ordem, o pelotão voltou ao alto da rocha,
formando um novo e mais numeroso cinturão de segurança em volta das
cruzes.
João e as mulheres, que se tinham visto obrigados a correr, fugindo
da furiosa carga, viram de longe como o carrasco concluía o seu trabalho
de desencravamento de Jesus. Os restantes sacerdotes e judeus que se
tinham rebelado desapareceram pelos campos e no interior da cidade. Só
uns quantos, de longe, e dispersos, se atreveram a espiar os movimentos
dos guardas. Mas em momento algum tiveram coragem para se
aproximarem a menos de cem metros do patíbulo.
Apesar do forçado isolamento do Calvário, Longino – procurando agir
sempre com um mínimo de justiça – chegou à beira do promontório e,
levantando a voz, leu a ordem de Pilatos. Duvido muito que os
enraivecidos juízes chegassem a escutar o oficial.
Depois, avançando para José de Arimateia, comunicou-lhe
solenemente: - Este corpo pertence-te. Faz o que consideres necessário.
Os meus soldados te ajudarão para que ninguém se oponha ao teu desejo.
O ancião, pálido ainda pelo susto, agradeceu as palavras de Longino e, na
companhia de Nicodemo, dirigiu-se para o lugar onde se encontrava o
cadáver do Mestre. O patibulum fora retirado e também o elmo
espinhoso, que foi arremessado com força pelo carrasco para o pequeno
penhasco situado a ocidente. Nem José nem o seu amigo nem os soldados
prestaram a menor atenção ao capacete de puas. Só eu o vi perder-se no.
Mato do acidentado terreno. Enquanto os soldados iniciavam a segunda
descida, o velho José ajoelhou-se junto da cabeça martirizada de Jesus
e, depois de O contemplar em silêncio, estendeu a mão baixando a
pálpebra direita do Mestre.
Ao cabo de vinte ou trinta segundos retirou os dedos, mas o olho do
Galileu voltou a abrir-se. José pousou de novo a mão sobre a pálpebra, e
assim esteve durante quase dois minutos. Nesse momento, uma lágrima
solitária correu pela cara do amigo do Nazareno.
Embora o rigor mortis – que se veria indubitavelmente acelerado
pela tetanização – só começasse umas seis horas depois do falecimento,
o certo é que a queda do maxilar inferior me fez suspeitar de que os
músculos da boca, que ficara aberta, não tardariam a entrar em rigidez.
Por outro lado, a perna esquerda do Mestre encontrava-se flectida,
possivelmente pela posição forçada e constante na cruz.
Os dedos – em garra – e com os polegares virados para o centro das
palmas, tinham-se tornado muito mais azulados. Uma vez fechado aquele
olho de Jesus, Nicodemo pousou no chão um par de saquinhos que, unidos
por um cordel, pendiam do seu ombro esquerdo e dos quais não se
separara durante todo aquele tempo. Com a ajuda de José desdobrou por
toda a zona seca da rocha um lençol branco que trazia dobrado debaixo
do braço.
(Segundo me confessaria naquela mesma noite no domicílio de Elias
Marcos, o de Arimateia tinha comprado aquelas seis varas de pano a um
comerciante da vizinha localidade de Palmira, a norte.) Examinei o tecido
e verifiquei que se tratava de um pano de linho. Medi-o
dissimuladamente com a ajuda da vara de Moisés e deduzi que tinha uns
4,30 metros de comprimento por um pouco mais de um metro de largura.
(Na nossa segunda aventura, as análises verificadas no interior do
módulo sobre esse pano dariam assombrosos e desconcertantes dados
quanto ao que pôde acontecer no sepulcro e que, sem dar lugar a dúvidas,
coroaram a nossa missão. Na referida análise, verificámos, por exemplo,
que as dimensões exactas do pano eram 4,36 x 1,10 metros, com um peso
de 234 gramas por metro quadrado. Quer dizer, o peso total daqueles
4,80 metros quadrados elevava-se a 1123 gramas.
A fibra, efectivamente, era de linho e nas ampliações até cinco mil
vezes apareceu uma estrutura denominada quatro em espiga ou em cauda
de peixe. Este tecido de sarja, tal como Nicodemo me dissera, provinha
dos teares de Palmira.
Curiosamente, este tipo de confecção só entraria na Europa depois
de bem entrado o século xIv. Mas não desejo alongar-me sobre as
nossas fascinantes descobertas no lençol que cobriu o cadáver de Cristo
durante aquelas históricas trinta e seis horas...) José de Arimateia viu a
posição do Sol e apressou Nicodemo para que o ajudasse a transportar o
cadáver para o lençol estendido. O ancião postou-se junto da cabeça do
Mestre e o amigo, por sua vez, aos pés. Ambos se inclinaram ao mesmo
tempo. José enfiou as mãos por baixo dos ombros do Galileu, segurandoo
pelas axilas. Nicodemo fez o mesmo, agarrando o Gigante pelos
tornozelos. Trocaram um olhar e, quando consideraram estar
preparados, tentaram levantar o pesado corpo. E digo tentaram porque,
naturalmente, só o de Arimateia conseguiu levantá-lo uns centímetros.
Tentaram segunda vez, mas foi igualmente inútil. Os funcionários
judiciais e aquelas pessoas que alguma vez se viram na obrigação de
mover um cadáver sabem por experiência que não é nada fácil. E, menos
ainda, se os pontos de apoio não forem os adequados. Era este o caso de
Nicodemo...
Absolutamente impotentes para levantarem o Nazareno, José não
teve outro remédio que não fosse o de solicitar o auxílio do oficial.
Longino, compreendendo a delicada situação dos hebreus, suspendeu o
desencravamento de Dimas, que ficou pendurado do patibulum. Um dos
legionários, mais jovem e robusto que José, encarregou-se da parte
superior do Mestre.
Passou os braços pelas axilas, levantou o tronco do cadáver do Rabi.
Ao mesmo tempo, outro soldado dobrou ao máximo os joelhos de Jesus,
abraçando ambas as pernas pela altura das curvas. O corpo do Galileu
formou então um V e, com a ajuda de mais dois infantes que colocaram
as mãos nos rins e nas costas do Cristo – os oitenta ou oitenta e dois
quilos do Filho do Homem puderam ser levantados e levados para o
lençol. O corpo foi depositado a uns vinte centímetros da ponta da
mortalha mais perto das cruzes, com a cabeça quase ao centro do lençol.
Naquela deslocação de apenas cinco metros, a intensa flexão do tronco
comprimiu as vísceras torácicas e abdominais, dando lugar a uma
hemorragia. Sem dúvida, a pressão esvaziou uma das veias cavas
(possivelmente a inferior) e um largo regueiro de sangue brotou pela
ferida da lança, jorrando pelo flanco direito, escorrendo ao longo das
costas, até à cintura. Nicodemo tentou baixar o joelho esquerdo do
Mestre mas, embora o fizesse descer uns centímetros, os hematomas,
as articulações dilaceradas e a rigidez da perna tornaram impossível o
abaixamento total.
O de Arimateia pôs termo aos esforços do seu companheiro,
cobrindo o cadáver com os dois largos metros de linho que tinham ficado
livres. O oficial, que acompanhava atentamente a manobra, compreendeu
imediatamente que as dificuldades daquela voluntariosa parelha de
sacerdotes não ficavam por ali. Confusos, Nicodemo e José, ao
compreenderem que o transporte de Jesus requeria a colaboração de,
pelo menos, quatro homens, voltaram-se, implorando, para Longino. E
este, sorrindo, entregou ao seu lugar-tenente o remate da descida dos
zelotas, dizendo depois a quatro dos seus homens mais corpulentos que o
acompanhassem bem como aos proprietários do cadáver até ao túmulo
escolhido.
Nicodemo e José rogaram ao oficial que lhes permitisse ajudar no
transporte do improvisado féretro. E assim se fez.
Pelas dezasseis horas e trinta minutos, o próprio centurião, outro
legionário e os dois amigos de Jesus levantaram a mortalha do frio solo
do patíbulo, carregando os restos mortais do Filho do Homem. Atrás, os
outros soldados, com as espadas desembainhadas e eu, com a alma tão
descarnada como aquela funesta rocha que nunca esquecerei.
Devia ter pensado nisso. Embora João fale na sua narrativa de um
sepulcro situado no mesmo local onde o Mestre fora crucificado, por
mais que olhasse enquanto estive no alto do Gólgota não consegui
descobrir um só ponto – próximo do penhasco – que reunisse as principais
características indicadas pelos evangelistas; quer dizer, um horto e
alguma penha onde se pudesse escavar um túmulo. Mas depressa ficaria
esclarecida esta nova incógnita.
Mal tínhamos descido do maciço rochoso, o jovem Zebedeu e as
mulheres vieram ao nosso encontro. José tranquilizou o centurião que, ao
ver aproximar-se o reduzido grupo, se pôs em guarda. Quase de joelhos,
o apóstolo suplicou ao legionário que agarrava uma das pontas da
mortalha que lhe cedesse o seu lugar. Longino respondeu ao
interrogativo olhar do seu soldado com um movimento de cabeça
afirmativo e João substituiu-o na transladação.
Nenhum crucificado podia ser enterrado num cemitério judeu.
Assim o estabelecia a Lei. José e Nicodemo sabiam-no e, antes
mesmo de visitarem Pilatos, já tinham previsto dar sepultura ao Mestre
numa das propriedades do ancião de Arimateia. Mas o final daquela
trágica sexta-feira aproximava-se a passos de gigante. As trombetas do
Templo não tardariam a anunciar o ocaso e, com ele, a entrada do sábado
e da solene festa da Páscoa. Era preciso andar depressa. E os antigos
membros do Sinédrio, que seguravam a mortalha com os pés, apressaram
o passo.
Atrás, a quatro ou cinco metros, seguiam-nos Maria, a de Magdala;
Maria, a mulher de Cleopás; Marta, outra das irmãs da mãe de Jesus, e
Rebeca de Seforis. Os legionários, por sua vez, tinham-se dividido,
cobrindo os flancos do cadáver. Ao contemplar aquele cortejo fúnebre
silencioso e esquivo, não pude reprimir uma tristíssima sensação de
solidão. Abandonado pela maioria dos amigos e adeptos fiéis, ultrajado
quase depois da descida por aquela turba de fanáticos, agora – a caminho
do sepulcro – nem sequer podia receber enterramento com o mínimo de
dignidade e repouso.
Até o mais pobre e miserável dos Judeus, segundo a Lei, tinha o
direito, pelo menos, a um enterro com dois músicos de flauta e uma
carpideira. Para o Nazareno já não restavam lágrimas. Os corações das
mulheres e dos seus três amigos tinham secado. Quanto ao
acompanhamento, tudo o que recordo foi os passos apressados da
escolta e dos que carregavam o cadáver, arrastando cardos e abrolhos.
O de Arimateia e Nicodemo orientaram a transladação, ladeando a
muralha norte de Jerusalém e seguindo praticamente o mesmo itinerário
da via dolorosa. Atravessámos a estrada de Samaria e dez ou quinze
minutos depois de ter abandonado o patibulo, suada e com os dedos
doridos pelo peso do corpo, a comitiva parou diante de um horto.
Encontrávamo-nos ao norte do Gólgota e relativamente perto da
Torre Antónia, aproximadamente a uns cem ou cento e cinquenta metros.
(Era natural que os ricos proprietários de Jerusalém não situassem as
suas herdades e plantações ou hortos de recreio perto daquele penhasco
onde se justiçavam os ladrões e criminosos.
Aquele, em contrapartida, parecia ser um lugar tranquilo e
formoso.) Uma das mulheres, julgo que foi Madalena, adiantou-se e
soltou a corda que, à maneira de laço, prendia uma porta de madeira, de
um metro de altura, a uma cerca de estacas impecavelmente caiadas. A
sebe, de altura semelhante à da cancela de entrada, perdia-se, à direita
e à esquerda, entre o emaranhado de uma infinidade de árvores de
fruto. Ao rodar, as ferragens articuladas dos gonzos gritaram como um
animal ferido. O grupo precipitou-se para o interior da herdade.
Caminhámos cerca de cinquenta passos, sempre numa frondosa plantação
de pequenas árvores seleccionadas, até chegar a uma bifurcação do
estreito caminho que começava precisamente no umbral da porta do
horto. Após uma breve pausa, suficiente para recuperar o fôlego, José e
Nicodemo deram indicações aos soldados e metemos por um caminho à
direita. O da esquerda ia dar a uma casinha situada aí a uma centena de
metros e que a julgar pela coluna de fumo coleante e espigada, que
escapava pela chaminé, devia ser habitada.
Dois pequenos cães acorreram de entre as árvores, saltando e
ladrando alegremente às pernas de José de Arimateia. Mas o ancião, com
um grito autoritário, mandou-os embora.
A uns vinte metros da bifurcação apareceu na minha frente uma
suave elevação de terreno. Era uma formação calcária que não
sobressairia mais de metro e meio do nível do chão.
Parámos, e o de Arimateia anunciou ao oficial que já podiam
depositar o corpo de Jesus no solo. A dois passos do ponto onde
repousava o cadáver do Nazareno, o terreno argiloso que rodeava a uma
cunha rochosa tinha sido removido. José, proprietário do sítio, mandara
construir umas escadas rústicas, que desciam atém uma estreita galeria
de apenas dois metros de largura. Ao descer os cinco degraus,
encontrávamo-nos num corredor diante de uma fachada, perfeitamente
trabalhada na rocha viva. Grosso modo, calculei a altura daquela parede
rochosa nuns três metros. No centro havia uma pequeníssima porta
quadrangular, de noventa centímetros de lado. José rogou-nos que o
desculpássemos e afastou-se a correr em direcção à casita.
Enquanto os soldados aproveitavam a paragem para se sentarem e
descansar, acocorei-me e tentei dar uma olhadela ao interior da cripta.
Uma pedra redonda, muito parecida com uma mó de moinho, de um metro
de diâmetro, repousava à esquerda da boca de entrada no sepulcro.
Mesmo ao pé da fachada fora aberta uma calha de uns vinte centímetros
de profundidade por uns trinta de lado que corria a toda a largura. A
pedra, cujo peso devia ser superior a quinhentos quilos, e tão
toscamente polida quanto a fachada, estava colocada de tal maneira que,
para tapar a estreita abertura que fazia às vezes de porta – bastava
fazê-la rolar na calha, a que se ajustava quase matematicamente. Ao
passar a mão por aquela mole redonda imaginei o enorme esforço que
deviam ter tido os operários para a transportarem até ao fundo da
galeria e, naturalmente, o que exigiria cada encerramento e abertura do
sepulcro.
Mas, ao meter a cabeça dentro da cripta, a escuridão era tal que
não consegui distinguir-lhe a profundidade nem a altura das paredes nem
qualquer outro pormenor.
Levantei-me e enquanto esperava José, entreguei-me a medir aquela
espécie de antecâmara ou galeria: da fachada ao último degrau eram
2,20 metros. As paredes da galeria, a céu aberto, iam baixando desde os
três metros (altura máxima que correspondia à fachada do sepulcro) até
pouco mais ou menos um metro ao nível do degrau mais alto.
As minhas medições foram interrompidas pelo regresso do ancião,
que vinha acompanhado de um hebreu de cerca de cinquenta anos de
barba curta e cuidada e de corpulência que instintivamente me lembrou o
falecido Mestre. Trazia na cabeça um chapéu largo de palha e carregava
uma volumosa e pesada ânfora. José trazia dois archotes de cabo curto
e uma espécie de pequena trouxa. Pelas cinco da tarde, o dono do horto
ajoelhou-se na frente da câmara sepulcral e, com extremo cuidado,
alongou a mão esquerda, colocando um dos archotes no interior da cripta.
Depois entregou o segundo facho ao seu servo e jardineiro, que,
hierático e mudo como uma estátua, já não se moveria da galeria.
José, sempre naquela posição incómoda, arrastou-se, penetrando na
gruta.
O tremeluzir avermelhado do archote dentro do sepulcro
desapareceu segundos depois. E o ancião, assomando a cabeça pela
abertura, pediu o segundo archote. O seu ajudante apressou-se a
entregar-lho, fazendo o mesmo com a trouxa.
Quando José considerou que tudo estava preparado, saiu do
panteão, dizendo a Nicodemo que descesse o corpo do Mestre.
Os soldados cumpriram a ordem, colocando o cadáver sobre a terra
vermelha e calcada da galeria, orientando-o de modo a que a cabeça
ficasse voltada para a porta estreita. José de Arimateia voltou então ao
interior, seguido pelo centurião.
Uma vez lá dentro, ambos começaram a puxar pela mortalha, sendo
ajudados de fora por mais três legionários. Quando, por fim, o corpo foi
introduzido no sepulcro, Nicodemo passou a José o par de sacos, que
ainda trazia pendurados do ombro, e a ânfora. Satisfeita esta última
parte da laboriosa transladação aquele inclinou-se também e, de joelhos,
perdeu-se na mortiça claridade do sepulcro, seguido por João.
Ignorando se tinha lugar, aventurei-me a seguir Nicodemo. O meu
metro e oitenta de altura obrigou-me a dobrar a espinha e a arrastar-me
por um piso tão rugoso quanto ingrato.
Ao levantar os olhos encontrei-me num espaço quadrado, de uns
três metros de lado e 1,70 metros de altura, aproximadamente. (Deste
último número estou bastante certo porque, durante o tempo que
permaneci dentro da cripta, não tive outro remédio senão inclinar a
cabeça para não bater no tecto rochoso, duramente trabalhado à base
de escopro de cantaria, a julgar pelos cortes em bisel da abóboda e das
paredes.) A minha intromissão foi bem recebida. Quando me levantei, os
quatro homens esforçavam-se por levantar o cadáver até uma espécie de
banco de sessenta e cinco centímetros de altura, igualmente roubado à
massa pétrea e aberto na parede direita (tomando como referência a
abertura da entrada).
Apressei-me a unir os meus esforços aos deles, colaborando no
último levantamento do Nazareno. Sei que aquele pobre e insignificante
gesto não teria sido aprovado pelo código rigoroso do Projecto, mas que
importância pode isso ter agora... Os restos mortais de Jesus
descansavam finalmente num leito de pedra de 1,89 metros de
comprimento por 0,93 metros de largura. Para dizer a verdade, o túmulo
parecia escavado expressamente para o grande corpo do Galileu.
José apressou-se a descobrir o cadáver, enquanto Nicodemo abria o
saco de pano, extraindo, em primeiro lugar, duas penas totalmente
brancas, que, à primeira vista, poderiam ser de algum tipo de ave
doméstica. À luz trémula dos archotes – colocados por José em cada um
dos cantos do altar ou poial de rocha – apareceu novamente diante de
todos o ensanguentado, sujo e malcheiroso corpo de quem umas horas
antes fora o majestoso Filho do Homem. As crostas de excrementos
tinham acabado por secar na pele das coxas e pernas, exalando um fedor
insuportável. Embora só tivessem decorrido duas horas desde o
momento da morte clínica, os pés, com as unhas azuladas, apresentavam
já uma contracção post mortem com predomínio extensor dos dedos. A
rigidez, tal como eu temia, avançava já sem remédio. A cabeça, descaída
para o lado direito, conservava a boca aberta, apresentando um tom
lívido e um acentuado arroxeado dos lábios. O tórax, totalmente
relaxado, estava coberto por uma mistura de terra e sangue seco, com
uma miríade de coágulos que não obedecia já à lei da gravidade e que
despontava sobre toda a caixa torácica.
Observei o afundamento do epigastro e, com ele, as pregas do
abdómen, especialmente na sua metade inferior. Mas o que mais me
atraiu a atenção foi a mão direita. As costas e o bordo cubital
encontravam-se praticamente ocultos por uma grande mancha de sangue
coagulado e os quatro dedos longos, com uma acentuada cianose e
dimensões ligeiramente superiores às da esquerda, que conservavam o
referido bloqueamento em forma de garra. Aquela hiper-extensão dos
quatro dedos longos da mão direita, na minha opinião, só podia ser
originada por alguma das terríveis lesões, nos correspondentes músculos
extensores, derivadas da extracção do cravo e da segunda perfuração
do carpo.
O joelho esquerdo continuava dobrado e ambos os cotovelos, rígidos
já, mantinham os braços em flexão.
Quando vi como Nicodemo introduzia as pequenas penas nas fossas
nasais de Jesus compreendi as suas intenções. Se o suposto falecido
conservasse um mínimo de vida, o roçar das penas irritava as mucosas,
excitando assim a respiração. Era, tal como escrevera o rabino A. Levy, o
certificado da morte.
Não é preciso dizer que o Galileu não manifestou reacção alguma.
Cumprido o trâmite, José voltou a assomar-se à entrada do sepulcro,
logo regressando.
- Temos de andar depressa – disse em voz baixa. - Não tardará aí o
sábado!
Abrindo a ânfora, verteu parte da água num pedaço de esponja,
acinzentada e perfumada por centenas de minúsculos orifícios. Nicodemo
postou-se aos pés do Mestre levantando a extremidade inferior
esquerda até onde foi possível. O de Arimateia despiu o manto e
arregaçando a túnica, começou a esfregar e a limpar a face posterior da
coxa e da perna.
Repetiu depois a lavagem da perna direita, concluindo com uma série
de deficientes fricções nas nádegas, testículos e ânus de Jesus.
- Deixemo-lo assim... - disse Nicodemo, cada vez mais nervoso ante
o fim próximo da sexta-feira. O de Arimateia arremessou a esponja para
o chão e começou a desatar os sacos de serapilheira, enquanto o seu
companheiro procurava no fundo do saco. Um dos sacos continha entre
quinze e vinte quilos de um pó granulado, de tom amarelo-ouro, muito
aromático e que bastou abri-lo, para se espalhar uma fragrância deliciosa
por toda a cripta. Longino e eu entreolhámo-nos, agradecendo aquela
súbita mudança no pesado ambiente do túmulo. No segundo saco,
distingui um bojudo jarro de cobre perfeitamente lacrado com um
tampão de pano, que foi aberto. José voltou-se para Nicodemo,
repreendendo-o pela sua lentidão. Por fim, entre as mãos peludas do
antigo membro do Sinédrio, vi aparecer retalhos de pano. Eram umas
tiras estreitas, esgarçadas e que, pela irregularidade dos fios, deviam
ter sido rasgadas à mão e à pressa de algum pano velho. Nicodemo
escolheu uma daquelas vendas (de pouco mais de um metro de
comprimento) e, puxando pelas duas pontas, esticou-a e estabilizou-a a
uns dois palmos acima do saco que albergava o pó dourado. Sem perder
um instante, o de Arimateia enfiou a mão esquerda no saco, trazendo um
punhado daquela espécie de pó, e deixou-o cair pela parte inferior do
punho, cobrindo mais que generosamente a superfície do pano.
O pulso trémulo do ancião fez que boa parte do acíbara ou aloés –
pois de tal se tratava – caísse no saco ou se derramasse no chão rude da
câmara mortuária. Sem muita dissimulação guardei um pedacinho daquele
pó. Uma vez de regresso ao módulo, e submetido à correspondente
análise microscópica, Cavalo de Tróia soube que aquela substância era na
realidade uma das variantes do acíbara: o chamado sucotrino, que deve o
seu nome à ilha de Socotorá, à entrada do golfo Arábico. Apresenta-se
geralmente em blocos de fractura brilhante e como que vítrea,
vermelhos, esverdeados ou amarelados e que submetidos a pulverização,
proporcionam um produto granulado, idêntico ao que tinha em frente dos
olhos. No caso do aloés originário de Socotorá, a sua origem, como
noutros tipos de acíbara – hepático ou das Barbadas, equino, etc. - está
no sumo que se extrai de diferentes espécies botânicas.
Trata-se de plantas grandes e vistosas, da família das Liliáceas
(tribo das Asfodelos), que crescem nas regiões quentes da Ásia, África
e América. Do centro de um conjunto de folhas grandes e carnudas, com
bordos armados de espinhos, sai um talo ou pedúnculo vigoroso que eleva
no topo uma longa espiga de flores tubulosas, geralmente bilabiadas e
vermelhas. Esse sumo é produzido pelas folhas. José levantou-se e,
aproximando-se dos pés do Mestre, tentou juntá-los, levantando-os de
modo a que o seu companheiro pudesse passar a peça de pano,
impregnada de acíbara, por altura dos tornozelos. A seguir, Nicodemo
foi soprando o aloés e, para surpresa minha, o seu particular aroma
tornou-se mais intenso e penetrante. Atou a venda nos artelhos e,
voltando ao saco, repetiu a operação com uma segunda tira. Nesta altura,
antes de atar as mãos do Galileu, José teve a precaução de as depositar
reverente e pudicamente sobre o púbis do cadáver.
A esquerda por cima da direita. Tanto aquela como esta
apresentavam uma roseta de sangue coalhado na parte superior do pulso.
A forma triangular da ferida, com os seus bordos negros e descarnados,
fez-me estremecer. Uma vez atado, tal como indicava a Lei judaica, os
amigos do Rabi inclinaram-se novamente para os saquitéis.
Nicodemo removeu o conteúdo do jarro enquanto José enchia ambas
as mãos com uma apreciável quantidade de acíbara.
Na palma esquerda do primeiro apareceu uma substância pastosa, de
aspecto gomo-resinoso, que cintilou à luz dos archotes como um milhar
de lágrimas avermelhadas. Era mirra. O seu cheiro forte, muito menos
agradável que o do aloés, misturou-se em seguida com o do pó granulado,
sufocando-me.
Nicodemo colocou-se na frente da metade superior do cadáver,
enquanto o velho José fazia o mesmo junto dos membros inferiores de
Jesus de Nazaré. O de Arimateia permaneceu uns segundos com as mãos
firmemente fechadas, aprisionando o pó dourado. Quando as abriu, a
acíbara tinha-se transformado numa massa macia, quase plástica. Ao
mesmo tempo, entregaram-se ambos a pegar nas massas de mirra e
aloés, untando e fechando as brechas e orifícios naturais do corpo.
Nicodemo ocupou-se das fossas nasais, ouvidos e das grandes feridas
das ilhargas.
José dos profundos rasgões dos joelhos, cravos das mãos e pés e da
rede de pequenos orifícios provocados pelas cardas das sandálias dos
soldados (paradoxalmente, aqueles que O tinham defendido depois de
morto...).
Saltava à vista a precipitação daqueles homens. Se tivessem
actuado com menos rapidez, era bem provável que o tamponamento só
tivesse sido feito em último lugar. Uma prova do que digo surgiu quando
José recordou que faltava o recto. Mas os membros inferiores de Jesus
estavam atados e foi precisa a ajuda de Nicodemo que, resmungando,
levantou novamente as pernas do Galileu, possibilitando que o ancião
tamponasse o ânus. Naturalmente, ao levar a cabo esta manobra, grande
parte do pó dourado depositado na faixa que mantinha unidos os pés
escorregou, caindo na mortalha de linho.
Ao terminar, José, enervado pela chegada do crepúsculo, dirigiu-se
novamente à pequena porta. Mas, na sua precipitação, tropeçou na ânfora
e pouco faltou para que caísse de bruços. Uma vez verificada a posição
do Sol, voltou ao banco de pedra, resmungando qualquer coisa em voz
baixa.
Então, Nicodemo – mais sereno que José – tinha desatado do braço
direito um comprido lenço cor de bago de romã, utilizado habitualmente
por aquela gente para enxugar o suor. Torceu-o habilmente, com ele
rodeando a cabeça de Jesus. O lenço fortemente atado no alto da
cabeça levantou o maxilar inferior, fechando assim a boca do Cristo.
Tudo estava consumado naquele frenético e provisório enterro.
Antes de abandonar a cripta, enquanto Nicodemo recolhia e levava para
fora os diversos instrumentos, José pegou na sua bolsa e ao acaso,
retirou duas pequenas moedas de bronze de uns dezasseis milímetros de
diâmetro cada uma.
Cumprindo um velhíssimo costume, o de Arimateia colocou-as sobre
as pálpebras do Nazareno. Mas a grande inflamação do olho esquerdo
fez escorregar o leptom.
Ainda que a cabeça do Mestre tivesse sido escorada – junto das
orelhas – por apoios de mirra, a tremenda deformação da região malar
mantinha o olho enterrado, tornando difícil a colocação da moeda sobre a
pálpebra quase irreconhecível. Mas José insistiu, conseguindo um
equilíbrio precário da moeda sobre os hematomas.
Os archotes, com o seu cintilar, puseram uma chispa de vida nas
superfícies brilhantes dos leptones. Ao inclinar-me, verifiquei que a
cunhagem de ambas era extremamente rudimentar, com uma efígie
descentrada e numerosas imperfeições. As duas provinham certamente
da mesma emissão, a ajuizar pelas inscrições idênticas e lituus ou cajado
central e, principalmente, pelo mesmo erro ortográfico nas letras que
cingiam em círculo a efígie do lituus ou cajado mágico3. A legenda em
questão dizia assim: TlsErIoY C.IcAroc. Ou seja, Tiberiou Kaisaris ou de
Tibério César.
Com curiosidade, peguei na moedinha da pálpebra direita e, no
reverso, descobri a não menos gasta silhueta de um simpulum ou caneca
utilizada nas oferendas rituais das libações pagãs.
No centro, junto desta
* Esta moeda. Semelhante à perutah de Agripa I, era cunhada em
Jerusalém. Encontraram-se exemplares emitidos por Copónio, Valério
Graco, Pôncio Pilatos e António Felix. O seu valor era mínimo: um denário
de prata valia 192 perutah, aproximadamente. (N. Do M.)
2 Ao consultar os principais catálogos mundiais de moedas judaicas
do tempo de Cristo – especialmente o de moedas antigas do Museu
Britânico e o livro de Madden sobre moedas judaicas, publicado em 1864
e reimpresso em 1967 – especialistas de Cavalo de Tróia verificaram que
a maior parte das moedas cunhadas por Pôncio Pilatos (de 26 a 36 da
nossa Era) se distinguiam precisamente por sinais como lituus simpulum,
etc., que, pelo seu carácter pagão, ofendiam os sentimentos religiosos do
povo hebreu. No caso do lituus, ou cajado do áugure ou adivinho é de
supor que esta ousadia de Pilatos – único governador romano que se
atreveu a ferir assim a fibra religiosa da Judeia – encerrasse também
um alto grau de adulação a Tibério, grande entusiasta, como já vimos dos
astrólogos. (N. Do M.)
3 Um dos erros de ortografia mais evidentes era o C” inicial da
palavra CAICAPOC. Natural seria que o responsável pela cunhagem
tivesse cunhado o referido título com o K, grego: ,KAICAPOC” ou
Kaisaris” (de César”). Mas, por outro lado,
escudela ou púcaro, lìa-se o número 16, formado por um jota
(equivalente ao 10 e o chamado episemon, que corresponde ao
6).
Por outras palavras, a data 16 ano do reinado de Tibério César ou 29 da
Era Cristã.
Conhecida a péssima reputação do procurador romano como
cunhador de moedas, não estranhei excessivamente. Outro erro,
consequência do comodismo, dos moedeiros, aparece nos dois últimos C”
de CAICAPOC. Na realidade, a mencionada palavra grega deveria ter
sido escrita com E” (letra sigma).
Provavelmente, os artesãos preferiram truncar o aborrecido sinal,
deixando-o reduzido a metade: <, ou C”. (N. Do M.)
Antes de o cobrir definitivamente com metade da mortalha, o bom
amigo de Jesus ajoelhou-se diante do cadáver e, baixando a cabeça,
guardou uns minutos de silêncio. O Zebedeu imitou-o.
Foram momentos especialmente intensos e emotivos. Compreendi,
com desolação, que aquela era a última vez que veria o corpo sem vida do
Mestre. Não devo ocultar que, ao olhar para os Seus restos destroçados,
me assaltou uma dúvida densa e aflitiva como aquela câmara funerária;
ressuscitaria, tal como tinha anunciado? Aquela catástrofe devastadora
tinha reduzido o Seu corpo à ruína...
Confesso-o com toda a sinceridade. O meu espírito científico
rebelou-se. Ninguém que eu saiba, o conseguira em toda a história da
humanidade. Como iria conseguir aquele Galileu, tão humano como os
outros? Se realmente gozava de poderes tão extraordinários, porque
não tinha evitado tanto suplício e, principalmente, uma morte tão cruel e
humilhante? Nicodemo e quase todos os Seus amigos e discípulos
também não estavam muito certos da ressurreição anunciada do Seu
Mestre, o próprio José duvidava. Um sinal palpável do que disse estava
justamente naquele rápido e provisório embelezamento do cadáver. As
intenções do ancião de Arimateia, do seu companheiro e das mulheres
que esperavam fora da cripta, nada tinham a ver com a suposta
ressurreição do Rabi. Se, na verdade, tivessem acreditado num
acontecimento tão prodigioso, por que razão adiar o definitivo
embalsamamento do corpo de Jesus para depois da festa de sábado? O
mais natural teria sido não fechar sequer as feridas nem cobri-las com
aqueles produtos aromáticos, destinados unicamente a contrariar o
fedor próximo da putrefacção.
Curvado, aturdido e extremamente cansado por tantas emoções e
pela falta de sono, não fui capaz de formular um só pensamento ou uma
fugaz oração perante o Filho do Homem. Com grande desolação da minha
parte descobri que não me lembrava de nenhuma daquelas poucas
orações que aprendi na minha meninice. No entanto, também eu me uni,
simbolicamente, a José de Arimateia quando, levantando-se, se inclinou
para a testa do amigo, nela depositando um terno e prolongado beijo.
Depois, cobriu o corpo de Jesus com a mortalha, pegando nos archotes.
Apressei-me a apanhar o manto e naquele momento, ao baixar-me,
descobri num dos cantos da câmara – meio escondidos na penumbradois
cabazes de vime, cheios de entulho, e uma pequena picareta. José
reparou no que eu observara, desculpando-se pela desordem do lugar.
Segundo comentou, o sepulcro ainda se encontrava em obras...
Pelas dezassete horas e quarenta e cinco minutos, Longino, José e
eu saímos da galeria. O resto foi relativamente fácil.
Enquanto o de Arimateia segurava os archotes, o centurião, os seus
quatro soldados e o hortelão empurraram a rocha circular, pondo-a a
rolar pela profunda ranhura até tapar totalmente a pequena abertura da
fachada. E insisto no relativamente fácil porque, se não estivessem ali
aqueles seis homens, não sei como se arranjariam José e Nicodemo para
deslocar meia tonelada... O rangido sinistro e aterrador da penha, no seu
último roçar pela parede principal do panteão, pôs ponto final a muitas
das esperanças daqueles homens e mulheres. Como era possível supor em
tais momentos que o encerramento do sepulcro não era mais que um
parêntese breve nesta inacreditável e desconcertante história?
Antes de partir para Jerusalém, José agradeceu a decisiva e
inestimável ajuda dos legionários entregando a cada um deles uma
generosa quantia. Julgo não me enganar mas, a partir daquela sextafeira,
a amizade entre Longino e o de Arimateia germinou, firme e
sincera. Ao abandonar o horto, as mulheres, que se tinham mantido
afastadas do sepulcro, tal como especificava a Lei judaica, uniram-se aos
cansados passos de José, manifestando as suas dúvidas quanto à
perfeição com que teria sido feito aquele apressado enterro do Mestre.
Tanto Nicodemo como o ancião coincidiram nas apreciações das hebreias,
autorizando-as a que, mal despontasse domingo, procedessem a um
embalsamamento mais correcto.
Nicodemo, inclusivamente, entregou-lhes o que restava de acibara e
mirra, comentando que, embora eles tentassem estar presentes, não se
esquecessem de aparar o cabelo e a barba de Jesus, de o lavar
esmeradamente e colocar sobre o seu corpo a pena ou a chave, símbolo
do seu celibato, tal como se fazia desde tempos imemoriais. Diante da
Porta dos Peixes, o oficial e os seus homens despediram-se dirigindo-se
novamente para o Gólgota, com a expressa missão de transportar os
corpos dos zelotas para a vala da Geena.
Pelas seis horas daquela tarde, quando nos encontrávamos a poucos
passos da casa de Elias Marcos, três toques de trompa vieram da cúpula
do Templo, anunciando à cidade o final da jornada. A partir daquele
momento, em plena festividade da Páscoa, a actividade em Jerusalém foi
decrescendo. As gentes, alegres e recompostas do susto provocado
pelos tremores de terra, corriam apressadas para os seus lares,
dispostas a festejar e dar boa conta da ceia pascal. Não sei por que
razão, mas aquela excitação e as constantes saudações dos hebreus,
desejando mutuamente paz quando se cruzavam nas apertadas ruelas,
trouxe-me à memória o ambiente festivo e tão especial das tardes que
precediam o Natal e que eu já tinha vivido no meu país.
Curiosamente, salvo Nicodemo, o jovem João e o grupo de mulheres,
que caminhavam cabisbaixos, os restantes peregrinos e habitantes da
Cidade Santa não se mostravam aflitos – nem nada que se parecesse –
pelo que acabava de acontecer no penhasco do Calvário. Estou convencido
de que uma imensa maioria, não conhecia ainda a trágica morte do
profeta da Galileia. E se o sabiam, evidentemente o tinham esquecido ou
não lhe davam cuidado... Este era o triste mas autêntico e real panorama
de Jerusalém a 7 de
Abril do ano 30. Um dia que, durante muito tempo, seria recordado,
não pela crucifixão de Jesus de Nazaré, mas pelo nefasto augúrio do
obscurecimento do Sol e sismo posterior.
Nicodemo e João despediram-se à porta do domicilio de Marcos. O
primeiro, resolvido a reunir-se com os apóstolos que se tinham refugiado
em sua casa e a celebrar com eles a obrigatória Páscoa. O jovem
Zebedeu, por sua vez, desalentado e mergulhado numa tristeza infinita,
dirigiu-se a sua casa, onde o esperava Maria, a mãe do Nazareno. José
aceitou acompanhar as mulheres até à mansão dos Marcos, onde se
encontravam as companheiras que Jude trouxera do patibulo.
A família, desolada pelos acontecimentos, acolheu o ancião e as
hebreias com grande solicitude, rogando-lhes que a pusessem ao
corrente de quanto acontecera a partir da morte do Mestre. O muito
eficaz serviço de mensageiros de David Zebedeu mantivera
pontualmente informados os núcleos principais e amigos e adeptos do
Rabi. Por meio destes correios, Elias Marcos e os restantes apóstolos,
distribuídos em Jerusalém, Betânia e Betfagé, souberam do falecimento
do Galileu entre uma e duas horas depois de verificado o óbito.
Quando o ancião concluiu o seu relato, a mulher de Elias voltou a
encher os nossos copos com aquele vinho quente e reconfortante. E
antes de José tomar a decisão de abandonar os Marcos, pedi-lhe que me
informasse quanto ao que acontecera desde o momento em que o vi
afastar-se para o Templo, em pleno incidente com os juízes e judeus que
tentavam alterar o texto do inri do Nazareno. José olhou-me com
profundo cansaço.
- Para quê recordar essa triste história? - comentou, sem
entusiasmo. Contudo, eu tinha de averiguar o sucedido no interior do
Santuário. Que se passara na reunião do Sinédrio? Que tinha acontecido
a Judas Iscariotes? O filho de Elias Marcos não se encontrava em casa
ou, pelo menos, eu não conseguira vê-lo, e por isso preocupava-me.
Supliquei-lhe com tal ansiedade que o bom José acabou por ceder. - Dos
muros da Torre Antónia – começou o ancião – dirigi-me ao Templo. Tal
como tínhamos falado, no meu coração havia uma suspeita: os cegos
saduceus, leais ao clã de Caifás e do seu sogro, podiam conspirar também
contra os íntimos do Mestre. O seu temor de um levantamento dos
adeptos e amigos de Jesus não se dissipara com a condenação à morte
aprovada por Pilatos.
Muito pelo contrário. Precisamente a partir daquele momento –
segundo eles – a situação tornara-se mais delicada. E da mesma forma
que tinham tentado capturar Lázaro, adoptaram as medidas necessárias
para prender e encarcerar os discípulos. - Medidas? Que medidas? -
interrompi.
- Assim que voltaram ao seu quartel-general no Santuário, os
levitas, cumprindo instruções do sumo sacerdote, formaram uma escolta
e saíram para a herdade de Simão, o Leproso, em Getsémani. Graças à
infinita bondade de Deus – bendito seja o Seu nome! - pouco antes da
partida pude estabelecer contacto com um dos emissários de David
Zebedeu. Ao informá-lo do que o Sinédrio pretendia correu para o monte
das Oliveiras, dando o alerta. Mas, quanto à sorte dos ali acampados não
posso acrescentar grande coisa. Sei apenas que, no seu regresso, o
capitão da guarda do Templo se mostrou furioso: Os adeptos do
impostor, explicou a Caifás, fugiram como cobardes, porém, incendiámos
o seu acampamento... O sumo sacerdote e a maioria dos membros do
Sinédrio tranquilizaram-se considerando que a debandada dos homens do
Nazareno reduzia consideravelmente o perigo de um motim. E Caifás,
reunido com o Conselho na sala das pedras talhadas, continuou o seu
relatório quanto ao sucedido na noite e madrugada até ao momento em
que o nosso Mestre foi introduzido definitivamente no Pretório.
O cúmulo de mentiras, injúrias e arbitrariedades esgrimidas pelo
genro de Anás foi tal que, enjoado, me retirei do tribunal. Mas, quando
me dispunha a sair do Templo, apareceu Judas. Olhámo-nos em silêncio e
o traidor entrou na sala do Sinédrio. Regressei de novo à sede do
Conselho, disposto a destruir aquele miserável. Mas não foi preciso. Ao
verem o Iscariotes, Caifás e os seus homens começaram a murmurar
entre si. Mas ninguém lhe dirigiu a palavra. Segundo parecia, Judas
esperava uma recepção triunfal. Pensou, erradamente, que aquela ralé o
cumularia de honras, enaltecendo o seu grande serviço à nação. Pobre
desgraçado!
A um sinal do sumo sacerdote, um dos servidores dirigiu-se a Judas
e, tocando-lhe nas costas, convidou-o a que o acompanhasse.
Visivelmente confuso e desiludido, o traidor obedeceu e ambos saíram da
sala. Então, o servo, entregando-lhe uma bolsa, disse-lhe:
Judas, fui encarregado de te pagar por teres traído Jesus, o
Galileu. Aqui tens a tua recompensa.
O Iscariotes, pálido, abriu a bolsa e com um sangue frio que ainda
me aterra contou as moedas...
José fez uma pausa e, quando eu dava como certo que me iria dizer
o montante da recompensa, esquivou-se ao assunto. Vi-me obrigado a
interrompê-lo novamente e interessar-me pela soma.
- Trinta moedas... - replicou o ancião com repugnância.
- Denários de prata? - insisti.
José, aborrecido com a minha insistência, esclareceu:
- Não, trinta seqel.
(Esta moeda de prata, conhecida popularmente como siclo de Tiro,
constituía, como já disse, o dinheiro habitual no pagamento dos tributos
do Templo. Era, enfim, uma moeda usada habitualmente pelos sacerdotes
na maior parte das suas transacções comerciais. A sua equivalência,
naquela época, era de uns quatro denários de prata por seqel. Uma soma,
portanto moderada. Tem de se ter em conta que, segundo o testemunho
evangélico de Mateus (29,9), os sacerdotes compraram um campo com o
dinheiro que Judas tinha recusado. Hoje, aqueles cento e vinte denários
de prata poderiam valer cerca de duzentos dólares.)I O de Arimateia
prosseguiu:
- Quando o traidor se certificou do valor da bolsa, lívido e mudo de
estupor lançou-se para a porta do Conselho, disposto – suponho – a
protestar. Mas o porteiro não o deixou passar, proibindo-lhe a entrada.
Derrotado, Judas passou da cólera à sua habitual frieza. Deixou cair a
* Duzentos dólares de 1973, claro. (. de J. J. B.)
bolsa na algibeira, afastando-se da sala das pedras talhadas. A
partir daí não o voltei a ver...
Foi inútil a minha insistência. José de Arimateia, efectivamente,
perdera a pista do traidor. Ignorava a sua sorte e, naturalmente, não
podia conhecer o incidente do Templo e o gesto desesperado do
Iscariotes, arremessando as moedas ao tesouro do Santuário. Eu estava
a par desta última atitude de Judas pela leitura prévia de Mateus, mas,
as coisas tinham acontecido tal como descreve o autor sagrado? Quis a
sorte que pudesse desvendar esta incógnita pouco depois da saída do
ancião da casa de Elias Marcos. Havia dois assuntos que me levavam a
permanecer naquele domicílio e que, sem ter essa intenção, foram um
magnífico pretexto para averiguar outro dado. Cavalo de Tróia tinha-me
confiado a iniludível missão de recuperar o microfone que ficara
camuflado no candeeiro posto na sala onde tivera lugar a última ceia de
Jesus. Uma das normas básicas do Projecto especificava que os
astronautas não podiam deixar na área de exploração nenhum resto,
sinal ou indício da sua passagem. Também não era lícito transportar para
o nosso tempo real nada que pudesse pertencer à referida época. A
recuperação desta peça, por consequência, era obrigatória. Por outro
lado, era imprescindível que eu falasse com o jovem João Marcos. Mas o
adolescente tardava em aparecer. Foi assim que, invocando um
sentimental desejo de ver pela última vez o cenáculo, convenci a mulher
de Elias a que me acompanhasse ao andar de cima.
Quando entrámos na quadra, o meu coração quase parou. A Pantera
tinha desaparecido!
A hebreia notou a minha palidez, confundindo a minha angústia com
uma natural e honrosa emoção ao pisar de novo o recinto onde ceara o
Mestre. Tentanto não me enervar passeei o olhar pela sala, procurando
teimosamente a maldita lanterna. Mas, evidentemente, alguém a tirara
dali.
À beira do colapso, interroguei a dona da casa sobre o paradeiro da
formosa peça. A mulher, desconcertada, explicou-me sem dar
importância ao caso que se partira durante o tremor de terra. Um dos
serventes tinha-a levado a uma oficina de Jerusalém para que fosse
consertada. Agradeci a sua gentileza por me permitir ver o cenáculo e,
voltei ao andar de baixo. Sabia que, a partir do toque das trombetas e
tratando-se de uma festa tão solene como aquela, as actividades
artesanais e de qualquer outro tipo cessavam automaticamente, e só
recomeçariam terminada a Páscoa. Como podia recuperar o microfone se
o regresso ao módulo fora estabelecido para as sete da manhã de
domingo? Como julgo ter insinuado, este contratempo veio juntar-se à
série de razões que aconselhavam Cavalo de Tróia à repetição do grande
salto ao ano 30.
Preocupado com o inesperado incidente, quase não dei pelo passar
do tempo. A família de Marcos, ocupada nos preparativos da ceia
pascal, . pouco notou a minha presença.
Pelas oito da noite, quando o sono começava a vencer-me, alguém me
arrancou aos meus confusos pensamentos. Ao levantar os olhos encontrei
na minha frente rostos bem conhecidos. Um, sorridente – do activo
David Zebedeu – e outro, pelo contrário, triste e angustiado:
O do jovem filho dos meus hospitaleiros anfitriões. A presença de
ambos aliviou-me momentaneamente.
David, com um alegria que não conseguia entender, pôs nas minhas
mãos um manto de linho branco que eu comprara na tarde da quinta-feira
na tinturaria de Malkiyas e do qual, honestamente, me tinha esquecido. -
Considero que estás informado de tudo o que aconteceu – disse por fim o
chefe dos emissários.
Assenti em silêncio.
Ao ver o meu desalento, David abraçou-me carinhosamente,
exclamando com uma convicção que me deixou atónito: - Ressuscitará!
Prometeu...
Perscrutei os olhos cansados daquele hebreu e fiquei maravilhado.
David Zebedeu acreditava realmente no que estava a dizer. Era
assombroso. Tinha na minha frente o único que cria cega e firmemente
na promessa do Mestre. Nem o audacioso João, o Evangelista, nem José
de Arimateia nem qualquer outro discípulo ou amigo de Jesus tinha
manifestado uma fé como a daquele homem... E, paradoxalmente, quase
não é citado nos textos evangélicos...
Estava agora clara a razão da sua alegria.
Antes da sua partida para casa de Nicodemo, para onde transferira
o seu centro de correios, David informou-me das suas últimas peripécias
no acampamento de Getsémani.
Efectivamente, ao receber o aviso de José, desmontou velozmente
as tendas de campanha, transferindo o seu posto de comando para o
ponto mais alto do monte das Oliveiras. Dali, uma vez superada a ameaça
dos levitas, continuou a enviar o mensageiro a todos os pontos onde sabia
que se encontravam os apóstolos, amigos e familiares do Nazareno.
Logo que conheceu por um dos seus agentes a ordem de crucifixão,
outros tantos velozes mensageiros correram para Péla, Betsaida,
Filadelfia, Sídon, Damasco e Alexandria, com a notícia da iminente morte
de Jesus, por ordem do procurador romano.
Durante parte daquela jornada, David não parou de enviar correios a
Jerusalém e a Betânia, informando pontualmente os discípulos e a família
de Jesus de quanto estava a acontecer.
Se não fosse a perícia e valentia deste judeu, a maior parte dos
apóstolos, escondidos e temerosos, teriam tardado algum tempo a
conhecer o triste fim do Mestre. Por último, com o ocaso, David
Zebedeu suspendeu os correios, permitindo aos seus mensageiros que
fossem descansar e celebrar a obrigatória festa pascal. No entanto, a
sua convicção na ressurreição do Rabi era tão firme que, antes de
partirem, lhes comunicou em segredo a obrigação de se concentrarem na
casa de Nicodemo, às primeiras horas da manhã de domingo. A sua
intenção era transmitir a boa nova quando ela se desse.
A minha admiração por aquele homem não teve limites...
E antes que o filho dos Marcos se juntasse à família no banquete da
Páscoa a minha curiosidade viu-se satisfeita ao desvendar, por fim, a
sorte de Iscariotes.
Deu-me muito trabalho persuadir o jovem João Marcos a que
falasse.
Naquelas últimas dez horas, a sua alma de criança consumira-se
entre a dor a raiva e a impotência. Nunca ele esqueceria a ensanguentada
figura do seu ídolo e amigo: Jesus de Nazaré. Como também não poderia
apagar a imagem dos sacerdotes fanáticos e a de um populacho que,
pouco antes aclamara as intervenções lúcidas e corajosas do Mestre no
terreiro dosGentios e que, agora, teria lapidado o Galileu na mesmíssima
fachada do Pretório romano. Tentei serená-lo, recordando-lhe as
palavras que acabava de pronunciar David Zebedeu sobre a ressurreição.
Mas João olhou-me sem compreender. Aquela expressão – e
ressuscitarei ao terceiro dia – ia além do seu entendimento de criança.
Tanto João Marcos como a sua família sabiam que eu tinha
permanecido junto da cruz e, como reconhecimento do que eles
consideravam um gesto de amor e valentia pelo Rabi, o rapaz acabou por
me narrar o que vira e ouvira desde que lhe pedira para seguir Judas. Foi
este o seu entrecortado e lacónico relato:
- Quando o traidor viu como os legionários acabavam de pregar os
pés de Jesus, com a cabeça coberta pelo manto, afastou-se do patíbulo.
Tu viste-o...
Encorajei-o a continuar.
- Então, Judas foi directamente ao Templo. Não lhe consegui ver a
cara, porque ia sempre atrás dele, mas vendo as suas grandes passadas e
os empurrões com que abria caminho no adro do Santuário, diria que
estava furioso.
Caminhou até às portas da Sala do Conselho de Justiça mas, ao
tentar abri-la, o porteiro pôs-se na sua frente. Judas, com uma maldição
que não me atrevo a repetir, esmurrou-o no rosto, derrubando-o e
deixando-o como morto. (A reacção, desde já, estava de acordo com a
violência que, em certos momentos explode nos grandes tímidos. E
Iscariotes era um deles.) -. Abriu a grande porta da sala das pedras
talhadas e, descobrindo-se, entrou no Tribunal. Eu não me atrevi a
passar o limiar da porta. Se alguém me tivesse posto a mão em cima, com
certeza que me açoitavam...
Correspondi com um sorriso de gratidão e João Marcos continuou: -
Só pude ver Caifás e alguns dos saduceus, escribas e fariseus sentados
nos seus bancos de madeira.
Quando o Iscariotes avançou até aos degraus, os juízes
emudeceram. Nos seus rostos havia surpresa. Pelo que se via, não
esperavam o traidor. E Judas, arquejando e num tom que quase me fez
pena disse-lhes: Pequei por ter traído um sangue mocente... Haveis-me
oferecido dinheiro por este serviço – o preço de um escravo – e, com
isso, me insultastes...
. Os sacerdotes, atónitos, pareciam não dar crédito ao que estavam
a ¨ ver. E Judas concluiu assim: ... Arrependo-me do meu acto. Aqui
tendes o vosso dinheiro. Tirou então uma bolsa da faixa e mostrou-a ao
Conselho. Por fim, exclamou com voz imperiosa: ... Quero libertar-me
desta culpa! As gargalhadas não tardaram a encher a grande sala.
Aqueles hipócritas, dando grandes palmadas nos assentos, troçaram e
ridicularizaram-no cruelmente. Um dos que ocupava um lugar perto de
Judas levantou-se e aproximando-se dele convidou-o com a mão a que se
retirasse. Mas antes disse em voz alta: O teu Mestre foi condenado
pelos romanos. Quanto à tua culpa, em que é que isso nos diz respeito?
Trata tu do assunto e vai-te embora! O Iscariotes deu meia volta e de
cabeça baixa afastou-se do Tribunal, enquanto os risos e insultos
começavam novamente.
Quando passou a meu lado, a sua cara meteu-me medo. Levava a
bolsa na mão esquerda e os olhos no chão. Acho que nem sequer me viu.
Com grandes passadas seguiu na direcção do Átrio das Mulheres,
entrando na sala das caixas. Com grande calma pegou num punhado de
moedas e arremessou-as como quem atira uma bola, atirando os
restantes siclos contra os ladrilhos. Quando viu que já não tinha moedas,
atirou a bolsa para o pavimento, espezinhando-a com fúria.
Então, abrindo caminho violentamente entre os atónitos homens que
ali se encontravam, saiu em direcção ao Átrio dos Gentios.
Acho que esta aparentemente insólita atitude de Judas Iscariotes,
livrando-se das trinta moedas de prata, merece um comentário. As
palavras do traidor diante do Tribunal – Aqui tendes o vosso dinheiro e
quero libertar-me desta culpa – não foram uma simples e humana reacção
de arrependimento. Judas sabia, como todos os judeus, que a Lei
protegia os vendedores de algo ou de alguém. A Misná, na sua Ordem
Quinta: Votos de Avaliação (arajin), estabelece, num total de nove
capítulos as disposições em volta dos chamados votos de avaliação, quer
dizer, aqueles pelos quais uma pessoa se compromete a entregar ao
Templo o valor de uma determinada pessoa tal como é determinado no
Levítico (27, 1-8), em relação com a idade e o sexo. Além disso, abarca
uma minuciosa normativa sobre a compra e doação de terras herdadas e
de casas como, também, sobre o seu resgate e os votos de extermínio.
Pois bem, tendo em vista a actuação do Iscariotes, entendo que este
considerou
- ou tentou considerar perante os sinedristas – que a entrega do seu
Mestre entrava plenamente no que poderíamos denominar um venda ou
transacção comercial pelo que, inclusivamente, recebera uma
compensação económica. Neste sentido, pelo menos no que concerne a
bens puramente materiais – casas, campos, etc. - se o vendedor, uma vez
efectuada a operação, não a considerava justa ou, simplesmente, resolvia
voltar atrás, podia recorrer dentro de um prazo de doze meses, a contar
do dia da venda. A Misná, no capítulo Ix (4) do citado artigo sobre Votos
de Avaliação, reza textualmente neste sentido: Se chegou o último dia
dos doze meses e não foi redimida a casa, por exemplo], torna-se
definitivamente sua quer dizer, do comprador) quer a tivesse comprado
ou recebido em oferta, uma vez estar escrito no Levítico (25,30): Em
perpetuidade.
Antigamente o comprador) escondia-se quando chegava o último dia
dos doze meses a fim de que se tornasse definitivamente sua [a casa).
Mas Hilel, o Velho dispôs que o vendedor que pudesse colocar o dinheiro
na câmara do Templo, pudesse arrombar a porta e entrar em casa) e que
o outro pudesse vir quando quisesse a receber o dinheiro.
Por consequência, Judas tinha agido de acordo com a Lei. Não
estava de acordo com a venda de Jesus de Nazaré e fez uso do seu
direito, no próprio dia do pagamento da transacção. E embora o
Iscariotes
soubesse também que no capítulo primeiro (artigo 3) do referido
tema dos Votos se esclarece que o moribundo e o que é conduzido à
morte por sentença de um tribunal judeu, que não admite apelo) não
podem ser objecto de voto nem podem ser avaliados, forçou os seus
direitos ao máximo, acreditando ingenuamente que aquele gesto anularia
a venda.
Tem de se reconhecer, para atenuar a culpa do Iscariotes, que, pelo
menos, esgotou todas as possibilidades jurídicas, em benefício do
Mestre. De pouco serviu, naturalmente, mas creio que é justo esclarecer
este facto, tão pouco contado pelo escritor sagrado. Muitas pessoas
poderão perguntar-se – também eu o fiz – por que razão Judas aceitou
esta venda, se sabia que a sua traição acabaria com o justiçamento do
Nazareno.
Pessoalmente, dado o comportamento do Iscariotes na sala do
Sinédrio e, posteriormente, na do Tesouro, creio que nunca Judas
chegou a pensar que o Mestre fosse condenado à morte. Tinha-O
entregado aos dignitários das castas sacerdotais, convencido de que
estes se limitariam a custodiá-lo, interrogá-lo e, quando muito,
encarcerá-lo e desterrá-lo. Não tento fazer uma extrema defesa do
traidor, mas a sua fria vingança contra o Galileu e o seu movimento terse-
ia visto suficientemente satisfeita com a vergonhosa captura e a
possível dispersão dos discípulos. Porém, os acontecimentos, como
sabemos, seguiram outros rumos.
Do que já não posso estar certo é quanto à razão que mais teria
pesado no coração perturbado do Iscariotes: a iminente morte do Rabi
ou o ridículo a que se viu submetido pelos sacerdotes. Como já referi,
não era o dinheiro que Judas perseguia. A sua obsessão era o
reconhecimento público e as honras prometidas e sonhadas e que,
infelizmente para ele, nunca chegaram. Logicamente, se as suas
maquinações tivessem como base o objectivo final o dinheiro, porque iria
prescindir daquelas trinta moedas de prata? Em todo o caso, tê-las-ia
levado para o túmulo. A luta íntima do traidor naquelas horas deve ter
sido tão aguda que não teve coragem para o julgar nem para julgar a sua
trágica e última decisão...
É curioso, mas, se Jesus não tivesse sido condenado à morte, talvez
Judas tivesse tido êxito na sua tentativa de anulação da venda. A Lei,
pelo menos, previa o prazo de um ano para que o comprador – neste caso,
o Sinédrio – se retractasse e devolvesse a mercadoria. João Marcos,
meio adormecido, concluiu o seu testemunho com uma notícia que
modificava – em parte – o que afirma Mateus no seu evangelho: - Judas
desceu pelo Bairro Baixo. Primeiro, pensei que se dirigia a minha casa ou
a Betânia. Ia com muita pressa. Não cumprimentava ninguém. Saiu da
cidade pela porta da Fonte e, para espanto meu, virou à direita, em
direcção à garganta do Hinnon. Começou a trepar entre os penhascos e
ao chegar a uma das rochas mais altas e pontiagudas tirou o manto e o
cinto.
Eu estava tão assustado que me colei ao chão, a tremer de medo.
Então, vi Judas, à beira do precipício, amarrando uma das ; pontas do
cinto ao ramo de uma pequena figueira que crescia entre as fendas da
rocha. Quando percebi o que queria fazer pus-me de pé, resolvido a
pedir-lhe que não o fizesse. Mas nem sequer tive tempo para abrir a
boca. O Iscariotes deu outro nó em volta do pescoço e, em silêncio,
saltou da rocha...
O rapaz, com uma extrema palidez, tapou a cara com as mãos e
começou a soluçar. Tive de esperar que serenasse. Por fim,
choramingando, concluiu: .. foi horrível, Jasão... Corri para a figueira.
Naquele momento só tive um pensamento: cortar, morder, arranhar o
cinto... Tudo menos deixar que se enforcasse.
Quando cheguei à beira do abismo, o corpo do pobre Judas
balançava no ar, esperneando e girando sobre si mesmo como um zevivon
1... Tinha as mãos agarradas ao pescoço, tentando lutar contra a asfixia,
e os olhos muito abertos, quase fora das órbitas.
Os joelhos tremiam-me e a garganta ficou-me seca, como se tivesse
engolido uma mancheia de areia. Mas, quando me preparava para trepar à
árvore e partir o ramo, o nó soltou-se e Judas caiu no precipício, indo
esmagar-se contra as pedras.
Foi tudo tão rápido que não pude fazer absolutamente nada.
Fiquei ali em cima, como um poste, contemplando o corpo imóvel de
Judas. Depois, nem sequer com força para chorar, regressei à cidade e,
quando tentava voltar ao Gólgota, veio o tremor de terra... Foi tão
grande o meu terror que voltei à Porta da Fonte, fugindo para o
acampamento. Foi ali que David me encontrou...
Ao perguntar-lhe se o corpo de Iscariotes continuava ainda no
fundo do barranco, João Marcos encolheu os ombros. Pelo que parecia,
não falara do caso a ninguém. Era eu o primeiro a saber. Agradeci-lhe a
informação, pedindo-lhe que fosse descansar. - Amanhã, pela hora
primeira, se não vês inconveniente – disse-lhe – quero que me
acompanhes até essa garganta... João Marcos concordou como um
autómato, desaparecendo no pátio onde estava prestes a começar a ceia
pascal.
A versão do rapaz variava ligeiramente a sempre trágica sorte do
traidor. Tinha de confirmar se Judas morrera por enforcamento ou pela
queda. Embora as suas intenções, no fundo, fossem claras – suicidar-se –
quem sabe se a sua morte verdadeira (calculando que tivesse morrido)
teria sido a que sempre conhecemos e aceitámos. E, abusando da
generosidade daquela família, escolhi um dos cantos do andar de baixo,
envolvendo-me no manto.
Ao ficar só estabeleci uma última ligação com o módulo, anunciando
a Eliseu a minha intenção de visitar o Hinnon e, calculando que ainda ali
estivesse, examinar o cadáver de Judas. Pelas vinte e uma horas e trinta
minutos, o sono dissipou a minha fadiga e as minhas angústias. Pareceume
estranho, muito estranho, que Jesus da Nazaré não estivesse vivo e
perto. Sem querer, tinha-me habituado à sua presença majestosa.
* Nos relatos tradicionais da festividade judaica das luminárias ou
Januká (que costuma coincidir com as Natalícias), conta-se que, durante
a ocupação romana no século I estava proibida a reunião de grupos para
estudar a Tora.
Quando um vigia alertava o grupo de estudiosos da proximidade de
legionários, alguém tirava um zevivon ou pequeno dado, com base
pontiaguda e uma asa superior para o pôr a girar. Desta forma
dissimulavam apostando na face do dado que ficaria para cima. Mesmo
actualmente é frequente ver as crianças israelitas brincando com um
destes zevivon durante os dias da Januká. (N. Do M.)
8 DE ABRIL, SÁBADO
Pouco antes do amanhecer, Eliseu arrancou-me de um sono
profundo, que teve pesadelos nos quais, curiosamente, se misturavam as
mais absurdas situações e vìcissitudes, tanto do tempo real em que me
movia como do meu verdadeiro século.
As condições atmosféricas tinham mudado. O dia prometia
serenidade: vento fraco, excelente visibilidade, baixa humidade relativa
e temperatura de dez graus centígrados, em ascensão. Do módulo, os
radares de longo alcance desenhavam com toda a nitidez os perfis do
árido Negev. João Marcos não tardou em se apresentar. Trazia uma
grande caneca de leite de cabra e algum pão, fabricado durante a manhã
de sexta-feira. O meu esgotamento tinha desaparecido e praticamente
devorei o frugal desejejum.
Com a primeira claridade da manhã e o som das trombetas do
Santuário, anunciando o novo dia o meu jovem amigo e eu atravessámos
as ruas desertas de Jerusalém. O barulho habitual da moenda tinha
desaparecido. Ninguém parecia ter pressa de se levantar. Por um lado
alegrei-me.
Se o corpo de Judas continuasse entre as penhas, preferia que
ninguém nos visse junto dele. Assim era muito mais seguro. Uma vez fora
de muralhas, o rapaz guiou-me para ocidente, seguindo quase
paralelamente ao muro sul da cidade. A escassos metros da Porta da
Fonte, por onde tínhamos saído, o terreno modificou-se. Entrámos
naquilo a que os Judeus chamavam a Geena ou inferno. Suponho que pelo
acidentado da depressão e pelas numerosas fogueiras que se levantavam
aqui e além, numa permanente queima de lixo. Efectivamente à medida
que caminhávamos, observei como aquele sítio tétrico tinha sido
convertido numa imensa esterqueira, por onde vagueavam uma
quantidade de cães vadios e ratazanas grandes como lebres.
João Marcos parou. Observou a paisagem e, poucos segundos depois,
reatou a marcha. Cinco minutos de caminho e a Geena convertia-se num
labirinto de penhascos, barrancos estéreis e pequenos mas agudos
precipícios. De acordo com as cotas dos nossos mapas, o extremo sul de
Jerusalém oscilava entre os 612 e 630 metros, nas proximidades da
Porta da Fonte e, os 685, nas cercanias da Porta dos Essénios. Entre
ambos os pontos o perfil do terreno sofria bruscas variações, com
desníveis de vinte, trinta e mesmo quarenta metros.
Ao percorrer aquele inferno, pensei que se o Iscariotes tinha caído
nalgum daqueles barrancos, o mais provável é que se tivesse
despedaçado nas arestas cortantes das penhas. Por fim, João Marcos
parou. Encontrávamo-nos a uns duzentos metros em linha recta da
muralha e num daqueles calvos promontórios.
Apontou-me uma figueira nova nascida milagrosamente entre aà
anfractuosidades e fendas da rocha, que, tal como me tinha explicado,
crescia com metade da ramagem para ocidente e por cima do abismo.
Lentamente, aproximei-me da beira do precipício. O rapaz, inquieto e
trémulo agarrou-se ao meu braço. De começo, nada distingui de anormal.
O barranco caía quase na vertical, de uns trinta e cinco ou quarenta
metros.
Mas a meia claridade da madrugada era suficiente para ver lá em
baixo com nitidez.
Depois de uns dois minutos de nervosa busca João Marcos deu um
grito que por pouco não me fez perder o equilíbrio.
- Ali!... Olha, está ali!
Segui a direcção do dedo e, com efeito, confundido entre as pedras,
avistei um vulto leitoso, imóvel e que, do meu ponto de observação,
parecia um homem envolvido em qualquer coisa semelhante a uma túnica
ou manta branca.
Ordenei a João Marcos que não saísse dali e escolhi um dos atalhos
para começar a descida.
Depois de não poucas voltas, escorregadias e sobressaltos entre as
paredes resvaladiças do precipício, vi-me por fim no fundo do barranco,
a pouco mais de quatro metros do corpo.
Observei-o sem mover um só músculo. Parecia desmaiado ou morto.
Evidentemente, era um homem, envolto numa túnica cor de marfim,
semelhante à que Judas usava. Estava de barriga para baixo, com a
perna esquerda violentamente flectida por baixo do abdómen.
Quando, finalmente, me decidi a avançar para ele, uma coisa negra,
grande e peluda, como um coelho saltou por baixo dele, fugindo para as
sarças próximas. Parei. Um calafrio correu-me pelas entranhas. As
ratazanas tinham começado a devorá-lo...
Apressei-me a voltá-lo e o rosto imberbe, pálido e afilado do
Iscariotes apareceu na minha frente. Tinha os olhos abertos com a
expressão do horror nas pupilas. Um dos globos oculares tinha
desaparecido, com as investidas dos roedores.
Por mais que examinasse o corpo não notei sinal de sangue.
Só um delgadíssimo fio, já seco, vinha da comissura direita da boca.
Tinha o cinto atado ao pescoço. Ao observá-lo, vi que não estava partido
ou esgarçado. Simplesmente, como dissera João Marcos, tinha-se
desatado. Apertava a garganta de Judas mas, para surpresa minha a
conjuntiva ou membrana mucosa que forra as pálpebras e a zona anterior
dos olhos não apresentava as características manchas vermelhas dos
enforcados. Afastei o cabelo negro e fino mas também não observei
aquele tipo de equimose atrás das orelhas.
A língua não estava presa entre os dentes nem exibia o habitual tom
de azul, sinais característicos entre os enforcados.
Se realmente se tivesse registado a obstrução completa de toda a
irrigação e circulação cerebral, a cara de Judas estaria embotada. No
entanto, o seu aspecto – apesar das quinze horas que possivelmente
teriam decorrido desde o óbito
- era quase normal. As pupilas que primeiro se haviam dilatado,
tinham começado a diminuir, entrando na fase de miose (possivelmente, a
partir das nove da noite de sexta-feira). Apresentava também a lividez
própria do estado post-mortem, mas, insisto, as veias jugulares e
artérias carótidas não apresentavam sinais de estrangulamento,
habituais nos enforcados 1.
Perante aquele conjunto de provas negativas, a minha impressão
pessoal foi a seguinte: Judas Iscariotes não tinha morrido por
enforcamento, mas de queda.
* Em Medicina legal está perfeitamente determinado que. Para se
dar a obstrução total das jugulares. São precisos uns cinco quilojoules.
No caso das carótidas, entre dez a quinze quilojoules (N. Do M.)
Esta teoria viu-se apoiada com a palpação dos membros e do resto
do corpo. As pernas e um dos braços tinham sofrido fracturas
quádruplas e os derramamentos internos eram generalizados.
Mas o que acabou por me convencer foi o som do crânio, ao agitá-lo
nas mãos. Aquele som – parecido com o de um saco de nozes – era típico
das pessoas que sofreram uma queda de grande altura. Embora fosse
verosímil que o traidor, no seu desespero, não desse convenientemente o
nó do cinto, caindo antes de morrer por enforcamento nunca pude
compreender como aquele homem – geralmente meticuloso – pôde
cometer tal erro.
Voltei a deixar o corpo sobre as pedras e, depois de lhe fechar os
olhos (ou o que deles restava), permaneci uns minutos de pé e em silêncio
contemplando o desgraçado.
Perguntei-me se aquele Iscariotes ou homem de Carioth, filho de
Simão, um homem ilustre e endinheirado da Judeia, discípulo de João
Baptista e atormentado investigador da Verdade, merecia realmente um
fim tão desolador...
Regressei para junto do meu amigo, confirmando-lhe a morte de
Judas. João Marcos tinha recuperado o manto do renegado e,
lentamente, em silêncio, voltámos a Jerusalém.
Uma vez na cidade, depois de lhe pedir que me levasse até casa de
João Zebedeu, solicitei-lhe que se pusesse em contacto com a família de
Judas, a fim de ir levantar os seus restos mortais antes que as
ratazanas e os animais da Geena acabassem por desfigurá-lo.
Com grande diligência, como era seu hábito, o filho dos Marcos
cumpriu o meu novo pedido.
João Zebedeu não me esperava. Mas recebeu-me com um abraço
caloroso. Dispunha de uma casinha de um só piso, muito humilde e quase
vazia, na zona norte da cidade. Num bairro que, então, começava a
crescer e era conhecido por Bèzatha.
Evitei um caldeiro em que ardiam alguns pequenos troncos e que
estava destinado geralmente a afugentar os insectos e mosquitos, e
atravessei o umbral da porta. Dentro da única dependência, muito mal
iluminada por uma candeia de azeite, logo distingui quatro mulheres.
Eram Maria, mãe de Jesus, sua irmã, Miriam, Salomé, mãe de João, e a
jovem Ruth, irmã do Nazareno.
Não havia cadeiras nem bancos e o Zebedeu convidou-me a que me
sentasse numa das esteiras estendidas sobre a terra batida que era o
chão da casa. Estranhei a singular austeridade daquela morada, com um
telhado leve à base de ramadas cobertas de terra e barro e sem uma só
janela ou fresta. Soube depois que aquela não era a residência habitual
dos Zebedeus. Esta situava-se ao norte, na Galileia.
João não me apresentou às mulheres. Não era costume, mas, além
disso, também não era preciso. Todas as hebreias se mostravam
especialmente solícitas com Maria. Uma delas acabava de lhe oferecer
uma escudela de madeira com leite. Mas a mãe do Galileu não o queria
beber. Quando os meus olhos se foram habituando à penumbra,
verifiquei que tinha a cabeça descoberta. O cabelo era muito mais negro
do que pensara.
Penteava-se com risca ao meio, recolhendo na nuca uma sEdosa e
negríssima massa de cabelo. As olheiras, muito mais acentuadas que no
momento do encontro com o Crucificado reflectiam uma noite sem
dormir e sofrimento. Estava sentada numa daquelas grosseiras esteiras
de palma e de junco, com o corpo e a cabeça encostados à parede de
adobe, olhos semicerrados. De vez em quando, um suspiro profundo
agitava todo o seu ser e os bonitos olhos rasgados entreabriam-se.
Por um momento, ao aperceber-me da amargura resignada daquela
hebreia, senti-me desfalecer. Não tinha coragem para a interrogar. As
forças e o ânimo pareciam fugir-me, diminuído como me sentia perante a
angústia de uma mãe que acabava de perder o filho primogénito.
Como podia iniciar o diálogo? Com que coragem ia enfrentar aquela
mulher, destruída pela dor, para lhe pedir que me falasse de seu Filho,
da sua infância e da sua não menos ignorada juventude?
Foi João quem, sem querer, me facilitou tão árduo trabalho,
previsto por Cavalo de Tróia, como um dos últimos objectivos da minha
missão. Depois de sacudir um velho e enegrecido couro de cabra, o
discípulo encheu outra escudela de madeira com um leite espesso e
ácido, pedindo-me que aceitasse o humilde alimento. - Não te incomodes
com o cheiro – disse-me. - Sacia melhor a sede...
Não quis melindrá-lo e bebi a escudela pestilenta, esforçando-me
por fechar os olhos e reter a respiração.
Quando acabei, o Zebedeu recebeu o recipiente e apontando o
manto de linho branco que eu trazia suspenso do cinto, exclamou: - Vejo
que não esqueceste o teu presente...
Baixei os olhos e compreendi. E embora aquela espécie de xale
tivesse sido comprado para Marta, a irmã de Lázaro, a genial sugestão
do discípulo alterou os meus planos.
Efectivamente: aquele podia ser o meio ideal para ganhar a estima e
confiança de Maria... Como não me ocorrera aquilo antes?
Tomei-o nas mãos e, levantando-me, aproximei-me do canto onde
descansava. Ajoelhei-me na sua frente e estendendo para ela o rico
presente roguei-lhe que se dignasse aceitá-lo.
Maria e as mulheres que a rodeavam olharam-me e entreolharam-se.
Mas, por fim, a mãe do Rabi, afastando-se da parede, pegou no manto e
envolveu-me no seu olhar profundo. Um olhar que me lembrou o do Filho.
João, atento e solícito, aproximou a candeia de barro, para que
Maria pudesse contemplar melhor a finíssima textura do linho. Então à
luz da lanterna de azeite, os olhos daquela mulher surgiram na minha
frente em toda a sua formosura: eram verdes!
Depois de acariciar o tecido, Maria levantou de novo os seus olhos
para mim e mostrando-me uma dentadura branca e perfeita, exclamou: -
Obrigado, filho!
Era a primeira vez que escutava aquela voz forte e, no entanto,
quente e firme. A partir daquele instante – oito da manhã,
aproximadamente – e depois de João Zebedeu lhe explicar quem eu era e
porque estava ali, Maria acedeu com agrado a falar-me de Jesus dos
seus primeiros anos em Nazaré, das viagens pelo Mediterrâneo e, da
morte em acidente de trabalho de seu esposo, o construtor e carpinteiro
chamado José.
Tentando ordenar as ideias e os milhares de temas que se agitavam
na minha mente, comecei por lhe fazer perguntas sobre o nascimento do
Gigante 1..
Pelas onze horas e trinta minutos a nossa conversa viu-se
interrompida com a chegada de Jude e José de Arimateia.
Traziam as últimas notícias.
Uma vez terminada a ceia da Páscoa, os homens do Sinédrio tinham
voltado a reunir-se desta vez em casa de Caifás.
Segundo o ancião, o único tema discutido foi a profecia feita por
Jesus de ressuscitar ao terceiro dia. Os sacerdotes, em especial os
saduceus, não concediam grande crédito às palavras do Justiçado. Mas
os intriguistas membros do Sinédrio consideraram que o mais prudente
seria vigiar o sepulcro.
Segundo afirmaram, prosseguiu José podia dar-se o caso de os
amigos e crentes em Jesus roubarem o cadáver, propagando depois a
mentira da Sua ressurreição. Com o fim de abortar qualquer tentativa de
roubo, o sumo sacerdote nomeou uma comissão, encarregue de visitar o
procurador romano à primeira hora da manhã de sábado. Pois bem, aquele
grupo de sacerdotes acabava de se encontrar com Pilatos. Avisado por
um dos seus confidentes, José apressara-se a ir ao Templo. Ali, depois
de não poucas troças e ferinas insinuações por parte desta comissão –
conhecedora da sua ligação ao Nazareno – o proprietário do horto onde o
Mestre fora sepultado conheceu finalmente os pormenores da conversa
entre os sacerdotes e Pilatos.
- Senhor – disseram os juízes ao governador -, recordamos-te que
Jesus de Nazaré, esse falsário, disse em vida: Passados três dias
ressuscitarei. Por conseguinte, apresentamo-nos perante ti para te
rogar que dês as instruções necessárias para que o sepulcro seja
devidamente protegido contra os Seus discípulos, enquanto não se
passarem estes três dias. Tememos que os Seus fiéis tentem roubar o
corpo durante a noite e, a seguir, proclamem ao povo que ressuscitou de
entre os mortos.
Se o consentíssemos seria um erro maior do que se O tivéssemos
deixado com vida.
E Pilatos, depois de escutar este pedido, respondeu:
- Dar-vos-ei uma escolta de dez soldados. Vão e organizem a guarda
em frente do sepulcro.
Prosseguiu o de Arimateia:
Aquela escolta romana e mais dez levitas, recrutados numa das
secções semanais do Templo encontram-se já na frente do sepulcro, tal
como pude verificar antes de vos vir procurar.
Aquelas bestas hipócritas que rodeiam e adulam Caifás não tiveram
o menor escrúpulo em violar o sagrado sábado e invadiram a minha
propriedade. Quando tentei descer à cripta, alguns dos guardas do
Santuário cortaram-me o caminho, obrigando-me a sair do horto. É
indigno!
* 1 O extenso relatório do Major sobre esta apaixonante conversa
com a mãe de Jesus de Nazaré, em que aparecem uma infinidade de
dados novos e fascinantes sobre a infância, juventude e maturidade do
Galileu, foi retirado do diário e incluído – devido à sua extensão – num
próximo volume.
Lamento, sinceramente, deixar o leitor com água na boca...
(Nota de J. J. B.)
- Então – insinuei -, ninguém pode aproximar-se do sepulcro.
- Ninguém, a não ser a guarnição de Antónia ou o corpo de levitas.
Os selvagens retiraram atéa lousa que tapava o poço do hortelão,
encostando-a à rocha que fecha a câmara sepulcral. Depois, colocaram o
selo de Pilatos, para que ninguém as possa remover.
A notícia deixou-me francamente preocupado. Precisamente, os
últimos minutos da minha missão deviam decorrer o mais perto possível
do sepulcro. Cavalo de Tróia tinha especial interesse, como é natural, em
averiguar se a ressurreição do Mestre da Galileia fora ou não uma
realidade objectiva ou, pelo contrário, uma lenda. Como podia levar a
cabo a minha observação se o caminho para o sepulcro estava impedido
pelas vinte sentinelas?
Ainda me restavam muitas horas e preferi não me atormentar com
tal dilema. De alguma coisa me lembraria...
A mudança de tema na conversa de José ajudou-me a esquecer
temporariamente o assunto. Com grande surpresa minha uma das
grandes preocupações do ancião era compor o epitáfio que devia ser
gravado na fachada rochosa do sepulcro, onde repousava o corpo do
Mestre. José trazia, até, algumas frases escritas que deu a ler a Jude e
a João.
Em atitude grave, os três homens discutiram quanto ao possível
texto, chegando à conclusão de que a última era talvez a mais adequada.
Pedi a João que me deixasse ver o pedaço de pergaminho e, em aramaico,
li o seguinte: Este é Jesus, o Messias
Não há aqui ouro nem prata mas sim os Seus ossos.
Maldito seja o homem que o abra.
Eu sabia que o saque de túmulos estava na ordem do dia em Israel,
mas não podia aceitar a falta de fé daqueles íntimos de Jesus de Nazaré
que não hesitavam em qualificar o Galileu como Messias, renunciando por
completo à ideia da Sua ressurreição. Era tão triste quanto anacrónico...
Uma vez decidido o epitáfio, José mostrou a frase escolhida à mãe de
Jesus. Mas Maria negou-se a lê-la. E pondo os olhos em cada um dos
presentes, censurou-lhes a falta de confiança com um comentário
lapidar: - O Messias escreverá o seu epitáfio com uma só palavra:
RessusCitOu. Um pesado silêncio caiu sobre todos durante alguns
minutos. O de Arimateia moveu a cabeça negativamente e Jude e João
limitaram-se a baixar o rosto, manifestando assim as suas dúvidas.
Mas a senhora não insistiu. Novamente se encostou à parede e
semicerrou os olhos. O de Arimateia rompeu a embaraçosa situação,
tentando convencer-nos e convencer-se de que não devíamos acalentar
falsas ilusões... José de Arimateia comentou:
- A notícia da promessa da Sua ressurreição acabou por invadir as
ruas e Jerusalém inteira fala do caso. Se o Mestre não cumpre o que
prometeu, em que situação ficarão os Seus discípulos e Ele próprio?
Infelizmente, aquela atitude, própria de um homem inteligente e
com um grande bom senso, era compartilhada pela quase totalidade dos
apóstolos, escondidos desde a noite de quinta-feira em diferentes casas
de Jerusalém e Betânia, mortos de medo e sem a menor esperança
quanto ao seu futuro.
Se aqueles rudes galileus tivessem a fé de David Zebedeu, para dar
um exemplo, as coisas teriam sido muito diferentes...
Ainda que com o risco de me repetir, creio ser de extrema
importância salientar esta ingrata mas muito humana disposição dos
apóstolos e adeptos do Filho do Homem em relação ao tema da
ressurreição. Estão enganados os que possam pensar que os discípulos
esperavam ansiosos pelo amanhecer do terceiro dia.
Ninguém em seu são juízo podia aceitar que um cadáver, trinta e
seis horas após o falecimento, fosse capaz de se levantar e de viver.
Mas o surpreendente Rabi nunca falava em vão...
Meia hora antes do ocaso – pelas seis – Jude e sua irmã Ruth
puseram-se a caminho, acompanhando sua mãe, à residência de Lázaro,
em Betânia. João, obedecendo à recomendação feita por André, acorreu
a casa de Elias Marcos, onde se marcara uma reunião de urgência de
todos os discípulos e fiéis de Jesus que se encontrassem na Cidade
Santa. Ofereci-me para acompanhar a família do Nazareno e, desta
forma, pude ampliar os meus conhecimentos sobre a vida de Jesus. Pelas
dezanove horas e trinta minutos, as irmãs do Mestre receberam-nos no
seu lar, manifestando-nos muitas atenções.
Mas a noite chegava e, depois de me despedir dos meus novos
amigos, agradeci a Marta e a Maria a sua generosa hospitalidade,
anunciando-lhes que ia fazer uma longa viagem e que, quase com toda a
certeza, não tardaria em regressar.
Aquela mentira piedosa, que talvez tenha aliviado o aflito coração
de Marta, acabaria por ser realidade. Uma realidade que foi ao encontro
das aspirações deste cada vez menos incrédulo e céptico oficial da Força
Aérea norte-americana.
A irmã mais velha de Lázaro, com os olhos inundados de lágrimas,
confiou-me em segredo que seu irmão tivera de se refugiar em Filadélfia
e que elas, logo que pudessem vender as suas terras e bens, seguiriam os
passos dele. Eu conhecia a primeira parte da informação, mas – estúpido
que fui! - naquele instante, enquanto me despedia, não soube adivinhar o
que verdadeiramente encerrava a sua confissão... Pouco antes da meianoite,
preocupado com o tardio da hora e em encontrar alguma maneira
que me permitisse observar a entrada do sepulcro com o máximo de
clareza e segurança, iniciei a ascensão do monte das Oliveiras. Iria
realmente acontecer o grande feito? Teria realmente a grandiosa
oportunidade de verificar com os meus próprios olhos o anunciado
prodígio da ressurreição?
9 DE ABRIL, DOMINGO
Pela uma da madrugada, sem ar nos pulmões e escorrendo suor por
todo o corpo, avistei por fim a cerca de madeira da herdade de José de
Arimateia. Tudo se encontrava em silêncio. Solitário. Caminhei
nervosamente para cima e para baixo da cerca, pensando nalguma
maneira que me conduzisse são e salvo ao interior do horto. Mas o
cérebro, com toda aquela pressa, negava-se a trabalhar. Eliseu, à minha
passagem pelo cume do monte das Oliveiras, tinha-me recordado a
imperiosa necessidade de contar com a minha presença antes das cinco
horas.
Os preparativos para o regresso exigiam um mínimo de verificações
e a definitiva regularização do computador. Penso que lhe prometi voltar
muito antes daquela hora. Não me lembro bem. A excitação ia tomando
conta de mim, à medida que corria ladeira abaixo, em direcção à zona
norte da cidade.
Agora, com a missão quase concluída, sentia-me incapaz de coroar
com êxito o que, sem dúvida, podia ser a fase decisiva de todo o
Projecto.
Inspirei profundamente e, sem mais demoras, saltei para dentro da
propriedade. Podia ter aberto a cancela mas pensei melhor. Os gonzos
ferrugentos podiam denunciar-me.
Uma vez entre as árvores de fruto permaneci uns minutos
acocorado, atento ao menor ruído. Tudo continuava calmo. E, a mim
mesmo me encorajando, arrastei-me pelo seco terreno argiloso,
apoiando-me, a cada lanço, nos antebraços e cotovelos. Tinha saltado à
esquerda da porta, com uma intenção: tentar alcançar a parte posterior
da casinha do hortelão. Uma vez lá, se os guardas não me descobrissem
muito antes, logo se veria...
Fui fazendo pequenas pausas, escondendo-me atrás dos fracos
troncos das árvores de fruto e tentando penetrar no pequeno bosque
com os olhos. A lua, praticamente cheia, irradiava uma claridade que,
aqueles decisivos minutos, podia trair-me.
Uns metros mais, disse para comigo, estou quase a conseguir.
Arquejando com a túnica avermelhada pelo barro escondi-me, por
fim, atrás do muro de pedra do poço, situado a uma dezena de passos da
casa do jardineiro. Assomei lentamente a cabeça por cima do poço e
verifiquei com alívio que a porta se encontrava fechada. Dentro não
havia luz alguma e a chaminé estava inactiva. Talvez os soldados o
tenham obrigado a largar a casa, pensei, e naquele instante uma dúvida
mortal me secou a garganta. E se tivesse chegado demasiado tarde? E se
a ressurreição já se tivesse dado?
O único indício neste sentido aparece no texto evangélico de
Mateus (28, 1-8). Se o autor sagrado tinha razão e o prodígio devia
acontecer ao amanhecer do primeiro dia – quer dizer, de domingo – tudo
estava perdido. O orto ou aparecimento do limbo superior do Sol no
horizonte fora estabelecido pelo Pai Natal com uma precisão
matemática: dada a latitude aproximada de Jerusalém – 32 graus norte –
esse instante ocorreria pelas cinco horas e quarenta e dois minutos. O
ocaso, como já referi na devida altura, registar-se-ia,
consequentemente, pelas dezoito horas e vinte e dois minutos.
Os planos do general Curtiss, pelo menos neste sentido, teriam
falhado. O meu regresso ao berço, como mencionei anteriormente, tinha
de se dar, o mais tardar, pelas cinco dessa madrugada.
Mas um inesperado acontecimento me arrancou a estas lucubrações,
fazendo-me tremer dos pés à cabeça. De repente, os cães de José de
Arimateia começaram a ladrar furiosamente.
Não tinha contado com aquele novo problema! Colei-me à parede do
poço, tentando adivinhar a posição dos cães. Não tardaria a descobri-lo.
Dois ou três minutos depois senti nas minhas costas o rosnar dos
animais. Tinham-me localizado, permanecendo a dois ou três metros, com
as fauces abertas e ameaçadoras. Voltei-me, disposto a bater-lhes e a
pô-los fora de combate se tanto fosse preciso. Na realidade, tratava-se
de dois pequenos animais e pensei que não seria muito difícil amedrontálos
ou bater-lhes com a vara de Moisés. O que mais me preocupava era
que a escolta romana ou levítica pudesse aparecer e descobrir-me.
Preparei-me e, pondo-me de pé, decidi afugentá-los. Mas o sangue
nas artérias pareceu-me ter gelado: uma mão rude e pesada caiu-me no
ombro direito...
Ao voltar-me, quando considerava que tudo estava perdido,
encontrei na minha frente a imensa silhueta do hortelão! Antes que
pudesse dar-lhe uma explicação, levou o indicador aos lábios, pedindo-me
para manter silêncio. Logo a seguir, fez-me sinal para que o
acompanhasse. Surpreendido, obedeci como um autómato. Os cães, ao
verem o inquilino da casa, ficaram em silêncio, seguindo-nos docilmente
até dentro da residência. Uma vez ali, o hortelão soube das minhas
intenções.
Tinha-me reconhecido e, como adepto dos ensinamentos do Mestre,
mostrou-se contente ante a minha suposta fé, prometendo ajudar-me a
encontrar o sítio indicado e satisfazer assim o meu aparentemente
insólito e louco desejo. Muito devagar, medindo cada passo, aquele
homem rodeou a casa, entrando num pequeno vinhedo a ocidente da
cripta e que eu vira fugazmente durante a minha primeira visita ao
horto. Próximo do promontório onde fora sepultado o corpo do Nazareno
levantava-se uma espécie de enorme caixote, de uns dois metros de
altura. Ele escondeu-se atrás de um dos muros de tábuas do misterioso
cubo e eu fiz o mesmo. - Daqui poderás observar sem perigo...
Abriu depois o pequeno alçapão existente na base daquele lado do
caixote, fazendo-me sinal para que me abaixasse e entrasse. Sem saber
o que me esperava, pus-me de joelhos, e entrei. Na minha precipitação
esqueci a vara de Moisés no solo. Mas quando quis recuar, o hortelão
baixara o alçapão.
Empurrei mas... estava fechada por fora! Desesperado, escutei os
passos do jardineiro, afastando-se em direcção à casa.
Que podia fazer? Se gritasse, pedindo a presença do guarda, os
soldados ouviriam. Além disso – pensei com descontrolado
nervosismocomo vou sair daqui? Sons de asas esvoaçando reconduziramme
ao presente. Levantei o rosto, tentando identificar aqueles sons e, ao
levantar-me as trevas do caixote converteram-se num bombardeamento
de pequenos corpos brancos, chocando entre si, contra a minha cabeça e
contra as paredes do cubículo. Instintivamente, defendi-me com ambos
os braços. Mas o aterrador e aterrado ir e vir daqueles seres continuou
pelo espaço de alguns minutos. Acocorei-me novamente e, pouco a pouco,
tudo foi serenando.
O chão, de terra, estava atapetado com penas. Ao examiná-las,
compreendi: estava num pombal! Apesar do susto, não pude evitar uma
gargalhada abafada. O bom hortelão tinha-me metido num pombal...
Para dizer a verdade, durante mais de meia hora, a minha
preparação de anos como astronauta, os meus estudos, investigações e
aprendizagem para tão importante projecto, de nada me serviram.
Simplesmente, o general Curtiss não tinha previsto aquela ridícula
situação e, naturalmente, eu não tinha a menor ideia de como serenar
trinta pombos, certamente assustados com a brusca entrada de um
estranho em sua casa.
Se não conseguisse tranquilizá-los seria muito difícil espreitar pela
rede metálica existente na parte superior do caixote.
Duas vezes tentei, mas o resultado foi igualmente caótico.
Apesar dos meus suaves assobios, ternas palavras e meus gestos
apaziguadores, as inquietas aves entraram em alvoroço em ambas as
ocasiões.
Rendido, deixei-me cair no fundo do pombal. Cheguei a pensar em
matá-los. Mas só a ideia me repugnou. Durante uns minutos com a cabeça
pousada nos joelhos, tentei lembrar quanto sabia ou tinha visto
relacionado com aqueles animais. No escasso caudal de recordações veiome
à memória a figura de meu avô, velho caçador de patos nas lagoas de
Baton Rouge, na Luisiana.
Relembrei algumas alvoradas na sua companhia durante as minhas
saudosas férias da juventude nas margens do lago Pontchartrain.
Lembrei as garças e – céus – de repente, como um milagre, no meu
cérebro surgiu a cara de meu avô, com um raminho entre os dentes,
dando estalos com as mandíbulas e movendo a cabeça para cima e para
baixo, numa imitação das garças no cio. Aquela cena, que sempre me
divertira, podia ser a solução...
Procurei mas não encontrei um só ramo. Sem desanimar, peguei na
pena mais comprida que havia no chão e, metendo-a entre os dentes,
comecei a oscilar a cabeça umas oito ou dez vezes por minuto. Depois,
com uma lentidão que me pareceu desesperante fui-me levantando em
direcção aos poleiros e aos ninhos, tentando emitir qualquer coisa
parecida com um arrulho. A meio caminho parei, observando-os, sem
deixar de mover a cabeça. Aquele velho sistema para atrair a atenção
das garças-fêmeas na América parecia ser bom. Alguns esvoaçaram
inquietos mas a maioria continuou impassível. (Ignoro se absortos ou
surpreendidos – ou ambas as coisas ao mesmo tempo - com aquele pobre
estúpido que pretendia fazer-se passar por mais um pombo.) Dez ou
quinze minutos depois, Cavalo de Tróia ficava em dívida com o meu
desaparecido e imaginativo avô: os pombos, tranquilos, acabaram por me
aceitar ou me esquecer. (Porque este pormenor nunca ficou muito
claro...) Sem deixar de mexer a cabeça, com a ponta da pena entre os
dentes, assomei à rede de metal.
A minha posição, tal como dissera o hortelão, era privilegiada.
Encontrava-me a uns oito ou dez metros do final do estreito caminho que
conduzia às escadas do sepulcro. A Lua iluminava muito bem a parte
superior da penha, bem como os soldados que estavam de guarda mesmo
à entrada da galeria ou antessala da cripta. Tinham acendido uma
fogueira, formando dois grupos perfeitamente diferenciados e
distanciados entre si uns três ou quatro metros. Pouco a pouco, fui
reconhecendo as sentinelas. Os que se reuniam em volta do fogo eram
legionários romanos. Porém, não vi oficial algum. O segundo pelotão,
também de dez homens, era constituído por levitas. Era curioso: durante
mais de meia hora, nenhum dos guardas do Templo se dirigiu aos seus
companheiros de serviço. Ou muito me enganava ou se ignoravam
mutuamente. Aquela situação era perfeitamente verosímil, tendo em
conta o ódio recíproco de ambos os povos...
Apesar da minha proximidade, a boca da câmara funerária não era
visível do improvisado observatório. Estando abaixo do nível do terreno,
era praticamente impossível avistá-la.
Quando muito, e levantando-me até ao tecto do pombal, conseguia
ver um troço da zona superior da fachada sepulcral.
Aquilo inquietou-me, mas tentei acalmar-me. Apesar de tudo, se
acontecesse alguma coisa, os primeiros a notar seriam os próprios
guardas. Bastava não os perder de vista. O facto de ali estarem,
tranquilamente sentados ou deitados no terreno, era sinal de que, de
momento, nada de estranho tinha acontecido.
E pelas duas horas e trinta minutos, tal como programara Cavalo de
Tróia, Eliseu efectuou a primeira das chamadas ligações em cadeia. Até
às três horas e trinta minutos daquela madrugada, o meu companheiro no
módulo ir-me-ia recordando o horário de meia em meia hora. A partir
desse momento – e até às cinco horas – as chamadas, porque de tal se
tratava, efectuar-se-iam de quinze em quinze minutos. O Projecto tinha
previsto – e assim foi por todos os componentes da missão – que, em caso
de alta emergência, o módulo descolaria mesmo com um só astronauta.
(Nesta altura da operação, alta emergência significava apenas uma coisa:
que eu não pudesse ir ao encontro do berço antes da descolagem
automática.)
Naturalmente, não quis inquietar o meu irmão, explicando-lhe que
me encontrava fechado num pombal...
E pelas duas horas e quarenta minutos aconteceu o inexplicável.
Quando vigiava os movimentos do guarda, notei algo de estranho... Não
saberia como o explicar. Foi como que um abalo. Não, talvez a palavra
mais exacta fosse vibração...
Mas uma vibração seca. Quase instantânea. Sem ruído...
Cessou nuns décimos de segundo.
A minha primeira impressão foi confusa. Pensei que talvez o pombal
tivesse oscilado devido a alguma rajada de vento. Mas logo me apercebi
de dois factos importantes. Em primeiro lugar, não havia vento. E,
segundo, os pombos também tinham sentido aquela espécie de descarga
eléctrica... para de algum modo lhe dar um nome. Desta vez tenho a
certeza, não fui eu o causador do agitar dos pombos, que abriram as asas
e começaram a soltar um som parecido com o gluglu dos perus. Se se
tratasse de um novo sismo, Eliseu imediatamente o registaria e me daria
rápido aviso. Mas a voz do meu companheiro continuou muda.
Agarrei-me com força à rede metálica e concentrei os meus cinco
sentidos nos soldados. Dois ou três legionários tinham-se levantado, mas,
a não ser isto, tudo parecia tranquilo.
Ainda nem dois minutos tinham decorrido quando um novo abalo, ou
vibração, ou descarga – juro que não sei como o classificar – fustigou o
pombal e, a ajuizar pelo espanto das sentinelas, as cercanias do sepulcro.
As aves começaram a esvoaçar. As vibrações pareciam encadeadas.
Sucediam-se quase sem interrupção e com uma força que fez tremer a
frágil estrutura de tábuas onde me encontrava prisioneiro. Ao mesmo
tempo, e creio que foi isto o pior, um zumbido agudíssimo – infinitamente
mais forte e agudo que o de um gerador – me verrumou os ouvidos,
perfurando-me os tímpanos. Julguei enlouquecer. Tentei proteger os
ouvidos com as mãos, mas foi inútil. Aquele silvo continuava cravado no
meu cérebro com uma frequência muito próxima dos dezasseis mil Hertz.
Caí no chão, meio inconsciente e, quando pensava que a cabeça me ia
rebentar, tudo cessou. As vibrações e zumbidos desapareceram
inteiramente. Ao levantar o rosto, vi alguns pombos no chão, mortos ou
com os espasmos da agonia.
Levantei-me, como que movido por uma mola. Que era aquilo? Que
estava a acontecer?...
Ao olhar para fora vi os soldados meio caídos por terra, gritando e
agarrando a cabeça com as mãos. O zumbido, não havia qualquer dúvida
também os atingira. Chamei Eliseu, pedindo-lhe informação sobre a hora
e um possível registo nos sismógrafos. Eram duas horas e quarenta e
quatro minutos e, tal como suspeitava, os instrumentos de bordo não
detectavam oscilação alguma de terreno. Sem poder conter-me relatei a
Eliseu o sucedido, manifestando-lhe a minha preocupação pelo que estava
a acontecer. Durante os minutos seguintes, a calma foi completa. Os
soldados foram-se recompondo, travando uma viva discussão quanto ao
sucedido. Uns diziam que fora um novo terramoto. Outros, em
contrapartida, falaram de uma tempestade. Tempestade disse para
comigo. Observei o céu.
Continuava transparente, sem o menor sinal de nuvens.
Impossível, disse para comigo. Não conheço uma tempestade que
seja capaz de originar um zumbido como este. Além disso, como explicar
os abalos?
Alguns levitas insinuaram que deviam avisar os chefes, mas,
finalmente,perante a falta de motivos, desistiram e voltaram a sentarse.
Às três horas Eliseu fez a segunda chamada.
Perguntou-me se tudo continuava em ordem e, ao responder-lhe
afirmativamente, sugeriu-me que não me descuidasse.
- Às cinco – comentou – tomaremos chá...
Agradeci o gracejo do meu irmão. Bem precisava. Aquela tensão
estava a destruir-me. Quando começava a acreditar que tudo aquilo
podia ter sido fruto da minha imaginação, um novo acontecimento veio
agitar este parêntese. Sete ou oito minutos depois da última ligação com
o módulo, um silêncio estranho e anormal – muito semelhante ao que
tinha sentido em Getsémani – caiu sobre a zona. Observei os pombos.
Inexplicavelmente, tinham-se encolhido ao fundo dos pequenos
ninhos, visivelmente assustados. Escutei. Nada. Não se ouvia o mais
ligeiro som.
Os soldados romanos, intrigados com o silêncio, tinham-se posto de
pé.
Pelas três horas e dez minutos, a meio daquele espesso silêncio, um
calafrio percorreu-me dos pés à cabeça. Como um rugido, como uma mão
de ferro que se arrastasse sobre uma rocha, assim comecei a ouvir o
lento, muito lento, roçar de uma pedra por outra.
Se não tivesse assistido ao encerramento do sepulcro do Nazareno
com a enorme lousa acho que não teria associado aquele bramido com o
ruído da mó ao rolar pelo fundo da ranhura. O meu pressentimento viu-se
confirmado quando, subitamente, um dos levitas assomou à galeria do
sepulcro, lançando um grito assustador. Os seus companheiros e também
os legionários acorreram. Poucos segundos depois começaram a recuar,
gemendo e tropeçando uns nos outros. - As pedras – gritavam em plena
confusão. - As pedras estão a mover-se sozinhas!... As pedras!
Os guardas do Templo, invadidos por um pânico indescritível,
fugiram em todas as direcções, berrando e chocando nos ramos mais
baixos das árvores de fruto. Quanto à escolta romana, alguns recuaram
até à fogueira, desembainhando as espadas.
Dois, não sei se paralisados pelo terror ou mais audazes que os seus
companheiros, mantiveram-se à beira dos degraus que conduziam ao
panteão. Durante segundos que me pareceram séculos, o rugido da pedra
circular, rolando e arranhando a fachada do sepulcro, tudo encheu. Os
levitas tinham desaparecido do horto. Quanto aos legionários, embora
continuassem a poucos metros da abertura do túmulo, os seus rostos
estavam banhados por um suor frio.
De repente, o barulho da lousa cessou. E quase simultaneamente, da
galeria brotou uma labareda de luz. Não foi fogo. E também não o
poderia definir como uma explosão, entre outras razões, porque não ouvi
estampido algum. Só posso dizer que se tratou de luz. Uma língua, ou
bolha, ou radiação luminosa, de um branco azulado indescritível. Aquela
explosão luminosa – não encontro palavras para a descrever – saiu do
sepulcro. Disso, sim, estou certo. E prolongou-se instantaneamente até
às árvores mais próximas, situadas a pouco mais de quatro metros dos
degraus de acesso ao panteão.
A sua trajectória foi oblíqua, seguindo uma lógica via de escape. De
certo modo, lembrou-me uma onda expansiva mas luminosa. Em décimos
de segundo desapareceu e tudo ficou no mais absoluto silêncio. Os
soldados jaziam por terra, como mortos. Agitei-me, inquieto, tentando
ver alguém. Ali, era evidente, acontecera algo de anormal e inexplicável à
luz de toda a razão. Mas, por mais que percorresse o local com os olhos,
o sepulcro e as suas proximidades continuavam solitárias. A fogueira
estava a flamejar e do túmulo – de tal tinha a certeza – não saíra
ninguém. Mas, quem podia aparecer por aqueles degraus que não fosse o
próprio Jesus de Nazaré? Jesus de Nazaré?
Sem saber como nem porquê, sentei-me no chão do pombal, atirando
furiosos pontapés à portinhola. Tinha de sair. Tinha de entrar no
sepulcro e desvendar a tremenda dúvida que acabava de me assaltar.
Ainda lá estaria o cadáver de Jesus de Nazaré?
Maldita porta! Abre-te!
E num daqueles violentos pontapés, a portinhola saltou.
Enfiei-me como um louco pela abertura, seguido por um não menos
enlouquecido turbilhão de pombos. Recuperei a minha vara e corri, corri
sem fôlego. Os legionários, com os olhos muito abertos, continuavam por
terra.
E comecei a descer os degraus. Mas, a meio, de repente, tive medo.
Um pânico irracional que me eriçou os cabelos. Dei meia volta e saí dali a
correr, sufocado e com a língua endurecida como cartão.
Mas, quando me preparava para me aventurar por entre as árvores,
sem rumo certo qualquer coisa me deteve. É possível que fosse o bater
do coração acelerado para lá das cento e oitenta pulsações por minuto.
Respirei fundo, encostei-me ao tronco de uma das árvores de fruto e
tentei pensar. Tinha de voltar! Era preciso...
Carreguei na ligação auditiva e pedi a Eliseu que não me perguntasse
nada:
- Fala-me só, fala-me sem parar até que eu te avise.
Eliseu, bendito seja, não fez perguntas, mas, consciente de que algo
de grave acontecia, procurou animar-me...
- Tenho um livro nas mãos – começou – e vou ler-te uma passagem:
Olha a oriente... Olha a oriente do teu coração...
Nasce um novo sol...
Enquanto aqueles versos me soavam no cérebro como uma mão
mágica (nunca soube quem era o autor), voltei ao caminho, aproximandome
entre tremuras do fosso da cripta.
.. Dizem que deixa sulcos de liberdade... Dizem que é a esperança. A
esperança adormecida até hoje na outra margem...
Um, dois, três, quatro degraus... Só me faltava um. Respirei fundo
muitas vezes e, à luz da Lua, aproximei-me da fachada do sepulcro. As
duas pedras, efectivamente, tinham sido empurradas para a esquerda,
deixando a descoberto a escura cavidade da gruta. Mas, disse para
comigo, se os vinte guardas estavam ali em cima, quem fez rolar estes
penedos? O seu peso total devia ser mais de setecentos quilos... Os selos
do procurador estavam destruídos e tinham sido atirados para a galeria.
Comecei a suar... Entrava?... E se não estivesse?...
.. Olha para oriente... Para oriente de ti mesmo...
Tenho de entrar. E, acocorando-me, enfiei a cabeça. Mas a
escuridão no interior da cripta era total: cerrada como goela de lobo. É
impossível, disse para comigo. Preciso de um archote.
Voltei atrás pegando num dos lenhos chamejantes da fogueira.
Ainda que paralisados, os soldados estavam vivos. O pulso não
oferecia dúvidas. .. Está a amanhecer na costa do teu olhar... Brilha já
uma nova estrela...
Desci as escadas e com o coração à beira de uma síncope, introduzi
o facho pelo buraco da entrada. A luz avermelhada da madeira a arder
logo inundou a câmara sepulcral. Rastejei um pouco mais e ao levantar os
olhos, um abalo como que me destruiu a alma. O archote caiu no chão e
eu ali fiquei, de joelhos, de boca aberta e olhos fitos naquele banco de
pedra... vazio!
.. Já chega... Já tens o meu sinal nas tuas mãos...
E sem poder conter-me, as lágrimas começaram a correr-me pela
cara. O medo tinha desaparecido. Jesus de Nazaré não estava!... Mas aos
meus ouvidos continuavam soando os últimos versos de Eliseu: .. Já
chega... Já tens o meu sinal...
Deixei que as minhas lágrimas caíssem no chão do Sepulcro,
enquanto uma paz infinita me aliviava o coração torturado.
Sem pestanejar, sem me mover, examinei as mortalhas. O lençol
mortuário estava no lugar que o Nazareno ocupava. E entre ambos os
lados da mortalha, no sítio onde pousara a cabeça do Mestre, distinguiase
o relevo do sudário, ou lenço, com que Nicodemo lhe prendera o
maxilar inferior. Era como se o cadáver tivesse sido retirado dali por
sucção. Como se aquele grande corpo se tivesse evaporado. A posição da
mortalha – esvaziada sobre si mesma – não dava lugar a dúvidas. Se
alguém tivesse roubado ou transportado o cadáver, os lençóis nunca
teriam ficado naquela posição impressionante. Mas como? Como?, repetia
eu para mim, constantemente.
Primeiro foram as trepidações. Depois as pedras que rolam,
empurradas por uma força invisível e, por último, aquele fogo luminoso...
Como?
E agora, como o maior prodígio de todos os tempos, um sepulcro
vazio.
Seria preciso esperar pela minha segunda grande viagem à Palestina
do ano 30 para começar a ter a intuição do que acontecera dentro
daquele sepulcro. Foi a análise dos lençóis que nos deu uma pista. Como
antecipação, posso dizer que a ressurreição do Galileu – o facto físico e
milagroso da sua ressurreição – se deu poucos minutos ANTES da
desintegração dos seus restos mortais. Nada teve a ver uma coisa com a
outra. O cadáver evolara-se, sim, mas ANTES, insisto, Jesus tinha feito
o grande prodígio.
Finalmente, avisei o meu companheiro de que ia começar o meu
caminho de regresso à nave. E pelas três horas e trinta minutos, depois
de beijar o solo rochoso da cripta, deixei o horto de José de Arimateia.
Os soldados da Fortaleza Antónia ali continuavam, desmaiados, como
testemunhas mudas da mais formidável notícia: a Ressurreição do Filho
do Homem.
Pelas cinco horas e quarenta e dois minutos daquele domingo de
glória, 9 de Abril do ano 30 da nossa Era, o módulo descolou ao nascer do
Sol. Ao elevarmo-nos para o futuro, uma parte do meu coração ficou para
sempre naquele tempo e Naquele homem a quem chamam Jesus de
Nazaré.

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